A DIALÉTICA ILUMINADA DE DRUMMOND
Especialistas falam
da obra do maior poeta brasileiro,cujo centenário de nascimento é comemorado
neste mês
ANTONIO ROBERTO FAVA
"No meio do
caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no
meio do caminho
tinha uma pedra no
meio do caminho
tinha uma
pedra".
O professor Alcides Villaça: ironia é uma
constante na poesia de Drummond Quando o poeta Carlos Drummond de Andrade
publicou esse poema em 1928, "insignificante em si", diria mais
tarde, talvez não imaginasse que fosse causar tanto escândalo e que seria
motivo de tantas divergências. Uma brincadeira (ou não?) que renderia ao poeta
censuras e elogios. Agora, 74 anos depois, quando se comemora o centenário de
nascimento do poeta (31 de outubro), a polêmica parece esquecida – e o poema
agora é visto sob um outro ângulo.
Poeta, contista e cronista, Drummond é
considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa e da literatura latino-americana.
É respeitado por críticos nacionais e estrangeiros como um dos grandes poetas
universais. Funcionário público, homem de natureza reservada, avesso
principalmente às entrevistas, só mesmo no fim da vida o mineiro de Itabira,
Minas Gerais, se liberou para as manifestações pessoais. Cada vez mais
freqüentes, elas foram uma voz lúcida e iluminada. Ao longo de sua vida,
produziu mais 40 livros, muitos deles traduzidos para países como França,
Inglaterra, Itália, Alemanha, Suécia, Argentina, Chile, Peru, Cuba, Estados
Unidos, Portugal, Espanha e Tchecoslováquia.
Para Alcides Villaça, professor de
Literatura Brasileira da USP e ex-professor-visitante da Unicamp, especialista
em Drummond, a importância do poeta para a poesia brasileira "está na
altura a que ele elevou um discurso poético carregado, ao mesmo tempo, de
reflexão inteligente e fortíssima sensibilidade, de tal modo que o leitor é
envolvido por uma onda rítmica, onde belas imagens e iluminações do pensamento
se dialetizam o tempo todo".
Nos poemas da década de 50, sobretudo em
Claro Enigma (1930), é forte a presença de Paul Valery, de cujos versos
Drummond se valeu na epígrafe do livro. "Mas é bom ressaltar que, acima de
qualquer influência sofrida, a poesia de Drummond é personalíssima, individualíssima,
tanto nos temas que freqüenta (entre eles, as raízes mineiras e provincianas, a
oposição entre o arcaico e o moderno) como nas várias soluções de estilo que
adotou ao longo dos seus mais de 60 anos de poesia", conta Villaça.
Acompanhar as chamadas "fases" da poesia de Drummond, segundo
observações do professor, significa ir reconhecendo uma sucessão muito variada
de formas, que foram respondendo às suas também variadas perspectivas do mundo
e necessidades de expressão.
O "modernismo" de Drummond, no
sentido estrito que o liga ao Movimento de 22, está, sobretudo, no primeiro
livro que o poeta publicou: Alguma poesia (1930), justamente no humor
piadístico e num acentuado desejo de expressar o instante, o cotidiano, a
"nota social" -- além de cultivar uma linguagem desconcertante e
fragmentária, como no Poema de sete faces, por exemplo. "Mas a pedra de
toque foi mesmo o No meio do caminho, que gerou tantas controvérsias e tantos
comentários que, décadas mais tarde, o poeta publicou um livro -- No meio do
caminho -- História de um poema, onde reúne todas as reações, glosas, paródias,
censuras ou elogios que o poema provocou. O escândalo associava-se à forma do
poema, repetitiva e circular, que irritava os ouvidos acostumados às
harmonizações da poesia convencional, bem como aos enigmas da expressão
"pedra no caminho", que todo mundo queria porque queria
"decifrar", explica o professor Villaça. Talvez até fosse resultado
de uma brincadeira do poeta.
