A BIOGRAFIA FRUSTRADA
Flávio Loureiro Chaves

    João Simões Lopes Neto, descendente da nobre linhagem patrícia chefiada por seu avô, o Visconde da Graça, nasceu na estância situada nos arredores de Pelotas, em 1865. Entretanto, ninguém poderá chamá-lo um "homem do campo". Já aos onze anos vamos encontrá-lo no núcleo urbano de Pelotas, cidade aliás avançada em sua época, graças à prosperidade econômica assegurada pela exploração do charque e por uma indústria nascente. A formação escolar de Simões Lopes completou-se no Rio de Janeiro, onde esteve matriculado, a partir de 1878, no famoso Colégio Abílio, dirigido pelo Barão de Macaúbas, mais tarde retratado por Raul Pompéia como o Aristarco de O Ateneu. Excetuado o breve período que passou na capital do país, parece que raríssimas vezes afastou-se da cidade natal.
    Aí sua carreira foi em parte comercial e em parte na imprensa jornalística. Tudo está documentado por Carlos Reverbel na pesquisa definitiva, publicada em 1985, Um Capitão da Guarda Nacional (Vida e obra de J. Simões Lopes Neto), onde reconstituiu a trajetória existencial do escritor. Sabemos então que a passagem pelo mundo dos negócios pode ser traduzida numa invariável seqüência de desastres que o fez morrer literalmente pobre. Já herdeiro de propriedades reduzidas, ele tudo comprometeu em empresas temerárias. Vale a declaração de próprio punho: "Eu tive campos, vendi-os; freqüentei uma academia, não me formei; mas sem terras e sem diploma, continuo a ser... Capitão da Guarda Nacional".
    A luta pela subsistência seria travada nas redações dos jornais provincianos. Entre 1895-1913 mantém a coluna Balas d'Estalo no Diário Popular; em 1913-1914, sob o pseudônimo João do Sul, assina as crônicas de Inquéritos em Contraste nas páginas de A Opinião Pública; de 1914 a 1915 ocupa a direção do Correio Mercantil; finalmente, em 1916, ano de sua morte, volta para A Opinião Pública com a coluna Temas Gastos. Também não foi um grande jornalista e o conjunto da matéria que produziu não se desprende, hoje, da marca efêmera de uma "literatura de circunstância".
    Estão aí as características a serem guardadas numa aproximaçâo à personalidade de Simões Lopes Neto. Ele foi um homem da cidade, urbano e polido; nada tinha a ver com o protótipo do campeiro rústico que alguns imaginaram mais tarde. A estância e seus habitantes pertenciam tão-só à memória de sua infância e talvez por isso mesmo transformaram-se logo adiante na matéria prima da criação imaginária. Coube-lhe em vida apenas a mediocridade da cidadania municipal. Não conheceu a glória literária que, no seu caso, é inteiramente póstuma. Afinal, a publicação de Contos gauchescos ocorreu em 1912 e as Lendas do Sul foram impressas no ano seguinte, mas então lhe restavam quatro anos de vida. Até nisto a biografia de Simões Lopes Neto é uma biografia frustrada: sua pequena/grande obra escapou ao presente do autor. Era um legado para o futuro.
    Pouco espaço é necessário para mensurá-la quantitativamente. Além do conjunto formado por contos e lendas (que depois passou a ser editado num só volume), ele reuniu, em 1910, o acervo sul-rio-grandense na compilação do Cancioneiro guasca. São publicações póstumas os Casos do Romualdo, desentranhados em 1952 do arquivo do Correio Mercantil, e o ensaio Terra gaúcha, aparecido em 1955. Sua literatura teatral, quase toda dedicada ao gênero comico, teve pouquíssimos textos editados à época e era, também, produção circunstancial, embora haja indicações de que foi bem acolhida no gosto do público. Alguns livros anunciados por Simões Lopes Neto não foram publicados e os originais permanecem ainda hoje desconhecidos: Peona e dona (romance regional), Jango Jorge (romance regional), Prata do Taió (notas de uma comitiva exploradora) e Palavras viajantes (conferências).

    A fortuna do escritor é, portanto, tardia. deve-se sobretudo à avaliação qualitativa de um punhado de contos que deixou no pequeno volume de 1912 e sua repercussão nas gerações ulteriores. Apesar de tudo isso, sua presença não fez senão crescer daí até nossos dias. Estamos diante de umd esses casos, aliás freqüentes na história literária, em que a força irradiadora da obra ultrapassa o destino absolutamente opaco do autor que a produziu.

Página do Gaúcho - Escritores - João Simões Lopes Neto

DOS PAMPAS PARA MUNDO

    A cultura e a literatura gaúcha relembram hoje os 95 anos de falecimento de seu maior ícone. João Simões Lopes Neto, autor dos Contos Gauchescos e Lendas do Sul, foi o escritor e empreendedor pelotense que lançou as bases para o que hoje entendemos por tradicionalismo na cultura gaúcha.
    Nascido em 9 de março de 1865, Simões Lopes teve contato com a vida campeira somente até os 13 anos, quando seguiu para o Rio de Janeiro a fim de realizar os estudos preparatórios para a faculdade de Medicina, que não chegou a concluir. Regressando à Pelotas em 1886, levou uma vida urbana e empreendedora, dedicando-se a diversos ramos, como como destilaria, vidraçaria, moagem e torragem de café, além da infame fábrica de charutos, cujo nome Marca Diabo causou polêmica com a Igreja. Vale destacar que apesar de Simões Lopes não ter obtido o devido reconhecimento em vida, já que suas principais obras só foram lançadas em 1949, a consagração mundial viria com o fato de Lendas do Sul ser o primeiro livro em Português a ser disponibilizado gratuitamente no Projeto Gutemberg.
    De acordo com o professor e doutor em Literatura, Flávio Loureiro Chaves, a importância de ler Simões Lopes Neto ainda nos dias de hoje está no fato de ele ter sido um autor regionalista que superou a temática gaúcha apresentando aspectos universais, tais como o confronto entre o homem e a natureza, os contrastes entre o masculino e o feminino e a questão da persistência individual. Nesse sentido, o maior legado de sua obra estaria em ter universalizado a figura do gaúcho. Assim, a figura no narrador Blau Nunes, dos Contos Gauchescos, importaria muito mais como uma tradução desses sistemas universais.
    Quanto às possíveis dificuldades em relação à linguagem da obra, que buscou retratar fielmente a linguagem do homem dos pampas, linguagem essa hoje praticamente perdida nos contextos urbanos, Flávio Loureiro Chaves lembra que são essas as dificuldades encontradas em todas as grandes obras universais, tais como as de um Joyce ou um Proust, e que todo grande texto, mais do que dificuldades, apresenta, isto sim, desafios ao leitor. Para Chaves, a literatura existe, entre outras coisas, para isso: para desenvolver e ampliar a competência e o repertório linguístico dos leitores.
    Já na opinião do músico Ernesto Fagundes, o grande legado de Simões Lopes Neto à cultura gaúcha estaria na influência que seus textos exerceram para poetas como Jaime Caetano Braun, Aparício da Silva Rillo ou Lauro Rodrigues, entre tantos que cantaram e ainda cantam a cultura do nosso chão.

Dos pampas para mundo - Coordenação do Livro e Literatura
coordenacaodolivro.blogspot.com/.../do-rio-grande-para-o-mundo.ht...

CONTOS GAUCHESCOS, de Simões Lopes Neto

Análise da obra
    A obra Contos Gauchescos, editada pela primeira vez em 1912, é uma coleção de 19 contos que tem como ambientação no pampa gaúcho. Contadas pelo envelhecido vaqueano Blau Nunes, as histórias narram aventuras de peões e soldados. As narrativas são sempre sobre o gaúcho, guerreiro, trabalhador, rústico. Nelas a linguagem é sempre um dialeto característico do interior do Rio Grande do Sul e existe um enorme respeito pelos elementos deste estilo de vida: os animais, os instrumentos, a paisagem. Existe também uma grande exaltação do espírito guerreiro do gaúcho, especialmente nas narrativas de guerra, ambientadas na maioria das vezes na Revolução Farroupilha.
    Ao fazer de Blau Nunes o narrador de Contos Gauchescos, Simões Lopes Neto enfrentou um problema que nenhum outro escritor brasileiro até então solucionara: que linguagem utilizar? A norma culta soaria falsa e artificial. O linguajar do peão romperia a convenção literária e se isolaria na forma de expressão de um grupo. Simões Lopes Neto solucionou esse problema da seguinte forma: fez largo uso do léxico e eventualmente da sintaxe próprios da linguagem da campanha, mas submetendo-os a morfologia da norma culta. Assim, ele manteve a “cor local”, própria do regionalismo, sem romper com a tradição literária, fazendo universal também a sua linguagem.
    A linguagem utilizada no conto "Trezentas Onças" demonstra bem essa universalidade.
    Através de Blau é que percebemos o presente e o passado, estruturados na narrativa. Há o Blau moço, militar e o Blau velho, "genuíno tipo – crioulo – rio-grandense". Os demais que protagonizam os contos narrados por Blau são, quase sempre, iguais a ele.
    Isso pode ser identificado no primeiro conto da obra de Lopes Neto, "Trezentas Onças". Blau Nunes, que além de narrador (em 1ª pessoa) também é personagem do conto, é um vaqueano igual, tanto nas condições sociais como na honestidade, aos tropeiros que acharam e devolveram a sua guaiaca com as trezentas onças.
    Repare na apresentação que o escritor faz deste narrador:
    (...) E, por circunstâncias de caráter pessoal, decorrentes da amizade e da confiança, sucedeu que foi meu constante guia e segundo o benquisto tapejara Balu Nunes, desempenado arcabouço de oitenta e oito anos, todos os dentes, vista aguda e ouvido fino. (...)
    Genuíno tipo – crioulo - rio-grandense (hoje tão modificado), era Blau o guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosas e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco.
    E do trotar sobre tantíssimos rumos: das pousadas pelas estâncias; dos fogões a que se aqueceu; dos ranchos em que cantou, dos povoados que atravessou; das coisas que ele compreendia e das que eram-lhe vedadas; (...) das erosões da morte e das eclosões da vida entre o Blau – moço militar – e o Blau – velho paisano ficou estendida uma longa estrada semeada de recordações – casos, dizia – que de vez em quando o vaqueano recontava, como quem estendesse ao sol, para arejat, roupas guardadas ao fundo de uma arca. (...)
    Patrício, escuta-o.
    A partir daí, Blau Nunes põe-se a relatar as dezenove histórias (e mais um conjunto de adágios: "Artigos de fé do gaúcho") que integram os Contos gauchescos. Histórias que ele viveu diretamente ou apenas presenciou ou simplesmente ouviu narrar por outras vozes que agora ele recupera para recontá-las a seu interlocutor. Mais do que evocações líricas do passado, da terra e do povo rio-grandenses, estas lembranças do vaqueano estão impregnadas de uma tentativa de explicação do homem do pampa.

