Ricardo de Oliveira
Doutorando Univerdidade Federal do Rio de Janeiro
RESUMO
Há um século nascia Os Sertões, verdadeiro monumento
da cultura literária brasileira. Indissociável à própria idéia de Brasil, o
livro foi considerado, ao longo desse período, como obra essencialmente nacional,
a desvelar um Brasil profundo e autêntico. No entanto, poucas vezes se
questionaram as conflituosas relações entre os conceitos de sertão e nação
existentes no pensamento de Euclides da Cunha. Neste sentido, propomo-nos aqui
a discutir esse problema, tomando como ponto de referência boa parte do corpus
textual euclidiano. Procuramos compreender como o escritor, ao mesmo tempo em
que constrói o mito da brasilidade sertaneja, vivencia-o de forma singularmente
dramática.
Palavras-chave: Euclides da Cunha; Os Sertões;
identidade nacional.
“A colonização do Brasil fez-se da
periferia para o centro: a sua nacionalização faz-se do centro para a
periferia”.
Olavo Bilac (1903)
Em 2002 celebra-se o primeiro centenário da publicação d’Os Sertões, e não haverá
surpresa numa possível avalanche de comemorações que ultrapassará certamente os
limites da comunidade acadêmica.Recordemo-nos que, não faz muito tempo, surgiu
um suposto cânon da cultura literária brasileira em que, curiosamente, Os Sertões figura de forma
unânime em primeiro lugar como o livro
fundamental para a compreensão da formação histórica do País. Neste sentido, segue-se uma tendência da crítica
literária que durante esse século se debruçou
sobre a obra euclidiana, desde as primeiras manifestações de recepção, compreendendo esta e seu autor como
verdadeiros construtores da nação, justamente
porque estes tratariam, como sintetizou Sílvio Romero, da verdadeira gente brasileira, isto é, os homens do sertão.
Ao longo da ultima década, motivados talvez
pela lembrança do centenário do massacre de Canudos, surgiram vários estudos em
que, direta ou indiretamente, Euclides da Cunha foi revisitado, abrindo caminho
para novas possibilidades interpretativas.Mas, para além de todo debate
formalista, de um lado, e sociológico,
de outro, sobre Os Sertões, o que nos parece mais marcante é a estreita relação
que se estabeleceu entre autor, obra e a própria idéia que fazemos acerca da
brasilidade.
Em outra ocasião discutíamos como a cultura
literária e científica durante a Primeira República construiu o mito da
brasilidade sertaneja. Nesse processo, destacamos o lugar central que a obra,
ou melhor, o que denominamos por momento euclidiano, ocupa no casamento das
idéias de Brasil e Sertão como elementos simbólicos praticamente sinonímicos5.
No entanto, permanecem pouco problematizadas essas relações. Notável ressalva,
diga-se de passagem, para Berthold Zilly, responsável pela recente tradução
para o alemão d’Os Sertões, que discute, no artigo “Sertão e Nacionalidade:
Formação Étnica e Civilizatória no Brasil Segundo Euclides da Cunha”, algumas
dimensões do conflito entre as idéias de sertão e nação no pensamento euclidiano.
Nesse sentido, aproximamo-nos da discussão
ensaiada por Zilly, mas pretendemos compreender a questão como estruturante à
própria condição de possibilidade de se interpretar a obra e a trajetória de
Euclides da Cunha no interior da cultura literária brasileira. E mais:
imaginamos gigantescos os conflitos e tensões que subjazem ao casamento do
sertão com a nação no interior não só da narrativa tortuosa d’Os Sertões, mas
fundamentalmente no pensamento euclidiano.
Sabe-se que a visão de mundo do homem que
chegou no alto-sertão da Bahia, com a incumbência de noticiar para um periódico
sulista os derradeiros momentos do massacre dos sertanejos de Antonio
Conselheiro, estava profundamente mergulhada nos pressupostos e preconceitos
advindos do credo cientificista, isto é: evolucionismo, determinismos climático
e biológico e, de uma forma mais geral, do positivismo. Por esse caminho, o
conceito de sertão era compreendido da forma mais pejorativa possível,
desqualificando a terra e a humanidade a ela relacionada, reconhecendo neles a
impossibilidade de qualquer desenvolvimento rumo à civilização. Euclides, como
boa parte dos intelectuais contemporâneos, compartilhava destas ferramentas
mentais que possibilitavam uma maior compreensão da realidade do País. O sertão
era percebido como território da barbárie, tal como o conceberam, na primeira
metade do século, a elite imperial e o olhar estrangeiro, marcadamente
ilustrado.