Sozinho, entre mangueiras
Carlos Drummond de Andrade nasceu em
Itabira, Minas Gerais, em 1902, e morreu no Rio de Janeiro, em 1987, aos 85
anos. Passa boa parte da infância na fazenda da família, "sozinho, entre
mangueiras" , como diria, mais tarde, em seu poema Infância, publicado em
Alguma Poesia. É tido como um dos mais maiores poetas que o Brasil já teve,
comparado aos maiores poetas estrangeiros. Drummond foi redator do Diário de
Minas. Mais tarde foi responsável pela abertura no jornal de textos
modernistas. Depois de haver completado o curso de Farmácia, atividade
profissional que não exerceu, foi convidado pelo amigo Augusto Capanema, então
Ministro da Educação, para chefiar o referido gabinete, em 1930. Mais tarde,
Drummond tornou-se chefe do Serviço do Em 1930 lança Alguma Poesia e, em 1934,
Brejo das Almas, ambos com textos carregados de fina ironia. Foi uma fase que,
enquanto ironizava os costumes e a sociedade, asperamente satírico em seu
amargor e desencanto, entrega-se com empenho e requinte construtivo à
comunicação estética desse modo de ser do poeta de Itabira.
Em Confissões
de Minas (1944), obra de Ensaios e Crônicas, Carlos Drummond de Andrade
admitia: "Entro para a antologia, não sem registrar que sou o autor
confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem
escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em
duas categorias mentais". Referia-se ao poema No Meio do Caminho. Drummond
publicou aproximadamente 50 livros. Teve ainda obras publicadas em espanhol,
inglês, francês, italiano, alemão, sueco, tcheco, entre outras línguas.
Em 1987, doze dias depois da morte de sua
única filha Maria Julieta, Drummond morria a 17 de agosto, deixando obras
inéditas como O Avesso das Coisas, O Amor Natural e Moça Deitada Na Grama.
Horizontes e limites no mundo prosaico
No entanto, como se vê, a ironia é uma
constante na poesia de Drummond, que nasce, segundo Villaça, "do contraste
entre um forte idealismo, que está sempre no horizonte dos afetos e da
consciência do poeta, e uma forte experiência dos limites que há em cada
indivíduo e no mundo prosaico em que vivemos". Sua ironia nasce a cada vez
que o poeta se defronta com a impossibilidade de realizar as altas aspirações
humanas que estão nele, como em quase todos nós: amar e/ou conhecer o outro de
modo absoluto, conhecermo-nos a nós mesmos de modo absoluto. "Talvez o
existencialismo sartreano tenha deixado no poeta a convicção de que de fato
"o inferno são os outros", ao mesmo tempo em que o sentimento de
responsabilidade pessoal para com o mundo faça de cada um de nós o responsável
pela liberdade de todos", acredita Villaça.
Carlos Drummond de
Andrade, que escreveu José, Resíduo e A morte do leiteiro era um homem
reservado, cioso da sua intimidade, em geral avesso a entrevistas e contatos
pessoais. Muitos de seus amigos como Mário de Andrade, primeiro, e Ziraldo,
depois, sentiram seu grande interesse em conversar por telefone ou por cartas,
muito maior do que em papear "cara a cara". Drummond preferia passar
uma hora ao telefone a se encontrar com alguém em sua casa. "No entanto,
aos sábados, reunia-se sempre com seus amigos - escritores e intelectuais - -
na casa de Plínio Doyle, eventos que acabaram sendo chamados de os
"sabadoyles". Nessas reuniões, até ata faziam. Só não conversavam
sobre política, para não azedarem a conversa", diz o professor.
