A IMPORTÂNCIA DA POESIA DE MÁRIO QUINTANA
A POESIA NO CONTEXTO
ESCOLAR: CONTRIBUIÇÕES PARA FORMAÇÃO DE LEITORES REFLEXIVOS E CRIATIVOS
Vimos que atualmente nas aulas de língua
portuguesa a leitura é algo pouco explorada, mas sabemos que ela é de fundamental
importância para a construção de conhecimentos, pois através dela o aluno
conhece diferentes culturas, etnias, lugares e crenças. Infelizmente, o
incentivo a leitura da poesia ficou esquecido dentro do contexto escolar, pois
os professores em sua maioria optam em tratar em sala de aula, de assuntos
considerados “mais sérios”. Mas, no fundo, todos os educadores sabem da
importância e da grande influência que a poesia tem em nossas vidas e na
formação de leitores mais proficientes e de cidadãos mais críticos. Portanto,
quem lê poesia não está considerando assuntos que não são sérios, pelo
contrário, vive a realidade, passa a olhar com mais verdade o mundo.
Conforme Pinheiro (2003) a crise da leitura de
poesias na escola acontece principalmente porque a poesia não é vista com o
valor em si mesma. Para ele, a poesia só será um dos gêneros valorizados no
âmbito escolar quando for compreendida em sua essência. Assim, é importante ter
cuidado na escolha do poema a ser tratado e como será abordado. Segundo Gebara
(2007), a leitura do poema acaba sendo feita de forma equivocada em que na
maioria das vezes ele é lido com a utilização de estratégia da recitação ou
leitura dramatizada, servindo apenas como método decorativo nas aulas. Com
isto, o texto poético é visto apenas superficialmente. Como afirma Pinheiro
(2003), ao escolher textos poéticos deve-se levar em conta os critérios
estéticos que o constitui, como o ludismo sonoro, as imagens simbólicas e a
riqueza da linguagem figurada que ele contém.
Um problema apontado por Gebara (2007),
diz respeito à escolha dos poemas, pois nem sempre a poesia que está no livro é
a desejada pelo aluno para a realização da leitura. Pinheiro (2003) aponta
outro problema na atividade oral de poemas em que a leitura é feita apenas como
decodificação, não se considerando a reflexão sobre o texto. Para ele, a
leitura deste gênero deve envolver e cativar o leitor, através da utilização de
recursos sonoros. Contudo, o primordial nesta atividade é a reflexão do texto lido,
pois é importante para que o leitor desenvolva sua capacidade criativa. A
poesia infanto-juvenil é bastante significativa para que se alcance êxito nas
etapas iniciais do gosto pelo poético. Assim, o poema está relacionado a faixa
etária de seu leitor, este fator é característico da literatura infanto-juvenil
que reflete sobre a estrutura do texto, ou seja, sua estética e temática. Por
isso, existem poemas para crianças pequenas, para crianças maiores, para
pré-adolescentes e adolescentes, com características correspondentes as
expectativas e necessidades condizentes com as idades de seus leitores.
Lajolo & Zilbermam (1985) salientam que
atualmente a poesia infantil busca tratar como tema o cotidiano da criança,
como faz Cecília Meireles em “Roda na rua”, “Jogo de Bola” e “Tanta Tinta”.
Encontra-se também na poesia infantil contemporânea uma atitude diferenciada
relacionada à linguagem, ao recorte da realidade em que há um distanciamento da
representação do real, como faz Mário Quintana (1997) em Lili inventa o mundo.
Segundo Abramovich (1997), Quintana em suas poesias acaba propiciando ao leitor
criar um mundo mágico, de faz-de-conta, como o fez em Lili inventa o Mundo. A
personagem do livro, Lili é uma criança que brinca com o mundo imaginário, que
inventa o seu próprio mundo infantil, como acontece com muitas crianças que
arquitetam ou idealizam amigos imaginários e criam brinquedos esquisitos. Além
disso, o título do livro mostra uma visão infantil do mundo, pois a criança
está descobrindo o mundo poeticamente. Desta forma, o autor apresenta a elas
uma visão poética do mundo despertando assim a sensibilidade existente nos
elementos cotidianos do ambiente infantil. Desta forma, cria-se um universo
fantástico e surreal que procura mostrar a relação da criança com a natureza
através de mecanismos que a insira em uma atmosfera de cores e sensações
diversas. No livro, encontramos ainda, a recuperação das modinhas infantis,
canções de ninar e brincadeiras de roda, reforçando ao máximo as aliterações,
as onomatopéias e as rimas internas, pois entendemos que o ritmo e a sonoridade
são fundamentais para o leitor infantil identificar tanto a imagem verbal
quanto a visual presente nos textos literários. No próximo tópico verificamos a
grande importância da poética de Mário Quintana para a formação de leitores
proficientes através da análise de dois poemas do livro Lili inventa o Mundo.
IMAGINANDO E CRIANDO
O MUNDO: A POÉTICA DE MÁRIO QUINTANA
O
mundo infantil existente na poesia de Mário Quintana nos mostra a importância
da imaginação. Em Lili inventa o mundo, o autor se depara com uma criança com
características próprias da infância. Porém, em alguns momentos essa criança
apresenta características adultas identificadas em textos que se relacionam a
um tempo de infância.
O poema “Conto de Todas as Cores” (2005,
p.12), nos revela um pouco desses dois mundos. O mundo irreal do poema adquire
forma através da menina verde, do menino azul, do negrinho dourado e do
cachorro com tons e entretons de arco-íris, como mostra o texto transcrito: Eu
já escrevi um conto azul, vários até. Mas este agora é um conto de todas as
cores. Sim, porque era uma vez um menino verde um menino azul um negrinho
dourado e um cachorro com tons e entretons do arco-íris. Até que, devidamente
nomeada pelo Senhor Prefeito, Veio ao seu encontro uma Comissão de Doutores -
todos eles de preto, todos eles de barbas, todos eles de óculos E, por mais que
cheirassem e esfregassem os nossos quatro amigos, viram que não adiantava nada
e puseram-se gravemente a discutir se aquilo poderia ser mesmo de nascença
ou...
-
Mas nós não nascemos – interrompeu o cachorro – nós fomos inventados!
