EROTISMO E TRANSGRESSÃO NA ESCRITA DE ALPHONSUS DE
GUIMARAENS
Francine Fernandes Weiss Ricieri
Foi Carlos Drummond de Andrade, o leitor
de poesia, quem escreveu, em um texto de 1940: Muitos de nós nunca pegaram num exemplar de Kiriale ou de Dona Mística, já então introuvables, mas bastava o
estribilho da “Catedral”, um verso de
poema publicado nas rápidas
revistas da época,
para sentirmos no espírito toda a voltagem da poesia, incandescendo a
nossa substância. O lúgubre responso ressoava em nós.
E os navios
negros, as rosas
desfolhadas sobre as amadas mortas
(naquele tempo sentíamos previamente as amadas
que iam morrer), a
“medonha carruagem” que
conduz, a alma aos solavancos, o
cinamomo, o lírio,
a lua dupla
de Ismália tinham
para nós um
poder de libertação
e afastamento dessa matéria poética
tão pobre e falsa de
1920. Antes que
viesse o Modernismo,
já Alphonsus nos preservava dos males da época. E por muito mórbido que
fosse o seu reino, foi nele que aprendemos a ter a saúde e a coragem das
experiências.
O
trecho aparece em “Presença
de Alphonsus” e fornece
um testemunho sobre
o poeta que Alphonsus de
Guimaraens pode ter sido para uma geração que contou com alguns de seus
leitores mais ilustres: o criador de uma poesia cuja voltagem incandesceria e
tocaria espíritos, nas ressonâncias de um certo
responso lúgubre. Em um
tempo de matéria poética
pobre e convencional (oposição
que Drummond retoma em outros
escritos sobre Guimaraens) este
poeta seria fonte
de libertação e afastamento.
Alguma semelhança com o tímido recluso que
povoa os manuais de história literária? Ah, sim, os
responsos. Que para
o leitor Drummond anunciam (exatamente por serem mórbidos) a saúde, a coragem
das experiências. Que
para a institucionalização
histórica congelam-se em catolicismo
e convencionalismo místico:
tradições de apagamento de toda e
qualquer tensão.
Em 1960, era ainda Drummond quem assim se
admirava:
Esse
‘cordeiro angustioso’, quem o
ousaria chamar assim há
meio século atrás, com a nossa
poesia submersa num perau de convenções retóricas? Alphonsus, pela força mesma de seu isolamento
e grande distância geográfica e psicológica
dos meios literários
estabelecidos, lograva imprimir a
seus poemas uma tensão que
os torna hoje
palpitantes e comunicantes como só uns
poucos o percebiam naquele tempo, quando o maior número se
prendia ainda a uma poesia já sem segredos.
Tal
leitor esclarece, portanto, o que lhe soa palpitante e comunicante nos versos
que admira: a tensão. Uma
tensão que resgata do
convencional retórico e
de uma poesia
sem segredos, em um
processo, de todo modo, perceptível talvez a uns poucos leitores apenas.
Este
texto pretende considerar alguns
elementos configuradores da
tensão inerente à
poesia de Guimaraens, em seu
potencial transgressivo. Para fazê-lo – em um volume que se dedica a Drummond
–toma deliberadamente como mote o leitor Drummond e algo do que sua leitura
encontrou nos versos de Guimaraens – usualmente silenciados como isentos de
quaisquer surpresas ou segredos.
Salmos da noite é publicação póstuma de Alphonsus de Guimaraens (1870-1921).
Seus versos foram provavelmente escritos até 1890, mas o livro
só vem a público em 1942, no suplemento Autores e livros,reaparecendo na Obra
completa, de 1960, em cujo “Critério da Edição”, fazem-se os seguintes
comentários:
Poemas da mais extrema juventude do poeta,
assinalam uma fase que, de certo modo, se prolongaria até algumas páginas de
Kiriale. Valem sem dúvida menos em si mesmos do que pelo que anunciam de um
poeta que, partindo desses versos,
em que já
há uma nota
pessoal, embora imprecisa
ou indefinida, depois melhor se
afirmaria, conservando contudo inalterada a mesma atitude de desencanto e o
mesmo e dolorido lirismo.
Tomados “pelo que anunciam de um poeta”,
os versos parecem privilegiados para a formulação de uma
reflexão acerca do
lugar-comum crítico que postula
serem erotismo e
trangressão aspectos
desimportantes ou ausentes
da lírica de
Guimaraens: do conjunto
destaca-se uma representação
do feminino que muito resiste a
determinadas leituras dos
versos do poeta de
Kiriale. Por todo
o livro associada a morte,
perdição e danação, a figura feminina atualiza-se segundo arquétipos de mulher
fatal, em salmos esvaziados de qualquer sentido espiritualizante:
Ao teu olhar, oceano ora em calma ora em fúria,
Canta a minha paixão um salmo fundo e terno,
Como o ganido ao luar de uma cadela espúria ...
Salmo de tédio e dor, hausteante, negro e eterno,
E no entanto eu te sigo, ó verme da luxúria,
E no entanto eu te adoro, ó céu do meu inferno.
Na constituição de uma sensualidade
noturna e de uma mulher inconstante e cruel, somam-se paralelismo entre
salmo “fundo e
terno” da paixão
e “ganido ao
luar de uma
cadela espúria” aos vocativos em que a mulher surge como “verme da
luxúria”, “céu do meu inferno”. Imagens reeditadas em outros poemas do livro.
“Lírios do vício”traz uma figura que parece desfrutar do gozo de sentir-se
inacessível, distribuindo beijos com mãos “brancas e assassinas”. No sétimo
poema, “Salmos da noite”,ressurge a amada má e bela cujo coração é comparado a
um céu onde troveja o rancor e a uma ave fatal nas aras de uma igreja. O
apaixonado oscula-lhe colo e joelhos, “como o oceano a beijar uma enseada
maldita”, enquanto se deixa obcecar por sua cabeleira espessa:
Tu ornas de tal modo a cabeleira espessa,
Que ao vê-la, negra assim, de um negro tão sombrio,
Eu começo a pensar em um corvo que desça
Do céu, e quedo fique a olhar-te o corpo esguio,
Pousado a soluçar nessa tua cabeça ...
Em sua sacralidade inversa, esta figura de
longos e envolventes cabelos assemelhados a asas de corvos é a mesma
que, em “Encanto infernal”,enfeitiça e envenena o homem com sua voz de
“serpe avermelhada e suave”. Aparece,
ainda, associada à lua, aqui representada como astro de frialdade, de uma certa
arrogância tirana, ou de uma sensualidade algo grotesca. Sua
brancura é a mesma
que se atribui aos ossos e caveiras. E a mulher à qual ela se liga
(igualmente fria e branca) anda mais próxima de Lilith do que da Ismália que
celebrizou o poeta.