Villaça recorda-se que Pedro Nava, no seu
livro de memórias Beira-mar, fala muito das "travessuras" do grupo de
jovens intelectuais da Belo Horizonte dos anos 20, entre os quais estava um
Drummond de óculos e bigodinho, de aspecto grave, respeitado por todos, mas
capaz de gestos tresloucados, como escalar um alto arco de pontilhão e desafiar
o guarda-noturno, que lhe dera voz de prisão, a ir buscá-lo lá em cima. O grupo
costumava freqüentar a zona de meretrício de Belo Horizonte, de onde os rapazes
saíam melancólicos e cheios de fossa existencial... Os prazeres sexuais
facilmente atendidos provocaram no poeta grandes remorsos, uma sensação de
"nojo de si mesmo", sentimento que se expressa em boa parte dos
poemas do livro Brejo das almas e não deixa de ecoar num poema como a Mão suja.
O especialista que veio da Bulgária
Rúmen Stoyanov, da Universidade de Sófia:
"Drummond é reverenciado na Bulgária"A convite da Unicamp, o
professor Rumen Stoyanov, da Universidade de Sófia, na Bulgária, proferiu uma
conferência no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Stoyanov é um dos mais
importantes tradutores de escritores brasileiros. E Carlos Drummond de Andrade,
com o qual manteve um relacionamento de mais de 13 anos, é um deles. E não é de
se estranhar que o poeta brasileiro seja um dos escritores mais conhecidos na
Bulgária.
Professor de Literatura e Cultura do
Brasil na Universidade de Sófia, Stoyanov acaba de escrever, em português, o
livro Drummond e a Bulgária, ainda inédito. Trata-se, segundo diz, de uma obra na
qual traz minucioso trabalho de pesquisa sobre o que Carlos Drummond de Andrade
escreveu em versos e prosa sobre a Bulgária. Além de conter farto material
sobre o que a crítica do seu país escreveu sobre o poeta mineiro, aborda também
uma série de correspondências, ensaios e citações a respeito do poeta
brasileiro.
Stoyanov diz que Drummond era um poeta
bastante admirado na Bulgária e que seu povo tem grande admiração e simpatia
pela literatura brasileira, em especial a poesia do poeta de Itabira. Stoyanov
conta que o poeta teve 13 livros traduzidos para o búlgaro por especialistas em
Drummond. Um deles é o próprio Stoyanov. Para ele, Drummond, "é, sem
dúvida, o mais importante poeta da nossa época. Tanto é que, passados mais de
15 anos de sua morte, ainda é reverenciado no meu país, desfrutando de alto
prestígio não apenas entre os intelectuais, mas também entre o povo. Eu diria
que, devido à força de concisão do poeta brasileiro, Drummond é tão ou até mais
importante que Pablo Neruda".
Um legado de rigor e experimentação
O professor Paulo Franchetti: recuperação
das formas tradicionais da literaturaPara o professor Paulo Franchetti, do
Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL), e atual
diretor da Editora da Unicamp, Drummond representa o momento de consolidação da
poética modernista no Brasil. Por isso mesmo, é uma das maiores vozes líricas
da poesia brasileira do século 20. "Acredito que o lugar de Drummond para
as gerações atuais, para a literatura que se pratica hoje no Brasil, é
assegurado, não pelos primeiros livros modernistas que publicou, como Alguma
Poesia (1930) e Brejo das Almas (1934), que têm um interesse mais propriamente
histórico hoje, mas mais pela alta dicção do poeta a partir de José", observa
o professor. Mas assinala que a grande obra de Drummond é aquela que compôs
entre José e Lição de Coisas, este na década de 60. Franchetti acredita que a
partir do livro Claro enigma (1952), Drummond tenha deixado um legado de
extrema importância para a poesia contemporânea de rigor, de experimentação, de
sobriedade e de recuperação das formas tradicionais da literatura.
Os poemas de Drummond que Franchetti mais
aprecia são Máquinas do mundo, Rapto e outras obras que pertencem a essa fase.