    A perspectiva de Blau Nunes a respeito do gaúcho é ambígua. Por um lado, celebra-lhe as virtudes: a hombridade, a bravura, a honestidade etc. No conto "Trezentas onças", por exemplo, ele perde uma bolsa carregada de moedas de ouro que seu patrão lhe confiara para comprar uma tropa de bois. Diante da hipótese de ser considerado ladrão, Blau pensa objetivamente no suicídio. Um lampejo de consciência, desencadeado pela noite estrelada, impele-o à vida. Naturalmente as moedas de ouro lhe serão restituídas por tropeiros honestos e tudo acaba bem.
    Por outro lado, Blau Nunes é essencialmente um gaudério, um homem que tem de seu apenas o cavalo e as habilidades campeiras e guerreiras. Alguém que pertence ao núcleo dos “de baixo” e que olhas para os “de cima” com certa desconfiança. Mais de uma vez, ele expressará a nostalgia de uma época em que a hierarquia social não fora totalmente estabelecida.
    No conto "Correr  eguada", o vaqueano lembra do tempo em que o gado ainda era xucro e sem dono. Lembra também que, quando os peões campeavam estes animais soltos na vastidão das coxilhas, tinham direito à sua “tropilhita nova”. A jornada dos contos não estabelece apenas um itinerário geográfico em busca das paragens típicas; também é um percurso existencial, pois o tapejara narra os casos de que participou, traçando a própria autobiografia. Mas esta coincide, ainda, com um período crucial da história do Rio Grande do Sul e a sucessão episódica oferece um panorama ao leitor: as lutas de fronteira, o desenvolvimento do contrabando, a Revolução Farroupilha, a Guerra do Paraguai, finalmente a transformação dos campos abertos em propriedade dos estancieiros-soldados que tudo mandam e tudo podem.

Linguagem e Expressão Artística
    Ao ceder a voz narrativa a Blau Nunes, em Contos Gauchescos, Simões Lopes Neto resolveu um problema contínuo da ficção brasileira: como pode um narrador culto e citadino, expressar-se na forma quase dialetal de determinada região, sem cair no pitoresco e sem parecer falso?
    O velho gaudério assume a narração de seus casos, valendo-se de uma espécie de linguagem popular campeira, imperante na campanha, pelo menos durante o século XIX, e que, certamente, já estava em desuso no início do século XX, quando o escritor a fixou literariamente. A fala de Blau Nunes é saborosa, sugestiva, em função de inúmeras e criativas metáforas, e nos dá a impressão de total naturalidade. Nela avultam espanholismos (despacito, entrevero etc.); arcaísmos (escuitar, peor etc.); corruptelas (vancê, desgoto etc.); e uma grande quantidade de termos específicos da região (china, bagual, chiru etc.); sem contar algumas variantes do próprio escritor. Por isso, deve-se ler a obra com um glossário confiável.
    O discurso simoniano ultrapassa, portanto, o mero localismo pitoresco e, na sua abrangência, engloba a tradução de um código ético, o testemunho histórico, a revelação psicológica. No fundo de tudo isto reside o substrato folclórico, a utilização literária da fala dialetal, sempre confrontando o homem e a natureza, infundindo uma qualidade simbólica ao mundo imaginário. No resultado final encontramos um desses raros momentos em que o regionalismo brasileiro se desprende do simples documentário para beirar o território do mito.
    Em Contos Gauchescos percebemos as qualidades do narrador e paralelamente, os seus limites. Tornam-se nítidos a fixação do mundo gauchesco, a oralidade e o regionalismo da linguagem. Para isso, muito vale a estratégia do autor, cedendo a palavra ao vaqueano Blau Nunes.
    Contribui para o encantamento verbal a que o narrador nos submete o fato de falar com alguém, um homem mais jovem, possivelmente o próprio Simões Lopes Neto, a quem o gaúcho está contando o seu percurso existencial. Como ele tem um ouvinte, permite-se a indagações, assertivas, reticências, silêncios, criando uma expressão própria inconfundível e que, muito depois, seria retomada – na questão da forma de narrar – por João Guimarães Rosa.
  Blau Nunes é o vaqueano que conduz o viajante através dos pagos. Trata-se aqui do portador de um conjunto de valores que expressa a imagem do gaúcho gerada pela tradição coletiva: a grandeza, a hospitalidade, a amizade, a confiança, a audácia e a perspicácia.
    O vaqueano contará os seus casos, recolhidos no "trotar sobre tantíssimos rumos". E a sua fala - por ser teoricamente a de um gaudério, a de um peão sem trabalho fixo - se esquivará, por vezes, da exaltação dos pampas e da condição gaúcha, que no fundo, foi sempre uma auto-exaltação dos oligarcas sulinos.
    Há no tom narrativo de Blau certa neutralidade, destruída aqui e ali pela saudade dos antigos tempos e por certo moralismo de origem cristã. Porém a sua nostalgia vincula-se a uma época na qual o gado ainda xucro era campeado - conforme o relato "Correr eguada" - e os peões tinham direito a sua tropilha nova, fato que não se repetiria numa sociedade cada vez mais dividida entre fazendeiros e trabalhadores.
    Por outro lado, a significação moral das histórias exige-se sobre um sentimento de relativo desconforto no narrador com a violência imperante no território gaúcho: a destruição do boi em serventia ("O boi velho"), a carnificina guerreira ("O anjo da vitória") etc.
    Ainda que um esforço documental presida a obra, o registro dos costumes nunca é gratuito. Liga-se à ação dos contos e a psicologia simples dos indivíduos. Em três ou quatro narrativas, contudo, o valor do documento é superado por uma legítima sensibilidade artística: "Trezentas onças", "O contrabandista" e "O boi velho" transcendem à condição de espelho da região, atingindo a chamada universalidade das grandes produções literárias.
    Se muitos contos permanecem apenas como registro de costumes ou como anedotas bem contadas, a linguagem em todos eles é viva e cheia de dialetismos, o que, em parte, dificulta a leitura. O linguajar gauchesco é reproduzido pelo escritor. Mas a utilização que Simões Lopes Neto faz do regionalismo lingüístico não visa o pitoresco, como acontece na maioria das manifestações artísticas dita regionais. Nele, a expressão típica é uma decorrência dos conteúdos trabalhados, e, por isso mesmo, somos capazes de superar as dificuldades de seu vocabulário.
    Há em sua obra o cuidado de reconstruir o timbre familiar das vozes. E isso forneceria a mesma um efeito surpreendente de oralidade, encanto e frescor.
    Simões Lopes Neto controla magistralmente os pontos de tensão de cada relato, açulando e, ao mesmo tempo, postergando a expectativa do leitor. A busca do dramático, em certos momentos, é tão intensa que os textos parecem ameaçados pelo excesso, isto é, pelo melodrama barato. No entanto, a intuição do artista mantém os contos nos limites verossímeis daquilo que é autêntica tragédia humana.
     Em "Contrabandista", por exemplo, um pai atravessa a fronteira para buscar um vestido de noiva   para a filha, mas no dia do casamento, enquanto o noivo, o padre e dezenas de convidados vão chegando, o pai não retorna com o presente. A espera, em plena festa matrimonial, pelo velho contrabandista e seus asseclas é uma das cenas mais exasperantes da ficção brasileira. Também o mísero destino de um animal, cruelmente morto por ricos fazendeiros a quem sempre servira com abnegação, em "O boi velho", é narrado de forma tão meticulosa por Blau Nunes que não há como fugir da comoção que o conto desperta:
    O peão puxou da faca e dum golpe enterrou-a até o cabo, no sangradouro do boi manso; quando retirou a mão, já veio nela a golfada espumenta do sangue do coração...
    Houve um silenciozito em toda aquela gente.
    O boi velho sentindo-se ferido, doendo o talho, quem sabe se entendeu que aquilo seria um castigo, algum pregaço de picana, mal dado por não estar ainda arrumado... – pois vancê creia! – soprando o sangue em borbotões, já meio roncando na respiração, meio cambaleando, o boi velho deu uns passos mais, encostou o corpo ao comprido no cabeçalho do carretão, e meteu a cabeça, certinha, no lugar da canga... e ficou arrumado, esperando... (...)
    E ajoelhou... e caiu... e morreu...

O drama humano
    Os principais relatos do autor pelotense são aqueles denominados "contos de sangue e paixão". Apesar de todos estes contos documentarem os costumes e as singularidades da região pastoril e apresentarem personagens inseridos na “vida bárbara dos gaúchos”, há neles uma ciranda tão cega e intensa de sentimentos elementares que o puramente regional é ultrapassado por algo maior: o homem universal, com sua cegueira e seus desatinos.
    A maldade dos estancieiros, em "O boi velho"; a luta fratricida entre dois comandantes farroupilhas provavelmente por causa de uma mulher, em "Duelo dos Farrapos"; a devoção do pai a sua filha em "Contrabandista"; o ódio e a vingança ilimitada, em "No manantial", "Os cabelos da china" e em "O negro Bonifácio"; a loucura do orgulho ferido, em "Jogo do osso"; o horror da guerra em "O Anjo da Vitória" são exemplos de relatos em que paixões humanas, instintivas e profundas, corrompem a ordem natural e lançam os seres no desconcerto e no aniquilamento.
    O Anjo da Vitória, apelido do heróico general Abreu, que lutou contra as forças uruguaias de Artigas, por exemplo, é um desses “contos de sangue e paixão”. Escrito ao que tudo indica para celebrar a valentia épica do guerreiro rio-grandense, o texto acaba dilacerado entre a audácia do comandante que, mesmo após um brutal erro militar – o exército imperial bombardeara e destruíra suas próprias tropas – convoca a soldadesca à luta, e o desespero de Blau Nunes, então um menino de 10 anos que acompanhava um capitão (seu padrinho e protetor) durante o confronto. Assim, ele assiste a todo desastre bélico. No final da história, o canto do heroísmo é substituído pelo tormento do menino, solitário no campo de batalha, entre mortos e feridos. Trata-se de uma cena devastadora:
    Campeei o meu padrinho morto, também, caído ao lado do azulego, arrebentado nas paletas por um tiro de peça; ali junto, apertando ainda a lança, toda lascada, estrebuchava o Hilarião, sem dar acordo, só aiando, só aiando...
    Deitado sobre o pescoço do cavalo, comecei a chorar.
    Peguei a chamar:
    - Padrinho! Padrinho!...
    - Hilarião! Meu padrinho!...
    Apeei, vim me chegando e chamando – padrinho!... padrinho!... E tomei-lhe a benção, na mão já fria... Puxei a manga do chiru, que já nem bulia.
    Sem querer fiquei vendo as forças que iam-se movendo e se distanciando... E num tirão, quando ia montar de novo sem saber pra quê... foi que vi que estava sozinho, abandonado, gaudério e gaúcho, sem ninguém para me cuidar!... (...)
    Comi do ruim... Veja vancê que eu era guri e já corria mundo...

