1.
O autor e sua obra
Paraibano, nascido em 1884, Augusto dos Anjos, apesar de ter se formado
em Direito, elegeu como profissão apenas o magistério.
Transferindo-se para o RJ, sempre enfrentando muitas dificuldades, veio
a publicar, com a ajuda de um irmão, em 1912, 'Eu', seu único livro de poesias.
Passados dois anos, em 1914, adoeceu e morreu de pneumonia, com, então,
30 anos.
Como o próprio poeta reconheceu, seu livro causou um verdadeiro choque
aos padrões literários da época. Entre elogios e impropérios, havia, no
entanto, unanimidade quanto à originalidade da sua obra: com sua linguagem
técnica-científica e grotesca, contrariava a ideologia vigente da 'belle
époque' carioca.
Após oito anos do lançamento, seu livro foi reeditado - 'Eu e Outras
Poesias' [1920] - alcançando, assim, a tão esperada popularidade.
2.
Comentário da obra
2.1. Estilo
Em linhas gerais, 'Eu e Outras Poesias' representa a soma de todas as
tendências e estilos dominantes desde o final do século XIX até o início do
século XX. Em outras palavras, sua obra recebe influência do Parnasianismo, do
decadentismo, do Simbolismo e ainda antecipa uma série de características
modernistas. Em face disso, podemos dizer que, na realidade, Augusto dos Anjos
não se filiou, com exatidão, a nenhuma escola em particular, produzindo, desse
modo, uma obra múltipla e personalíssima [até mesmo com um vocabulário
naturalista ].
Entre as suas principais características, temos, além da linguagem
científica e extravagante, a temática do vazio da coisas [ o nada ] e a morte [
finitude da vida ] em seus estágios mais degradados: a putrefação, a
decomposição da matéria.Simultaneamente, reflete em seus versos a profunda
melancolia, a descrença e o pessimismo frente ao ser e à sociedade, elaborando,
assim, uma poesia de negação: nega as falsas ideologias, a corrupção, os amores
fúteis e as paixões transitórias:
'Melancolia!
Estende-me a tua asa!
És
a árvore em que devo reclinar-me...
Se
algum dia o prazer vier procurar-me
Dize
a este monstro que eu fugi de casa!'
2.2. Influências estéticas
Mal abrindo o livro, logo percebemos a influência parnasiana, expressa
no forte rigor formal: são sonetos e poemas mais longos, predominando os
quartetos, todos com versos isométricos e rimados, quase todos decassílabos.
Ao mesmo tempo, emergem com força as influências do Simbolismo,
explicitadas pela sonoridade dos versos [ ritmo, rimas, aliterações ], pelo uso
de iniciais maiúsculas em certos substantivos comuns e por alguns aspectos
temáticos, como o ideal de transcendentalismo e a angústia cósmica, entre outros.
Por outro lado, ocorrem na obra índices da modernidade, pois, além da
linguagem agressiva, por vezes coloquial, o poeta incorpora em seus versos tudo
o que é podre e sujo, realizando, em certos momentos, crítica e denúncia
social.
Recorrendo com frequência às imagens da larva e do verme, o poeta do
hediondo opera a dessacralização do poema, a desvinculação da palavra poética
com o 'belo'.
Concluindo, Augusto dos Anjos caracteriza-se por ser um poeta
'sui-generis', único em nossa poesia. A sua temática, a dos sofrimentos e
angústias do homem, reflete, enfim, algo profundo e universal: 'Grito, e se
grito é para que meu grito / Seja a revelação deste Infinito / Que eu trago
encarcerado na minha alma!
3.
Análise de fragmentos e poemas da obra
3.1.
Fragmentos de Monólogo de uma Sombra
“Como
um pouco de saliva quotidiana
Mostro
meu nojo à Natureza humana.
A
podridão me serve de Evangelho...
Amo
o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
E
o animal inferior que urra nos bosques
É
com certeza meu irmão mais velho. Forma: sextilhas, versos decassílabos; rimas
paralelas e interpoladas.
.................................................................
Somente
a Arte, esculpindo a humana mágoa,
Abranda
as rochas rígidas, torna água
Todo
o fogo telúrico profundo
E
reduz, sem que, entanto, a desintegre,
À
condição de uma planície alegre,
A
aspereza orográfica do mundo!”.
Conteúdo: única fonte de prazer
estético: a arte.
3.2. Psicologia de um vencido
“Eu,
filho do carbono e do amoníaco,
Monstro
de escuridão e rutilância,
Sofro,
desde a epigênese da infância,
A
influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente
hipocondríaco,
Este
ambiente me causa repugnância...
Sobe-me
à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que
se escapa da boca de um cardíaco.
Forma:
soneto, versos decassílabos, rimas interpoladas.
.................................................................
Já
o verme - este operário das ruínas -
Que
o sangue podre das carnificinas
Come,
e à vida em geral declara guerra.
Anda
a espreitar meus olhos para roê-los,
E
há de deixar-me apenas os cabelos,
Na
frialdade inorgânica da terra!. “
Conteúdo: o desconforto no mundo, o
azar e a morte.
3.3 - Fragmentos de Budismo Moderno
“Tome,
Doutor, esta tesoura, e ....corte
Minha
singularíssima pessoa
Que
importa a mim que a bicharia roa
Todo
o meu coração, depois da morte?!'
Ah!
Um urubu pousou na minha sorte!”
Conteúdo: desânimo, sentimento de
derrota, masoquismo e azar.
3.4
- Fragmentos de Os Doentes
“E
o índio, por fim, adstrito à étnica escória,
Recebeu,
tendo o horror no rosto impresso,
Esse
achincalhamento do progresso
Que
o anulava na crítica da História!
Como
quem analisa um apostema
De
repente, acordando na desgraça,
Viu
toda a podridão de sua raça...
Na
tumba de Iracema!...
Ah!
Tudo, como um lúgubre ciclone,
Exercia
sobre ela ação funesta
Desde
o desbravamento da floresta
À
ultrajante invenção do telefone.
Conteúdo: denúncia da ruína da raça
indígena.
3.5
- Fragmentos de Sonetos [ A meu pai morto ]
“Podre
meu Pai! E a mão que enchi de beijos
Roída
toda de bichos, como os queijos
Sobre
a mesa de orgíacos festins!...