Muito mais do que os poemas-piadas de começo da carreira, que tiveram,
evidentemente, a sua importância, algumas obras até polêmicas como No Meio do
Caminho, que à época tinham um efeito demolidor e era lido mais como um ato de
intervenção. "Era um tipo de poesia mais conceitual, que naquele momento
tinha uma inserção dentro de uma polêmica pela afirmação de novos critérios
estéticos. Creio que esse lado vem alcançando um interesse histórico cada vez
maior e que o Drummond de hoje, presente na linguagem de nossos poetas, é o
poeta das décadas de 40 e 50. Mesmo o Drummond político de Sentimento do Mundo
(1940) e A Rosa do Povo (1945), embora seja um grande poeta, não me parece que
nesse momento está tão presente na poesia que se faz hoje no Brasil",
avalia.
Para o professor da Unicamp, Drummond é um
poeta de expressão internacional. "É um dos poetas brasileiros que foram
mais traduzidos. Acredito que ele tem uma inserção internacional ao lado de
João Cabral de Mello Neto. No entanto, é difícil fazer comparações. Não resta
dúvida que é um poeta lido em várias línguas e que representa, em qualquer
língua, um momento elevado da lírica do século 20".
O profano e a concepção fragmentária
Poeta abundante, multifacetado, Drummond
segue estudado sob ângulos também variados. A professora Suzy Sperber, do
Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, encontra em sua poesia até
mesmo "o espaço do sagrado" - tema de um ensaio recente.
"A apreensão do real e das dimensões
do espírito humano aproximam Carlos Drummond de Andrade da mais profunda
compreensão do sagrado", escreve Suzy. "Há diferentes poemas cujo
tópico trata da urbe, da produção da poesia, da natureza, ou do corpo. Ao usar
o recurso da enumeração caótica, ou, tematicamente, quando ele fala sobre as
urbes cindidas, sobre o cotidiano esfacelado, Drummond aborda um tema caro para
a modernidade: o mundo fragmentado. A concepção fragmentária do mundo se deve a
uma concepção profana, que se define pelos instantes, pelas obrigações de
trabalho, sociais", assinala a professora.
Ela explica que "o imediatismo das
ações e eventos dificulta a compreensão do todo, do evento inserido no mundo,
passando a ter um estatuto ontológico disperso, diferente. Desvaloriza a vida
em sociedade, a solidariedade, levando o ser humano para uma solidão última, no
limite sartreana. Nos poemas de Drummond também se percebe a angústia do eu
lírico diante uma tendência para o novo a todo custo, para o apagamento das
raízes, de tradições, de valores, de ética, caracterizadores das atuais
misérias humanas".
Carlos Drummond de Andrade: modernismo
e a pedra no caminho ...
Já em abril de 1920, ele passa
a colaborar com artigos e crônicas para o Jornal de Minas, cuja redação ficava
no térreo do hotel onde a família Drummond de Andrade primeiro se hospedou, ao
chegar a Belo Horizonte. Em março de 1921, o cronista Drummond estréia no
Diário de Minas, jornal que se tornaria um reduto dos modernistas mineiros,
dando início a uma participação que duraria mais de dez anos.
A partir daí, o poeta passa a integrar um grupo de jovens escritores e
intelectuais que viria a se tornar conhecido como “modernistas mineiros”.
Enquanto em São Paulo, em fevereiro de 1922, Mário e Oswald de Andrade
preparavam a Semana de Arte Moderna, o grupo de Drummond se reunia para
discutir e defender pressupostos filosóficos e estéticos semelhantes, em Belo
Horizonte.
Aí se inicia a primeira fase
modernista de Drummond, na qual os traços mais característicos seriam o humor,
o tom coloquial de confidência, de conversa, beirando ao prosaico e a um estilo
levemente brejeiro. Tudo combinado a uma personalidade dramática, deslocada do
sistema, gauche, como ele se auto define em "Poema de sete
faces", na abertura de seu primeiro livro, "Alguma Poesia"
(1930):
Quando
nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! Ser gauche
na vida.