ALGUNS CONTOS

Trezentas Onças
    Conto narrado em 1ª pessoa, com muita descrição de paisagem. O narrador Blau Nunes conta que, certa vez, viajando sozinho a cavalo, acompanhado apenas de seu cachorro, levava na guaiaca trezentas onças de ouro, destinadas a pagar um gado que compraria para seu patrão. Um certo ponto da viagem, pára para sestear num passo, onde, depois de uma boa soneca, vai refrescar-se com alguns mergulhos na água fresca.
    Tornando a vestir-se e a encilhar o zaino, parte em direção à estância da Coronilha, onde devia pousar. Logo que sai a trotar pela estrada, o gaúcho nota que seu cachorro estava inquieto, latindo muito e voltando sobre o rastro, como se quisesse chamar seu dono para o pasto outra vez. Mas Blau Nunes segue seu caminho até chegar à estância da Coronilha. Lá chegando, ao apear do cavalo e cumprimentar o dono da casa, nota que não estava com sua guaiaca. Anuncia que perdera trezentas onças do patrão e, preocupadíssimo, monta o cavalo outra vez para voltar ao lugar onde teria deixado a guaiaca.
    Depois de nova cavalgada, sempre acompanhado do fiel cãozinho, Blau Nunes chega ao passo, já de noite, e não mais encontra a guaiaca no lugar onde tinha certeza de que havia colocado quando se despira para o banho. Desespera-se tanto por imaginar que seu patrão o consideraria um desonesto, que pensa em suicidar-se. Chega a engatinhar o revólver e colocá-lo no ouvido, mas o cusco lambendo-lhe as mãos, o relincho de seu cavalo, o brilho das Três Marias, o canto de um grilo, tudo lhe invoca a presença e a força divina, que o demove daquele ato transloucado.
    Assim, o gaúcho reequilibra-se e decide que venderá todos os seus bens e dará um jeito de pagar ao patrão o prejuízo da perda das trezentas onças. E volta para a pousada na estância da Coronilha. É então que tem uma feliz surpresa: sobre a mesa da sala do estanceiro, ao lado da chaleira com que se servia a água do mate, estava a sua guaiaca 'empanzinada de onças de ouro'. Uma comitiva de tropeiros, que chegava à estância no momento em que ele voltava ao passo de sesteada, havia encontrado a guaiaca e a trouxera intacta. E esta foi a saudação que ele recebeu quando entrou na sala:
    - Louvado seja Jesus Cristo, patrício! Boa noite! Entonces, que tal le foi de susto?
    Há nessa narrativa um desequilíbrio ocasionado pela perda da guaiaca, que tenta recuperar-se quando Blau Nunes volta pelo trajeto que havia tropeado a fim de encontrá-la. Há, aí, outro desequilíbrio, através da vontade de se matar por não ter encontrado as trezentas onças. Através da natureza, dos animais, das estrelas, há um novo equilíbrio e Blau Nunes volta pra estância para prestar contas ao seu patrão.

No Manantial
     Conto narrado em 3ª pessoa.
    Na tapera do Mariano há um manantial. Bem no meio dele, uma roseira, plantada por um defunto, e gente vivente não apanha flores por ser mau agouro.
    Carreteiros que ali perto acamparam viram duas almas: uma chorava, suspirando; outra, soltava barbaridades. O lugar ficou mal-assombrado.
    Com Mariano morava a filha Maria Altina, duas velhas, a avó da menina e a tia-avó, e a negra Tanásia. Tudo em paz e harmonia.
    Certa vez foram a um terço na casa do brigadeiro Machado. Maria Altina encontrou o furriel André, e os dois se apaixonaram [conchavo entre o pai e o brigadeiro]. André lhe deu uma rosa vermelha. Em casa, ela plantou o cabo da rosa e a roseira cresceu e floresceu. Surgiu o trato do casamento...o enxoval...
    Chicão, filho de Chico Triste, andava enrabichado pela Maria Altina, que não se interessava por ele e tinha-lhe medo.
    Na casa de Chico Triste houve um batizado. O pai e a tia-avó foram ajudar. Chicão aproveitou-se, foi à casa do Mariano, matou a avó e quis pegar à força Maria Altina. Esta, vendo a avó morta, pegou o cavalo e saiu às disparadas, entrando no manantial. Chicão atrás. Ela some e só fica a rosa do chapéu boiando.
      Mãe Tanásia, que se escondera e vira tudo, vai à procura de Mariano.
     Nesse meio-tempo chegaram a casa os campeiros para comer. Viram a velha morta. Uns ficaram, e outros foram avisar Mariano e procurar Maria Altina...
     Mariano apavorou-se, pensando que a filha fugira com o Chicão. Nisso chegou a mãe Tanásia e conta o sucedido. Todos vão ao manantial e encontram Chicão atolado, boiando. Mariano atira e acerta Chicão. O padre que ali está, coloca a cruz na boca da arma e pede que não atire mais. Mariano entra no lamaçal, luta com Chicão e os dois afundam e morrem.
   A avó foi enterrada também na encosta do manantial. Uma cruz foi benzida e cravada no solo   pelos quatro defuntos.
    Mãe Tanásia e a tia-avó foram por caridade, morar na casa do brigadeiro Machado. E como lembrança do macabro acontecimento, ficou, sobre o lodo, ali no manantial, uma roseira baguala, roseira que nasceu do talo da rosa que ficou boiando no lodaçal no dia daquele cardume de estropícios.

O Contrabandista
    Narração em 1ª pessoa. Informações históricas.
  O contrabandista é Jango Jorge. Mão aberta e por isso sem dinheiro. Foi chefe de contrabandistas. Conhecia muito bem lugares pelo cheiro, pelo ouvido, pelo gosto. Fora antes soldado do General José Abreu.
  Estava pelos noventa anos, afamilhado com mulher mocetona, filhos e uma filha bela, prendada etc.
    O narrador pousa na casa dele, era véspera do casamento da filha.
    Tudo preparado, Jango Jorge parte para comprar o vestido e os outros complementos de contrabando. É atacado, na volta, pelo guarda que pega o contrabando, mas ele não solta o pacote contendo o vestido e, por isso, é morto. Os amigos levaram o cadáver para casa, contaram como ocorreu e a alegria da festa vira tristeza geral.
    No meio do conto é contada a história do contrabando na região, do comércio entre os lugares, os mascates...

Jogo de Osso
    Narrado em 1ª pessoa, o conto é bastante descritivo. Começa, dizendo que já viu jogar mulher num jogo. Depois descreve a vendola do Arranhão, um pouco para fora da vila, de propriedade de um meio-gringo, meio-castelhano, que tem faro para negócios: bebida, corrida, jogos etc.
    Certo dia choveu e atrapalhou a jogatina. Cessada a chuvarada, resolvem jogar o osso. Explica como se desenvolve a jogatina. Os jogadores eram Osoro, mulherengo, compositor; e Chico Ruivo, domador e agregado num rincão da Estância das Palmas; vivia com Lalica.
    Chico só perde e acaba apostando Lalica. Esta com raiva de ter sido incluída na aposta, começa a dançar com Osoro,o ganhador, provocando Chico Ruivo, que não agüentando mais, vara os dois ao mesmo tempo com um facão.
    O povo à volta grita para que peguem Chico Ruivo, mas ele foge no cavalo de Osoro.
    -Pois é, jogaram, criaram confusão, mas nenhum pagou a comissão...Que trastes!..., falou o meio-gringo do bolicho.

Contos gauchescos, de Simões Lopes Neto - Passeiweb

ANÁLISE DAS OBRAS INDICADAS AOS VESTIBULARES
Prof. Marco Antonio Mendonça
Contos Gauchescos (Simões Lopes Neto)

Pré-Modernismo:
    O que se convencionou chamar de Pré-Modernismo, no Brasil, não constitui uma "escola literária", ou seja, não temos um grupo de autores afinados em torno de um mesmo ideário, seguindo determinadas características.
    Na realidade, Pré-Modernismo é um termo genérico que designa uma vasta produção literária que abrangeria os primeiros 20 anos deste século. Aí vamos encontrar as mais variadas tendências e estilos literários, desde os romancistas da linha realista; passando pelos poetas parnasianos e simbolistas, que continuavam a produzir, até os escritores que começavam a desenvolver um novo
regionalismo, além de outros mais preocupados com uma literatura política e outros, ainda, com propostas realmente inovadoras.
    Para efeitos didáticos, é o período que se inicia em 1902 com a publicação de dois importantes livros - Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Canaã, de Graça Aranha - e se estende até o ano de 1922, com a realização da Semana de Arte Moderna.
    Politicamente, vivia-se o período de estabilização do regime republicano e a chamada "política do café-com-leite", com a hegemonia de dois Estados da federação: São Paulo, em razão de seu poder econômico, e Minas Gerais, por possuir o maior colégio eleitoral do país. Embora não tivesse absorvido toda a mão-de-obra negra disponível desde a Abolição, o país recebeu nesse período
um grande contingente de imigrantes para trabalhar na lavoura do café e na indústria.

O Autor
    João Simões Lopes Neto nasceu e faleceu em Pelotas, respectivamente em 1865 — 1916. Além de escritor, também foi empresário. Segundo estudiosos e críticos, ele foi o maior autor regionalista do Rio Grande do Sul, pois procurou em sua produção literária valorizar a história do gaúcho e suas tradições. Só alcançou a glória literária postumamente, em especial após o lançamento da edição crítica de Contos Gauchescos e Lendas do Sul, em 1949, organizada para a Editora Globo, por Augusto Meyer e com o decisivo apoio do editor Henrique Bertaso e do escritor Érico Veríssimo.
     Com treze anos de idade, foi ao Rio de Janeiro para estudar no famoso Colégio Abílio. Retornando ao Rio Grande do Sul, fixou-se em sua terra natal, Pelotas, uma cidade então rica e próspera pelas mais de cinqüenta charqueadas que formavam a base de sua economia.
     Ali, envolveu-se em uma série de iniciativas de negócios que incluíram uma fábrica de vidros e uma destilaria. Porém, os negócios fracassaram. Uma guerra civil no Rio Grande do Sul - a Revolução Federalista - abalou duramente a economia local. Depois disso, construiu uma fábrica de cigarros. (Curiosidade: a marca dos fumos e cigarros, recebeu o nome de ‗Diabo‘, o que gerou protestos de religiosos.) Sua audácia empresarial levou-o ainda a montar uma firma para torrar e moer café, e desenvolveu uma fórmula à base de tabaco para combater sarna e carrapatos. Ele fundou ainda uma mineradora, para explorar prata em Santa Catarina.
    Desacreditado por seus conterrâneos, faleceu aos 51 anos de idade, tendo trabalhado até então, como redator de um jornal e morado de favor na casa de uma cunhada.