(QUINTANA, 2005, p.12) Vemos que a criança possui condições de se encontrar
nesta poesia, pois seus elementos, personagens e o enredo têm uma aparência de
conto que oferece diversas e excepcionais imagens que provocam o leitor
infantil, dando-lhes a possibilidade de viajar e refletir. Nesse sentido, a
poesia produzida para o público mirim recupera a magia que o cotidiano tem para
oferecer. Sabe-se que o despertar de emoções é típico da poesia e no caso da
criança, refere-se ao brincar, no momento em que joga com palavras que podem
até mesmo não combinarem entre si, aparentando não possuírem nexos: como se
pôde observar no poema em estudo, alguém pode escrever um conto azul? Ou vários
até?.
Aqui a poesia infantil acaba se
manifestando textualmente de maneira não linear que incita a criança a brincar
com as palavras e com os diversos sentidos que ela pode assumir dentro do
texto. Portanto, a escrita não linear que acaba fugindo das normas de
objetividade, estabelece uma lógica que se aproxima do ilogismo infantil, por
isso, a imagem assume um papel fundamental na estruturação do poema.
A poesia de Quintana fala de um conto de
todas as cores, da presença e das diferenças das três crianças e de um cão. O
autor se utiliza da repetição: “um menino azul / um negrinho dourado /e um
cachorro com tons - [...] todos eles de preto, todos eles de barbas, todos eles
de óculos”, e brinca com as palavras, dando ritmo ao texto. Nesse exemplo, a
poesia ocorre sem a necessidade de a repetição estar diretamente ligada a uma
rima. Trevisan (2000) afirma que a repetição faz parte do ritmo e este é algo
que flui, dá ritmo ao verso que se agrupa em séries na composição poética de
estrutura tradicional. O ritmo e a repetição estão relacionados entre si ambos
contribuindo para sonoridade de um poema infantil. Um animal marca presença em
“Contos de todas as cores” como um recurso a mais na proximidade com o ambiente
infantil. As crianças, geralmente, desejam adquirir bichos de estimação,
especificamente cachorros, para fazerem companhia em seu cotidiano. Assim, ele
acaba tendo uma imagem de um fiel companheiro, com quem a criança pode conversar,
brincar, etc. Alguns meninos e meninas, quando pequenos, necessitam criar e
recriar mundos a partir do que está a sua volta e do que vêem em suas mentes,
como os animais-amigos. As características físicas e aparentemente exóticas dos
personagens criados por Quintana em seu poema fizeram o senhor Prefeito nomear
uma comissão de doutores, vestidos de preto, para avaliá-los.
A resposta de que tudo é poder da
invenção, as crianças encontram rapidamente, pois a fantasia também faz parte
da vida real. Zilberman (2008) esclarece sobre a importância da leitura da
literatura, principalmente pelo seu poder de instigar a imaginação. “Com
efeito, resolvem-se dificuldades quando recorremos à criatividade, que, aliada
à inteligência, oferece alternativas de ação” (ZILBERMAN, 2008). Candido (1995)
considera a literatura como a manifestação cultural dos homens em todos os
tempos e lembra que não há povo “[...] que possa viver sem ela, isto é, sem a
possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação” (CANDIDO,
1995, p. 245).
No
caso da poesia, é um gênero que se utiliza de uma linguagem que se aproxima da
fantasia, principalmente em se tratando dos textos dirigidos ao público
infantil. “Dorme ruazinha” (2005, p. 13) é outro poema extraído de Lili Inventa
o mundo (2005) e escolhido para análise neste artigo. Nele, Quintana dá vida a
algo inanimado e que serve como caminho para dar passagem a diversas vivências
dos diferentes papéis humanos existentes na vida cotidiana.
A rua guarda histórias mesmo quando o dia
desaparece e a noite resolve nascer, conduzindo a maior parte da população ao
seu leito de sono. É ela, a ruazinha, a protagonista dos 14 versos abaixo e é
ela que se mostra ligada à criança: Dorme ruazinha… É tudo escuro… E os meus
passos, quem é que pode ouvi-los? Dorme teu sono sossegado e puro, Com teus
lampiões, com teus jardins tranqüilos… Dorme… Não há ladrões, eu te asseguro…
Nem guardas para acaso persegui-los… As estrelinhas cantam como grilos… O vento
está dormindo na calçada, O vento enovelou-se como um cão… Dorme, ruazinha… Não
há nada… Só os meus passos… Mas tão leves são, Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração… (QUINTANA, 2005, p. 13) Nesse texto, o eu
lírico embala e coloca para dormir a ruazinha. Na musicalidade e ritmo das
palavras, o leitor mirim acaba se sentindo como se estivesse sendo guiado por
uma canção de ninar. Trevisan acrescenta que o ritmo é o essencial do verso e
está próximo dos sentimentos: “[...] é a linguagem repetida com a finalidade de
torná-la veículo apropriado da emoção” (2000, p. 72).
As crianças carregam memórias das
cantigas de infância. De acordo com Ramos (2005), o primeiro diálogo da criança
com a literatura oral/popular acontece, geralmente, através da cantiga de
ninar, em que o adulto canta para o bebê, ainda que esse adulto não leve em
consideração o sentido do que está lendo ou cantando para o bebezinho. A autora
percebe que a grande relevância existente nas cantigas é a oportunidade que se
tem de interação com a melodia e o aconchego que ela pode proporcionar. Tal
aconchego está presente em “Dorme ruazinha” proporcionado tanto para crianças
quanto para adultos.
Além dessa interação de que fala Ramos
(2005), a poesia de Quintana vai além do canto de ninar porque está repleta de
significações, ainda que sejam imaginárias, essas significações presentes na
ruazinha representam o ponto de partida para a reflexão, bem como traz a
oportunidade para a criança articular pensamento, sensibilidade e emoção. O
leitor é levado a passear pela ruazinha e a ficar acarinhando-a com os olhos.