A idéia de sertão sintetizava a
representação do outro indesejado e distante, símbolo daquilo que não se
poderia conceber como nacional.
A trajetória intelectual de Euclides da
Cunha, desde as primeiras letras, é extremamente sinuosa e já foi traçada em
suas linhas gerais pelos biógrafos.
Não pretendemos fazê-lo novamente, apesar de
ser algo bastante interessante, devido ao fato de possibilitar a sistematização
acerca do processo de leitura, aceitação e distanciamento de Euclides em
relação ao bando de idéia novas que invadiu o País a partir de 1870, como
assinalou Sílvio Romero. Porém, a invocação deste itinerário interpretativo
serve para aclarar o seguinte problema:
imaginamos que as
categorias sertão e nação, assim como também ciência, civilização e natureza,
no interior do pensamento euclidiano, desde seus primórdios, assumiram
significados conflitantes entre si, significados estes que reaparecerão ao
longo da vida e da atividade intelectual de nosso grande escritor sempre de uma
forma específica, por vezes contraditória. Neste sentido, é importante
frisarmos o seguinte: as atividades intelectuais de Euclides, anteriores à
construção d’Os Sertões, são diversas e variadas, com temáticas e preocupações
amplas, mas mantendo como centro a questão da nacionalidade.
Na grande maioria, são crônicas e estudos
relativos à realidade do País, mas some-se a elas uma boa quantidade de poemas
e cartas que revelam outras faces do autor. Neste conjunto de escritos,
encontramos inúmeros fundamentos da visão de mundo de Euclides, indícios de
toda uma perspectiva que atravessará sua existência de forma indelével.
Poderemos perceber o nascimento e a afirmação de um verdadeiro defensor dos
mais elevados ideais científicos e soldado da civilização, convivendo ao mesmo
tempo com o sentimento de um Romantismo explícito, que vive nas profundezas de
sua alma o sonho do sertão-refúgio. Em síntese podemos dizer que, ao mesmo tempo,
conviveram desde o início o intelectual militante, o cientista, o político e o
homem do sertão.
Os intérpretes da vida literária do período
têm acentuado ser Euclides, de fato, uma personalidade extremamente avessa ao
cosmopolitismo e agitação da Belle Époque carioca, sendo esse um curioso
contraste à personalidade de um intelectual tão aferrado defensor dos mais
altos ideais do progresso e da civilização. Brito Broca dizia que “nessa época
em que todo mundo delirava por Paris”, Euclides da Cunha colocava-se justamente
em posição contrária ao padrão de sociabilidade mais vulgar dentre o meio
intelectual da época — no pólo oposto em que se situavam, em sua maioria, os
chamados boêmios, de um lado, e aqueles intelectuais da qualidade de um Coelho
Neto, um Bilac e um Rui Barbosa. Todavia, lembremos que Euclides nunca esteve
só nesta postura céptica ante alguns traços da modernidade. Lima Barreto,
apesar de várias vezes ter sido relacionado com a boêmia literária, esteve
sempre observando, com um olhar extremamente crítico, a realidade que o cercava.
Todavia, a opção pelo sertão, convivendo com
a crença na civilização e no progresso, tornava a consciência do homem
angustiada e sombria, e projetava reflexões que não poderiam deixar de
expressar tais tensões. Noutra ocasião discutimos que a imagem mítica do
sertão, enquanto elemento de fundação de nacionalidade, imagem do paraíso
terreal, berço da nação, reduto do homem primordial da brasilidade, foi
inicialmente e de forma restrita uma construção discursiva da literatura
romântica11. Em Euclides, tal sentimento sobre-existiu, aninhado com os mais
elevados valores do cientificismo.