Obras
Cancioneiro Guasca (1910);   Contos Gauchescos (1912);
Lendas do Sul (1913);              Casos do Romualdo (1914);

Obras inéditas
    Lopes Neto tinha em mente obras que ainda planejava  escrever. Terra Gaúcha, embora incompleta, foi publicada pela Editora Sulina, de Porto Alegre, em 1955.Contos Gauchescos
   A obra Contos Gauchescos, editada pela primeira vez em 1912, é uma coleção de 19 contos que tem como ambientação o pampa gaúcho. Contadas pelo envelhecido vaqueano Blau Nunes, as histórias narram aventuras de peões e soldados. Tanto narrador quanto personagens aparecem aqui nem heróis, nem bandidos, apenas simples gaúchos.
    Através de Blau é que percebemos o presente e o passado, estruturados na narrativa. Há o Blau moço, militar e o Blau velho, "genuíno tipo – crioulo – rio-grandense". Os demais que protagonizam os contos narrados por Blau são, quase sempre, iguais a ele.
    As narrativas são sempre sobre o gaúcho, guerreiro, trabalhador, rústico. Nelas a linguagem é sempre um dialeto característico do interior do Rio Grande do Sul e existe um enorme respeito pelos elementos deste estilo de vida: os animais, os instrumentos, a paisagem. Existe também uma grande exaltação do espírito guerreiro do gaúcho, especialmente nas narrativas de guerra, ambientadas na maioria das vezes na Revolução Farroupilha.
    Simões Lopes Neto retoma os elementos do Regionalismo e transforma-os num instrumento de reflexão sobre a realidade gaúcha.
    Sua nostalgia converte o passado num mito, porque perfeito, unitário e globalizante: mas sua consciência do presente dimensiona sua crítica e faz com que percorra o caminho inverso,dessacralizando o mito instituído e alertando a respeito do tipo de dominação exercida em sua época.
    Ao fazer de Blau Nunes o narrador de Contos Gauchescos, Simões Lopes Neto enfrentou um problema que nenhum outro escritor brasileiro até então solucionara: que linguagem utilizar? A norma culta soaria falsa e artificial. O linguajar do peão romperia a convenção literária e se isolaria na forma de expressão de um grupo. Simões Lopes Neto solucionou esse problema da seguinte forma: fez largo uso do léxico e eventualmente da sintaxe próprios da linguagem da campanha, mas submetendo-os a morfologia da norma culta. Assim, ele manteve a ―cor local‖, própria do regionalismo, sem romper com a tradição literária, fazendo universal também a sua linguagem. A linguagem utilizada no conto ―Trezentas Onças‖ demonstra bem essa universalidade.
     Por trás do acontecimento, Simões Lopes Neto mostra os valores sociais do Rio Grande do Sul que acompanham uma trajetória de escravidão, a existência das Missões Jesuíticas, a força política centralizada nas altas patentes militares. O espaço geográfico contribui para a estrutura social. A campanha é o contexto da sociedade gaúcha, cuja formação é composta de proprietários de terras (estancieiros), trabalhadores brancos, assalariados e livres (peões), e escravos negros - ambos encarregados das lides do campo.
     A coragem, a disponibilidade para a luta, o desejo de liberdade, defesa da honra pessoal e do seu território são os motivos de uma realidade marcada pela violência e opressão. A mulher é figura secundária no pampa. Desde a infância, assume sua missão de servir o marido e cuidar da casa, enquanto o homem preocupa-se com o sustento. Os animais compõem o ambiente social, tanto na atividade econômica (criação de gado), quanto na forma de locomoção (o cavalo é considerado um companheiro). Na atmosfera do conto, percebe-se também a religiosidade no relato da participação da família na reza terço e da comemoração do batizado; a crença em superstições, caracterizada no barulho dos animais e na aparição da borboleta preta, momentos antes da tragédia e a preservação das histórias populares contadas por gerações, simbolizada no fato em si. Para que fossem possíveis tais percepções, a obra contou com uma linguagem especial a qual demonstra o rico vocabulário dialetal da região em uma época antiga, pois muitas das expressões
deixaram de ser comuns, como manancial, orelhana, timãozinho, ou mudaram a pronúncia. Como vancê (você) e mui (muito).

Contos
Trezentas Onças    O Negro Bonifácio   No Manantial
O Mate do João Cardoso    Deve um Queijo!    O Boi Velho
Correr Eguada    Chasque do Imperador    Os Cabelos da China
Melancia - Coco Verde    O Anjo da Vitória    Contrabandista
Jogo de Osso    O Duelo dos Farrapos    Pena de Velho
Juca Guerra    Artigos de Fé do Gaúcho    Batendo Orelha
O "Menininho" do Presépio    Que tal?
 
Alguns Resumos

O Negro Bonifácio
    No conto 'O Negro Bonifácio, a narração é feita em 3a. pessoa, e o autor dirige-se a um hipotético interlocutor, de tanto em tanto, com a expressão 'escuite'.
    O autor faz a descrição pormenorizada de Tudinha, a chinoca mais candogueira daquele pagos; e do negro Bonifácio.
   Tudinha era filha de siá Fermina, e dizem que seu pai era o capitão Pereirinha. Ela e a mãe haviam ido às carreiras. Também foram os quatro namorados de Tudinha, sendo um deles o Nadico.
    Apareceu lá o negro Bonifácio, que começou a pastorejar Tudinha e a convidou para uma aposta. Ela aceitou. Se ganhasse,receberia uma libra de doces.
    A tordilha em que ela apostara venceu. No meio da comemoração, apareceu o negro, trazendo os doces, e Tudinha mandou que ele desse os doces à mãe dela. O negro insistiu. Nadico pegou os doces e os jogou na cara do muçum. Começou a confusão.
    O negro, Nadico, os outros namorados de Tudinha e os que tinham contas a ajustar com aquele negro atrevido brigaram.
    O negro foi ferido. Nadico teve a barriga aberta, depois morreu (Tudinha agarrou-se a ele). Fermina jogou água quente no negro e este, depois de urrar, atravessou-a com o facão. Ao mesmo tempo, um bolaço atirado por um homem acertou a cabeça do negro, que caiu. Tudinha, que não chorava mais pelo Nadico morto e pela mãe Fermina, que estava estrebuchando, com muita raiva, saltou sobre Bonifácio, tirou-lhe o facão e vazou os olhos dele. Depois cravou o facão debaixo da bexiga, dez, vinte, cinquenta vezes cravou o ferro afiado como quem espigaça uma cobra cruzeira, numa toca, como quem quer reduzir a mingos uma prenda que foi querida e na hora é odiada. Nisso apareceu o juiz de paz.
    Mais tarde, Blau soube, surpreso, que o negro Bonifácio (tão feio) fora o primeiro a relacionar-se com a Tudinha (tão linda). E finaliza:
    ―- Ah! Mulheres!... Estancieiras ou peonas, é tudo a mesma cousa... tudo é bicho caborteiro...; a mais santinha tem mais malícia que um sorro velho...‖

O Mate de João Cardoso
    ―Os mates do João Cardoso criaram fama… A gente daquele tempo, até, quando queria dizer que uma cousa era tardia,
demorada, maçante, embrulhona, dizia — está como o mate do João Cardoso!
    A verdade é que em muita casa e por muitos motivos, ainda às vezes parece-me escutar o João Cardoso, velho de guerra, repetir ao seu crioulo:
    — Traz dessa mesma, diabo, que aqui o sr. tem pressa!...
    — Vancê já não tem topado disso?...
    Com esse texto, Blau Nunes termina esse pequeno conto no qual aborda uma personagem (João Cardoso), que morava à beira de  um caminho e convidava todos os passantes a tomar um mate com ele. Como o mate não aparecia nunca, João ia ―estendendo a prosa‖ enquanto ordenava a seu empregado que o mate viesse. No final, os ―visitantes‖ iam embora, cansados de esperar. Criou-se um ditado em torno dessa história, quando algo demora muito, é como o ―mate de João Cardoso‖.

Deve um Queijo
    O velho Lessa chega a uma venda e é ―obrigado‖ a pagar um queijo a um castelhano imenso que ali estava. Com toda a calma do mundo ele percebe que o castelhano – folgado – estava para briga; manda ―descer‖ o queijo e reparte entre todos, a quem oferece, sem que eles aceitem. Só o castelhano aceita e ele vai oferecendo, um a um, os pedaços cortados. Quando o homem diz que não agüenta mais, o velho Lessa bate nele com o facão e o obriga a continuar comendo até o ultimo pedaço. O homem, ao fim, já meio vomitando, pula a janela e foge.
    ―De ainda longe já um dos sujeitos o havia conhecido e dito quem era e donde; e logo outro - passou voz que aí no mais todos iriam comer um queijo sem nada pagar...
    Este fulano era um castelhano alto, gadelhudo, com uma pêra enorme, que ele às vezes, por graça ou tenção reservada, costumava trançar, como para dar mote a algum dito, e ele retrucar, e, daí, nascer uma cruzada de facões, para divertir, ao primeiro coloreado...
    Sossegado da sua vida o velho Lessa aproximou-se, parou o cavalo e mui delicadamente tocou na aba do sombreiro;
    - Boa-tarde, a todos!
    E apeou-se.    Maneou o mancarrão, atou-lhe as rédeas ao pescoço e dobrou os pelegos, por causa da quentura do sol.
    Quando ia a entrar na venda, saiu-lhe o castelhano, pelo lado de laçar... A este tempo o negociante saudava o velho, dizendo:
      - Oh! seu Nico! Seja bem aparecido! Então, vem de Canguçu, ou vai?...
      Antes que o cumprimentado falasse, o castelhano intrometeu-se:
      - Ah! es usted de Canguçu?... Entonces... debe un queso!...
(...)
      Aí pelas seis talhadas o clinudo parou de mastigar.
      - Bueno. . buenazo!... pero no puedo más!...
     Mas o velho, com o facão espetou uma fatia e of'receu-lhe:
     - Esta, por mim!
     - Si, justo: por usted, vaya!...
     E às cansadas remoeu o pedaço.
     E mal que engoliu o último bocado, já o velho apresentava-lhe outra fatia, na ponta do ferro:
      - Outra, a saúde de Canguçu!...
      - Pero...
     - Não tem pero nem pera... Come...
      -Pê...
      - Come, clinudo!...
     E, no mesmo soflagrante, de plancha, duro e chato, o velho Lessa derrubou-lhe o facão entre as orelhas, pelas costelas, pelas paletas, pela barriga, pelas ventas... seguido, e miúdo, como quem empapa d'água um couro lanudo. E com esta sumanta levou-o sobre o mesmo surrão de erva, pôs-lhe nos joelhos o prato com o resto do queijo e gritou-lhe nos ouvidos: - Come!...
    E o roncador comeu... comeu até os farelos...; mas, de repente, empanzinado, de boca aberta, olhos arregalados, meio sufocado, todo se vomitando, pulou porta fora, se foi a um matungo e disparou para a barranca do passo... e foi-se, a la cria!...
    O reclamador da panela desbeiçada deu uma risada e chacoteou, pra o rastro:
    - 'Orre, maula!... quebraram-te o corincho!...
    E o velhito, com toda a sua pachorra indagou pelo almoço, se já estava pronto?...
    - Os ovos..., a linguiça..., o café?... ―
   
    Os principais relatos de Simões Lopes são aqueles denominados "contos de sangue e paixão". Apesar de todos estes contos documentarem os costumes e as singularidades da região pastoril e apresentarem personagens inseridos na ―vida bárbara dos gaúchos‖, há neles uma ciranda tão cega e intensa de sentimentos elementares que o puramente regional é ultrapassado por algo maior: o homem universal, com sua cegueira e seus desatinos.
    A maldade dos estancieiros, em "O boi velho"; a luta fratricida entre dois comandantes farroupilhas provavelmente por causa de uma mulher, em "Duelo dos Farrapos"; a devoção do
pai a sua filha em "Contrabandista"; o ódio e a vingança ilimitada, em "No manantial", "Os cabelos da china" e em "O negro Bonifácio"; a loucura do orgulho ferido, em "Jogo do osso"; o horror da guerra em "O Anjo da Vitória" são exemplos de relatos em que paixões humanas, instintivas e profundas, corrompem a ordem natural e lançam os seres no desconcerto e no aniquilamento.Correr eguada
    No conto Correr eguada, o vaqueano lembra-se do tempo em que o gado ainda era xucro e sem dono. Lembra também que, quando os peões campeavam estes animais soltos na vastidão das coxilhas, tinham direito à sua ―tropilhita nova‖. A jornada dos contos não estabelece apenas um itinerário geográfico em busca das paragens típicas; também é um percurso existencial, pois o tapejara narra os casos de que participou, traçando a própria autobiografia.     
    Mas esta coincide, ainda, com um período crucial da história do Rio Grande do Sul e a sucessão episódica oferece um panorama ao leitor: as lutas de fronteira, o desenvolvimento do contrabando, a Revolução Farroupilha, a Guerra do Paraguai, finalmente a transformação dos campos abertos em propriedade dos estancieiros-soldados que tudo mandam e tudo podem.