Nela, a criança pode pisar sem acordar ninguém: “E os meus passos, quem é que
pode ouvi-los?”. Nela, a criança pode trabalhar a imaginação e todos os
adereços que ela permite, porque a descrição do espaço: “Na noite alta, como
sobre um muro / As estrelinhas cantam como grilos…/ Com teus lampiões, com teus
jardins tranqüilos…” fornece uma variedade de inusitadas imagens. O leitor é
provocado a viajar e refletir. O poema abre caminho nesta ruazinha,
manifestando o silêncio, a tranquilidade e a segurança do local em que ela se
encontra para bem perto do leitor. Pois, é a noite que na maioria das cidades,
sejam elas grandes ou pequenas, as pessoas e os carros se “escondem” dentro de
suas casas, deixando as vias públicas menos cheias e mais desérticas. Quintana
se utiliza da repetição, brincando com as palavras e com os versos: “Dorme teu
sono sossegado e puro / Dorme… Não há ladrões, eu te asseguro... [...] / Dorme,
ruazinha… Não há nada…”. Percebe-se que este poema não possui estrutura
cronológica, pois se trocássemos as estrofes ainda assim teriam sentido e
continuariam dando oportunidades para o leitor interagir com o texto.
Isso ocorre porque a linguagem poética
pode ser apresentada sem seguir uma cronologia, embora sua essência seja
marcada pela organização dos significados. Ou seja, ela pode ser desordem
quando quer e organização quando percebe que é importante, tal recurso possui
grande relevância principalmente quando se trata de um público infantil. O
vento enovelando-se como um cão e dormindo na calçada é outra cena que desperta
a fantasia do leitor em “Dorme ruazinha”. É possível o vento se enrolar na
calçada como fazem os cães de rua? Para Quintana, é sim. O mundo de que trata a
poesia é metafórico, é enigmático, pode ser real ou não. Independentemente de
um ou outro, sua ação atinge a imaginação das pessoas, provocando os mais
variados sentimentos que vão desde a felicidade até o mal-estar, que pode ser
representado pelo medo, pela angústia, pela vida, pelo desejo, pelos sonhos...
Em se tratando do fato enigmático
alguns estudiosos afirmam que ao tentar decifrá-lo, a criança busca dar
sentidos a leitura verbal e as imagens que vai criando e imaginando enquanto
lê. O princípio estrutural do enigma (de provocação do sentido) desencadeia o
processo de evocação aos muitos sentidos que podem ser atribuídos a um mesmo
texto. O mundo da criança é um mundo que se configura de forma particular, é
imaginação, criação e polissemia. É um espaço que para o adulto pode não ter
grandes significados e fazer parte apenas de uma lembrança infantil. Com isso,
algumas dificuldades podem ser manifestadas no que tange o aspecto da sintonia
entre o leitor criança e o autor adulto. Conforme Ramos (2004), o escritor deve
ajustar sua obra à realidade e às vivências do público infantil. De acordo com
a autora, é necessário que o escritor leve a criança a interagir com a obra,
seja ela escrita em prosa ou em poesia: Há quem diga que a criança é exigente;
no entanto, acredito que não se trata propriamente de exigência, mas de
atendimento a um aspecto estrutural da arte: o receptor precisa se ver no
objeto artístico, ou seja, o horizonte de expectativas do leitor necessita
dialogar com o horizonte do texto, a fim de que haja interação. (RAMOS, 2004,
p. 128).
No caso de Quintana, é um autor que
respeita seu leitor e desperta o imaginário do público infantil assim como o é,
sem trair ou desvalorizar as características deste leitor jovem. Porém,
percebe-se que em alguns momentos ele se direciona para um público adulto e
ainda assim sempre se referindo à infância. Em se tratando da criança na escola
e o seu encontro intenso com a poesia e com a literatura de forma geral, ela precisa
ser orientada por um indivíduo que tenha prazer pela leitura de um poema e que
saiba reconhecer que este gênero ajuda no desenvolvimento da capacidade
imaginativa da criança, além de produzir conhecimento.
Esse encontro do infante com o texto poético
pode começar pela família, mas terá maior importância quando partir do
professor. De acordo com Averbuck (1984), principalmente para o publico
infantil, o educador é quem deve provocar e oferecer oportunidades para os
alunos reconhecerem o valor que um poema possui quando toca o íntimo da
criança. A autora explica que recuperar o conteúdo lúdico da poesia no trabalho
escolar significa valorizar a essência e a originalidade do texto poético, pois
o que a linguagem poética faz é brincar com as palavras e seus sentidos. É
importante jogar com o poema, ou seja, com sua desconstrução e reconstrução,
tal procedimento serve como exercício de liberdade poética onde a criança
alfabetizada pode exercitar a imaginação relacionando poesia a outras formas de
arte. No contato com as imagens de um poema, a criança avança em sua liberdade
porque dispõe da chance de recriar o que foi construído pelo escritor-poeta e
pode fazer uma nova elaboração em cima de seu pensamento, de suas reflexões e
de suas intenções.
Na
opinião de Averbuck (1984, p.83): “A poesia na escola pode cumprir um papel
integrador na medida em que, apoiando-se na palavra do aluno e do poeta, busca
a essência da expressão do homem”. Pelas análises já realizadas, dos dois
poemas de Quintana é possível destacar e perceber as particularidades
estruturais do texto poético e seus possíveis efeitos nos leitores infantis.
Vimos em algumas observações feitas na fundamentação teórica deste trabalho que
a poesia, embora atraente ao aluno, é pouco trabalhada nos colégios. Uma das
causas citadas é o despreparo do professor frente ao gênero. Muitos educadores
têm receio de se entregar à fruição da linguagem simbólica, já que o texto
poético emprega uma linguagem carregada de sentidos e imagens. A poesia, como é
possível constatar neste estudo, cria caminhos para o leitor mirim estabelecer
diálogos com o texto e consigo mesmo num processo de autoconhecimento e
invenção. A obra de Quintana reforça a percepção de que o texto poético é
importante ferramenta na formação e no estímulo à criatividade do leitor.
Porto Alegre, a
“pequena cidade grande” de Mario Quintana
Anna Faedrich Martins
∗ Resumo: Este trabalho tem
por objetivo o levantamento e a análise de poemas do poeta Mario Quintana. A
intenção das reflexões é examinar elementos como a cidade, a modernidade e a
memória lírica. O enfoque escolhido consiste em observar o sentimento do poeta
em relação ao passado irrecuperável e a sua perplexidade face às transformações
do espaço urbano, revelando suas inquietações a respeito da temporalidade e a
sua íntima relação com a cidade de Porto Alegre.