Da
mesma forma, a
insistência com que os
diversos poemas deste
livro (e de
outros) vão sucessivamente
reeditando imagens de aves agourentas (corvos, corujas, estriges), do crânio
“trevoso”, de suas órbitas
vazias, da ossatura e, eventualmente, da carne em decomposição
remetem a uma concepção de vida e de morte de que a
mulher amada (e a aventura amorosa) são,
às vezes, simples veículos de
expressão.
Trata-se de salmos, portanto, em que se
sacraliza a noite. Neles, o erotismo aparece como fonte de mal e
perdição. Mal e erotismo
(ambos da noite) casam-se
em sua valorização negativa e o tom
salmodístico revela-se paródia,
ironia. Mais: se a mulher erotizada
tende a ser tomada pela
tradição crítica como estranha
à poesia
de Guimaraens, sua presença
nestas páginas de
juventude não é aqui considerada
fortuita, dirigindo o olhar à observação de sua permanência em outros versos do
escritor.
O
fato é que, quando
se engavetam os
Salmos da noite, esta
mulher conjunção de beleza
e maldade não desaparece para dar lugar à figura espiritualizada que
celebrizou o poeta. Não se trata de “momento” passageiro e menos importante,
mas de uma das formas pelas quais se apresenta a mulher (e a morte a ela associada) nesta poética. Temos,
portanto, um outro elemento (não aspecto menor, não deslize de
juventude, não equívoco a ser
desconsiderado). Um
outro elemento: a estilização
de uma mulher satânica, signo de
rebeldia e da libertação, contraponto a um sujeito masculino paralisado entre a
ação e a inação.
Esta figura feminina parece ser a imagem
com que melhor contracena o sentimento de inação e impotência diante da
vida que se dissemina pela poética de Guimaraens. Demoníaca, possui e submete o
homem a seus desígnios sem, contudo (artimanha maior), prescindir totalmente de sua participação e vontade
para a concretização de uma forma difusa
de “mal” – que não deixa
de ter seu componente catártico.
O que torna esta mulher irresistível, imprescindível para aquele ao qual o
mundo revelou-se insano é sua sanha demoníaca. Inversão entre sagrado
e profano, ela desprende
um desejo de ação e rebeldia de que não é sujeito. Um desejo de
ação e rebeldia que se localiza no poeta.
Esta mulher, postada nas
encruzilhadas da perdição,
é a profana rainha do mal que,
por águas subterrâneas e torpes,
conduz o homem (tomando ela a ele pela mão) ao exercício algo prometeico da
própria danação. Ambígua como não poderia deixar de ser, com sua luz de treva
abjura o moroso outono pode conjugar atributos pagãos e católicos,
modificando-os mutuamente para erigir-se em anjo de duas faces.
Em um universo onde o sol é a própria
imagem do tédio, o olhar lunar é a face perversa – que encanta. A face Lilith.
A mesma que encontraremos na Prosérpina demoníaca de um outro poema de Salmos da noite:
XIV. Salmos da noite
Proserpina (sic) do mal, dá-me o veneno, dá-me
A delícia que escorre de teu seio de neve ...
Para
que eu ainda te ame,
Abre o rio do beijo ensangüentado e leve,
O Létis que me faz esquecer que és infame.
Eu sonho que o teu leito é a barca de Caronte,
Que desce pelo mar brumoso das orgias;
E fronte unida à fronte,
Vamos nós, eu e tu, tu e eu, noites e dias,
Sem ar no peito, sem clarões pelo horizonte.
Abre o seio infernal, abre o olhar negro e terno,
Onde geme o calor, onde soluça o frio,
Tu que és filha do inferno,
Podes abrir no peito um sepulcro sombrio,
Onde a minh’alma durma um sono mau e eterno.
Filha ideal de Satã, que o meu olhar absorto
Pouse nos olhos teus, pego medonho e atro
Onde paira o conforto,
E a dor, como as visões de um tenebroso teatro,
Onde um palhaço canta, onde repousa um morto.
Beijo talhado em carne, abismo eternamente
Sombrio e mau, por onde espio e me debruço,4
Abre o seio dormente,
Chora o teu pranto falso, e que em cada soluço
Do teu peito, eu escute a voz de uma serpente.
Abrindo-se com esta
“Prosérpina do mal”, versos adiante “filha ideal
de Satã”, o poema estabelece de saída
um cruzamento de campos. Tal cruzamento, tal fusão entre o mitológico e o
cristão resultam extremamente pródigos
no sentido em que
contribuem com a compreensão do grau de complexidade em que se
estão dando os diálogos entre
o sagrado e o
profano no conjunto
de textos considerado.
É
conhecida a ambivalência
clássica da figura mitológica aqui recuperada. Perséfone, filha de Deméter ou Ceres
(deusa da terra e da agricultura), desperta o
amor de Hades (Plutão), que a rouba, levando-a para seus domínios
subterrâneos. A mãe, vagando em busca da
filha, leva a terra à desolação ocasionando
a morte das plantações
e a fome. Quando Zeus intervém,
a deusa é trazida de
volta ao mundo exterior (ao qual devolve a abundância e a fecundidade),
com o arranjo de retornar anualmente à companhia de Hades, por seis ou três
meses, conforme a versão.
Sintetizando o poder duplo sobre a
fertilidade na terra e sobre a morte, torna-se a personificação do renascimento
cíclico na primavera. Ambivalência não
estranha a outros deuses clássicos, aos quais se costumava atribuir
simultaneamente um caráter
urânico (celeste) e outro
ctônico (subterrâneo). Disso resultava acentuada ambivalência ética,
possuindo tais entidades,
em geral, qualidades boas e más.
Assim, sendo Prosérpina
o princípio feminino de
Plutão (associado aos
infernos), nem ele nem
ela possuem, no sentido clássico, a unívoca conotação maléfica depois
atribuída: O deus geralmente reconhecido
como senhor do mundo subterrâneo era Hades, que presidia o sombrio e terrível reino das
almas mortas e levava a morte às colheitas, aos animais e à humanidade. Mas seu
outro nome era Plutão, deus da riqueza, pois o mundo subterrâneo não só consome
os mortos, recebendo as suas almas, como
também os seus cadáveres, mas ainda empurra
para cima os brotos
das plantas na primavera,
e portanto promete a renovação da
vida. A ambivalência
de Hades refletiu-se
na de sua esposa, a gentil
Perséfone, senhora da primavera, cujo cruel marido arrancou da face da terra.