Romântico, buscou um exílio da agitação
urbana, uma fuga para a solidão, pois quis viver o tempo perdido. Bastante
jovem, a percepção do sertão e da natureza reveste-se de nostalgia e
contemplação, traço que aparece num de seus primeiros escritos, intitulado Em
viagem, veiculado pelo jornal O Democrata, de abril de 1889. Há aqui
explicitamente a fala do jovem romântico, discursando exaltadamente sobre a
bela e pura natureza, posicionando-se contrário às realizações da sociedade
industrial que degradam o meio ambiente.
Leiamos com atenção:
É majestoso
o que nos rodeia — no seio dos espaços palpita coruscante o grande motor da
vida, envolto na clâmide do dia, a natureza ergue-se brilhante e sonora sublime
de canções, auroras e perfumes... A primavera cinge, do seio azul da mata, um
colar de flores e um sol oblíquo, cálido, num beijo ígneo, ascende na fronte
granítica das cordilheiras uma auréola de lampejos... por toda a parte da
vida...; contudo uma idéia triste nubla-me este quadro grandioso — lançando para
a frente o olhar, avisto ali, curva sinistra, entre o claro azul da floresta, a
linha da locomotiva, como uma ruga fatal na fronte da natureza...
Uma ruga sim,
sim!...Ah! Tachem-me muito embora de antiprogressista e anticivilizador; mas
clamarei sempre e sempre:— o progresso envelhece a natureza, cada linha do trem
de ferro é uma ruga e longe não vem o tempo em que ela, sem seiva, minada,
morrerá! E a humanidade não será dos céus que há de partir o grande Basta
(botem b grande) que ponha fim a essa comédia lacrimosa a que chama vida; mas
sim de Londres; não finar-se-á o mundo ao rolar a última lágrima e sim ao
queimar-se o último pedaço de carvão de pedra...
Tudo isto me
revolta, me revolta vendo a cidade dominar a floresta, a sarjeta dominar a
flor!.
O pensamento de um jovem que, no vigor dos
seus pouco mais de dezoito anos, clama contra o assalto do progresso e da
industrialização sobre a natureza, contrasta por certo com o do
escritor-cientista que duas décadas depois surgiria?
Nesse momento, porém, o que se conclui é
que o pensamento do jovem Euclides da Cunha ajusta-se perfeitamente ao que se
discute sobre o Romantismo de raiz rousseauniana, tanto no que se refere à sua
nostalgia da natureza, idealizando harmonia e paz com o mundo natural, mas
também quanto ao tom declamatório, muito comum aos padrões estéticos do
romantismo.
Outros exemplos desse Euclides romântico
podemos encontrar nas pequenas, poucas e esteticamente inconsistentes incursões
que este fez pelo campo do lirismo. Aspecto curioso de sua criatividade
literária, os poemas escritos por ele,
que compreendem um período grande de tempo são um depoimento de uma consciência
vivendo, de forma indelével, o sonho da idade do ouro.
Vejamos, por exemplo, essa poesia, cujo tom
e temática se aproximam muito daquilo que sustentamos. Composta em 1883
chama-se Eu quero.
Eu quero à doce luz dos vespertinos pálidos
Lançar-me, apaixonado, entre as sombras das matas
Berços feitos de flor e de carvalhos cálidos
Onde a poesia dorme, aos cantos das cascatas...
Eu quero aí viver — o meu viver funéreo,
Eu quero aí chorar — os tristes prantos meus...
E envolto o coração nas sombras do mistério,
Sentir minh’ alma erguer-se entre a floresta de Deus!
Eu quero, da ingazeira erguida aos galhos úmidos,
Ouvir os cantos virgens da agreste patativa....
Da natureza eu quero, nos grandes seios úmidos
Beber a Calma, o Bem, a Crença — ardente e altiva.
Eu quero, eu quero ouvir o esbravejar das águas
das asp’ras cachoeiras que irrompem do sertão...
E a minh’alma, cansada do peso atroz das mágoas,
Silene acometer no colo da so’idão (...).
Esse poema, além da marca da juventude,
nos remete imediatamente ao trecho transcrito há pouco, a imagem de uma
paisagem sertaneja profundamente diferente da qual o mesmo Euclides mais tarde,
n’Os Sertões, irá consolidar com os assustadores quadros da terra seca e da
escassez de vida. Nesse poema, podemos perceber claramente a referência à
percepção do conceito de sertão, sob os signos de uma paisagem bucólica e
evasiva, algo bastante curioso para uma consciência que se formava nos quadros
de ferro do credo cientificista.