Palavras-chave: cidade;
modernização; memória lírica
.
Na vida de Mario Quintana houve dois
fatores que provocaram mudanças no seu cotidiano e no seu olhar sobre a cidade.
O primeiro é a sua transferência para Porto Alegre, deixando a pequena
cidadezinha do interior — Alegrete — para viver no centro da capital, onde tudo
acontecia. O segundo, o fato de ele ter acompanhado as mudanças da cidade de
Porto Alegre que se foi tornando grande, modernizando-se, com direito a
arranha-céus, bondes elétricos, novas e largas avenidas, fábricas etc. A
transformação da cidade de Porto Alegre, que foi deixando traços de cidade
pequena , provoca no poeta tristeza e melancolia.
Donaldo Schüler (1987), em seu estudo
sobre a poesia gaúcha, integra Mario Quintana e os poetas Paulo Corrêa Lopes,
Francisco Machado Villa, Pedro Wayne, Ovídio Chaves, Reynaldo Moura e Lila
Ripoll no capítulo denominado “Evasionismo”. O estudo feito sobre Quintana vem
com o subtítulo “convergência e renovação”. Para o estudioso, os evasionistas
seriam aqueles poetas que estrearam em 30 e que se diferem dos líricos de 20
por mostrarem que “a terra já não é o único valor” (SCHÜLER, 1987, p.207),
abandonando o projeto nacionalista e localista, o que faz emergir “uma geração
sem vínculos com a dominação O sonho e a utopia são exemplos das novas possibilidades
temáticas dessa lírica. Schüler observa a notável contribuição de Quintana à
poesia brasileira ao focalizar o cotidiano, mostrando a magia das coisas
simples, aparentemente corriqueiras, através de uma percepção aguda e própria
do poeta. Ele observa o mundo e evade-se dele, projetando uma imagem utópica da
cidade imaginária e negando conscientemente a realidade que ele queria
diferente.
Em 1940, aos 34 anos, Mario Quintana
publica o seu livro inaugural, A rua dos cataventos. Trata-se de um conjunto de
35 poemas sob a forma de soneto, dedicado aos irmãos Milton e Marietta. O
título da obra já revela características evasionistas do poeta, sendo que a rua
aludida é produto da imaginação pura. No livro, o poeta personifica a cidade
com a qual dialoga. Ele já adverte que a cidade que será apresentada dentro da
obra é a cidade que ele próprio pintou: um cenário urbano que faz parte de sua
criação, distanciando-se do real e aproximando-se do mundo dos sonhos. Segundo
Donaldo Schüler (1987, p.238) “a evasão abriu a Quintana a distância necessária
à observação continuada. Por não se comprometer, pode observar atentamente e
detectar fraturas proibidas a comportamento apaixonado”. Desta forma, o
estudioso afirma que os escritores e poetas que alcançaram melhores resultados
em compreender o mundo sensível, são aqueles que dele conseguiram se
distanciar, como é o caso de Quintana.
Podemos perceber, na obra de Mario
Quintana, que há uma oposição fortemente marcada: a cidade de antes (Alegrete ou
Porto Alegre dos anos 20 e 30), motivo de saudade para o poeta, e a cidade dos
anos 50 e 60 (Porto Alegre em processo de modernização ou outras capitais
progressistas). A cidade de antes é o lugar onde o poeta busca conforto, uma
cidade que não existe mais, porém, está presente na sua memória e faz parte do
seu mundo de fantasias. Ela, a cidade da memória, é constantemente apresentada
na sua obra, principalmente, no primeiro livro do poeta - A rua dos cataventos.
O silêncio sobre a emergência da nova cidade, sobre a vida moderna, é algo
revelador nessa obra. Esse silêncio permanece nas duas publicações seguintes
Canções (1946) e Sapato Florido (1948). Todavia, nessas obras, o poeta não se
refere à cidadezinha da memória tão enfaticamente como o faz em A rua dos
cataventos.
Solange Yokozawa (2006) aponta para o
fato de que Quintana assume uma postura poético-política afastada da engrenagem
social, dizendo nada entender da questão social — Eu nada entendo da questão
social / Eu faço parte dela, simplesmente.../ (QUINTANA, 2005, p.89),
associando-se a uma poesia puramente intimista onde ele canta o seu próprio
mal. Por anunciar essa postura, Quintana é tachado pela crítica de poeta
alienado. Ele é menosprezado Vol. 03 N. 02
jul/dez 2007 Porto Alegre, a “pequena cidade grande” de Mario Quintana 3
pela crítica, pois não é ostensivamente engajado politicamente. Essa tendência
da crítica ocorre também pelo fato de o poeta apresentar a simplicidade em seus
poemas. Um estilo próprio, uma simplicidade verbal, uma estrutura arquitetada
por reticências e diminutivos, que geram a falsa impressão de um “poeminha”
fácil de fazer. Porém, Yokozawa observa essas conclusões como apressadas e
equivocadas, pois, ao optar por não falar da questão social, Quintana já mostra
uma rejeição reveladora. Por isso, a estudiosa afirma que Quintana é engajado
sem sê-lo, “vivendo em um determinado contexto social, imprime, na sua poética,
a sua política, ou seja, a sua cosmovisão” (YOKOZAWA, 2006, p.43).
Armindo Trevisan (2006) afirma que o
poeta não se interessava por política e parecia não gostar dos políticos.
Entretanto, julga a falta de bom senso daqueles que imaginam o poeta como um
alienado: Toda a poesia de Quintana contém vírus antiburgueses, vírus
antiestablishment, antitudo o que induz o homem à indiferença social e à
hipocrisia. Existe nos seus poemas, em geral, uma secreta antipatia a qualquer
coisa que humilhe o homem, que o prive de sua liberdade, que o torne explorador
de outros homens, que o submeta às leis do mercado e do marketing. O “defeito”
de Quintana foi não ser retórico, foi ter ojeriza a palanques, não encher
pulmões de empáfia, de certezas duvidosas sobre a distribuição da renda e dos
direitos humanos. Quando lemos o poeta, topamos, em cada um de seus versos, com
o murmúrio da inocência, o grito – sufocado – dos injustiçados, a dor
anestesiada dos miseráveis. (TREVISAN, 2006, p.20).