Amo
meu Pai na anatômica desordem
Entre
as bocas necrófagas que o mordem
E
a terra infecta que lhe cobre os rins!'
Conteúdo: ápice da dor, transmitida
através do grotesco.
3.6
- Versos Íntimos
“Vês!
Ninguém assistiu ao formidável
Enterro
de tua última quimera.
Somente
a Ingratidão - esta pantera -
Foi
tua companheira inseparável!
Acostuma-te
à lama que te espera!
O
Homem que, nesta terra miserável,
Mora,
entre feras, sente inevitável
Necessidade
de também ser fera.
Toma
um fósforo. Acende teu cigarro!
O
beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A
mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se
a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja
essa mão vil que te afaga,
Escarra
nessa boca que te beija!”
Conteúdo: pessimismo, descrença no ser
humano; denúncia às falsas aparências, às hipocrisias sociais.
3.7-
Fragmentos de 'Poema Negro'
“A
passagem dos séculos me assombra.
Para
onde irá correndo minha sombra
Caminho,
e a mim pergunto, na vertigem:
-Quem
sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E
parece-me um sonho a realidade. Conteúdo: Conteúdo: Estupefação diante da
velocidade do tempo. Indagações universais; como da origem e do destino humano.
Melancolia e dor.
.................................................................
Ao
terminar este sentido poema
Onde
vazei a minha dor suprema
Rola-me
na cabeça o cérebro oco.
Por
ventura, meu Deus, estarei louco?!
Daqui
por diante não farei mais versos.
Eu e outros Poemas | Resumos
Literarios
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A
POESIA DECADENTISTA DE AUGUSTO DOS ANJOS
Considerações
iniciais
Augusto dos Anjos é um poeta de difícil
classificação dentro dos estilos de época. Orris Soares (1983 p.32), seu
crítico mais fiel, declarou, com bastante propriedade, que o poeta não tem
filiação em nenhuma corrente literária. Também Alexei Bueno (1994 pp.21-34)
atesta que a sua poesia tem um caráter de independência extrema, quase de
geração espontânea. A cronologia, entretanto, marca o seu aparecimento entre as
últimas produções do Parnasianismo, quando o estilo sobrevivia ainda, paralelo
às últimas notas simbolistas. Por uma questão didática, convencionou-se
estudá-lo como um poeta de transição entre o Simbolismo e o Modernismo
nascente, haja vista a comunhão de um espírito conservador (no que se refere à
forma de seus versos) com um espírito extremamente renovador (o seu léxico
destoa do elitismo lingüístico parnasiano e simbolista).
Por ser uma poesia independente e quase maldita, cujas imagens lembram
nuances naturalistas, lançou-se o desafio de fazer um estudo sobre a
predisposição do poeta para o horrível e a possível influência de Baudelaire;
seguidamente, serão mostrados os versos que demonstram a escatologia, a
decomposição, o pessimismo e o gosto do poeta pela dor, para ilustrar, dessa
forma, os temas constantes das poesias do seu único livro: "Eu e outras
poesias".
1.
A predisposição para o horrível
Predeterminação
imprescritível
Oriunda
da infra-astral substância calma
Plasmou,
aparelhou, talhou minha alma
Para
cantar de preferência o Horrível!
Como revelam os versos do soneto "Minha finalidade", acima
transcritos, Augusto dos Anjos parecia crer em sua predestinação para cantar o
horrível. Sua formação determinista é constantemente reafirmada em seus versos,
e a dor parece uma característica inexorável de sua existência. Em muitos
poemas ele deixa entrever passagens de sua história, como se tivesse encontrado
em sua própria vida desgraçada a inspiração para sua poesia singular,
extremamente pessimista. Em Psicologia de um vencido, ele mostra o fatalismo da
sua predestinação para o sofrimento como anterior mesmo à sua gestação: Sofro,
desde a epigênese da infância / A influência má dos signos do zodíaco.
Muitos críticos que se debruçaram sobre sua obra viram traços
biográficos insertos em seus textos e assinalaram sua propensão para o
horrífico e o fúnebre, sempre relacionando-a à sua trajetória sofrida e amargurada.
João Ribeiro (1994 p.75) diz que ele fez do seu verso a sua fantasia, tão negra
e triste como a sua realidade. Álvaro Lins (1994 p.117) também afirma que a
estética de sua poesia está diretamente ligada à sua aventura humana e
constituição orgânica. Ainda analisando sua poesia num plano autobiográfico,
José Escobar Faria (1994 p.142) afirma que a doença do poeta foi o leitmotif
dos seus próprios versos, pois ele era todo revolta interior. Carlos Burlamaqui
Kopke (1994 p.154) revela que sua obra manifesta instinto e compreensão, não
pretende criar mitos nem partir à aventura, mas ser fiel à sua tese íntima, que
é a de espelhar o sentimento trágico da vida. Wilson Castelo Branco (1994
pp.163-4) percebe grande identificação entre o retrato do poeta e a obra por
ele escrita, e Antônio Houaiss (1994 p.172), a propósito do mesmo assunto,
arremata: a vida de cada homem, de cada poeta, de cada produtor, é também uma
obra – e as duas obras é que são a obra.
Não resta dúvida que a vida de Augusto dos Anjos está demais ressaltada
em seus versos, amparados ainda pela cosmovisão de um espírito irrequieto.
Partidário dos postulados Evolucionistas e Deterministas, adepto do Monismo e
de todo o cientificismo imperante em sua época, o poeta era, como nos diz
Antônio Torres (1994 p.56), uma materialista por cultura e idealista por
temperamento. Naturalmente, trazia em si o combate travado entre o idealismo
metafísico e o materialismo científico. Sentia-se, ao que nos parece, impotente
diante do incognoscível e não conseguia desvendar o mistério universal pelo
qual se debatia. Daí a morte como um dos seus temas prediletos, o que era uma
forma de demonstrar a sua mais definitiva forma de impotência. As privações
vividas e as decepções com as amizades que julgava sinceras fizeram dele um
homem descrente, e isso tudo, aliado à provável influência do Decadentismo
francês, fez a sua obra figurar como um registro ímpar na poesia brasileira do
início do século XX.
2.
A provável influência de Baudelaire
Uma das principais características da poesia de Augusto dos Anjos é a
poetização do patológico, do horrível, do repugnante – traços que muito
aproximam a sua obra da de Baudelaire, poeta do Decadentismo francês. Melhor
falando, muito identificam os poemas do Eu (1912) com os de Les Fleurs du mal
(1857).