O Chasque do Imperador
    Trata-se de uma narrativa que fica um pouco esquecida, pois os contos que mais ensejam estudos são os mais impressionantes, ou mais atraentes do ponto de vista dramático – aqueles cuja trama agrega elementos trágicos e/ou passionais, batalhas e sangue derramado –, e esse parece ser quase uma mera curiosidade. Percebemos, porém, que ele revela uma complexidade maior em uma leitura mais atenta.
    O enredo do conto é simples, começa com o narrador, Blau Nunes, gaúcho octogenário, mas ainda forte, vivaz e de excelente memória, contando episódios, fatos que ele julga inusitados e dos quais participou em sua maturidade. Fala de sua experiência militar e das figuras importantes que conheceu e as quais serviu. Esses episódios são breves, narrados com certo orgulho a modo de causos que visam a audiência de um determinado interlocutor, sujeito letrado que percorre o interior da região pampeana acompanhado por Blau. São episódios encadeados, formando uma seqüência que culmina com o famoso caso dos docinhos, que teriam sido oferecidospor um determinado sujeito mui gauchão, fazendeiro ou charqueador, ao seu hóspede ilustre: o Imperador D. Pedro II. Tendo ouvido contar que as gentes da corte só se alimentavam de ‗finuras‘, esse sujeito oferece ao Imperador, por dias seguidos, apenas docinhos finos e chá. Até o dia em que o hóspede, não mais suportando provar alguns por educação, e não agüentando mais a fome, protesta educadamente, elogiando os doces, mas solicitando um ‗feijãozinho ou uma lasca de carne‘, provocando o alívio – e o respeito – de seu hospedeiro que até então, por gentileza e hospitalidade, lhe fazia companhia nos docinhos, mas que agora lhe oferecia, alegremente, um churrasco.
    As qualidades tidas como típicas do gaúcho - a lealdade, a honra, valentia – se fazem presentes no Chasque do Imperador, porém desmistificadas. Há referência ao mito do gaúcho, mas diríamos que essa referência, apesar de parecer reforçá-lo, na verdade o desconstrói, pois apresenta o gaúcho sobretudo como um ingênuo – e meio gozador, por conta dos seis pequenos chistes, voluntários ou não, que compõem a narrativa. O gaúcho, aqui, desce do cavalo, não há evidências da imponência com que habitualmente é retratado nos textos de temática regionalista. A idéia que se pode fazer de Blau Nunes, nesse conto, não é a que temos dele pela leitura dos outros, sua imagem é diversa daquela a qual nos acostumamos, já que aqui ele perde, tanto quanto os outros gaúchos, não apenas a imponência, mas também a aura de sabedoria e a sisudez. É retratado também como falastrão – sendo inclusive interrompido por Caxias - e excessivamente servil, comportamento que poderíamos atribuir à sua juventude.
    ―Eu pensava que o Imperador era um homem diferente dos outros, assim todo de ouro, todo de brilhantes, com olhos de pedras finas... Mas, não senhor, era um homem de carne e osso, igual aos outros... mas como quera... uma cara tão séria... e um jeito ao mesmo tempo tão sereno e tão mandador, que deixava um qualquer de rédea no chão!... Isso é que era!‖

Os Cabelos da China
    João Simões Lopes Neto, imortalizou os ―guasqueiros‖ ao criar o personagem Juca Picumã, no conto ―Os cabelos da china‖ do livro ―Os contos gauchescos‖.
    O personagem retrata um típico gaúcho riograndense do tempo antigo, ardoroso trabalhador, fiel cumpridor de seus compromissos, e pronto para pegar em armas para defender o que lhe parecia justo. No conto, Blau Nunes o principal personagem e narrador, conta que foi Juca picumã quem lhe ensinou a trançar, descreve-o como um habilidoso guasqueiro, valente como ninguém e ginete nem se fala..., o desenrolar da história se dá durante a revolução farroupilha, e mesmo diante da barbárie do meio, o Picumã de Simões, rude à primeira vista, revela-se uma figura humana capaz de criar e manter laços afetivos seja como pai ou amigo.
   — Vancê sabe que eu tive e me servi muito tempo dum buçalete e cabresto feitos de cabelo de mulher?…Verdade que fui inocente no caso.
    Mais tarde soube que a dona dele morreu; soube, galopeei até onde ela estava sendo velada; acompanhei o enterro... e quando botaram a defunta na cova, então atirei lá pra dentro aquelas peças, feitas do cabelo dela, cortado quando ela era moça e tafulona… Tirei um peso de cima do peito: entreguei à criatura o que Deus lhe tinha dado.
    Eu conto como foi.‖
    Quem me ensinou a courear uma égua, a preceito, estaquear o couro, cortar, lonquear,  amaciar de mordaça, o quanto, quanto...; e depois tirar os tentos, desde os mais largos até os fininhos, como cerda de porco, e menos, quem me ensinou a trançar, foi um tal Juca Picumã, um chiru já madurázio, e que tinha mãos de um anjo para trabalhos de guasqueiro, desde fazer um sóveu campeiro até o mais fino prepero para um recau de luxo,mestraço que era em armar qualquer roseta,bombas,botões e tranças de mil feitios.‖
    Como bom gaúcho, Picumã faz uma ―gauchada‖ para o amigo Blau, se diz na campanha ―uma gauchada‖ quando alguém presenteia ou faz um favor, nesse caso o regalo foi um ―buçalete de cabelo‖ finamente trançado por Picumã.    Anos depois, Picumã no leito de morte revela a Blau Nunes que o buçalete foi feito com os cabelos da sua filha. A revelação surpreende Blau, que estava
presente no dia em que Picumã se viu obrigado a matar o capitão de sua corporação para salvar a vida da filha.    Neste conto como em outros escritos por João Simões Lopes Neto, encontramos a fiel descrição do gaúcho histórico, um ser comum a não ser pela fibra e a capacidade de superar as dificuldades.

Melancia – Coco Verde
    A história começa, sendo narrada por Blau Nunes, que está na presença de um  companheiro, e para quem narra um longo causo.
    O narrador pede para o receptor esperar, fumar, que ele vai ao encontro de um velho conhecido, o Reduzo, índio que foi ―posteiro‖ da família Costas, em outros tempos. Neste momento há uma pausa, longa, a da conversa com o Reduzo, que é expressa por uma série de pontos, e é interrompida quando o narrador volta a falar com seu ouvinte.
    A partir de então, ele narra a história do índio Reduzo, também chamado chiru, ao longo do texto. Recorda sua história desde menino, quando nasceu e foi criado na casa dos Costas, onde o patriarca é Iunanco Costa, um homem de vida feita, bem empregado, que comprou quatro sesmarias (terrenos não cultivados, no Brasil, cedidos para os novos povoadores pelos reis de Portugal) , para ele e para seus filhos.
    O chiru criou-se com os filhos do Costa, juntos faziam várias tarefas quando crianças, que com o passar do tempo ficavam mais Reduzo também, como companheiro e súdito.
    O Costinha era apaixonado pela sia Talapa, filha de um fazendeiro das redondezas, chamado Severo. Ele às vezes passava pelas fazendas do último, para ver a amada. Porém, Severo não queria que a filha se casasse com ele, mas sim com seu sobrinho, um ilhéu dito vegetariano no texto, visto que ele não tinha a mesma cultura tipicamente gaúcha de comer churrasco entre outras iguarias
citadas, e nem a cultura de andar a cavalo, diz no texto que pra ele o cavalo tinha que ser manso lento e ―porongudo‖, ou seja, atrofiado nas pernas, com dificuldade de andar. Acontecia que este ilhéu era Galego. Quando este ilhéu chegava de visita, o cardápio todo mudava, e sia Talapa ficava muito triste quando as pessoas comentavam sobre seu casamento com o primo.
    Ele retoma o romance de sia Talapa e o Costinha. Fala que os dois fizeram um juramento, de que se casariam, ainda que ela tivesse que sair de casa. Por causa de alguns ataques de castelhanos, o Costinha teve que se despedir da amada, deu-lhe uma memória, e ela, para retribuir, uma mecha de cabelo. Então surge o título do conto, quando eles combinam que seus nomes codificados, da sia e do Costinha seriam Melancia e Coco verde, respectivamente, para mensagens, e que só os dois saberiam. Costinha, no escuro, rouba um beijo da moça, que só o Reduzo viu. E parte.
    Passa um tempo e o velho Severo manda buscar seu sobrinho, junto a uma carta, para o casório com a filha. Chegou muita gente para o casamento, entre vizinhos, parentes e empregados. Sia Talapa, junto com a empregada que lhe havia amamentado choravam. A segunda discretamente, com medo de ser punida. A família Costa não fora convidada. Entretanto um viajante passou pelas bandas, e levou a notícia ate os ouvidos dos Costas. Quando Costinha ficou sabendo, estava a caminho de uma batalha e mandou Reduzo enviar a mensagem à sia Talapa de que Coco Verde manda novas à Melancia, e contextualiza para o chiru, enquanto os dois se defendem dos ataques e matam homens inimigos.
    O chiru foi, na maior velocidade possível sem pausas sem alimentação, só trocas de cavalos. Quando encontrou o Severo, este oconvidou para comer, comemorar e fazer uma ―saúde‖, ou seja, um comprimento, desejar um bom casamento. Quando chegou a hora de fazê-lo disse: ―Eu venho de lá bem longe, da banda do Pau Fincado: Melancia, coco verde te manda muito recado!‖. A noiva, que
se encontrava empalidecida e de olhos profundos, ficou com a pele acobreada e com os olhos brilhando. Todos riram.
    Depois ele falou: ―Na polvadeira da estrada, o teu amor vem da guerra:... Melancia desbotada!... Coco verde está na terra!…
     Amigo! Nem lhe sei contar o resto!...‖. Nestas palavras a moça desmaiou e o ilhéu culpou o Reduzo por ele estar com as armas ainda embainhadas e ter deixado a menina apavorada. Os convidados começaram a maldizê- lo, ele fugiu, pulou de uma janela e foi embora.
    Dois dias depois chegou o Costinha, que declarou seu desejo de casar-se com sia Talapa para o velho Severo, que aquiesceu. Reduzo se escondeu por um tempo por causa do Severo, mas com o Costinha já casado, e com posto de capataz, era o homem no qual todos confiavam.
     Na conclusão do narrador: ―Veja vancê que artes de namorados: Melancia… Coco verde!…‖, simples e direta, ele mostra como se sente diante de todos os fatos, e este conto é uma narração muito romântica, que demonstra os perigos enfrentados e os artifícios que são utilizados por amor, como verdadeira prova do mesmo.