Yokozawa (2006) cita Adorno e seu
estudo sobre lírica e sociedade. Para entender a poesia de Quintana, esse embasamento
teórico é fundamental. Adorno (1983) observa que a lírica não é apenas uma
individualização perante a sociedade, e sim uma manifestação lírica como forma
de comunicação entre os homens: “obras de arte, todavia, têm sua grandeza
unicamente em deixar falar aquilo que a ideologia esconde” (ADORNO, 1983,
p.195). Alguns críticos apontam Quintana como um romântico tardio, insistindo
na idéia de morte, preocupando-se com o que lhe é particular e demonstrando
subjetivismo. Recorrendo à rede de interligações de Adorno, percebemos que essa
crítica não se edifica. O subjetivismo de Quintana - a experiência específica
do poeta - é objetivado pelas palavras, concretizado através da linguagem –
meio palpável -, e novamente subjetivado pelo leitor, que contribui com a sua
experiência particular. Dessa forma, segundo Adorno, quanto mais subjetivo o
poeta se mostra, através da sua individualidade e da sua percepção profunda dos
conhecimentos, mais universal e amplificada se mostra a sua obra. (Cf. ADORNO,
1983, p.193-208).
Yokozawa faz a sua leitura de Adorno e
relaciona com a obra de Quintana, concluindo que: A poesia não é apenas uma
soma feliz do texto mais o contexto. A poesia autêntica se quer libertadora e
por isso é o avesso do seu contexto quando este tende a denegrir ou extinguir o
humano do homem. Assim, dar de ombros para as questões sociais e seguir para um
vago país, Nau Literária 4 Anna Faedrich Martins deixar falar a morte, um dos
maiores interditos da sociedade ocidental moderna, preferir o silêncio de uma
cidadezinha cheia de graça ao barulho das grandes cidades, refugiar-se na
infância indireta a um contexto que se queria diferente. (YOKOZAWA, 2006,
p.44).
Fizemos um levantamento de poemas que
mostram essa cidadezinha da imaginação do poeta evasionista, a sua preferência
pelo silêncio, a exaltação da cidade pequena, de coisas que o poeta sente
saudade e recusa-se esquecer. Os primeiros poemas compõem a obra A rua dos
cataventos. Segundo Fischer & Fischer (2006, p.71), “a cidade começa pelo
título, que nem por ser aparentemente delirante – afinal, quem é que já
imaginou uma rua cheia de cataventos, senão o poeta mesmo? – deixa de ser uma
rua, um espaço da cidade”. Os autores observam que a cidade é “vista como
ambiente de tristeza e melancolia [dizendo que essa é] a cidade suburbana que
está morrendo, ou a cidade noturna e solitária que serve para lembrar o
passado” (FISCHER; FISCHER, 2006, p. 72).
No “Soneto II”, percebemos a maneira
afetiva e carinhosa com que Quintana se refere à cidade pequena. Ele dialoga
com a cidade tranquila, num tom leve, deixando pistas de que essa é a imagem da
cidade que não existe mais, que agora é fruto de sua memória. Aqui ainda é a
cidade dos lampiões e dos jardins, cidade do sossego, num espaço de tempo onde
certamente não havia os altos índices de criminalidade e violência. Segundo
Becker (1996, p.49), Mario Quintana desenha “um cenário e um tempo utópicos,
aparentemente impermeáveis às mazelas e contradições da vida moderna”:
II
Dorme,
ruazinha... É tudo escuro...
E
os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme
o teu sono sossegado e puro,
Com
teus lampiões, com teus jardins tranqüilos...
Dorme...
Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem
guardas para acaso persegui-los...
Na
noite alta, como sobre um muro,
As
estrelinhas cantam como grilos...
O
vento está dormindo na calçada,
O
vento enovelou-se como um cão...
Dorme,
ruazinha... Não há nada...
Só
os meus passos... Mas tão leves são
Que
até parecem, pela madrugada,
Os
da minha futura assombração... (QUINTANA, 2005, p.86)
Já no “Soneto XXIII”, o sujeito lírico
coloca-se na posição de alguém que vem de fora e contempla, afetivamente, a
cidade pequena, sentindo a nostalgia do mundo que não lhe pertence mais e o
desejo de ficar no lugar pequeno. Novamente, a oposição entre a cidade de Vol.
03 N. 02 jul/dez 2007 Porto Alegre, a
“pequena cidade grande” de Mario Quintana 5 antes e a cidade atual é marcada, e
a relação afetivo-amorosa do eu poético com a cidade de antes é explicitamente
revelada nos seus poemas através da memória:
SONETO
XXIII
Cidadezinha
cheia de graça...
Tão
pequenina que até causa dó!
Com
seus burricos a pastar na praça...
Sua
igrejinha de uma torre só...
Nuvens
que venham, nuvens e asas,
Não
param nunca nem um segundo...
E fica a torre, sobre as velhas casas,
Fica cismado como é vasto o mundo!...
Eu
que de longe venho perdido,
Sem
pouso fixo (a triste sina!)
Ah, quem me dera ter lá nascido!
Lá
toda a vida morar!
Cidadezinha...
Tão pequenina
Que
toda cabe num só olhar... (QUINTANA, 2005, p.107)
Segundo Solange Yokozawa (2006, p.214), a
memória lírica de Quintana é uma forma simbólica de negar uma época que se
queria diferente. O poeta recorda um tempo passado para “sobreviver em um meio
hostil para o poético”. Bosi (apud YOKOZAWA 2006, p.214) afirma que essa é uma
das faces assumidas pela poesia moderna, desde o Romantismo, para resistir ao
desencantamento do mundo.