Eudes Barros, no ensaio Aproximações e antinomias entre Baudelaire e
Augusto dos Anjos (1994 pp. 177-8), diz que as aproximações entre a poesia do
brasileiro com a do francês resultam de manifestações análogas de sensibilidade
e inspiração efêmeras. Nega uma possível influência, enfatizando que não se é
um poeta extremamente sofrido e angustiado como Augusto dos Anjos apenas por
influência de outros poetas.
Evidentemente, não compreendemos que a angústia que Augusto dos Anjos
expressa em seus versos tenha derivado da poesia de Baudelaire, mas acreditamos
ter havido um processo de identificação desencadeador de uma possível
influência. Há fortes indícios de que Augusto dos Anjos leu Baudelaire, como a
repetição de temáticas como a decomposição, a escatologia, o sangue, entre
tantas outras. Além do que se evidencia em seus textos, tem-se um dado
relevante: em 1920, Orris Soares encontrou num sebo da Paraíba um exemplar da
obra francesa citada, em cuja capa estava marcado, a carimbo, o nome de Augusto
dos Anjos. Mais: o poema Une charogne estava assinalado a lápis vermelho, o que
é uma demonstração simples de que a obra em questão foi lida por ele.
É incontestável o fato de se encontrar facilmente, em ambos, o trágico,
o fúnebre e o repulsivo como símbolos de suas estéticas. Mostraremos, a título
de exemplificação, algumas semelhanças. O sangue que aparece como fonte de
inspiração em vários poemas de Augusto dos Anjos, entre eles Guerra – É a obsessão de ver sangue, é o
instinto horrendo / De subir, na ordem cósmica, descendo / À irracionalidade
primitiva... (p.181) e A obsessão pelo sangue – Acordou, vendo sangue...
Horrível! / Frontal em fogo... Ia talvez morrer (p.204), está nos versos de A
fonte de sangue - Tenho a impressão de que meu sangue em onda escorre, /
Rítmico soluçar de nascente que morre. (p.135), de Baudelaire.
A autofagia, tema presente no poema baudelariano Um fantasma (parte I – As trevas) – Sou o pintor que de Deus a
diversão / Fez na treva mover o seu pincel; Cozinheiro da gula mais cruel, /
Cozinho e como meu coração (p.50), aparece nos versos de Solilóquio de um
visionário – Para desvirginar o labirinto / do velho e metafísico Mistério, /
Comi meus olhos crus no cemitério, Numa antropofagia de faminto! (p.104), na parte
VIII de Os doentes – É possível que o estômago se afoite/ (Muito embora contra
isso a alma se irrite) / A cevar o antropófago apetite, / Comendo carne humana,
à meia-noite! (p.117), e em Vozes de um túmulo – Tântalo, aos reais convivas,
num festim, / Serviu as carnes do se próprio filho. (p.126), do nosso
poeta.
No poema A uma Madona, Baudelaire faz seu ex-voto ao gosto espanhol,
consagrando a musa e falando da serpente –
Este monstro a aumentar de ódio e de cusparadas (p. 71). Essa inesperada
nota escatológica, sempre presente em poemas seus, freqüentemente é vista em
poemas de Augusto dos Anjos, dos quais destacamos Cismas do destino, em que ele
fala das ruas de Recife e interrompe para dizer da população doente do peito
que tossia em sua alma, entre golfadas e cuspes: E o cuspo que essa hereditária tosse / Golfava, à guisa de ácido
resíduo, Não era o cuspo de um só indivíduo / Minado pela tísica precoce
(p.88). E continua falando de expectoração pútrida, saliva, escarro etc.
Claro que todas essa palavras têm a ver com a sua doença, e provêm de sua
convivência com os males dela provindos, mas ele não investiria na poetização
desses termos sem antes tê-los visto utilizados, sobretudo porque, em sua
época, predominava uma poesia elitizada, de vocábulo erudito e nobre.
Outra semelhança se encontra na propensão em transformar o que deveria
ser lírico em algo verdadeiramente escabroso. No poema Uma carniça, Baudelaire
transforma um passeio com a mulher amada num encontro fastigioso, ao descrever
a carniça que encontrara pelo caminho e mostrar à mulher que aquele também é o
destino dela: Minha beleza, então dirás
ao verme que arruína, / Que há de roer-te o coração, / Que guardei a forma e a
essência divina ? Do amor em decomposição (p.41). Augusto dos Anjos, no
soneto III, dos Sonetos escritos para seu pai, em vez de celebrar saudoso a
despedida, mostra um eu lírico mórbido e insensível ante o corpo sem vida: Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos /
Roída toda de bichos, como os queijos / Sobre a mesa de orgíacos festins!...
(p.136) É, sem dúvida, uma forma repugnante de falar do amor. A emoção da perda
se extravia na imaginação do corpo paterno em decomposição sob a terra.
Estas são apenas algumas semelhanças entre os temas da poesia de
Baudelaire e Augusto dos Anjos, ilustradas também com apenas alguns textos de
suas obras. Evidentemente o que dissemos não esgota o assunto nem fecha questão
quanto à certeza da influência da obra As flores do Mal sobre os poemas do Eu,
mas, com certeza, possibilitam a percepção de que o nosso poeta escreveu uma
obra bem parecida com a do francês. Tal exposição, embora nada prove, mostra
que Augusto dos Anjos não foi o precursor da estesia do repugnante. O espanto
causado, na época, pela publicação do Eu não atesta nenhuma originalidade à
obra, embora ela tenha o seu valor próprio.
3.
A poesia escatológica
Como já se comentou, Augusto dos Anjos tornou poéticos elementos
a-poéticos, criando, tantas vezes, uma espécie de sublime escatológico. No
longo poema As cismas do destino, texto impregnado de fatos referentes à doença
que o acometeu e levou-o à morte, o poeta toma a missão de ser a consciência e
a voz da dor universal, fazendo-se possuidor empático das misérias sociais,
fisiológicas e genéticas, como bem assinalou Bueno (1994 p.26). Vejamos a forma
escatológica como ele transmite sua mensagem:
Era
antes uma tosse ubíqua, estranha,
Igual
ao ruído de um calhau redondo
Arremessado
no apogeu do estrondo,
Pelos
fundibulários da montanha!