Era ela que, na primavera, saindo de sua prisão subterrânea, tornava a terra
verde; mas era ela também que saía para liderar as Eríneas, os terríveis
espíritos de vingança, em sua impiedosa busca de ajuste de contas.
Assim as divindades do inferno, na Grécia
como em outros lugares, provocavam tanto o medo quanto a esperança.
É sabido que ao catolicismo foi possível
assimilar diversas divindades pagãs, convertendo-as em santos ou anjos.
Alguns mitos, no entanto, não se adequavam ao processo e, como no caso
mencionado, os traços “positivos” de sua caracterização tenderam a ser apagados
ou reavaliados. Seria desnecessário
assinalar, por exemplo, a
inconveniência da fecundidade
ligada a Prosérpina
(especialmente na associação ao
erotismo humano). O resultado é que, feitos os devidos retoques, tais figuras
estabelecem uma base para a visão de inferno que passará à tradição cristã,
como observa Carlos Roberto Nogueira:
Essa apropriação por
parte do cristianismo de idéias e cerimônias
emprestadas às religiões politeístas
tem a sua contrapartida no delineamento mais
límpido de sua teoria demonológica.
Tudo o que ele repeliu
energicamente como demasiado pagão,
como contrário a seus dogmas, como impuro
e ímpio, refugiou-se no reino do Mal. Aos demônios foram emprestadas as imagens
que os antigos atribuíam às suas divindades infernais. Eusébio encontra, na
descrição do Hades fornecida por Plutão, a morada da perdição, que assume para
os cristãos os nomes pagãos de Tártaro e Inferno.
Ainda segundo Nogueira, decorre desta assimilação
seletiva de figuras mitológicas que a “teoria demonológica” do
cristianismo passe a abrigar, como extensão ou “auxiliares” de Satã ou do
diabo, toda uma legião de entidades de ordem secundária do imaginário da
Antiguidade (“harpias e sereias, sátiros e centauros, gigantes monstruosos
e serpentes
aterrorizantes”). No conjunto
da obra de
Alphonsus de Guimaraens, vale
ressaltar o caráter transgressivo (demoníaco) presente nas freqüentes
enumerações de seres (mitológicos ou não) comum a todo um grupo de seus versos.
A Prosérpina do poema em questão, longe
de estabelecer ponto
de ruptura, está
inserida no processo de
“demonização” disperso pela produção do escritor. Um
processo diretamente correlato
à utilização do macabro, bem
como à satanização da mulher.
O que ajuda a reforçar a idéia de que, em
um livro como Salmos da noite, mesmo aqueles poucos poemas que parecem
aproximar-se de um recurso à idealização da mulher, o ideal assim configurado
não resiste a uma leitura mais atenta dos versos. Portanto, se há um certo tom
de litania na invocação com que se abre o poema “Salmos da noite”, os pedidos
feitos marcam o tom “esquerdo” da oração em curso:
Proserpina (sic) do mal, dá-me o veneno, dá-me
A delícia que escorre de teu seio de neve ...
Para
que eu ainda te ame,
Abre o rio do beijo ensangüentado e leve,
O Létis que me faz esquecer que és infame.
Destaque-se que a brancura feminina
aparece marcada pelo estigma opressivo de sua fatalidade e distância, e acentua certa frialdade cruel, certa
maldade bela. A
idéia de veneno (em
outros poemas associada a esta
mulher serpente) vem casada à de delícia
e ambas à de perdição. A hipótese de que “eu te ame” assume tons erotizantes,
que se acentuam, a seguir, na possibilidade de um beijo que, ainda que
“ensangüentado”, tenha algo de leve.
O sangue, a impureza, a carnalidade
degradada do curso do contato amoroso convertem-se, então, na leveza do curso
especial de um rio dotado do necessário poder de esquecimento. Com ele, por
ele, pode-se atingir o momento invocado
em oração: esquecer o que há de
infame na volúpia da sedução desejada e, pelo
esquecimento, pela “inconsciência”,
entregar-se à “fatalidade”
da conspurcação almejada...
Isto possibilita a
mudança de tom da
estrofe seguinte, com
a invocação mais
próxima de “realização”. Já é
sonho. E sonho “vive-se”, ainda que precariamente:
Eu sonho que o teu leito é a barca de Caronte,
Que desce pelo mar brumoso das orgias;
E fronte unida à fronte,
Vamos nós, eu e tu, tu e eu, noites e dias,
Sem ar no peito, sem clarões pelo horizonte.
O leito agora se mostra ambiguamente postado
entre as águas do rio de esquecimento em curso e os lençóis sobre os quais se
consumam as orgias. A imagem da mulher infame, contudo (seja ela a deusa
distante ou a amada que se
equiparou a tal deusa), associa-se com nitidez à figuração da morte,
pela introdução do barqueiro mitológico.
Nesta morte orgíaca, passa-se do rio leve,
da delícia que apenas escorre de um
seio, afinal, de neve, para um mar
brumoso, nebuloso. Muito mais denso e profundo, ele faz com que o amor ressurja
perverso da incapacidade de
relação mais pudica com
esta morte assim figurada.
A “passagem” é demorada e
extenuante como as orgias e “sem clarões” como o horizonte dos danados:
Abre o seio infernal, abre o olhar negro e terno,
Onde geme o calor, onde soluça o frio,
Tu que és filha do inferno,
Podes abrir no peito um sepulcro sombrio,
Onde a minh’alma durma um sono mau e eterno.
Filha ideal de Satã, que o meu olhar absorto
Pouse nos olhos teus, pego medonho e atro
Onde paira o conforto,
E a dor, como as visões de um tenebroso teatro,
Onde um palhaço canta, onde repousa um morto.
Quase uma ordem, o pedido que se segue
(estrofes 3 e 4) é o de acolhida do amante pela mulher que deseja
possuir. O pedido de
que, abrindo-lhe o
“seio infernal”, a “filha
do inferno” o receba
na tumultuosa dimensão da morte. Como acontece ao longo de tantos dos
Salmos da noite, a mulher agora oscila entre ternura e “negror”, calor e frio,
conforto e dor. E o que tem de medonho e atro não a torna menos sedutora.