Ao escrever sobre memória e modernidade,
Yokozawa aproxima Mario Quintana a Marcel Proust. Para a autora, ambos
escritores têm a criação literária fundada na recordação do passado: pelo
sujeito-lírico, na poesia de Quintana, e pelo narrador, na série Em busca do
tempo perdido, de Proust. A memória como núcleo da criação não é um privilégio
da modernidade, afirma Yokozawa, notando que, apesar disso, nessa época o
aparecimento dela ganha destaque: a recorrência à memória como impulso primeiro
de criação liga-se também à assaz comentada fratura que se opera entre o
artista e a época moderna. Não conseguindo se integrar na sociedade burguesa,
não encontrando ressonâncias para sua arte na cidade modernizada, desacreditado
do progresso técnico e científico, sofrendo as conseqüências dessas e de outras
fraturas tais que, o artista busca insistentemente, em sua criação, recuperar
um tempo em que ainda não houvesse se manifestado essa cisão entre o eu e o
mundo. Floresce assim, abundantemente, a recriação poética de um passado –
notadamente a infância – em que é possível viver em estado de graça, com o qual
é possível manter uma relação de fusão. (YOKOZAWA, 2006, p.213)
Mesmo não tendo o interesse de
discutir a influência de Marcel Proust na obra do tradutor de Em busca do tempo
perdido, Yokozawa aponta para a confluência temática existente entre ambos: a
memória: Nau Literária 6 Anna Faedrich Martins Há uma confluência temática
entre tradutor e traduzido, mas esta parece assinalar antes uma reação
artística solidária a uma angústia da humanidade e aos tempos modernos do que
necessariamente uma influência. Assim, a obra de Proust e a de Quintana,
malgrado as diferenças entre elas, ao se voltarem para a recuperação artística
do tempo perdido, afirmam-se, por um lado, como reação à fugacidade da vida, à
força avassaladora da morte e, por outro, como negação indireta da modernidade.
(YOKOZAWA, 2006, p. 222)
A passagem do tempo está presente no “soneto
VIII”. O poeta fala sobre “um vento de Desesperança” que veio de repente,
referindo-se às mudanças, à modernidade. O primeiro verso enfatiza a
importância do ato de recordar, nada mais importando. Nas entrelinhas desse
quintanar , os sentidos que aparecem são aqueles sempre presentes quando o
assunto é o novo cenário urbano: a saudade e a vontade de voltar ao passado.
Percebemos o tom de desagrado e de tristeza no poema que vai revelando o poeta
face à modernização:
Recordo
ainda... E nada mais me importa...
Aqueles
dias de uma luz tão mansa
Que
me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...
Mas
veio um vento de Desesperança
Soprando
cinzas pela noite morta!
E
eu pendurei na galharia torta
Todos
os meus brinquedos de criança...
Estrada
fora após segui... Mas, ai,
Embora
idade e senso eu aparente,
Não
vos iluda o velho que aqui vai:
Eu
quero os meus brinquedos novamente!
Sou
um pobre menino... acreditai...
Que
envelheceu, um dia, de repente!... (QUINTANA, 2006, p.92)
No “soneto IX”, percebemos a mesma
temática e o sentimento de impotência que se mostra diante do mundo
contemporâneo e das mudanças que ocorrem. Com a emergência da modernidade,
muitas coisas consideradas boas pelo poeta desapareceram:
É
a mesma ruazinha sossegada,
Com
velhas rondas e as canções de outrora...
E
os meus lindos pregões da madrugada
Passam
cantando ruazinha em fora!
Mas
parece que a luz está cansada...
E,
não sei como, tudo bem, agora,
Essa
tonalidade amarelada
Dos
cartazes que o tempo descolora...
Sim,
desses cartazes ante os quais
Nós
às vezes paramos, indecisos...
Mas
para quê?... Se não adiantam mais!...
Pobres
cartazes por aí a fora
Que
inda anunciam: - ALEGRIA – RISOS
Depois
do Circo já ter ido embora!... (QUINTANA, 2006, p.93)
O poeta exalta o simples e, a partir daí,
faz a sua poesia. Um cartaz cheio de representações e em tom amarelado é
referido para mostrar que o tempo tira a cor das coisas. O tempo passou, e o
sentimento melancólico diante do processo de mudança é fruto da rejeição do
poeta frente ao novo. Vemos aqui as consequências dessa nova cidade em que a
alegria e o riso parem ter ido embora com o circo. Em Canções (1946), segundo
livro publicado de Quintana, encontramos um número menor de poemas que se
referem à cidade da memória do poeta. Porém, não poderíamos deixar de mencionar
o poema “Canção da ruazinha desconhecida”, onde o poeta refere-se a essa
ruazinha desconhecida e perdida como o seu porto seguro; é o local do seu
futuro refúgio, “quando tudo estiver perdido”:
Ruazinha
que eu conheço apenas
Da
esquina onde ela principia...
Ruazinha
perdida, perdida...
Ruazinha
onde Maria fia...
Ruazinha
em que eu penso às vezes
Como
quem pensa numa outra vida...
E
para onde hei de mudar-me, um dia,
Quando
tudo estiver perdido...
Ruazinha
da quieta vida...
Tristonha...
tristonha...
Ruazinha
onde Marta fia
e
onde Maria, na janela, sonha... (QUINTANA, 2006, p.153)
Esse mesmo mistério que vimos em “Canção
da ruazinha desconhecida” e que encanta Quintana, percebemos, também, em
“Topografia”, um quintanar presente no livro Sapato Florido, onde o poeta diz:
Meu bonde passa por ali. Pela sua esquina,
apenas. É uma ruazinha tão discreta que logo traz uma
curva e o olhar não pode devassá-la. Não lhe sei o
nome, nem nunca andei por
ela. (QUINTANA, 2006, p.181)
Notamos que a temática da modernização,
em Quintana, associa-se a sentimentos de perda, de abandono, de solidão e de
melancolia. O poeta mostra essa negatividade face à cidade presente, atual,
pois conheceu uma cidade diferente, anterior a essa, e carrega consigo uma dor
nostálgica.
Quando a cidade moderna dos anos 70
está em pauta, o descontentamento do poeta fica evidente. A cidade progressista
é uma cidade sem estrelas, sem tranquilidade, sem harmonia, com barulhos
excessivos, com violência, uma cidade “cacofônica”, metálica, sem os antigos atrativos.