E
a saliva daqueles infelizes
Inchava,
em minha boca, de tal arte,
Que
eu, para não cuspir por toda parte,
Ia
engolindo, aos poucos, a hemoptísis!
No soneto "Idealização da humanidade futura", ele concebe a
impureza dos ímpetos humanos como oriunda da hereditariedade. Nos versos acima,
a “tosse” dos indivíduos provém do mesmo fator, mostrando, pois, sua crença na
predisposição genética do ser humano. Ele, o indivíduo minado pela tísica
precoce, incorpora ao seu mal o de toda a humanidade, dimensionando, assim, a
gravidade das próprias mazelas e estendendo-as a toda a raça que violou as leis
da Natureza, ou seja, que ultrapassou os próprios limites.
Ainda em As cismas do destino,
ele faz um louvor às secreções provenientes da doença. O vocabulário é
contundente e causa repugnância pela alusão aos excrementos pútridos que,
embora humanos, trazem no seu teor o nojo generalizado:
Cuspo,
cujas caudais meus beiços regam,
Sob
a forma de mínimas camândulas,
Benditas
sejam todas essa glândulas,
Quem
quotidianamente, te segregam!
Escarrar
de um abismo noutro abismo,
Mandando
ao Céu o fumo de um cigarro,
Há
mais filosofia neste escarro
Do
que em toda a moral do Cristianismo!
Por
que, se no orbe oval que os meus pés tocam
Eu
não deixasse o meu cuspo carrasco,
Jamais
exprimiria o acérrimo asco
Que
os canalhas do mundo me provocam!
Ele não apenas blasfema, atentando contra a moral do Cristianismo,
colocando-a como inferior a um escarro. Valoriza o seu “cuspo” por encontrar
nele um meio para externar o seu nojo pela espécie humana que julga canalha.
Os bêbados desfilam como personagens do mesmo poema e são o motivo do
discurso escatológico dos próximos versos:
Nas
agonias do delírio-tremens,
Os
bêbados alvares que me olhavam,
Com
os copos cheios esterilizavam
A
substância prolífica dos semens!
Enterravam
as mãos dentro das goelas,
E
sacudidos de um tremor indômito
Expeliam,
na dor forte do vômito,
Um
conjunto de gosmas amarelas.
Na parte III de "Os doentes",
o espetáculo natural da sua vida é a convivência com a tuberculose. O poeta,
espontaneamente, revela o drama dos tísicos:
Oh!
desespero das pessoas tísicas,
Advinhando
o frio que há nas lousas,
Maior
felicidade é a dessas cousas
Submetidas
apenas às leis físicas!
..........................................
Falar
somente uma língua rouca,
Um
português cansado e incompreensível,
Vomitar
o pulmão na noite horrível
Em
que se deita sangue pela boca!
Expulsar,
aos bocados, a existência
Numa
bacia autômata de barro,
Alucinado,
vendo em cada escarro
O
retrato da própria consciência!
A certeza da efemeridade do ser humano, exposto a tantas leis que regem
o universo, o faz invejar as coisas submetidas apenas às leis da física, por
serem permanentes e intocadas pelo sofrimento. A doença é uma inevitável
condenação à morte, é a certeza da sua proximidade. O seu cotidiano era marcado
pela imposição de limitações oriundas da sua saúde frágil. Com os excrementos,
ele sentia expelir também a sua existência; mas o que mais o alucinava era
enxergar a consciência na podridão deles.
Todo o poema "Os doentes" faz desfilar as mazelas fisiológicas
e sociais que seriam a causa da extinção da humanidade. E Augusto dos Anjos não
resiste ao prazer mórbido e imaginário de tal extinção, para assistir ao
advento do grande feto que viria a ser o substituto de sua raça:
Entre
as formas decrépitas do povo,
Já
batiam por cima dos estragos
A
sensação e os movimentos vagos
Da
célula inicial de um Cosmos novo!
O
letargo larvário da cidade
Crescia.
Igual a um parto, numa furna,
Vinha
da original treva noturna,
O
vagido de uma outra Humanidade!
E
eu, com os pés atolados no Nirvana,
Acompanhava,
com um prazer secreto,
A
gestação daquele grande feto,
Que
vinha substituir a Espécie Humana!
O seu ceticismo atinge um grau extremo. A busca do nada, simbolizada
pelo nirvana, parece reproduzir um culto ao budismo e representar a sua
salvação. Quando a espécie se extinguisse, ele não mais estaria incluído nela,
já teria atingido a forma etérea do nada e seria apenas um satisfeito
espectador. A morte passa a ser, para ele, um não-ser possivelmente mais feliz
do que o ser, um pulo no nirvana, como afirma Álvaro Lins (1994 p.125).
A propósito, Jamil Haddad (1958 p.58), no prefácio para a sua tradução
de As flores do mal, diz que o termo budista de mais fortuna na poesia
simbolista brasileira foi nirvana – uma evidência do pensamento de
Schopenhauer, o primeiro budista oriental, nas obras de uma geração
desalentada.
É, ainda, pertinente salientar que os versos do poema acima transcrito
trazem três temas ressaltados por José Carlos Seabra Pereira (1975) como
característicos da poesia decadentista e simbolista: a morbidez, a estesia do
repugnante, e a tematização do fim da raça. O que mais choca, no entanto, é a
naturalidade com que flui o discurso escatológico, a crua realidade expressa,
sem pudores, a morbidez do desejo de assistir à extinção da própria espécie.
4.
A poesia da decomposição
A certeza da perecibilidade da carne é conscientemente notificada por
Augusto dos Anjos. O espírito funéreo que motiva a sua imaginação poética
transparece uma mórbida insensibilidade ante a decomposição da matéria. Nos
dois tercetos de "Psicologia de um vencido" ele diz:
Já
o verme – este operário das ruínas –
Que
o sangue podre das carnificinas
Come,
e à vida em geral declara guerra,
Anda
a espreitar meus olhos para roê-los,
E
há de deixar-me apenas os cabelos
Na
frialdade inorgânica da terra!
Pouco lhe importa o corpo que carrega a sua alma, ele é só um invólucro.
Não o enjoam os microorganismos que sob a terra pululam – entende a função
deles e até louva o papel que têm um verme, num soneto a eles dedicado
("Deus-Verme"):
Fator
universal de transformismo.