Anjo da Vitória
    O Anjo da Vitória, apelido do heróico general Abreu, que lutou contra as forças uruguaias de Artigas, por exemplo, é um dos ―contos de sangue e paixão‖. Escrito ao que tudo indica para celebrar a valentia épica do guerreiro rio-grandense, o texto acaba dilacerado entre a audácia do comandante que, mesmo após um brutal erro militar – o exército imperial bombardeara e destruíra suas próprias tropas – convoca a soldadesca à luta, e o desespero de Blau Nunes, então um menino de 10 anos que acompanhava um capitão (seu padrinho e protetor) durante o confronto. Assim, ele assiste a todo desastre bélico. No final da história, o canto do heroísmo é substituído pelo tormento do menino, solitário no campo de batalha, entre mortos e feridos. Trata-se de uma cena devastadora:
    ―Campeei o meu padrinho morto, também, caído ao lado do azulego, arrebentado nas paletas por um tiro de peça; ali junto,
apertando ainda a lança, toda lascada, estrebuchava o Hilarião, sem dar acordo, só aiando, só aiando...
    Deitado sobre o pescoço do cavalo, comecei a chorar.
    Peguei a chamar:
     - Padrinho! Padrinho!...    - Hilarião! Meu padrinho!...
    Apeei, vim me chegando e chamando – padrinho!... padrinho!... E tomei-lhe a benção, na mão já fria... Puxei a manga do chiru, que já nem bulia.
    Sem querer fiquei vendo as forças que iam-se movendo e se distanciando... E num tirão, quando ia montar de novo sem saber pra quê... foi que vi que estava sozinho, abandonado, gaudério e gaúcho, sem ninguém para me cuidar!... (...)
    Comi do ruim... Veja vancê que eu era guri e já corria mundo...‖

Contrabandista
    Considerado um dos cem melhores contos do século XX, por Ítalo Morriconi, no conto, Blau Nunes testemunha o triste fim do
velho Jango Jorge que, na véspera do casamento da filha, vai buscar em contrabando o vestido de noiva. Ao ser descoberto, é morto a balas pela guarda por tentar recuperar o vestido. Os amigos levam o corpo para a estância, que por ocasião estava repleta de convidados, transformando a alegria da festa em tristeza de velório.
     Este conto transporta o leitor ao período dos conf1itos armados, a luta pela posse de terras - as sesmarias -, o monopólio dos produtos e o alto valor dos impostos por parte da monarquia, provocando o contrabando entre gaúchos e espanhóis. Após a guerra doParaguai, o contrabando no Estado aumenta devido à valorização da moeda brasileira e o fraco controle das fronteiras. A personagem Jango Jorge representa o grupo dos contrabandistas: caracterizado assim por Dreys (1990): ―homens corajosos que desconhecem os limites da lei, mas, fora de sua profissão, são sociáveis, obsequiosos e inofensivos.‖ Eram de uma população branca, viviam em tribo mista, não pertencendo politicamente nem aos portugueses, nem aos espanhóis, nem aos indígenas. Como os gaúchos, tinham princípios morais que não deixavam ofender as pessoas e os bens de quem tinham apreço. Tal ofício foi esmorecendo com o passar dos anos. No espaço, repete-se a valorização do campo. A importância do matrimônio na vida da mulher, associada à expectativa da noiva e aos grandes preparativos para a festa - os quais incluíam matança de animais, dança ao som de acordeonas e violas, rodada de chimarrão e licores de butiá – são os traços dados pelo escritor para enfatizar os costumes da época.  Outras citações reconstroem a história rio-grandense, como a ausência da luz elétrica e a denominação "vila de Porto Alegre" dada à atual capital do Estado. 
     Quanto à linguagem, possui as mesmas distinções do anterior, porém há um toque diferencial que enriquece a trama, reforçando o elo da ficção com o momento histórico: o uso do espanhol _ ―le echaba cuentas de gran capitán ...‖, significando em português, "lançavalhe conta de um grande capitão."

Jogo de Osso
    Narrado em 1ª pessoa, o conto é bastante descritivo. Começa, dizendo que já viu jogar mulher num jogo. Depois descreve a vendola do Arranhão, um pouco para fora da vila, de propriedade de um meio-gringo, meio-castelhano, que tem faro para negócios: bebida, corrida, jogos etc.
    Certo dia choveu e atrapalhou a jogatina. Cessada a chuvarada, resolvem jogar o osso. Explica como se desenvolve a jogatina. Os jogadores eram Osoro, mulherengo, compositor; e Chico Ruivo, domador e agregado num rincão da Estância das Palmas; vivia com Lalica.
    Chico só perde e acaba apostando Lalica. Esta com raiva de ter sido incluída na aposta, começa a dançar com Osoro,o ganhador,provocando Chico Ruivo, que não agüentando mais, vara os dois ao mesmo tempo com um facão.
    O povo à volta grita para que peguem Chico Ruivo, mas ele foge no cavalo de Osoro.
     -Pois é, jogaram, criaram confusão, mas nenhum pagou a comissão...Que trastes!..., falou o meio-gringo do bolicho.

Artigos de Fé do Gaúcho
    Não é um conto, mas preceitos que um bom gaúcho deve seguir, algo como as regras de cavalaria medieval:
Muita gente anda no mundo sem saber pra quê: vivem porque vêem os outros viverem.
Alguns aprendem à sua custa, quase sempre já tarde pra um proveito melhor. Eu sou desses.
    Pra não suceder assim a vancê, eu vou ensinar-lhe o que os doutores nunca hão de ensinar-lhe por mais que queimem as pestanas
deletreando nos seus livrões. Vancê note na sua livreta:
1º. Não cries guaxo: mas cria perto do teu olhar o potrilho pro teu andar.
2º. Doma tu mesmo o teu bagual: não enfrenes na lua nova, que fica babão; não arrendes na miguante, que te sai lerdo.
3º. Não guasqueies sem precisão nem grites sem ocasião: e sempre que puderes passa-lhe a mão.
4º. Se és maturrango e chasque de namorado, mancas o teu cavalo, mas chegas; se fores chasque de vida ou morte, matas o teu cavalo e talvez não chegues.
5º. A maior pressa é a que se faz devagar.
6º. Se tens viajada larga não faças pular o teu cavalo; sai ao tranco até o primeiro suor secar; depois ao trote até o segundo; dá-lhe um
ce sem terceiro e terás cavalo para o dia inteiro.
7º. Se queres engordar o teu cavalo tira-lhe um pêlo da testa todas as vezes da ração.
8º. Fala ao teu cavalo como se fosse a gente.
9º. Não te fies em tobiano, nem bragado, nem melado; pra água, tordilho; pra muito, tapado; mas pra tudo, tostado.
10º. Se topares um andante com os anelos às costas, pergunta-lhe - onde ficou o baio?...
11º. Mulher, arma e cavalo do andar, nada de emprestar.
12º. Mulher, de bom gênio; faca, de bom corte; cavalo de boa boca; onça, de bom peso.
13º. Mulher sardenta e cavalo passarinheiro... alerta, companheiro!...
14º. Se correres eguada xucra, grita; mas com os homens, apresilha a língua.
15º. Quando dois brincam de mão, o diabo cospe vermelho...
16º. Cavalo de olho de porco, cachorro calado e homem de fala fina… sempre de relancina...
17º. Não te apotres, que domadores não faltam...
18º. Na guerra não há esse que nunca ouviu as esporas cantarem de grilo...
19º. Teima, mas não apostes; recebe, e depois assenta; assenta, e depois paga...
20º. Quando 'stiveres pra embrabecer, conta três vezes os botões da tua roupa...
21º. Quando falares com homem, olha-lhe para os olhos, quando falares com mulher, olha-lhe
para a boca... e saberás como te haver...
...
Que foi?
Ah! quebrou-se a ponta do lápis?
Amanhã vancê escreve o resto: olhe que dá para encher um par de tarcas!...

Batendo Orelha
    Nasceu o potrilho, lindo e gordo, filho de égua boa e leiteira, crioula de campo de lei.O guri era mimoso, dormindo em cama limpa e comendo em mesa farta.
    Já de sobreano fizeram uma recolhida grande, sentaram-lhe uns pealos, apertaram-no pelas orelhas e pela cola e a marca em brasa chiou-lhe na picanha.
    Andaria nos oito anos quando lhe meteram nas mãos a cartilha das letras e o mestre-régio começou a indicar-lhe as unhas, de palmatoadas.
    O potrilho coiceou, na marca. O menino meteu fios de cabelo nos olhos de Santa Luzia...
    Em potranco, acompanhava a manada e retouçava com as potrancas, sem mal nenhum.
     O rapazinho rezava o terço e brincava de esconder com as meninas... o que custou-lhe uma sapeca de vara de marmeleiro.
    Quando o potrilho foi se enfeitando para repontar, o pastor velho meteu-lhe os cascos e mais, a dente, botou-o campo fora: fosse rufiar lá longe!...
    O gurizote, já taludo, quis passar-se demais com uma prima...; o tio deu-lhe um chá-de-casca-de-vaca, que saiu cinza e fedeu a rato!...
    O potro andava corrido, farejando... Mas nem uma petiça arrastadeira d‘água e poronguda achou, para consolo da vida. Té que o caparam.
    O mocito, que era pimpão, foi mandado incorporar. Sentaram-lhe a farda no lombo.
    Mal sarou da ferida o potro foi pegado: corcoveou, berrou; quebraram-lhe a boca a tirões, dividiram-lhe a barriga com a cincha, quis planchar-se, e lanharam-lhe as virilhas a rebenque e as paletas a roseta de espora. Tiraram-lhe as cócegas... Ficou redomão.
    O recruta marcou passo, horas, pra aprender; entrou na forma; agüentou descomposturas; deu umas bofetadas num cabo e gurniu solitária e guarda dobrada, por quinze dias. Cortaram-lhe o cabelo à escovinha e ficou apontado. Era o faxineiro do esquadrão.
    Houve uns apuros de precisão... O rocim foi vendido em lote, para o regimento.
    Tocou a reunir: era uma ordem de marcha, urgente. O faxineiro recebeu lança, espadão e tercerola.
    Quando a cavalhada chegou o primeiro serviço dos sargentos foi assinalar os novos; era simples e ligeiro; um talho de faca na orelha, rachando-a. Bagual assim, virava reiúno.
    Quando tocou o bota-sela, o faxineiro estava na porteira, de buçal na mão, esperando a vez. O laçador laçava, chamava a praça e  esta enfrenava... e cada um roía o osso que lhe tocava.
    - Chê! Enfrena!...
    Foi o reiúno que caiu pro recruta.
    Aí se juntaram os dois parecidos, o bicho e o homem. E a sorte levou os dois, de parceria, pelo tempo adiante. Curtiram fome, juntos, cada um do seu comer. E sede. E frio. E cansaço, mataduras e manqueiras; cheiros de pólvora e respingos de sangue, barulho  de músicas, tronar grosso e pipoquear, nas guerrilhas.
    E de saúde, assim, assim... Um teve sarnagem, o outro apanhou muquiranas; se um batia a mutuca, o outro caçava as pulgas.
    Quando, no verão, o reiúno pelechava, também o faxineiro deixava de sofrer dor de dentes.
Passados anos, o mancarrão já nem engordava mais, e todo ovado estava. O fiscal do regimento, sem uma palavra de – Deus te  pague – mandou vendê-lo em leilão, como um cisco da estrebaria. Um carroceiro comprou-o, por patacão e meio, com as ferraduras.
    Passados anos, o praça, aquele, teve baixa, por incapaz, com o bofe em petição de miséria; e saiu da fileira sem mais família e sem saber oficio.     Saiu com cinco patacas, de resto do soldo, e sem o capote. Foi então ser carregador de esquina.
    O reiúno apanhava do carroceiro, como boi ladrão!
    O carregador levava dos fregueses descompostura, de criar bicho!
    O reiúno deu em empacar.
    O carregador pegou a traguear.    O carroceiro um dia, furioso, meteu o cabo do relho entre as orelhas do empacador e... matou-o.
    A policia uma noite prendeu o borrachão, que resistiu entonado; apanhou estouros... e foi para o hospital, golfando sangue; e esticou o molambo.
    O engraçado dessa vida é que há gente que se julga muito superior aos reiúnos; e sabe lá quanto reiúno inveja a sorte da gente...