Enfim, uma cidade que sofre as consequências da modernização:
ANTES
E DEPOIS
Porto
Alegre, antes, era uma grande cidade pequena. Agora, é uma pequena cidade
grande. (QUINTANA, 2005, p.647)
URBANISMO
Para
as nossas cidades metálicas, que melhor ornamentação que os cactos? Se não por
outros motivos, já bastava o seu próprio nome – cacto – tão adequadamente
cacofônico. (QUINTANA, 2005, p.277)
BARULHO
E PROGRESSO O progresso é a insidiosa substituição da harmonia pela cacofonia.
(QUINTANA, 2005, p.236)
Em “Arquitetura Funcional”, o poeta
confessa não gostar da nova arquitetura advinda da modernidade – a funcional. A
casa velha tem a sua história, a sua memória; ela abriga o sonho, o mistério.
Permite a brincadeira das crianças em seus “longos intermináveis corredores” e
em seus “sótãos e porões”:
ARQUITETURA
FUNCIONAL
Não
gosto da arquitetura nova
Porque
a arquitetura nova não faz casas velhas
Não
gosto das casas novas
Porque
as casas novas não têm fantasmas
E,
quando digo fantasmas, não quero dizer essas assombrações vulgares
Que
andam por aí...
É não-sei-quê de mais sutil
Nessas
velhas, velhas casas,
Como, em nós, a presença invisível da alma...
Tu
nem sabes
A
pena que me dão as crianças de hoje!
Vivem
desencantadas como uns órfãos:
As suas casas não têm porões nem sótãos,
São
umas pobres casas sem mistério.
Como
pode nelas vir morar o sonho?
O
sonho é sempre um hóspede clandestino e é preciso [...]
E
as casa novas não têm ao menos aqueles longos, intermináveis corredores
Que
a Lua vinha às vezes assombrar! (QUINTANA, 2005, p.397)
Em “Tempo Perdido” o poeta apresenta a
nostalgia face à cidade que não existe mais. É a cidade de antes, um tempo
diferente do atual, “um tempo de cadeiras na calçada” onde as Vol. 03 N.
02 jul/dez 2007 Porto Alegre, a “pequena
cidade grande” de Mario Quintana 9 pessoas conversavam e conviviam mais entre
si. “Lendo as linhas e as entrelinhas”, de acordo com Fischer & Fischer
(2006, p.16-17), “vamos encontrar vários contrastes: no tempo de sua infância,
havia menos luz artificial, mais segurança, mais familiaridade, menos pressa na
vida. Era certamente uma vida de que se poderia ter muita saudade”. Um “tempo
perdido” porque não existe mais, passou, ficou para trás:
TEMPO
PERDIDO
Havia
um tempo de cadeiras na calçada.
Era
um tempo em que havia mais estrelas.
Tempo
em que as crianças brincavam sob a claraboia da lua.
E o cachorro da casa era um grande personagem.
E
também o relógio de parede!
Ele
não media o tempo simplesmente: ele meditava o tempo. (QUINTANA, 2005, p.323)
Sandra Pesavento (1994) observa as
características da modernidade mostrando que ela desperta sentimentos
antitéticos, como a atração e o repúdio, no sujeito que vive essa experiência
histórica: Experiência histórica individual e coletiva, a modernidade
caracterizar-se-ia pela atitude de celebração e combate, de atração e repúdio
em face da perda de um universo de valores e certezas, ante a inquietude e a
sedução do novo. (PESAVENTO, 1994, p.200) Mario Quintana também se mostra,
muitas vezes, seduzido pelo “novo”. Apresenta, em suas poesias, essa
perplexidade face à modernização da cidade. São dois sentimentos
contraditórios, resultantes da modernização. Em “Eu escrevi um poema triste”, o
poeta revela uma tristeza que vem “das mudanças do Tempo”, do processo de
modernização, da passagem do tempo. Esse percurso temporal, “que ora traz
esperanças” ao sujeito-lírico, também dá incerteza e desperta a tristeza,
porém, apesar de triste, é um poema belo:
EU
ESCREVI UM POEMA TRISTE
Eu
escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não
vem de ti essa tristeza
Mas
das mudanças do Tempo,
Que
ora nos traz esperanças
Ora
nos dá incerteza...
Nem
importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu
fico, junto à correnteza,
Olhando
as horas tão breves...
E
das cartas que me escreves
Faço
barcos de papel! (QUINTANA, 2005, p.878-879)
Mario Quintana joga com as palavras e
mistura termos antitéticos, deixando o leitor, num primeiro impacto, na dúvida.
Através dessa obscuridade, Quintana mostra-se fascinante e desconcertante, o
que, segundo Friedrich (1978), determina a dissonância que caracteriza a lírica
contemporânea. A poesia torna-se dissonância, isto é, “junção de
incompreensibilidade Nau Literária 10 Anna Faedrich Martins e de fascinação”
(p.15). A tensão dissonante e a inquietude são colocadas pelo autor como um
objetivo das artes modernas, assim como a surpresa e a estranheza face à
absurdidade e ao desejo inexistente de compreensão: Quando a poesia moderna se
refere a conteúdos – das coisas e dos homens – não as trata descritivamente,
nem com o calor de um ver e sentir íntimos. Ela nos conduz ao âmbito do não
familiar, torna-os estranhos, deforma-os. A poesia não quer mais ser medida em
base ao que comumente se chama realidade, mesmo se – como ponto de partida para
a sua liberdade – absorveu-a com alguns resíduos. A realidade desprendeu-se da
ordem espacial, temporal, objetiva e anímica e subtraiu as distinções –
repudiadas como prejudicais -, que são necessárias a uma orientação normal do
universo: as distinções entre o belo e o feio, entre a proximidade e a
distância, entre a luz e a sombra, entre a dor e a alegria, entre a terra e o
céu. (FRIEDRICH, 1978, p.16-17)
“O Mapa” - célebre e conhecidíssimo
poema - mostra o sujeito-lírico seduzido pelo novo e por seus mistérios.