O mesmo poderá ser observado na poesia A cruz da Estrada, de 1884:
Se vagares um dia nos sertões,
Como hei vagado — pálido, dolente
Em procura de Deus — da fé ardente
Em meio das soidões...
Se fores, como eu fui, lá onde a flor
Tem do perfume a alma inebriante,
Lá onde brilha mais que o diamante
A lágrima da dor...
Se sondares da selva a entranha fria
Aonde dos cipós na relva extensa
Noss’alma embala a crença.
Se nos sertões vagares algum dia...
Companheiro! Hás de vê-la.
Hás de sentir a dor que ela derrama
Tendo um mistério, aos pés, de um negro drama.
Tendo na fronte o raio de uma estrela!...
Que vezes a encontrei!...Medrando calma
A Deus, entre os espaços
No desgraçado, ali tombado, a alma
Que tirita, quem sabe?, entre os seus braços.
Se a onça vê, lhe oculta a asp’ra ferrenha
Garra, estremece, pára, fita-a, roja-se,
Recua trêmula e fascinada arroja-se,
Entre as sombras da brenha...
E a noite, a treva, quando aos céus ascende
E acorda lá a luz,
Sobre os seus braços frios, nus,
Tecido de astros em brial estende...
Nos gélidos lugares
Em que ela se ergue, nunca o raio estala,
Nem pragueja o tufão... Hás de encontrá-la
Se acaso um dia nos sertões vagares (...).
No entanto, havia também a negação do
sertão no âmbito da sua concepção do que era a nacionalidade. Como falamos, o
repórter que chegou ao arraial do Belo Monte não diferia aparentemente em nada
dos outros que, como ele, narravam para a gente civilizada do litoral a vitória
da República contra o atraso, a doença e a barbárie. A concepção de nação que
tinha então
Euclides alinhava-se
à noção de nação republicana, largamente propagandeada nos primeiros tempos de
implantação do regime. Por essa via, a idéia de nação materializou-se na
construção do regime republicano e com a invenção de um imaginário apropriado à
nova ordem que se diferenciava da velha, corroborando para o esquecimento dos
símbolos ligados à monarquia. Isto
é explícito nessa
anotação da Caderneta de Campo:
A saudade, imensa e indefinível dos entes
queridos ausentes, desce às vezes profunda e dolorosa — esmagadora. Ao mesmo
tempo, porém, como um antídoto infalível alevanta-se iluminando ao norte o
nosso grande ideal — A República — profundamente consolador e forte, amparando
vigorosamente os que cedem às mágoas, impelindo-os à linha reta nobilitadora do
dever.(...) Eu nunca pensei que esta noção abstrata da Pátria fosse tão
ampla...
Compreendo-o
agora. Em breve pisaremos o solo onde a república vai dar com segurança o último
embate aos que a perturbam. Além, para as bandas do poente, em contraste com o
dia que nos rodeia fulguramente, alevantam-se por acaso agora cúmulos pesados
traduzindo fisicamente uma situação social tempestuosa. Surgem, alevantam-se
justamente neste momento do lado dos sertões, pesados lúgubres — ameaçadores.
(...)
Que a nossa
Vendéia se envolva num largo manto tenebroso de nuvens, avultando além em
contraste com os deslumbramentos do grande dia tropical que nos alenta com a
sombra de uma emboscada; rompê-la-emos em breve com as fulgurações da metralha
e o cintilar vivíssimo de espadas.
E
domá-la-emos — a República é imortal (...).
Em correspondência de 20 de agosto de
1897, pouco menos de dois meses do terrível desfecho da guerra, chama Canudos
de Arraial Maldito; e não cansava, nos dois artigos A Nossa Vendéia que enviou
para O Estado de S. Paulo, publicados a 14 e 17 de julho, de lamentar a
barbárie dos sertanejos e exaltar o heroísmo dos soldados da República.
Sem sombra de dúvida, ecoava nesse momento
no pensamento de Euclides um clima de devoção à nação republicana, lutando
contra a monstruosa ameaça do núcleo monarquista dos fanáticos sertanejos.