Linguagem e Expressão Artística
    Ao ceder a voz narrativa a Blau Nunes, em Contos Gauchescos, Simões Lopes Neto resolveu um problema contínuo da ficção brasileira: como pode um narrador culto e citadino, expressar-se na forma quase dialetal de determinada região, sem cair no pitoresco  e sem parecer falso?
    O velho gaudério assume a narração de seus casos, valendo-se de uma espécie de linguagem popular campeira, imperante na  campanha, pelo menos durante o século XIX, e que, certamente, já estava em desuso no início do século XX, quando o escritor a  fixou literariamente. A fala de Blau Nunes é saborosa, sugestiva, em função de inúmeras e criativas metáforas, e nos dá a impressão
de total naturalidade. Nela avultam espanholismos (despacito, entrevero etc.); arcaísmos (escuitar, peor etc.); corruptelas (vancê,  desgoto etc.); e uma grande quantidade de termos específicos da região (china, bagual, chiru etc.); sem contar algumas variantes do  próprio escritor. Por isso, deve-se ler a obra com um glossário confiável.
    O discurso simoniano ultrapassa, portanto, o mero localismo pitoresco e, na sua abrangência, engloba a tradução de um código ético, o testemunho histórico, a revelação psicológica. No fundo de tudo isto reside o substrato folclórico, a utilização literária da fala dialetal, sempre confrontando o homem e a natureza, infundindo uma qualidade simbólica ao mundo imaginário. No resultado final  encontramos um desses raros momentos em que o regionalismo brasileiro se desprende do simples documentário para beirar o território do mito.
    Em Contos Gauchescos percebemos as qualidades do narrador e paralelamente, os seus limites. Tornam-se nítidos a fixação do mundo gauchesco, a oralidade e o regionalismo da linguagem. Para isso, muito vale a estratégia do autor, cedendo a palavra ao vaqueano Blau Nunes.
    Contribui para o encantamento verbal a que o narrador nos submete o fato de falar com alguém, um homem mais jovem, possivelmente o próprio Simões Lopes Neto, a quem o gaúcho está contando o seu percurso existencial. Como ele tem um ouvinte, permite-se a indagações, assertivas, reticências, silêncios, criando uma expressão própria inconfundível e que, muito depois, seria retomada – na questão da forma de narrar – por João Guimarães Rosa.
    Blau Nunes é o vaqueano que conduz o viajante através dos pagos. Trata-se aqui do portador de um conjunto de valores que expressa a imagem do gaúcho gerada pela tradição coletiva: a grandeza, a hospitalidade, a amizade, a confiança, a audácia e a perspicácia.
    O vaqueano contará os seus casos, recolhidos no "trotar sobre tantíssimos rumos". E a sua fala - por ser teoricamente a de um gaudério, a de um peão sem trabalho fixo - se esquivará, por vezes, da exaltação dos pampas e da condição gaúcha, que no fundo, foi sempre uma auto-exaltação dos oligarcas sulinos.
    Há no tom narrativo de Blau certa neutralidade, destruída aqui e ali pela saudade dos antigos tempos e por certo moralismo deorigem cristã. Porém a sua nostalgia vincula-se a uma época na qual o gado ainda xucro era campeado - conforme o relato "Correr eguada" - e os peões tinham direito a sua tropilha nova, fato que não se repetiria numa sociedade cada vez mais dividida entre
fazendeiros e trabalhadores.
    Por outro lado, a significação moral das histórias exige-se sobre um sentimento de relativo desconforto no narrador com a violência imperante no território gaúcho: a destruição do boi em serventia ("O boi velho"), a carnificina guerreira ("O anjo da vitória") etc.
    Ainda que um esforço documental presida a obra, o registro dos costumes nunca é gratuito. Liga-se à ação dos contos e a psicologia simples dos indivíduos. Em três ou quatro narrativas, contudo, o valor do documento é superado por uma legítima sensibilidadeartística: "Trezentas onças", "O contrabandista" e "O boi velho" transcendem à condição de espelho da região, atingindo a chamada universalidade das grandes produções literárias.
    Se muitos contos permanecem apenas como registro de costumes ou como anedotas bem contadas, a linguagem em todos eles éviva e cheia de dialetismos, o que, em parte, dificulta a leitura. O linguajar gauchesco é reproduzido pelo escritor. Mas a utilização
que Simões Lopes Neto faz do regionalismo lingüístico não visa o pitoresco, como acontece na maioria das manifestações artísticas dita regionais. Nele, a expressão típica é uma decorrência dos conteúdos trabalhados, e, por isso mesmo, somos capazes de superar as dificuldades de seu vocabulário.
    Há em sua obra o cuidado de reconstruir o timbre familiar das vozes. E isso forneceria a mesma um efeito surpreendente de oralidade, encanto e frescor.
    Simões Lopes Neto controla magistralmente os pontos de tensão de cada relato, açulando e, ao mesmo tempo, postergando a expectativa do leitor. A busca do dramático, em certos momentos, é tão intensa que os textos parecem ameaçados pelo excesso, isto é, pelo melodrama barato. No entanto, a intuição do artista mantém os contos nos limites verossímeis daquilo que é autêntica tragédia humana.

DICIONÁRIO DE  "GAUCHÊS‟
A
abancar: Tomar banco, sentar-se.
água-de-cheiro: Perfume, extrato.
alazão: Pelagem de cavalo cor de canela.amargo: O mesmo que chimarrão.
anca: Quarto traseiro dos quadrúpedes. Garupa do cavalo. O traseiro do vacum.
aparte: Ato de separar o gado, para abate, marcação, vacina, banho ou venda.
aperos: Arreios, os preparos necessários para encilhar o cavalo.
aprochegar: Chegar perto, unir-se.
aragano: Cavalo que, por viver muito tempo solto, sem prestar serviço, se torna arisco, espantadiço.