Filho
da teleológica matéria,
Na
superabundância ou na miséria,
Verme
– é o seu nome de batismo.
............................................
Almoça
a podridão das drupas agras,
Janta
hidrópicos, rói vísceras magras
E
dos defuntos novos incha a mão...
O que lhe importa é a transmudação da matéria. Acreditava no
Evolucionismo panteísta e na unidade das espécies e via na morte, ou seja, na
desintegração dos corpos, a transformação da energia. O corpo é que acabava; a
alma, não, porque, como cria nos versos do poema Gemidos da arte, a carne é que
é humana. A alma é divina. E o verme é concebido como um fator de transformismo
por alimentar-se da carne podre dos mortos, fazendo-a integrar-se à frialdade
inorgânica da terra, onde se transmuda. A crença no transformismo é plenamente
reafirmada na seguinte estrofe do poema Os doentes:
Não
me incomoda esse último abandono.
Se
a carne individual hoje apodrece,
Amanhã,
como Cristo, reaparece,
Na
universalidade do Carbono.
Para ele, as espécies possuíam a homogeneidade postulada por Herbert
Spencer. Assim, o ser humano poderia perfeitamente ressurgir como mineral.
E a morbidez se instaura até onde a natureza lírica deveria prevalecer.
A sensibilidade emanada dos sonetos I e II da seqüência de três, que ele dedica
ao pai, converte-se no discurso horrendo do terceiro, onde o poeta alude,
friamente, à putrefação do corpo querido:
Podre
meu Pai! A morte o olhar lhe vidra.
Em
seus lábios que os meus lábios osculam
Microorganismo
fúnebres pululam
Numa
fermentação gorda de cidra
..............................................
Amo
meu pai na atômica desordem
Entre
as bocas necrófagas que o mordem
E
a terra infecta que lhe cobre os rins!
O repugnante e o disforme se irmanam ao fúnebre e aparecem em imagens
repulsivas e lancinantes, longe de qualquer comoção ou apelo sentimental. É a
estética do repugnante, a poesia da decomposição o disfarce de sua alma
sensível, transfigurada pelo sofrimento e impregnada pelo desalento de um mundo
frio e demasiado cruel.
Nem o sue próprio corpo é poupado da mosca alegre da putrefação. A
imagem que parece inimaginável para a maioria das pessoas, para ele não tem a
menor importância, como se lê em seu Budismo moderno.
Que
importa a mim que a bicharia roa
Todo
o meu coração, depois da morte?!
A morte da matéria é fatal, também a sua decomposição, por isso não o
incomoda; incomoda-o não poder eternizar-se através de suas idéias, de suas
concepções, de seus versos.
5.
O pessimismo exacerbado
Apesar de afeito aos postulados Evolucionistas de Darwin e Spencer e
adepto do Monismo, sistema totalizador místico de Ernest Haeckel, doutrinas que
resvalam um mecanismo quase otimista do caráter evolucionista do universo,
Augusto dos Anjos apresenta, em quase todos os seus versos, um pessimismo
exacerbado, que arriscaria até a dizer de origem schopenheuriana, condutor de
um forte elemento de negação da vida enquanto criadora do sofrimento.
Embora não invistamos normalmente na análise literária baseada em dados
biográficos, no caso de Augusto dos Anjos é inevitável não associar o fato de
ele ter experimentado privações financeiras, sofrimentos e decepções ao
espírito desenganado e taciturno que ele transparece em sue poesia. Ainda
menino, viu sua família perder o Engenho Pau D’arco e o status social promissor
de origem. Vivenciou o desequilíbrio emocional da mãe, iniciado na sua
gestação, e cresceu com o rigorismo adotado pelo pai na sua formação
intelectual (ALMEIDA, 1987 p.55). Já adulto, almejou se afastar do cargo de
professor do Liceu paraibano para tentar a carreira literária no Rio de
Janeiro; casado e à véspera de ser pai, solicitou a manutenção do vínculo
empregatício ao Presidente do Estado, que se dizia seu amigo; recebeu uma
negativa grosseira e, sem opção, foi obrigado a se demitir. O desencanto com a
terra natal impulsionou a sua ida para a cidade maravilhosa, onde sonhava
publicar o seu livro e conquistar as posições desejadas tanto no magistério como
na imprensa. Os sonhos, porém, não se realizaram: ele não conseguiu emprego, a
sua esposa, diante de tantas privações, perdeu o filho, e nenhuma editora se
interessou pela publicação do seu livro. Partiu para uma publicação particular,
dividindo as despesas com o irmão, mas não conseguiu nenhum reconhecimento como
poeta, pois o seu estilo não foi compreendido, nem poderia ser, já que
imperava, ainda, o estilo nobre dos poemas parnasianos e simbolistas.
Restou-lhe a pobreza, o agravamento de sua doença e as próprias convicções.
O poema "Versos íntimos", que transcreveremos na íntegra,
demonstra total descrença na amizade entre os homens, como a refletir as
amargura das decepções vivenciadas:
Vês!
Ninguém assistiu ao formidável
Enterro
de tua última quimera.
Somente
a ingratidão – esta pantera –
Foi
tua companheira inseparável!
Acostuma-te
à lama que te espera!
O
Homem, que, nesta terra miserável,
Mora
entre feras, sente inevitável
Necessidade
de também ser fera.
Toma
um fósforo. Acende teu cigarro!
O
beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A
mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se
a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja
essa mão vil que te afaga,
Escarra
nessa boca que te beija!
É patente a articulação de um profundo pessimismo e a descrença absoluta
no relacionamento entre as pessoas. Todo ser é só; ninguém é solidário na
desgraça. A humanidade é concebida como um conjunto de seres que de digladiam
através da falsidade e da ingratidão, revelando uma alma amargurada e niilista
de quem acreditou, em vão, na amizade sincera. Contrafeito, o poeta instiga a
ferocidade recíproca e a recusa formal a qualquer manifestação de amor e
carinho.
O pessimismo fatalista e o desengano, de acordo com José Carlos Seabra
Pereira (1975), constituem temas peculiares à poesia decadentista e simbolista,
bem como a presença das letras maiúsculas alegorizadoras em palavras chaves do
poema: Homem e Ingratidão. Tem-se ainda a presença do Determinismo de Taine na
sugestão de que o homem é obrigado a se transformar por causa do meio, e do
Evolucionismo de Darwin: por uma questão de sobrevivência, quem mora entre
feras tem de se transformar em fera ou sucumbe.