Ocorre,
além disso, um
processo de espacialização da
mulher (associada a teatro,
a palco de contradições) que se
adensa na estrofe final, na qual ela se torna a própria imagem da terra...
inferno, abismo. Um abismo
irresistível – precisamente por
sombrio e mau –
em suas
múltiplas alusões (metonímicas ou
metafóricas):
Beijo talhado em carne, abismo eternamente
Sombrio e mau,
por onde espio e me debruço,
Abre o seio dormente,
Chora o teu pranto falso, e que em cada soluço
Do teu peito, eu escute a voz de uma serpente.
O apelo à parceira assume, então, com toda
a nitidez, o tom de conclamação à morte – que não é repouso, nem esquecimento
(como a alusão
ao Létis poderia
sugerir), mas entrega
voluntária ao conteúdo traiçoeiro
desta mulher-inferno a
quem o poema impõe
infinitas mutações. Serpente,
Eva, Lilith, Prosérpina, filha de Satã... seu seio tem, a despeito da
forma escolhida, a fecundidade geradora da terra e, se é
verdade que ela recebe sobre a testa
o estigma do mal, não se pode negar seu potencial criador, positivo, libertador.
Ainda que capaz de conduzir a alma do poeta
ao “sono eterno e mau”, ainda que falsa, perversa, dissimulada, a
mulher é invocada. Sua ambigüidade é, afinal, mais rica que a unilateral
miséria da vida.
A litania de “Salmos da noite” tem,
portanto, o peso da invocação de uma bênção maldita. A bênção de ser o sujeito
recebido neste contato sensual com uma morte, enfim, mais erótica que a vida.
Em diversos momentos da trajetória lírica
de Alphonsus temos a retomada direta de Prosérpina e dos símbolos a ela associados no poema “Salmos da noite”.
Especialmente dignos de menção seriam dois sonetos de
Pastoral aos crentes
do amor e da
morte. O primeiro,
“De onde te
vem a palidez profunda”,reabilita uma mulher, de
saída, caracterizada por sua palidez e pelo mistério de seu olhar tristonho. Um
luar de morte perpassa seu rosto e, quando o poeta a olha, o “estuante estige do pavor” o inunda. Acompanhada
do mal, ela é definida como
“a noiva dos infernais noivados” e em sua fronte, rútilo, cintila “o
rubro Sete-estrelo dos Pecados”.
O segundo soneto, “O Caronte infernal
pega dos remos”,sem recorrer à figura feminina, como outros poemas discutidos
neste capítulo, abre-se com uma
alusão ao reino de Caronte, ao Létis,
e os compara ao mundo terreno, retomando imagens associadas ao desespero
como o mar revolto e o sorriso irônico dos astros, passível de associação ao
sorriso irônico das caveiras e maxilares:
O Caronte infernal pega dos remos,
E a barca segue ... Létis ilusório!
Que és tu, em face deste purgatório,
Onde por noites pávidas vivemos?
O
mesmo processo lança luzes sobre algumas imagens
usualmente consideradas estranhas ao universo poético em questão e que
encontramos nos poemas “Contigo”, “Maldade Santa”, “O ósculo de Cristo”, “No
horto” e “Os dois mártires”. Os quatro primeirosforam publicados em 1942 como
parte do caderno manuscrito Salmos da noite e depois não reapareceram na Obra
completa de 1960, em que o livro vem a público (enquanto livro) pela primeira
vez. O último aparece no mesmo periódico, na seção “Sonetos de Alphonsus de
Guimaraens não incluídos nas Poesias” e
igualmente não foi retomado na publicação de 1960.
“Contigo” e “Maldade Santa” evocam um processo
de representação da mulher segundo
recursos que os aproximam dos poemas discutidos nesta seção. Em “Contigo”,
sucedem-se seis estrofes em que reaparecem
desde a imagem do poeta
solitário em seu exercício poético até a infâmia
do mundo e a desejada maldade branca da nudez feminina.
Esta mulher que surge como a “imagem sagrada de alguma santa erguida em meio
duma igreja” inscreve-se, a despeito disso, sob o signo da inversão que se discute
aqui:
Nevada, toda nua,
No fundo de minh’alma aclareada apareces,
Como a virgem da fé, pelas noites de lua,
Aparece no olhar dum ermitão em preces.
O
poema, enquanto conjunto, dá a impressão de
obra inacabada,o que também se sente em “Maldade Santa”,
onde reaparece, sobretudo na estrofe final, a mesma “turvação” da sacralidade:
Tenhas ódio no olhar, tenhas no olhar ternura,
Zangada sejas ou sejas de bem comigo,
Sempre que te contemplo, eu sempre te bendigo,
Lírio do meu amor, deusa da formosura.
Ah! da minh’alma eu faço um palacete antigo,
E lá, nessa mansão de paz e de ventura,
Que é um céu, onde a luz do ocaso fulgura,
Beijando-o de alto a baixo, amo e vivo contigo.
És boa quando és má para mim. Não te amasse
Como eu temo [sic], e talvez já tivesse fugido
Desta venustidade ideal de teu semblante.
Mas amo-te! E ao olhar-te a palidez da face,
Nuanceada de carmim, penso, vulto querido,
Numa hóstia onde corresse o meu sangue de amante.
Mais “transgressivas”, contudo, que a
nudez da santa de igreja a quem se dedica um amor algo desgrenhado ou que
esta hóstia em que
se consagra o sangue
da carnalidade parecem ser mesmo
as imagens de um Cristo ambiguamente
envolvido pela figura de Madalena, que aparece nos outros três poemas mencionados.
Em “O ósculo de Cristo”, a
tensão entre a pureza mística e
o amor erotizado mantém-se não resolvida:
Noite hebréia
de luar. Sobre a terra cintila
O amplo sendal do céu, pontilhado de luz.
Uma benção astral beija branca e tranqüila
A alma de Madalena e a boca de Jesus.
Dorme em paz a Betânia. Ao vento o luar oscila.
Destacam-se no horizonte atroz granitos nus.
E dum lado da floresta arvoredos em fila
No mistério da Noite, erguem braços em cruz.
“Rosa do meu amor, bendita que tu és!”.
E disse ainda Jesus: “Se de mim só tu foras,
A crença e a religião ia depor-te aos pés!”
Beijou-lhe o seio e a boca e as faces tentadoras:
E o seu beijo febril dos tempos através,
Até hoje redime as almas pecadoras.