armada: Roda que se faz com o laço para atirar, com intenção de laçar a rês.
arranchar: Formar rancho, arranjar onde morar.
arreios: Conjunto de peças com que se prepara um cavalo para montar.
azulego: Pelagem de cavalo azul quase preto, entremeado de pintas brancas, produzindo um reflexo azulado.
B
badana: Pele macia e lavrada que se coloca, na encilha do cavalo de montaria, por cima dos pelegos ou do coxonilho, se houver.
bagual: Cavalo manso que se tornou selvagem. Potro recém domado, arisco. Reprodutor, animal não castrado.
baio: Pelagem de cavalo cor de ouro desmaiado.
baita: Grande, enorme.
baixeiro: Espécie de lã, integrante dos arreios, que põe no lombo do cavalo, por baixo da carona.
barroso: Pelagem de cavalo cor branca amarelada; há diversas tonalidades: barroso claro, amarelo, fumaça.
bichará: poncho feito de tecido grosseiro de lã.
bicheira: Ferida nos animais, contendo vermes depositados pelas moscas varejeiras. Para sua cura, além de medicação, são largamente utilizadas as simpatias e benzeduras. Doença forte em geral. Mau olhado.
bidê: Mesinha de cabeceira.
biriva: Nome dado aos habitantes de cima da Serra, descendentes de bandeirantes, ou aos tropeiros paulistas, os quais geralmente andavam em mulas e tinham um sotaque especial diferente do da fronteira ou da região baixa do Estado. Variações: beriva, beriba, biriba.
bodoque: Estilingue, funda.
boleadeiras: Instrumento de captura desenvolvido pelos índios charruas. É feito com três pedras redondas, presas por uma tira de couro trançado. Usa-se rodando acima da cabeça e lançando nas pernas do animal. Com o movimento, ao bater nas pernas, enrola e derruba o animal, prendendo-o.
bolicheiro: Dono de bolicho.
bolicho: Casa de negócio de pequeno sortimento e de pouca importância. Bodega. Taberninha.
bomba: Objeto de metal, pelo qual é sugado o chimarrão. É um canudo, em formato de colher, tendo em uma ponta um disco perfurado e em outra um bocal.
bragado: Pelagem de cavalo, com grandes manchas brancas pela barriga.
brasino: Pelagem de cavalo, vermelho com listras pretas ou quase pretas.
bruaca: Bolsa de couro que se coloca sobre o cavalo guardando os  pertences de viagem.
buena: Boa, gostosa. Interjeição, como olá. buenacho(a): Bom, generoso, afável, bondoso, cavalheiro. Boa,
gostosa.
bueno: Bom, gostoso. Mas, bem.
bugio: Macaco de médio porte, comum na região. Tipo de música e dança. Pelego curtido e pintado, em geral forrado de pano.
C
cachaço: Porco não castrado, barrasco, varrão.
calavera: Indivíduo velhaco, caloteiro, caborteiro, vagabundo, tonto, tratante.
campear: procurar o gado pelos campos.
cancha: Local preparado para jogo ou mesmo para lida. Ora é a cancha de corrida com trilhos para os parelheiros. Palavra de origem quíchua tem muitas aplicações, desde local de reuniões a caminho simplesmente: "Quando me enredo na sorte, abro cancha e sigo em frente".
capão: Diz-se ao animal mal capado. Indivíduo fraco, covarde, vil. Pequeno mato isolado no meio do campo.
Jogo de Baralho.
carreira: Corrida de cavalos, em cancha reta. Quando participam da carreira mais de dois parelheiros, esta toma o nome de penca ou califórnia.
carreteiro: Prato típico, feito com arroz e charque.
caudilho: Chefe militar. Manda-chuva.
cestroso: Temeroso, preocupado, cabisbaixo.
chalana: Lanchão chato, tipo de música e dança.
charla: Conversa, bate-papo.
charque: Carne salgada e seca.
chasque: Recado, mensagem.
chimarrão: Infusão feita com a erva-mate. No Rio Grande ele é servido em uma cuia e tomado através de uma bomba.
china: Descendente ou mulher de índio, ou pessoa do sexo feminino que apresenta alguns dos característicos étnicos das mulheres indígenas. Cabocla, mulher morena. Mulher de vida fácil. (quíchua: xina, que significa aia).
chineiro: Grande número de chinas, índias ou caboclas. Prostíbulo.
chinoca: Mulher jovem.
chorro: Jorro.
cincha: Peça dos arreios que serve para firmar o lombilho ou o serigote sobre o lombo do animal.
cola: Rabo.
colhudo: Cavalo inteiro, não castrado. Pastor. Figuradamente, diz-se do sujeito valente, que enfrenta o perigo, que aguenta o repuxo.
corredor: Estrada que atravessa campos de criação, deles separada por cercas em ambos os lados. Há, entre as cercas, regular extensão de terra, onde, por vezes, se arrancham os que não têm onde morar.
cuia: Recipiente feito com a ponta de um porongo, onde, no Rio Grande, é servido o chimarrão.
cuiudo: O mesmo que colhudo.
cupincha: Da mesma turma. Capanga.
cusco: Cão pequeno, cão fraldeiro, cão de raça ordinária. O mesmo que guaipeca.
D
derriba: Do lado de cima.
doma: Ato de amansar um animal xucro.
domador: Amansador de potros. Peão que monta animais xucros.
E
embretado: Encerrado no brete. Metido em apertos, em apuros, em dificuldades; enrascado, emaranhado.
entrevero: Mistura, desordem, confusão, de pessoas, animais ouobjetos. Recontro em que as tropas combatentes, no ardor da luta, se misturam em desordem, brigando individualmente, corpo a corpo,
 sem mais obedecer a comando, usando predominantemente a arma branca.
erva: Erva-mate.
esgualepado: Vivente meio desarrumado, desengonçado, liquidado por causa da canha ou da peleia.
estribo: Peça presa ao loro, de cada lado da sela, e na qual o cavaleiro firma o pé.
F
faceiro: Contente.
fiambre: Alimento para viagem, geralmente carne fria, assada ou cozida.
flaquito: Fraco, cansado, magro, pobre.
flete: Cavalo bom e de bela aparência, encilhado com luxo e elegância.
fora: No campo.
G
gadaria: Porção de gado, grande quantidade de gado, todo gado existente em uma estância ou em uma invernada.
galpão: Construção rústica, existente nas estâncias, destinada ao
abrigo de homens e de apetrechos.
ganiçar: Ganir.
gaudério: Pessoa que não tem ocupação séria e vive à custa dos outros, andando de casa em casa. Parasita, amigo de viver à custa alheia.
graxaim: Guaraxaim, sorro, zorro. Pequeno animal semelhante ao cão, que gosta de roer cordas, principalmente de couro cru e engraxadas ou ensebadas, e de comer aves domésticas. Sai,
geralmente, à noite. É muito comum em toda a campanha.
gringo: Denominação dada ao estrangeiro em geral, com exceção do português e do hispano-americano, principalmente utilizada para denominar imigrante italiano e seus descendentes. Qualquer indivíduo loiro.
guaiaca: Cinto largo de couro macio, que serve para o porte de armas e para guardar dinheiro e pequenos objetos. Indivíduo fora de moda, sem estilo.
guaipeca: Cão pequeno, cusco, cachorrinho de pernas tortas, cãozinho ordinário, vira-lata, sem raça definida. Pequeno, de minguada estatura. Aplica-se, também, às pessoas, com sentido  depreciativo.
guampa: O mesmo que chifre, usado nos mesmos vários sentidos.
guapo: Forte, vigoroso, valente, bravo, belo.
guasca: Tira de couro crú. Indivíduo sem trato social. Ignorante, metido, valente.
guasqueaço: Pancada, golpe dado com guasca. Relhaço, relhada, chicotada, chibatada, correada, açoite.
guri: Criança, menino, piazinho, serviçal para trabalhos leves nas estâncias.
H
hasta: Até.
I
indiada: grande quantidade de homens do campo.
índio: Indivíduo, sujeito pobre.
invernada: Extensão de campo cercado.
J
joão-grande: Pessoa alta, metido, ganancioso.
judiado: Machucado, sem forças, acabado.
jururu: Cabisbaixo, tristonho, abatido.
L
lançante: Forte declive num cerro ou coxilha.
lasqueado: Trouxa, metido a besta, passado.
légua: Medida itinerária equivalente a 3.000 braças ou 6.600 metros. O mesmo que légua de sesmaria.
lida: Trabalho no campo. Qualquer tipo de trabalho.
loco: Interjeição para muito, como em: "Loco de especial".
lomba: Qualquer terreno em declive.
M
macanudo: Designa alguém ou algo legal, bonito.
mamão: Animal que ainda mama. Indivíduo explorador.
mamona: Terneira de sobreano que ainda mama.
mangueira: Grande curral construído de pedra ou de madeira, junto à casa da estância, destinado a encerrar o gado para marcação, castração, cura de bicheiras, aparte e outros trabalhos.
manotaço: Pancada que o cavalo dá com uma das patas dianteiras, ou com ambas. Bofetada, pancada com a mão dada por pessoa.
mate: O mesmo que chimarrão.
matungo: cavalo velho, muito manso, quase imprestável.
maula: Covarde, medroso.
mosquinha: Mosquito borrachudo.
N
negacear: Recusar-se, resistir.
O
orelhano: Animal sem marca, nem sinal. Pessoa de baixo nível social, sem família.
P
paisano: Do mesmo país. Amigo, camarada.
pala: Poncho leve, de brim, lã ou seda, de feitio quadrilátero e com as extremidades franjadas.
palanque: Esteio grosso e forte cravado no chão, com mais de dois metros de altura e trinta centímetros aproximadamente de diâmetro, localizado na mangueira ou curral, no qual se atam os animais, para doma, para a cura de bicheiras ou outros serviços.
papudo: Indivíduo que tem papo. Balaqueiro, jactancioso, blasonador. O termo é empregado para insultar, provocar, depreciar, menosprezar outra pessoa, embora esta não tenha papo.
patrão: Dono da estância ou fazenda. Designação dada ao presidente de Centro de Tradições Gaúchas (CTG). Deus.
peleia: Peleja, pugilato, contenda, briga, rusga, disputa, combate, luta entre forças beligerantes.
pelear: Brigar, lutar, combater, pelejar, teimar, disputar.
pelego: Couro da ovelha, com a lâ, usado para amaciar a montaria, colocado acima dos arreios. Por deixar-se montar, sujeito submisso a um ou a vários outros.
penca: corrida de cavalos em cancha reta.
pereba: Ferida, de crosta dura, que sai geralmente no lombo dos animais. Mazela, sarna, cicatriz. Aplica-se, também, às feridas que saem nas pessoas. Pessoa de mau caráter ou inábil.
petiço: Cavalo pequeno, curto, baixo.
piá: o mesmo que guri.
pingo: Cavalo.
piquete: Pequeno potreiro, ao lado da casa, onde se põe ao pasto os animais utilizados diariamente.
poncho: Espécie de capa de lã, de forma retangular, ovalada ou redonda, com uma abertura no centro, por onde se enfia a cabeça. É feito geralmente de pano azul, com forro de baeta vermelha. É o agasalho tradicional do gaúcho do campo. Na cama de pelegos, serve de coberta. A cavalo, resguarda o cavaleiro da chuva e do frio.
potrilho: Cavalo durante o período de amamentação, isto é, desde que nasce até dois anos de idade. Potranco, potreco, potranquinho.
prenda: A mulher do gaúcho. Mulher bonita, com bons dotes, prendada.
pulperia: Pequena casa de negócio no campo, bodega.
Q
qüera: Homem, gaúcho, gaudério.
querela: Disputa, discussão.
quincha: Cobertura de casa ou carreta, feita de santa-fé ou de outro capim seco.
R
rapariga: Prostituta, mulher de vida fácil. Jovem.
rebenque: Instrumento de açoite do cavalo. Chicote curto, com o  cabo retovado, com uma palma de couro na extremidade. Pequeno relho.
redomão: Cavalo recém domado, que ainda não está bem manso.
regalo: Presente, brinde.
relho: Chicote com cabo de madeira e açoiteira de tranças semelhantes a de laço, com um pedaço de guasca na ponta.
repontar: Tocar o gado por diante de um lugar para outro.
rosilho: Cavalo de pelo avermelhado.
russilhonas: Botas de cano alto, de couro amarelo.
S
sacanagem: brincadeira forte ou de mau gosto.
sanga: Pequeno curso d'água menor que um regato ou arroio.
sesmaria: Antiga medida agrária correspondente a três léguas quadradas, ou seja a 13.068 hectares. São 3000 por 9000 braças, ou 6.600 por 19.800 metros, ou ainda, 130.680.000 metros quadrados.
sinuelo: Animal manso, que serve de guia dos outros xucros.
soga: Corda feita de couro, ou de fibra vegetal, ou ainda de crina de animal, utilizada para prender o cavalo à estaca ou ao pau-de-arrasto, quando é posto a pastar. Corda de couro torcido ou trançado, que liga entre si as pedras das boleadeiras.
sorver: Beber aspirando, beber lentamente.
T
taipa: Represa de leivas, nas lavouras de arroz. Cerca de pedra, na região serrana. Tapado, burro, ignorante.
talho: Corte, ferimento. Lado cortante da faca.
tchê: Homem, em quíchua. Meu, cara.
tirador: Espécie de avental de couro macio, que os laçadores usam pendente ao lado da cintura, para proteger do atrito do laço.
tosa: Tosquia, toso, esquila. Remover a lã da ovelha.
tosquiador: Homem que realiza a tosa, ou tosquia.
tranco: Passo largo, firme e seguro, do cavalo ou do homem. Empurrão. Rapidamente, bruscamente.
U
upa: Abraço. Rápido.
V
vacaria: Grande número de vacas. Grande extensão de campo, que os jesuítas reservavam para criação de gado bovino.
vaqueano: Aquele que, conhecendo bem os caminhos e atalhos de um lugar ou região, serve de guia.
viração: Prostituição. Viver sem profissão definida.
vivente: Indivíduo.
X
xucro: Animal ainda não domado, bravio, arrisco. Pessoa sem hábitos
sociais.
Z
zaino: Cavalo castanho escuro.
zunir: Ir-se apressadamente, soar.

EXPRESSÕES “GAUCHESCAS”
Abrir cancha: Distanciar-se, abrir espaço para alguém passar.
A cabresto: Conduzido pelo cabresto. Submetido.
A la pucha: Exprime admiração, espanto.
Á meia guampa: Meio embriagado, levemente ébrio.
Aspa-Torta: Chifre entortado de certas cabeças de gado. Diz-se do vivente enraivado, para quem qualquer pormenor é motivo para pelear, como em "Não fique de graça com o João Cardoso, que hoje o bagual está de aspa-torta!".
Bater a canastra: Morrer.
Bolear a perna: Descer do cavalo.
Botar guampa: Trair a esposa ou o marido, o mesmo que botar chifres.
Chorar as pitangas: Reclamar, lamuriar.
Com o estribo frouxo: Descontrolado, perdido, enlouquecido.
Com o pé no estribo: Pronto para partir, com pressa.
Daí, Tchê: Olá, oi.
Dar carão: Recusar a dança. Xingar.
De laço a laço: Por toda a extensão, completamente, minuciosamente.
De prima: Na primeira tentativa.
Duro de boca: Diz-se do animal que não obedece à ação das rédeas.Indivíduo rebelde.
Em cima do laço: No último instante, de repente.
Frio de renguear cusco: Muito frio, insuportável.
Enrolar o poncho: Preparar-se para ir embora, morrer.
Gastar pólvora em chimango: Perder tempo, desperdiçar a conversa, sem resultado.
Juntar os pelegos: O mesmo que juntar os panos, unir-se.
Lado de laçar: lado direito.
Lado de montar: lado esquerdo.
Largar campo afora: Deixar que vá embora.
Loco de especial: Muito diferenciado.
Lombo de sem-vergonha: Ordinário, safado, muito sem-vergonha.
Mal enfrenado: Que passa das medidas, que não tem freio.
Não aquentar banco: Não se demorar, em visita. O mesmo que não esquentar o banco.
Num upa: Num abrir e fechar de olhos. De um golpe, rapidamente.
Oigalê: Exprime admiração, espanto, alegria.
Passar no pelego: Transar, ter relação sexual.
Passar o relho: Dar uma surra.
Que Tal?: Tudo bem?
Tirar o culo: Ter azar, entrar mal, em uma referência a jogada perdedora do jogo do osso

Simões Lopes Neto - Colégio Portinari
www.portalportinari.com.br/dw/CONTOSGAUCHESCOS.pdf
Leia Mais