A mesma concepção pessimista da humanidade se repete no soneto
"Idealismo", no qual o poeta concebe o amor como uma grande mentira:
Falas
de amor, e eu ouço e calo!
O
amor da Humanidade é uma mentira.
É.
E é por isso que na minha lira
De
amores fúteis poucas vezes falo.
..............................................
Pois
é mister que, para o amor sagrado,
O
mundo fique imaterializada
-
Alavanca desviada do seu fulcro –
E
haja só amizade verdadeira
Duma
caveira para outra caveira,
Do
meu sepulcro para o teu sepulcro?!
Certo de que na vida o que prevalecia era a matéria, a superficialidade,
o poeta só acreditava na possibilidade de amor verdadeiro através da
imaterialização. Portanto, só na morte era possível a revelação do sentimento
puro, porque o amor atingia a essência etérea e sagrada, desprovida de qualquer
contaminação mundana. O tema da morte como transcendência, constantemente
evocado em seus textos, mostra sua incontestável origem simbolista.
Constantemente preocupado com as relações humanas, ele nos mostra sua
Idealização da humanidade futura, resvalando uma perspectiva desesperançosa:
Rugia
nos meus centros cerebrais
A
multidão dos séculos futuros
-
Homens que a herança de ímpetos impuros
Tornara
etnicamente irracionais!
..............................................
Como
quem esmigalha protozoários
Meti
todos os dedos mercenários
Na
consciência daquela multidão...
E,
em vez de achar a luz que os céus inflama,
Somente
achei moléculas de lama
E
a mosca alegre da putrefação!
Mais uma vez o determinismo: o homem é condenado à impureza por uma
questão genética. Não há esperança de uma humanidade melhor, porque a luz,
símbolo das idéias e da inteligência, vem, na posteridade, substituída pela
degeneração espiritual da consciência, o que está sugerido nas metáforas “mosca
alegre da putrefação” e “moléculas de lama”.
A razão da amargura universal provém da incapacidade humana de uma visão
totalizadora. Além de sentenciar a lágrima como o único direito do homem na
superfície do planeta, o poeta o reduz a um ínfimo acidente na cadeia das
espécies (BUENO, 1994 p.25) nos duros versos de "Homo Infimus":
Homem,
carne sem luz, criatura cega,
Realidade
geográfica infeliz,
O
Universo calado te renega
E
a tua própria boca te maldiz.
...........................................
Deixa
atua alegria aos seres brutos,
Porque
na superfície do planeta,
Tu
só tens um direito: - o de chorar!
As próximas estrofes, extraídas do poema "As cismas do
destino", justificam a sua tenebrosa sentença:
Homem!
por mais que a Idéia desintegres,
Nessas
perquirições que não têm pausa,
Jamais,
magro homem, saberás a causa
De
todos os fenômenos alegres!
..............................................
Porque,
para que a dor prescrutes, fora
Mister
que, não como és, em síntese, antes,
Fosses,
a refletir teus semelhantes,
A
própria humanidade sofredora!
Observe-se a incapacidade atribuída ao homem como própria de sua
espécie. De nada adiantam as perquirições sem pausa, a ciência, se não se é
capaz de entender a dor e enxergar os semelhantes. Sem a concepção unificadora
dos seres e das coisas, é impossível compreender os fenômenos alegres, a razão
das lágrimas e a complexidade universal. E o poeta se inclui entre os
sentenciados; é o magro homem impotente para apreender a razão científica de
todos os fenômenos. Como bem afirmou Manuel Bandeira (1994 p.114-6), a grande
aspiração de Augusto dos Anjos era dominar todos os contrastes, resolvê-los na
unidade do todo. Mas, o que ele via era o homem grande oprimindo o pequeno (As
cismas do destino), as mazelas sociais sem remédio, a dor e a doença geral
resultante da falta de amor, da ausência de reflexão e solidariedade.
Desta forma, a consciência humana não escapa ao seu severo julgamento no
soneto "O morcego":
Meia-noite.
Ao meu quarto me recolho.
Meu
Deus! E este Morcego! E, agora, vede:
Na
bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me
a goela ígneo e escaldante molho.
..........................................................
A
Consciência Humana é este morcego!
Por
mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente
em nosso quarto!
A consciência está metaforizada da figura do notívago mamífero que tem
como característica a cor preta e a feiura demasiada. Além da aparência
horrenda, se destaca a insistência veemente do quiróptero, que se relativiza à
consciência devedora que aterroriza o homem no momento em que ele se recolhe em
si mesmo.
O ceticismo do poeta estende-se, por vezes, até aos postulados a que
aderiu (no poema "Os doentes"):
Que
resta das cabeças que pensaram?!
E
afundando nos sonhos mais nefastos,
Ao
pegar num milhão de miolos gastos,
Todos
os meus cabelos se arrepiaram.
Os
evolucionismos benfeitores
Que
por entre os cadáveres caminham,
Igual
a irmãs de caridade, vinham
Com
a podridão dar de comer às flores!
Ele sabia que, por mais que pensasse, fracassava ante o incognoscível e
que qualquer sistema perdia a sua eficácia quando confrontado com a morte –
senhora absoluta de tudo, como ele afirma num trecho do poema "As cismas
do destino":
O
espaço – esta abstração spencereana
Que
abrange as relações de coexistência
E
só! Não tem nenhuma dependência
Com
as vértebras mortais da espécie humana!
Incomodava-o a fragilidade humana diante do enigma da existência.
Vejamos o último terceto do soneto O
sarcófago:
Dói-lhe,
em suma, perante o Incognoscível,
Essa
fatalidade de ser grande
Para
guardar unicamente poeira!
A insistente preocupação metafísica com os mistérios do universo e a
necessidade de apreender o inapreensível fizeram com que o poeta, insatisfeito
com a incompletude dos postulados filosóficos vigentes, mergulhasse nos
próprios questionamentos para compreender o que nem Spencer nem Haeckel
compreenderam:
Tentava
compreender com as conceptivas
Funções
do encéfalo as substancias vivas
Que
nem Spencer, nem Haekel compreenderam....