Gauche, palavra francesa cuja tradução
literal em português é “esquerda”, remete a significados figurados, como
“desajustado”, “acanhado”, “inepto”, “à margem” do sistema, da sociedade, da
realidade vigente. Esse paradoxo entre o eu poético, que se coloca e se
reconhece à margem do mundo, e o eu vivente, necessariamente envolvido nas
coisas do mundo e da sobrevivência, é presença constante na poesia de Drummond.
O próprio fazer poético drummondiano se baseia no impasse vivido pelo gauche, que não consegue se ver inserido no mundo e,
somente por meio da poesia, encontra uma forma de comunicação com essa
realidade exterior.
Em julho de 1928 é publicado
na primeira página da "Revista da Antropofagia", por Oswald de
Andrade, o poema “No meio do caminho”, um dos mais conhecidos e polêmicos de
Drummond:
No
meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra.
tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão
fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra.
O poema, publicado
posteriormente no livro "Alguma Poesia" (1930), causou um verdadeiro
escândalo na imprensa da época, provocando ataques ferrenhos ao autor por
críticos que se negavam sequer a considerar poesia aquele texto ousadamente
estruturado na repetição e numa construção linguística simples, coloquial, que
afirma a fala popular “tinha uma pedra” em detrimento da forma culta “havia uma
pedra”.
Depois dos vários ataques da
crítica, o próprio Drummond afirma “sou o autor confesso de certo poema,
insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e
serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias
mentais". Apesar de Drummond nunca ter esclarecido quais seriam essas
“duas categorias mentais”, fica claro o impacto do poema diante da opinião
pública da época, que sentiu-se obrigada a parar diante daquela pedra no meio
do caminho e expressar seu posicionamento com relação a ela - ou
entusiasticamente favorável, como se mantiveram os modernistas e simpatizantes,
ou radicalmente contra, como a maioria da crítica literária conservadora da
época. Aliás, até hoje, a pedra drummondiana permanece impassível e
desafiadora, na sua mudez de minério, a fomentar questões, estudos e paixões
nos caminhos dos admiradores e estudiosos da obra do poeta.
Poucos meses após o retorno
forçado a Itabira, no início de 1920, Drummond muda-se para Belo Horizonte, com
toda a família. A mudança brusca - encabeçada pelo pai, que vende grande parte
das terras em Itabira e torna-se, praticamente, um incorporador em Belo
Horizonte -, traz a Drummond uma liberdade ainda não experimentada e a chance
de escrever com regularidade.
O fato ainda não acabou de acontecer
E já a mão nervosa do repórter
O transforma em notícia.
O marido está matando a mulher.
A mulher ensangüentada grita.
Ladrões arrombam o cofre.
A polícia dissolve o meeting.
A pena escreve.
Vem da sala de linotipos a doce música mecânica.
A
intimidade com as cruezas do cotidiano faz parte do itinerário de Drummond não
só como poeta, mas também como o excelente cronista que foi, durante os muitos
anos nos quais colaborou para jornais, e como o funcionário público - chefe de
gabinete do Ministério de Educação e Saúde. A estética drummondiana não desvia
o olhar da realidade, ao contrário, ilumina-a sob pontos de vista diversos,
contraditórios, que refletem a tensão entre o poeta, o pai de família, o
funcionário do governo, o anarquista e todas as várias personas que habitam o escritor. Talvez seja essa
uma das razões pelas quais qualquer tentativa de compreender a obra de Drummond
por meio de esquemas didáticos e da divisão em fases estanques não funcione. O
poeta social, politicamente engajado de "Sentimento do mundo" (1940)
e "A rosa do povo" (1945), já dialogava com o poeta metafísico de
"Claro enigma" (1951), que sempre conservou o sotaque anárquico,
moderno, singularmente ímpar de Drummond.