A posse sensual apenas (apenas?) hipotética de Madalena (“Se
de mim só tu foras,/ A crença e a religião ia depor-te
aos pés!”) deixa em suspensão a extensão do beijo febril de Jesus em seio, boca
e faces tentadoras da “rosa” de seu amor. Também a redenção das almas pecadoras
admite dúplice leitura diante deste Cristo humanizado que sente desejo sensual e pensa em abandonar sua
missão divina pela personagem bíblica. O beijo febril redime por sua pureza, ou
o faz precisamente pelo conteúdo impuro que admite como viável até mesmo para a
figura de Cristo?
A tensão reaparece em “No horto”, em que
Jesus, em um momento de “blasfêmia louca” e “inda o mel do beijo teu sentindo”
igualmente lamenta não abandonar “o cálix da amargura” para dedicar-se ao amor
de uma “Madalena pura”. Finalmente, em “Dois mártires” Cristo aparece como
“sábio carinhoso”.
O epíteto, a despeito de manter a simpatia
por sua figura, destitui-a de sua aura sagrada, humanizando-a igualmente:
Dizem que Cristo, o sábio carinhoso,
Quando caiu no seio da agonia,
Tinha um sorriso para o azul formoso
E para a multidão ele sorria.
É que um vulto sagrado e lutuoso
Pranto de sangue e dor triste vertia
E dos cabelos o lençol piedoso
Sobre os seus pés olímpicos estendia.
Era Maria de Magdala o santo
Vulto que a fronte angélica de pranto
Correr deixava, divinal, brilhante ...
Mais infeliz tu foste, ó Tiradentes,
Pois não sentiste as
lágrimas dolentes
Da tua doce e afetuosa amante.
O processo de humanização completa-se na
estrofe final em que o mártir religioso é comparado ao histórico: próximos
e distantes pela amante
que ambos teriam possuído,
mas de cuja companhia Tiradentes
não teria desfrutado em seu momento derradeiro. A palavra “amante” (doce e
afetuosa) leva inevitavelmente a um desdobramento da leitura
dos versos anteriores.
Ao dom físico do carinho atribuído a Cristo, associa-se a
erotização do gesto de Madalena enxugando-lhe os pés com os cabelos, além da
ambigüidade que se estende ao
sorriso brotado na cruz. O poema
retoma, deste modo, a pressuposição contida nos dois anteriores
de um amor de Cristo por Madalena que possivelmente não se limitasse a uma
dimensão mística.
Ao contrário do que se especializou em
afirmar certa tradição crítica, estas mulheres, deusas ou concubinas, clássicas, bíblicas ou
literárias não são
figuras acidentais na escrita
do poeta. Antes, formulam, estabelecendo
dissonâncias, a precária
transgressão de que são passíveis
os sujeitos deserdados nela recorrentes.
Responsáveis por amenizar
as cargas existenciais
de uma voz
poética estagnada e entorpecida, diferentes mulheres
emergem de diferentes
tradições e são insistentemente acionadas.
Todas
estas figuras convergem para a
benção proferida pela “foice
áurea da
Parca” sobre o “castigo fatal” que
é ter vindo ao mundo. Uma benção que
assinala, em sua especificidade, a escassa positividade de que são passíveis
os condenados. Nestas figuras femininas, em sua maldição demoníaca, repousa o
gesto mínimo. No caso específico de Prosérpina, a ambigüidade é inerente ao
mito. Em um universo poético tão lúgubre, erotismo e transgressão descobrem-se
possíveis precisamente do resgate de ambivalências, do mergulho na morbidez.
Escrevendo
Alphonsus em um
limiar histórico em
que diferentes atividades
do pensamento
humano
confrontavam-se com a ambivalência, as contradições e multiplicidades do
sujeito, sua poesia tem sido com freqüência reduzida à univocidade das
ladainhas e carolices. Drummond, em 1940 (antes, portanto, do aparecimento de
Autores e Livros), já intuía a ambivalência no que conhecia do poeta.
Em 1960, quando já se tinham
publicado as edições das Poesias de 1955e
1960,escreveu “Todo Alphonsus”.
Também já publicara pelo menos dois outros
textos em que deixava transparecer a alegria do
confronto com um poeta
plural, contribuindo, “como
as alegrias devem ser compartidas”,com a divulgação de “versos esquecidos”
(referência à produção humorística de Guimaraens) e advogando a “conveniência
de um levantamento de sua produção desse gênero”.
E
por que, na
condição de leitor,
Carlos Drummond de Andrade,
em tão diversas ocasiões, solicitou a busca de
um “retrato inteiro”, de uma “completa imagem do poeta”que admirava, talvez se
possa emprestar um compasso de homenagem a este ensaio. Estariam unidas, então,
as palavras do poeta às palavras de um de seus mais delicados leitores, corpo
de letras contra corpo de letras, sem pudores ou receios de que as imagens se
revelassem em tensão, em espessura, em complexidade. A poesia, por sua vez,
estaria reabilitada como outra figura feminina destas demonizadas (transgressão
erotizada).
Para ilustrar este operoso movimento de busca mútua, em que o leitor erotiza uma palavra (de outro modo estática e morta), a imagem mais precisa talvez possa ser encontrada
em um dos poemas organizados sob o designativo “Lendo
Shakespeare”, em que flagramos Guimaraens,
leitor de outro poeta, também com ele se fundindo
(confundindo-se) por imagens. Evoca-se, ainda esta vez, outra figura tanática,
erótica, ambivalente:
Soneto de
Desdêmona
Deixei que o lírio de meu corpo suave
Se unisse à noite de teu corpo: amei-te.
Eras um sol de estio... Eu, era uma ave...
Sombras em meio de um palor de leite!
Foi um grande gemido, agudo e grave:
A alma dorida que era minha dei-te ...
Mas, ai! pobre de mim! Deus quer que eu cave
A fria cova estreita onde me deite.
Já não crês em mim, amortecida
É a esp´rança que me guiava os passos tristes:
Sem teu amor a vida não me é vida.
Como a acenar um branco adeus imenso
– Já não existo nem tampouco existes –,
Vai separar-nos para sempre um lenço...
No
encontro breve de tons
condenados à distância, na
tensão libertadora destes
intercursos, parecem mais significativas as palavras citadas na abertura
deste ensaio. O que leva a pensar que o leitor Drummond, a certa altura,
desaguará nos caminhos do poeta Drummond e em tantas de suas curvas nos devolverá
ao que de erótico e produtivo a morte e a morbidez podem despertar. Em outro
registro, em outro contexto, esboça-se ainda o sonho da impureza, a coragem
desta permissividade em que – limites esfacelados – o encontro do que se aparta
crie –transgressivo – algo de outro, um tom inesperado, uma surpresa que por
instantes violente (aurora fugidia) a inevitável convenção:
Por entre os objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.