Tendo concebido tais enigmas como uma esfinge (que se não decifrada,
devora) e convivido como uma humanidade incapaz de entender a irmandade cósmica
dos seres e das coisas, Augusto dos Anjos alcançou um pessimismo extremo, que
abalou a concepção humanística de sua alma sensível. Só lhe restou reduzir o
homem a uma engrenagem de vísceras vulgares ("Monólogo de uma sombra")
perecível e aleatória.
Nos seus Poemas esquecidos (publicação póstuma) aparecem versos menos
desalentadores, entre eles A esperança, que ainda traz a morte como
possibilidade de transcendência do sofrimento, e Amor e crença, cujo título já
parece mostrar um homem redimido de sua dor e de sua revolta, ou pelo menos
mais aliviado, com a fé restaurada; vejamos os últimos versos:
Deus
é o templo do Bem. Na altura imensa,
O
amor é a hóstia que bendiz a crença,
Ama,
pois, crê em Deus e... sê bendita!
Mais uma vez ele afirma que só o amor é capaz de salvar a humanidade.
6.
O gosto pela dor
A dor, parece-nos, quando constante, anestesia o organismo que acomete,
e este, numa espécie de autodefesa, reage se tornando insensível. É como se, ao
ultrapassar os limites de tolerância humana, ela deixasse de ser sentida ou se
tornasse normal. Uma forma, pois, de transcendê-la é permiti-la e suportá-la,
porque inevitável, até ajustar a sobrevivência ao seu impositivo comando. A dor
física, a dor moral, a dor de existir tudo é sintoma de transgressão da
normalidade; mas, no texto literário, sobretudo nas correntes espiritualistas,
como o Simbolismo ou de extrema negação da vida, como o Decadentismo, a dor é
só mais um tema poético e o ajustamento desse sujeito a ela parece fácil.
Assim, a algolagnia constitui um dos temas marcantes da poesia simbolista e
decadentista, de acordo com José Carlos Seabra Pereira (1975). A poética de
Augusto dos Anjos se ajusta perfeitamente a essa tendência ao desengano e à
banalização do sofrimento. O poema "Budismo moderno", por exemplo, é
um verdadeiro desafio à dor:
Tome,
Dr., esta tesoura, e... corte
Minha
singularíssima pessoa.
Que
importa a mim que a bicharia roa
Todo
o meu coração, depois da morte?!
Ah!
Um urubu pousou na minha sorte!
Também,
das diatomáceas da lagoa
A
criptógma cápsula se esbroa
Ao
contato da bronca destra forte!
O eu lírico se mostra insensível à própria morte, pouco se importando
com a decomposição do seu corpo. A nota fatalista, constante em sua poesia, está
simbolizada no urubu – a ave negra que se alimenta de carne putrefada, aqui
simbolizando a má sorte que o persegue. A dor passa a ser fator de libertação
já que implicará a dissolução da vida. Causa ainda mais estranheza a inclusão
nos versos da espécie aquática das diatomáceas. Alexei Bueno, no ensaio Augusto
dos Anjos: origens de uma poética (1994 p.22), nos dá uma contribuição cabal
para a compreensão da metáfora, quando assinala que a incorporação desses seres
ínfimos, desses microorganismos que nos são tão estranhos quanto o próprio nome
que os designam, está perfeitamente no plano do poeta, porta-voz da essência de
todos os seres, e não apenas do homem. /..../ quando o poeta se refere às
“diatomáceas da lagoa”, cuja cápsula é bruscamente desfeita pelo contato
involuntário da mão humana na superfície da água, cria uma originalíssima
metáfora de sua própria fragilidade, que um golpe qualquer de uma força
superior pode destruir, ao mesmo tempo que se identifica, na solidariedade dos
condenados à morte, a essa vidas mínimas que também o são.
Sabendo de sua fragilidade e perecibilidade, o poeta se insensibiliza
com a morte. Importa-lhe apenas a permanência dos seus versos, quando, no final
do mesmo soneto, revela querer a eternidade, ainda que apenas através de suas
idéias:
Mas
o agregado abstrato das saudades
Fique
batendo nas perpétuas grades
Do
último verso que eu fizer no mundo!
Leiamos o seu "Hino à dor", o mais perfeito exemplo de
algolagnia em sua poética de desespero:
Dor,
saúde dos seres que se fanam,
Riqueza
da alma, psíquico tesouro,
Alegria
das glândulas do choro
De
onde todas as lágrimas emanam...
És
suprema! Os meus átomos se ufanam
De
pertencer-te, oh! Dor, ancoradouro
Dos
desgraçados, sol do cérebro, ouro
De
que as próprias desgraças se engalanam!
Sou
teu amante! Ardo em teu corpo abstrato.
Com
os corpúsculos mágicos do tato
Prendo
a orquestra de chamas que executas...
E,
assim, sem convulsão que me alvorece,
Minha
maior ventura é está de posse
De
tuas claridades absolutas!
A contingência da dor está em todas as coisas e é a causa da maior
ventura do poeta que a concebe como claridade absoluta, em vez de escuridão;
dá-lhe, assim, uma dimensão positiva e não negativa. Ela é cantada como saúde
dos seres, riqueza da alma e psíquico tesouro. Os versos transmitem o prazer
(mazoquista(?)) de louvar a abstrata amante e atribuí-la qualidades apenas
positivas, até organicamente falando, como está no primeiro quarteto - Alegria
das glândulas do choro. Um provérbio poderia justificar tal apologia: Não pode
vencê-lo, junte-se a ele; ou um verso de uma canção da Música popular
brasileira, composta no final do século XX: a liberdade está na dor (Fogueira –
Ângela RôRô);. Ou seja, a celebração da dor dá-se pela aceitação de sua
inevitabilidade e converte-se em transcendência espiritual (o que era a grande
aspiração dos simbolistas).
Sânzio de Azevedo (1970 p.57), no ensaio Augusto dos Anjos ontem e hoje,
expõe este soneto como exemplo de simbolismo na poesia do paraíbano,
ressaltando a semelhança com a poesia de Cruz e Souza, notadamente no último
terceto. O mesmo texto também chamou a atenção de Raul Machado (1994 p.108)
que, falando da técnica literária, salienta, entre outras virtudes, os versos
escorreitos e rigorosamente escandidos, com reboante ondulação rítmica e a
imponência plástica que convinha à grandeza do plano arquitetal das estrofes.