Sabe-se, porém, que a imagem de Canudos, esse monstro terrível foi na verdade
uma construção feita e alardeada através da imprensa das capitais litorâneas,
principalmente a partir da pregação dos devotos jacobinos. Raoul Girardet expôs
perfeitamente o poder das mitologias políticas que atuam no plano do alarde conspiratório,
em que imagens e informações são construídas e manipuladas por grupos
interessados no controle do imaginário19. O arraial do Conselheiro seria a
tradução da barbárie, a perfeita encarnação do mal. Neste sentido, o pensamento
de Euclides se alinha com a idéia de sertão que se tinha naquele momento ao
nível do senso comum. Daí, portanto, a importância de Euclides da Cunha, pois
seu livro é, acima de tudo, profundo exame de consciência, não só individual,
mas possivelmente coletiva.Walnice Nogueira Galvão, comentando a imagem com que
através de Canudos o sertanejo foi projetado pela elite, observou:
Literatos ou
cientistas, monarquistas ou republicanos, liberais declarados ou indiferentes, na
verdade essas distinções são superficiais: todos os intelectuais estavam atrelados
ao carro do poder, empenhados na grande parada histórica do tempo que era a
consolidação nacional. Para fazê-lo, foi preciso usar ferro e fogo, o que
repugnou a alguns; mas a repugnância veio depois do perigo ter sido afastado
quando estava prestes a sê-lo. O acionamento dos métodos totalitários não é um
dos princípios expressos na ideologia liberal; para extinguir a dissidência é
sempre preciso violar alguns princípios. Surge daí a consciência dividida, de
que Os Sertões é exemplar: para essa consciência, a meta histórica é boa mas os
meios utilizados são maus. Como escapar ao dilema? Novamente, mediante a convivência
intelectual por convicção ou omissão, e o lamento protestatório-humanitário depois
do fato. Nem é preciso dizer que o fenômeno é recorrente, variando apenas a
parada histórica em jogo.No caso, foi só nos momentos da Guerra ou depois de
seu fim que os rebeldes começaram a ser chamados de brasileiros (...); até aí,
a denominação comum é a de jagunçagem. E a incorporação à nacionalidade é o que
pedem aqueles que protestam, já ou mais tarde, em nome dos sertanejos
exterminados. Uma vez mortos, passam a ser irmãos.
Portanto, não podemos afirmar, de forma
alguma, que antes da experiência de Canudos, Euclides e a intelectualidade da
época já haviam formalizado a mitologia da brasilidade sertaneja. No próprio
pensamento euclidiano este processo — a convivência do sertão com a nação — era
extremamente conflituoso, conforme se tentou apontar até aqui. Porém, do
interior desta mesma
cultura se erguerá
uma outra imagem do sertão. Na linha de frente desta metamorfose encontramos
Euclides da Cunha e seu livro, simbolizando o momento de maior tensão na
inflexão sofrida no interior do imaginário.
Num país onde, de tempos em tempos, se tem
a sensação da redescoberta, qualquer análise que se queira fazer sobre a sua
realidade acabou, ao longo deste século, resvalando em Os Sertões. Neste
percurso interpretativo, as polêmicas em torno da obra se avolumam por diversas
vias, discutem-se desde as questões acerca do caráter ficcional, sociológico
até jornalístico da obra.
Essas polêmicas, diga-se de passagem,
encontram-se já bastante saturadas. Decerto que a história das leituras do
livro, por si só, é um objeto interessante. Havemos de concordar, pelo menos em
parte, que muito da imagem que, hoje em dia, o País tem de si mesmo deve-se ao
livro. Falar em sertão significa falar em brasilidade. No entanto, a discussão
sobre as relações entre o objeto confesso do livro — o sertão — e a nação
permaneceu escamoteada em virtude das questões possivelmente maiores, às quais
os intérpretes preferiram se ater, já que, sendo a nação um dado, não se
discute o caráter brasileiro da obra e do autor.