Erotismo e transgressão na escrita de Alphonsus de Guimaraens
www.letras.ufmg.br/.../(2002)14-Erotismo%20e%20transgressão.pdf
AS METÁFORAS DA MORTE NA POESIA DE AUTORES DA
LITERATURA BRASILEIRA: UMA ABORDAGEM LINGUÍSTICO-COGNITIVA
Vanessa Sales Carvalho (PIBIC-CNPQ)
Orientadora: Profa. Dra. Silvana Maria Calixto de Lima
(UESPI)
1. Introdução
Apresentamos, neste trabalho, o resultado
final do projeto de pesquisa “As metáforas da morte na poesia de autores da
literatura brasileira: uma abordagem linguístico-cognitiva”, desenvolvido no
período de agosto/2009 a agosto/2010.
Nos estudos que realizamos, vimos que,
durante a antiguidade clássica, a metáfora era vista apenas como um adorno ou
figura de linguagem de uso exclusivo dos poetas. No entanto, o lançamento da obra Metaphor we live by, em 1980, escrita por
Lakoff e Johnson, proporciona uma nova visão da metáfora, que passa a ser vista
sob uma perspectiva linguístico-cognitiva, na qual compreende-se que a
significação emerge da interação ente mente-corpo-mundo, uma vez que “nosso
sistema conceitual, em termos do qual pensamos e agimos, é de natureza
fundamentalmente metafórica” (LAKOFF:
JOHNSON, 2002, p. 3).
A Teoria da Metáfora Conceitual nos mostra
que uma metáfora conceitual pode licenciar várias expressões metafóricas
utilizadas tanto na linguagem do cotidiano como na linguagem poética. No trabalho em questão, o nosso foco foi na
investigação das metáforas conceituais que licenciam a conceitualização da
morte no corpus constituído para análise.
Constatamos que há um númerosignificativo de metáforas conceituais na
subjacência das expressões linguísticas metafóricas empregadas na
conceitualização da morte nos poemas analisados. A realização dessa investigação nos
possibilitou a identificação e a compreensão dos diferentes modelos
cognitivo/culturais nos quais se erige o conceito MORTE.
2. Objetivos
Este trabalho tem como objetivo geral
aplicar a Teoria da Metáfora Conceitual na investigação da conceitualização de
morte, investigando-se, à luz dos
pressupostos teóricos da Linguística Cognitiva, as metáforas conceituais
empregadas por poetas da literatura brasileira na conceitualização da morte, a
fim de fazer um inventário e análise das
metáforas conceituais identificadas no corpus constituído para análise.
3. Metodologia
Numa primeira fase, realizamos estudos e
discussões acerca da fundamentação teórica básica do trabalho, ou seja, a Teoria da Metáfora Conceitual (LAKOFF;
JOHNSON, 1980). Após essa fase, selecionamos os
quatorze poemas de autores da
literatura brasileira, sobre a temática da morte, que constituíram o nosso corpus de pesquisa. Feito isso, passamos à
fase da análise, período em que
identificamos e examinamos as ocorrências linguísticas do corpus licenciadas por metáforas conceituais
que estruturam a conceitualização da morte, embasados pela Teoria da Metáfora
Conceitual.
4. Resultados e discussões
Para se compreender a Teoria da Metáfora
Conceitual, é preciso observar que ela está no âmbito da Semântica Cognitiva,
que, por sua vez, é uma dos ramos da Linguística Cognitiva. A Linguística
Cognitiva é uma das áreas de estudo da linguagem que surgiu da insatisfação com
a abordagem formalista da língua. Como afirma Lima (2009, p. 67), o objeto de
estudo dessa ciência “concerne às investigações que envolvem o tripé linguagem
humana-mente-experiência físico-social”, o que nos leva a compreender que a
linguagem humana e, por extensão, os pensamentos e ações, são frutos da
experiência humana nas suas mais diversificadas interações.
Segundo a referida autora, com base em
Lakoff (1990), a Linguística Cognitiva possui dois compromissos fundamentais: o
compromisso com a generalização e o compromisso cognitivo. Afirma ela que tais
compromissos são a base para os estudos realizados pelos dois campos da
Linguística Cognitiva: a Semântica Cognitiva e a Abordagem Cognitiva da
Gramática. O primeiro compromisso é
assim definido:
O compromisso
com a generalização não parte do
pressuposto da existência desses módulos da língua, organizados de formas
diferentes, pois, antes de tudo, assenta numa proposta mais ampla, que se ocupa
em investigar de que maneira os vários aspectos do conhecimento linguístico
podem emergir de um conjunto comum de habilidades cognitivas a partir das quais
se configuram. Por essa ótica, não se assume que o conhecimento linguístico
seja produzido em módulos encapsulados na mente. (LIMA, 2009, p. 68)3
Esse compromisso opõe-se a uma abordagem
formal da língua que a concebe de maneira fragmentada, como se o conhecimento
fosse modular. A autora defende, pois,
que o conhecimento linguístico seja estudado de forma mais ampla, abarcando a
forma como esse pode emergir das habilidades cognitivas a partir das quais toma
uma configuração.
O segundo compromisso, o compromisso cognitivo, “define-se pela
proposta de caracterizar os princípios gerais da língua em consonância com os
conhecimentos de outras disciplinas que se ocupam do estudo da cognição humana”
(LIMA, 2009, p. 68). É importante ressaltar que a sua base é o primeiro
compromisso, dizendo respeito basicamente à união entre as disciplinas que
tratam da cognição, para que melhor se possa estudar a língua.
Como dito, a Semântica Cognitiva é um dos
ramos da Linguística Cognitiva. O seu foco é o estudo do significado. O
objetivo deste trabalho está intimamente relacionado com a Semântica Cognitiva,
razão qual pela não nos deteremos na descrição
de seus principais fundamentos.
A Semântica Cognitiva tem seu marco
inaugural no lançamento da obra Metaphor we live by, em 1980, por Lakoff e
Johnson. Essa área, diferentemente da Semântica Formal e da Semântica
Argumentativa, que defendem, respectivamente, que o significado reside numa
referência de verdade no mundo e na própria linguagem (no jogo da
argumentação), assume que o significado emerge da interação entre
mente-corpomundo, divergindo também da visão clássica de cognição que separa
corpo e mente.