Enveredar
pela vasta obra de Drummond e por sua biografia tão velada - Drummond sempre
foi considerado tímido, indecifrável e refratário a qualquer abordagem de sua
vida privada -, é lançar-se a um turbilhão de contrastes e contradições que
traduzem os paradoxos que atormentam e estilhaçam a personalidade do homem na
modernidade. Em "O poema da necessidade", publicado em
"Sentimento do Mundo" (1940), o impasse humano diante das exigências
da vida moderna é expresso de forma belíssima:
É preciso casar João,
é preciso suportar, Antônio,
é preciso odiar Melquíades
é preciso substituir nós todos.
É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.
É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbado,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.
É preciso viver com os homens
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar O FIM DO MUNDO.
Na
repetição monótona e pesada - como são monótonas e pesadas as obrigações
cotidianas -, do “é preciso” de cada verso, seguido por necessidades
grandiosas, como “salvar o país” e “crer em Deus”, combinadas às pequenices de
“pagar as dívidas” e “comprar um rádio”, o poeta evidencia aos olhos do leitor
o extremo absurdo de ideais contraditórios, aparentemente vitais e
essencialmente banais, que cada indivíduo carrega em seus ombros. Esse
indivíduo dilacerado, “retorcido”, angustiado diante de si e do mundo é tema
recorrente na obra de Drummond.
Certamente, a longa trajetória de Drummond como
funcionário público - no período de forte repressão ditatorial do governo
Vargas -, contrastada ao concomitante fazer literário no qual sempre preservou
sua independência intelectual e artística, serviu de laboratório para que o
poeta experimentasse a vida em estado paradoxal, equilibrando-se no fio da
navalha que separa as exigências concretas da existência das necessidades de
reflexão e expressão do eu sensível, criador.
Desde
o último quarto do século 20, Drummond é considerado, quase por unanimidade
da crítica, um dos maiores poetas do Brasil, o poeta brasileiro por
excelência. Mas sabemos que as pedras nesse caminho de consagração não foram
poucas. Somente o talento e a força de caráter férrea do poeta explicam sua
constância, sua determinação em não desviar-se do rumo de suas convicções.
Hoje, a atração que Drummond exerce sobre os leitores, principalmente os
jovens, permanece profunda e crescente, como se, apesar de o próprio poeta
ter afirmado que a matéria de sua poesia era o tempo, esta tivesse
conquistado um status atemporal, sempre atual, que só as grandes obras
literárias conquistam. Alcides Villaça, professor de Literatura Brasileira na
Universidade de São Paulo e grande estudioso da obra drummondiana, definiu
lindamente essa perenidade da poesia de Drummond: “O Drummond é um poeta até
certo ponto difícil, mas quando entra na vida de alguém não sai mais. É
desses escritores que são capazes de revelar para você elementos fundamentais
daquilo que se pode chamar de uma personalidade comum do homem moderno,
traços comuns do homem moderno, que Drummond detectou e expressou como
ninguém. Esse, para mim, é um fundamento, aliás de toda grande poesia, que a
dele cumpre em um grau de excelência. O eu que está lá dentro tem tudo a ver
com o eu fundamental que está em muitos leitores. É esse o elo que acaba
fazendo milhares e milhares de leitores se interessarem e se conhecerem
melhor através da poesia de um poeta aparentemente tão individualista e tão
singular como Drummond… mas no eu dele cabemos nós.”
|
Instruções: As questões a seguir refere-se ao poema abaixo.
Cidade
grande
Que beleza, Montes Claros.
Como cresceu Montes Claros.
Quanta indústria em Montes Claros.
Montes
Claros cresceu tanto,
ficou urbe tão notória,
prima-rica do Rio de Janeiro,
que já tem cinco favelas
por enquanto, e mais promete.
(Carlos
Drummond de Andrade)
1.Entre os recursos expressivos empregados no
texto, destaca·se a:
(A) metalinguagem, que consiste em fazer a
linguagem referir-se à própria linguagem.
(B) intertextualidade, na qual o texto retoma e
reelabora outros textos.