Assim, vê-se a face conservadora do nosso poeta de transição (como falei no
início deste trabalho): ele não apenas externa o seu melancólico mundo, mas
mostra uma arraigada convicção de filosofia estética.
A angústia de não encontrar uma explicação científica para todos os
fenômenos, como já se disse, e a certeza da existência transitória, minada pela
doença, fizeram do poeta um homem desencantado. A tristeza e a melancolia
substituíram a alegria e o prazer, como atestam estas duas estrofes de
"Queixa noturna":
Bati
nas pedras dum tormento rude
E
a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que
eu penso que a Alegria é uma doença
E
a tristeza é minha única saúde.
.....................................
Melancolia!
Estende-me a tu’asa!
És
a árvore em que devo reclinar-me...
Se
algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize
a este monstro que fugi de casa.
Observe-se as antíteses: A alegria
é uma doença / a tristeza é a saúde. O sofrimento inverte os valores: a
melancolia é a árvore que o acolhe / o prazer é um monstro. Assim, o
sujeito poético resvala o seu estado de espírito constantemente mergulhado na
amargura e descrente dos regozijos; a ventura passa a ser, por imposição das
suas próprias limitações, a dor, a tristeza, a melancolia. Note-se, ainda, em
meio à doença espiritual que o torna um legítimo decadentista, um traço
marcadamente simbolista: a presença das letras maiúsculas alegorizadoras que
particularizam a grafia e dão ênfase às palavras chaves do poema: Alegria,
Tristeza, Melancolia e Prazer – os pares antitéticos.
Assim, a mágoa faz naturalmente parte da sua existência e, no soneto
Eterna mágoa, é colocada como uma condenação do homem sentenciado ao
sofrimento. Nem a morte é capaz de libertá-lo, o que é outro traço demasiado
decadentista, já que para o simbolista a morte liberta (mors liberatrix).
Confiramos:
O
homem por sobre quem caiu a praga
Da
tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para
todos os séculos existe
E
nunca mais o seu pesar se apaga!
................................................
Sabe
que sofre, mas o que não sabe
É
que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na
sua vida, é que essa mágoa infinda
Transpõe
a vida do seu corpo inerme;
E
quando esse homem se transforma em verme
É
essa mágoa que o acompanha ainda.
Estes versos sugerem que o poeta cultua a dor e o sofrimento por
julgá-los inerentes aos seres humanos, como uma predestinação da qual não se
pode fugir. Se resistir em aceitar o carma, só conseguirá aumentar e aprofundar
a própria chaga. E, como esses sentimentos foram os seus companheiros
inseparáveis, ele os poetiza, ora concebendo-os como positivos, raramente
lamentando-os e, na maioria das vezes, atribuindo-os ao determinismo. Optou por
cultivá-los como uma riqueza de sua alma, como uma marca inevitável de sua
personalidade poética.
Descrevendo o biótipo de Augusto dos Anjos, Orris Soares (1983 p.30) faz
uma perfeita correspondência entre os traços físicos e a sua vida interior:
Foi magro meu desventurado amigo, de magreza esquálida – faces
reentrantes, olhos fundos, olheiras violáceas e testa descalvada. A boca fazia
a catadura crescer de sofrimento, por contraste do olhar doente de tristura e
nos lábios uma crispação de demônio torturado /.../ os cabelos pretos e lisos
apertavam-lhe o sombrio da epiderme. A clavícula, arqueada. No omoplata, o
corpo estreito quebrava-se numa curva para diante. Os braços pendentes,
movimentados pela dança dos dedos, semelhavem duas rebecas tocando a alegoria dos
seus versos. O andar tergiversante, nada aprumado, parecia reproduzir o
esvoaçar das imagens que lhe agitavam o cérebro.
Embora diga que essa fisionomia por onde erravam tons de catástrofe
traía-lhe a psique, por ser a sua alma uma água profunda, onde luminosas, se
refletiam as violetas da mágoa (Idem p.31), não nega que, para o poeta, a única
força criadora e redentora era a dor. A sua figura, assim talhada, reproduz a
própria encarnação do sofrimento e, não obstante, da resignação.
Considerações
finais
Como vimos, a poesia de Augusto dos Anjos nos possibilita uma
experiência estética, no mínimo, inusitada. O vocabulário contundente, tomado
por empréstimo, ora à ciência, ora às coisas mais simples do nosso dia-a-dia,
mostra a criatividade de um poeta imperativo, capaz de versificar até os seus
dramas de homem doente, preocupado com as mazelas de toda a humanidade.
Impregnado pelas idéias de Darwin, Spencer e Haeckel, acreditava no
Evolucionismo panteísta e na unidade de todas as espécies, mas não conseguiu
desvendar os labirintos dos mistérios do universo e acabou por crer que nem a
ciência nem a filosofia tinham poder quando confrontadas com a morte – a única
certeza absoluta do ser vivo. Frustrado com a impotência humana perante o
desconhecido, desenvolveu um espírito pessimista, não raro niilista, e
encontrou respaldo no pensamento shopenhauriano que, penetrado pelo budismo,
apontava o nirvana como uma possibilidade de fuga.
Ora simbolista, ora parnasiano, ora moderno, ele erigiu sua criação
poética em temas como o pessimismo fatalista, o culto à dor, a morbidez, o
horrífico e o fúnebre, bem ao modelo dos poetas malditos do Decadentismo
francês. A estranheza que emana de seus versos não se deve apenas ao excesso de
termos científicos; emerge, principalmente, da sua propensão para o horrível, a
podridão, a desgraça. Álvaro Lins (1994 p.125) diz que essa tendência vinha da
sua constituição de homem doente, desorganizado, devastado pelo desequilíbrio
dos hipocondríacos. Acreditamos que não apenas disso, mas, também, da
influência do Decadentismo, sobretudo de Baudelaire – o que somente foi
possível graças à sua predisposição natural, orgânica que se revela no conteúdo
da sua própria história (e se realiza em sua poesia).
Independente das razões que o levaram a compor sua opulenta obra, ela
tem o seu valor assegurado tanto pela beleza de seu exercício estético, como
por fazer jus ao grande anseio do poeta, que era eternizar-se através de suas
idéias, como nos revela no soneto O meu nirvana.
Excelente artigo!! Parabéns!
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