Para
a Semântica Cognitiva, o indivíduo interage com o mundo e aprende esquemas
imagéticos e categorias de nível básico que norteiam a construção do
significado. Como exemplo, podemos citar o esquema do CAMINHO, descrito por
Johnson (1983, apud LIMA, 2009), em que o indivíduo aprende desde pequeno que
um caminho consiste na saída de um ponto a outro, possuindo, dessa forma, um
ponto de partida e um ponto de chegada; mais tarde esse esquema vai servir de
base para expressões utilizadas no dia-a-dia, como “Fui do quarto para a
cozinha”. Esse conceito se estende via metáfora. Já as categorias de nível
básico, que são as primeiras a serem construídas pelo aparato cognitivo, se
estendem através do mecanismo metonímico. Primeiro se aprende as categorias de
nível básico para mais tarde aprender categorias de nível mais abstrato, como
se vê na sequência das categorias BLUSA, ROUPA e CAMISETA. 4
Feita a contextualização da área em que se
insere este trabalho e considerando que o seu objeto está intimamente relacionado
ao estudo da metáfora numa perspectiva cognitiva, passamos a tratar, de forma
mais específica, dos pressupostos teóricos que norteiam a investigação
proposta, ou seja, da Teoria da Metáfora Conceitual.
A Teoria da Metáfora Conceitual é um modelo
erigido por Lakoff e Johnson com o lançamento da obra Metaphor we Live by, em 1980, no qual os
autores se contrapõem à visão tradicional da metáfora como figura de linguagem,
de uso exclusivo dos poetas, e postulam que “nosso sistema conceitual comum, em
termos do qual pensamos e agimos, é de natureza fundamentalmente metafórica”
(LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 3). Dessa
forma, a metáfora integra nossa vida cotidiana e não somente a linguagem. O ser
humano utiliza expressões linguísticas metafóricas porque existe
metáfora em seu
sistema conceitual, uma vez que a
metáfora está presente em nossos pensamentos e ações, passando a ter uma
abordagem cognitiva, conforme pontua Lima (2009).
Lakoff e Johnson (2002, p. 47-48)
defendem que “a essência da metáfora é compreender e experienciar uma coisa em
termos de outra”, logo a metáfora consiste num mapeamento entre dois domínios
conceituais: o domínio-fonte e o domínio-alvo, sendo que o primeiro é mais
físico e o segundo mais abstrato. Como
exemplo, podemos citar a metáfora conceitual MORTE É SONO, em que MORTE é o
domínio-alvo e SONO é o domínio-fonte. É importante ressaltar que a
significação da metáfora surge da interação entre mente-corpo-mundo. Desse
modo, a cultura em que estamos inseridos influencia diretamente no significado
ou até mesmo no surgimento de uma nova metáfora conceitual.
Caracterizada brevemente a Teoria da
Metáfora Conceitual, passamos à análise do corpus investigado, constituído por quatorze poemas
da literatura brasileira que versam sobre a temática da morte.
Na análise, inicialmente identificamos a
ocorrência da metáfora conceitual MORTE É SONO, que tem como domínio-fonte SONO
e o domínio alvo MORTE. Esta é utilizada por quatro dos sete autores das
poesias constituintes do corpus. A grande utilização desta metáfora pode ser
explicada pela experiência corpórea de uma proximidade aparente entre uma
pessoa morta e uma pessoa que está dormindo, uma vez que em ambas as
circunstâncias os indivíduos encontram-se deitados e com os olhos fechados,
completamente inertes. Tal metáfora licencia várias expressões utilizadas pelos
poetas, como podemos ver nos seguintes trechos:5
Hirta e
branca... Repousa a sua áurea cabeça
[...]
De mãos postas, num sonho ausente, a sombra espessa
[...]
Na sonolenta paz desta Câmara-ardente...
(GUIMARÃES, 2001, p. 54)
E ninguém surge aqui para velar-te o sono!
E depois, nesse Morro onde a Alma em sonhos erra,
[...]
Há de dormir, sempre ao clamor da mesma guerra,
[...]
(GUIMARÃES, 2001, p. 55)
Vou cantar-te uma página da vida
De uma alma que penou, e já descansa.
(AZEVEDO)
E minh'alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto
(AZEVEDO)
Depois com o maior carinho
Os dois olhos lhe cerrou...
(BANDEIRA, 1986, p. 194-195)
Quando eu dormir, tranqüilo, inerme,
Quero que a noiva, dentre o pó,[...]
(DA COSTA E SILVA, 2007, p.39)
Notemos que as expressões “repousa”,
“sonho”, “sonolenta”, “descansa”, “dorme” ,“olhos lhe cerrou” e “dormir",
destacadas nos trechos de (1) a (6), são
todas licenciados pela metáfora conceitual MORTE É SONO.Observemos agora os
trechos seguintes:
Do seu corpo escurece a luz dos quatro círios:
Ela faz-me pensar numa ancestral Condessa
Da Idade Média, morta em sagrados delírios.
(GUIMARÃES, 2001, p. 54)6
(E minh'alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto
(AZEVEDO)
Nos trechos (7) e (8), já podemos
identificar a existência de outra metáfora conceitual, ou seja, MORTE É
ESCURIDÃO, cujo domínio-fonte é ESCURIDÃO e
o domínio-alvo MORTE. A partir do mapeamento entre esses domínios, é
possível o licenciamento das expressões metafóricas escurece a luz dos quatro
círios, Idade Média etreva, empregadas na conceitualização da morte. Na
identificação dessa metáfora, é necessário ativar o conhecimento prévio que
envolve o conceito de Idade Média, vista na história como o século das sombras,
da escuridão. Essa metáfora aparece imbricada também com outra metáfora, MORTE
É PARA BAIXO, já que pelas nossas experiências corpóreas sabemos que quanto mais profundo mais
escuro. Além disso, a metáfora
conceitual MORTE É ESCURIDÃO tem íntima relação com outra metáfora identificada
no corpus, ou seja, MORTE É MISTÉRIO, em
que o domínio-fonte é MISTÈRIO e o domínio-alvo é MORTE, visto que se pode
inferir que o que está no escuro é um mistério para os indivíduos, uma vez que
estes não conseguem ver. Tudo o que é desconhecido constitui um mistério. Segue
um dos trechos em que essa metáfora é identificada, atentando-se para o fato de
que o enunciador concebe a morte como uma soma de vários mistérios que insistem
em não serem desfeitos.
Ele apenas responde
(se acaso é responder
A mistérios, somar-lhes
Um mistério mais alto)
(ANDRADE, 2001, p.106-108)
Outra metáfora conceitual identificada na
conceitualização da morte é MORTE É UMA VIAGEM, na qual a morte é concebida
como uma passagem de um ponto (vida terrena) a outro (vida eterna). Tal
metáfora é estruturada via esquema do CAMINHO, já descrito. Vejamos os trechos:
Depois de morto, quando eu chegar ao outro mundo,
(...)