Novamente, a cidade marca presença na obra de Quintana. Essa é uma cidade nova,
em processo de modernização, uma cidade que está crescendo e apresentando maior
número de ruas e limites expandidos. O poeta lamenta não ter mais o domínio da
cidade e de seu espaço, e de certa forma, imagina todas as coisas que ele ainda
não viu e já sabe que jamais verá: as moças bonitas, as esquinas esquisitas,
algumas ruas de Porto Alegre. Segundo Becker (1996, p.52), a idealização
presente no poema em análise, é “pressuposto sem dúvida indispensável para que
ocorra a identificação entre o poeta e a cidade”. Dessa forma, Becker aponta
para o fato de que, embora o poeta deixe explícito que a cidade a qual ele se
refere é Porto Alegre, ele “não faz menção a nenhum aspecto real ou
característica típica da capital gaúcha” (BECKER, 1996, p. 52). Ele imagina a
sua cidade e “acredita mesmo que a cidade esconda ‘uma rua encantada’ que
ultrapassa sua própria capacidade de fantasiá-la” (BECKER, 1996, p. 52):
O
MAPA
Olho
o mapa da cidade
Como
quem examinasse
A
anatomia de um corpo...
(É
nem que fosse o meu corpo!)
Sinto
uma dor infinita
Das
ruas de Porto Alegre
Onde
jamais passarei...
Há
tanta esquina esquisita,
Tanta
nuança de paredes,
Há
tanta moça bonita
Nas
ruas que não andei
(E
há uma rua encantada
Que
nem em sonhos sonhei...)
Quando
eu for, um dia desses,
Poeira
ou folha levada
No
vento da madrugada,
Serei
um pouco do nada
Invisível,
delicioso
Que
faz com que o teu ar
Pareça
mais um olhar,
Suave
mistério amoroso,
Cidade
de meu andar
(Deste
já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso... (QUINTANA, 2005,
p.453)
O mapa também é uma metáfora utilizada
para o “perder-se na cidade”, assim como os diagramas, os sonhos, os
labirintos, como observa Susan Sontag (1987, p.90). Ela diz que os meios de
espacialização do mundo – as idéias e as experiências vistas como ruínas – são
temas recorrentes de Benjamin. Portanto, “compreender alguma coisa é
compreender sua topografia, saber mapeá-la. E saber como se perder”(SONTAG,
1987, p. 90).
Yokozawa (2006, p.213) relaciona a
memória lírica, “a invocação poética do pretérito”, com a “angústia ancestral
da humanidade frente à irreversibilidade do que passou, à transitoriedade do
tempo, frente, em última instância, à fugacidade da vida, à morte”. A autora
afirma que Quintana encontra na memória a matéria nuclear de sua poesia: “O
passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente...” (QUINTANA, 2005,
p.285). Verificamos que o sentimento do poeta, em relação ao passado
irrecuperável, revelando por vezes um sentimento melancólico, mostra-se
nostálgico em relação ao tempo que não existe mais, uma vez que nega
indiretamente o presente, a modernidade:
NOTAS
DA CIDADE
O
mais triste da arquitetura moderna é a resistência do seu material. Havia, não
me lembro agora se no País das Maravilhas, da Alice, ou se na Cidade de Oz, uma
velha que morava num sapato... E nós que moramos em caixas de sapato!
Esses
tetos baixos me abafam... De modo que só resido em casas antigas. Acontece é
que as casas velhas têm proprietários velhos, muito velhos aliás e por isso mesmo
muito morredores. E seus herdeiros resolvem sempre vendê-las a construtores de
edifícios. Resultado: há anos que venho me mudando: sou uma pobre vítima do
surto do progresso e do clamor público.
Em
todo caso, como vocês já devem ter reparado, é nessas épocas de mudança
arquitetônica que se dá a maior instabilidade social e individual.
E
quando põem abaixo, então, a velha casa em que nascemos?! (QUINTANA, 2005,
p.331, 332, 333)
A intenção desse trabalho foi estudar o
advento da modernidade, o processo de transformação das cidades –
especificamente Porto Alegre -, a relação do poeta Mario Quintana com a capital
do Rio Grande do Sul e com a lírica contemporânea, e seus sentimentos em
relação ao novo cenário urbano. Segundo Trevisan (2006, p.16),“Quintana foi um
urbano auto-exilado, fora dos padrões tradicionais”. O amigo lembra que o poeta
“vivia na cidade, gostava dela, amava-a [porém] não se interessava por ela.
Queria uma cidade de Nau Literária 12 Anna Faedrich Martins outros tempos,
arcaica, feita de lampiões, de solares, de cacimbas em pátios e de goiabeiras
junto aos galinheiros” (TREVISAN, 2006, p.16). Isso talvez explique uma dúvida
que possa ter ficado ao longo deste trabalho: como o poeta da cidade, conhecido
por todos pela sua relação afetiva com Porto Alegre, apresenta uma certa
negatividade perante a mesma? Ainda com as palavras de Trevisan, Quintana “não
apreciava cidades que teimavam em evoluir, que se tornavam falsamente adultas,
que viravam marmanjas”. Ele amava a sua capital, escolhera viver nela,
caminhava pelas suas ruas e acompanhava o seu desenvolvimento. A relação entre
ambos sempre foi muito forte, o poeta gostava das coisas simples que a cidade
podia oferecer. Ele era um indivíduo cosmopolita, como nos alerta Trevisan, ele
“estava vacinado contra o provincianismo! A ironia e o humor não lhe permitiram
enredar-se nas frivolidades da sociedade burguesa, nem aderir a um sistema de
vida idiota” (TREVISAN, 2006, p.18).
Quando Trevisan pede aos leitores de
Quintana que o leiam novamente, é, em outros termos, uma solicitação para que
deixem o poeta agir e envolver. Ressaltamos que a obra de Quintana carrega
traços contemporâneos, como o tema da morte, da passagem do tempo, da
metafísica, da realidade aparente, da singularidade, usando a ironia e a lírica
com humor. Repleta de ritmo, rimas, aliterações, coloquialismo, cotidiano, a
sua obra envolve o leitor, mantendo viva a exploração sonora da língua.
Quintana faz da poesia a sua vida e da sua vida a poesia. Em cada poema
confessa um pouco de si, revelando aos poucos, de forma suave, os múltiplos
Quintanas sob a fisionomia daquele mesmo menino azul que ele era na infância
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