(C) ironia, que consiste em se dizer o contrário do
que se pensa, com intenção crítica.
(D) denotação, caracterizada peloo uso das palavras
em seu sentido próprio e objetivo.
(E)
prosopopeia, que consiste em personificar coisas inanimadas atribuindo-lhes
vida.
No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra
no meio do caminho Quando eu nasci, um anjo torto dessesque
vivem na sombra disse:
“Vai, Carlos, ser
gauche na vida." Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha lima pedra. (Drummond)
|
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode
beber,
já não pode
fumar,
cuspir já não pede,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora,
José?
E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e
jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de
vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe
porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse ...
Mas você não morre,
você é duro,
José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se
encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha. José!
José, para onde?
(C. D. de Andrade)
1. (PUCC-SP) José teria, segundo o poeta,
possibilidades de alterar seu destino. Essas possibilidades estão sugeridas:
a) na 5ª e 6ª estrofes. b) na 1ª, 2ª e 3ª estrofes. c) na 3ª, 4ª e 6ª estrofes.
d) na 4ª e 5ª
estrofes. e) n.d.a .
2.(PUCC-SP) Só não é linguagem figurada:
a) "sua incoerência, seu ódio". b) "seu instante de
febre". c) "seu terno de
vidro".
d) "sua
lavra de ouro". e)
n.d.a.
3. (PUCC-SP) Das possibilidades sugeridas pelo
poeta para que Jose mudasse seu destino, a mais extremada está contida no
verso:
a) "se você tocasse a valsa
vienense". b) "se você
morresse". c)
"José, para onde?”.
d) "quer
ir para Minas". e)
n.d.a.
4. (PUCC-SP) Para o poeta, José só não é:
a) alguém realizado e atuante. b) um solitário. c) um joão-ninguém
frustrado.
d) alguém sem objetivo e desesperançado. e) n.d.a.
5. (PUCC-SP) "A noite esfriou" é um verso
repetido. Com isso, o poeta deseja:
a} deixar bem claro que José foi abandonado porque
fazia frio.
b) traduzir a ideia de que José sentiu frio porque
anoiteceu.
c) exprimir que,
após o término da festa, a temperatura caíra.
d) intensificar o sentimento de abandono,
tornando-o um sofrimento quase físico.
e) n.d.a.
6. (PUCC-SP) O verso que exprime concisamente que
José e "ninguém" é:
a) "você que faz versos". b) "a festa acabou". c) "você que é sem nome".
d) "que zomba dos outros". e) n.d.a.
7. (PUCC-SP) O verso que expressa essencialmente a
ideia de um José sem norte é:
a) "José, para onde?". b) "sozinho no
escuro". c) "mas
você não morre".
d) "E tudo
fugiu". e) n.d.a.
8. (PUCC-SP) Assinale a afirmativa falsa a respeito
do texto.
a) Jose é alguém bem individualizado e a ele o
poeta se dirige com afetividade.
b) O ritmo dos sete primeiros versos da 5ª estrofe
é dançante.
c) "Sem teogonia" significa "sem
deuses", "sem credo", "sem religião".
d) Os versos são em redondilha menor porque tal
ritmo se ajusta perfeitamente à intimidade, singeleza e espontaneidade das
ideias.
e) n.d.a.
Autorretrato
Provinciano que nunca soube
Escolher bem
uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou
cronista de província;
Arquiteto
falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou
filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.
(Manuel
Bandeira)
Poema de sete faces
Quando eu nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
( .... )
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo
mais vasto é o meu coração.
(Carlos Drummond de Andrade)
9.Esses poemas têm em comum o fato de:
(A) descreverem aspectos físicos dos próprios
autores.
(B) refletirem um sentimento pessimista.
(C) terem a doença como tema.
(D) narrarem a vida dos autores desde o nascimento.
(E) defenderem
crenças religiosas.
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