(BANDEIRA, 1986, p. 258)7
Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
(AZEVEDO)
Nesses trechos, as expressões: “quando eu
chegar ao outro mundo” e “Adeus, [...] não levo da existência” revelam a
concepção dos enunciadores de que a morte é apenas a passagem de uma vida para
outra, o que a caracteriza como uma viagem. O domíniofonte dessa metáfora é
VIAGEM e o domínio-alvo é MORTE.
A metáfora conceitual MORTE É O DESTINO
FINAL também é identificada no corpus e nesta a morte deve ser encarada como o
fim de todo ser mortal, algo de que não se pode fugir, pois todos somos
predestinados à morte. O domínio-fonte dessa metáfora é DESTINO FINAL e o
domínio-alvo é MORTE. Vejamos a ilustração que segue:
Entre as aparências sem rumo,
Responde o poeta: Ao meu destino.
(...)
O chamavam, sem que ninguém
Pressentisse, em torno, o Chamado.
(ANDRADE, 1998, p.71)
Alguns autores concebem a morte como um
renascimento, daí a metáfora conceitual MORTE É RENASCIMENTO, em que o
domínio-fonte é RENASCIMENTO e o domínio-alvo é MORTE. Essa metáfora conceitual vem de uma crença ou
modelo cultural de que existe vida após a morte. A concepção de morte como renascimento traz
embutida uma outra metáfora que revela outra forma de conceber a morte, ou
seja, A MORTE É PARA CIMA. Vejamos algumas expressões licenciadas por essa
metáfora nos seguintes trechos:
O poente funeral do teu olhar antigo,
Para não mais ressuscitar aqui no mundo
(GUIMARÃES, 2001, p. 55)
Qualquer tempo é tempo.
A hora mesma da morte
É a hora de nascer
(ANDRADE, 2001, p. 74)
Outros autores veem a morte como uma
transformação e utilizam expressões licenciadas pela metáfora conceitual MORTE
É TRANSFORMAÇÃO, cujo domínio-fonte é TRANSFORMAÇÃO e domínio-alvo é MORTE,
como se observa num trecho de um poema de Álvares de Azevedo:
Agora tudo é cinza.
Resta apenas
A caveira que a alma
em si guardava
(AZEVEDO)
A metáfora conceitual MORTE É UMA PESSOA
ocorre aliada ao fenômeno da recategorização, estratégia referencial pela qual
a morte é concebida na forma de mulher, de noiva, ladrão ou pastora. Essa
metáfora que licencia as recategorizações de morte pode ser observada em vários
poemas. Em (17), tem-se a recategorização da morte como uma mulher
materializada pela expressão a Dama
Branca. Já em (18), a morte é recategorizada como a Indesejada das gentes:
A Dama Branca que eu encontrei,
Faz tantos anos,
[...]
(BANDEIRA, 1986, p. 62-63)
Quando a
Indesejada das gentes chegar
(não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
(BANDEIRA, 1986, p. 202)
Outra recategorização licenciada pela
metáfora MORTE É UMA PESSOA é a de morte como noiva. Nesse caso, a morte é
concebida como aquela que será recebida como esposa, numa espécie de comunhão
com outra vida.
Tenho uma
noiva: é Dona Morte.
Meu casamento vou fazer,
(DA COSTA E SILVA, 2007, p. 39)
Ó Noiva do Sepulcro, solitária,
Branca e sinistra no clarão dos círios!
(SOUZA, 2002, p. 49)9
A morte como uma pastora é outra
recategorização licenciada pela metáfora conceitual MORTE É UMA PESSOA,
ilustrada no trecho seguinte:
E eu neste Horto da Vida, alma em dúvidas, anho
Perdido; e a Morte a conduzir seu rebanho
Ao sol, à chuva, ao luar, no Redil do Mistério.
(DA COSTA E SILVA, 2007, p. 43)
Por último, identificamos a metáfora
conceitual MORTE É UM LADRÃO, ilustrada nos trechos (22) e (23). Tal metáfora
pode ser explicada pela concepção de que a morte tira das pessoas a vida, sem
pedir licença, bem como o direito de estar em companhia dos amigos e
familiares, como se constata nos trechos finais seguintes:
Esqueleto
armado de foice
Que a mãe lhe um dia levou.
(BANDEIRA,1986, p. 194-195)
Na minha vida sem lei nem rei
Por uma noite de muito frio,
A Dama Branca levou meu pai.
(BANDEIRA, 1986, p. 62-63)
5. Conclusão
Na investigação procedida neste estudo,
onze metáforas conceituais que licenciam a conceitualização da morte em poemas
da literatura brasileira foram identificadas, a saber: MORTE É SONO, MORTE É
ESCURIDÃO, MORTE É PARA BAIXO, MORTE É UMA VIAGEM, MORTE É UMA PESSOA, MORTE É O DESTINO FINAL,
MORTE É MISTÉRIO, MORTE É RENASCIMENTO,
MORTE É
PARA CIMA, MORTE É
LADRÃO, MORTE É TRANSFORMAÇÃO. Tais metáforas são muito produtivas, pois
aparecem várias vezes na construção dos poemas e em sua grande maioria são utilizadas
por mais de um poeta. Ressaltamos que as metáforas conceituais identificadas
constituem diferentes maneiras de ver a morte de acordo com cada cultura, cada
época e crença. Dessa forma, pode-se concluir que os estudos sobre a metáfora
conceitual são bastante produtivos para a compreensão dos modelos
cognitivos/culturais que estão por trás da conceitualização de morte nas mais
diversas escolas da literatura brasileira. Além disso, a compreensão da
metáfora não apenas como 10um adorno da linguagem poética pode nos ajudar a
ampliar os nossos horizontes quanto à construção do sentido do texto.
Por questão de espaço, deixamos de incluir
neste trabalho, como anexo, os poemas constituintes do corpus. Mas deixamos claro que os trechos
apresentados na análise, para uma melhor visualização das metáforas ilustradas,
não devem ser vistos de forma isolada da construção global dos poemas
analisados, cuja temática, reiteramos, é a morte. Da mesma forma, apesar de
termos separado as metáforas para efeito de ilustração no corpus, temos ciência
de que essas metáforas podem aparecem concomitantemente nos poemas.
AS METAFORAS DA MORTE NA POESIA DE AUTORES - Uespi
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