Procuramos apontar para alguns aspectos do
percurso que as categorias sertão e nação tiveram no pensamento euclidiano nas
épocas anteriores à construção d´Os Sertões e vimos que esta trajetória foi
profundamente marcada por contradições e dilemas — fenômeno este que denuncia
traço subjetivo marcante na personalidade conturbada do escritor, onde esses
conflitos latentes em seu pensamento, de alguma maneira, estiveram presentes
também por toda a sua vida. Euclides foi verdadeiro modelo de intelectualidade militante
e crença nos poderes irreversíveis da civilização. Sua formação intelectual, baseada
nos preceitos e crenças oriundos da visão de mundo cientificista, o dotava de
um instrumental extremamente sofisticado à análise da realidade do País, bem
como o levava também a buscar e encaminhar soluções e projetos. Ao mesmo tempo,
pudemos perceber também que, convivendo com o cientista, havia o romântico a
contemplar a natureza como se esta fosse a única possibilidade de redenção às
dificuldades geradas pela vida moderna — romântico não só no plano simbólico,
mas cuja produção lírica trazia à luz esta face de sua psique conflituosa.
Portanto, imaginando e vivendo a idéia de sertão e de nação, estamos diante de
alguém que carregou dentro de si o século XIX, sintetizando na sua alma ciência
e fé, utopia e ceticismo. A partir do que se observou, nossa tarefa
centrar-se-á na análise e interpretação desta questão no interior da narrativa
d’Os Sertões, para que então possamos conferir mais luz à compreensão do
processo cultural de união dos conceitos sertão e nação.
Uma primeira e inevitável consideração
sobre a narrativa d’Os Sertões diz respeito à evidência de que se encontra
completamente mergulhada nos pressupostos do cientificismo. A estrutura do
livro, aliás, foi montada, como bem discutiu Luciana Murari21, a partir do modelo
de inteligibilidade fixado por Taine (raça, meio e momento), onde, a partir da
disposição narrativa a Terra, o Homem e a Luta pode-se perceber claramente a
proximidade intertextual entre esses pressupostos científicos. Além disso, como
algo mais claro, logo na Nota Preliminar podemos perceber, numa das passagens
mais conhecidas do livro, a afirmação de sua crença no progresso, na
civilização e na ciência do século XIX. O trecho recortado enuncia uma
perspectiva essencialmente teleológica, fundamental à visão de mundo
cientificista, onde se lê, com todas as letras, o seguinte:
A
civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável força motriz da história
que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento
inevitável das raças fracas pelas raças fortes.
Entretanto, apesar do conflito interno à
estrutura do livro, nos três pontos em que a narrativa do livro está encadeada,
percebemos tacitamente as construções imaginárias, inicialmente de uma
espacialidade nacional, em seguida o estabelecimento de um tipo étnico que
encarnasse a nação, o sertanejo, e enfim, no momento da luta, o conflito mais
grave que é o reconhecimento de que, grosso modo, a República, elemento que até
então simbolizava de alguma maneira a idéia de nacionalidade, na cabeça do
jornalista Euclides da Cunha presente no ocaso da tragédia, acabou sendo o
algoz dos que são os primevos e essenciais brasileiros.
A construção de uma espacialidade
brasileira no cenário sertanejo, o sertão-deserto do Nordeste, foi um processo
intelectual dos mais complexos, visto que, dentre outras coisas, incorria na
necessidade de se superar o modelo de análise mesológica imposto,
principalmente, a partir das obras T. Henry Buckle e Ratzel. Apesar da polêmica
e de vários, tais como Sílvio Romero, não aceitarem por completo essas matrizes
intelectuais, é sabido, por exemplo, a enorme influência que uma pequena
passagem do livro História da Civilização na Inglaterra exerceu na mente de
vários e importantes intelectuais do período abordado. Capistrano de Abreu,
inclusive, confessou que a leitura deste livro fora essencial à sua formação
intelectual e posterior interpretação da História do Brasil. Porém, o curioso é
que estes autores, na sua esmagadora maioria, além de nunca terem pisado nas
terras do novo mundo, falavam destas da forma mais pejorativa possível,
despejando um discurso marcado por um conceito de civilização que jamais seria
possível à inclusão da terra e do homem de cá nos trilhos do progresso. Buckle,
após elogiar muito a suntuosidade da natureza existente no Brasil, repetindo
falas como as de Buffon e Raynal — pesquisando em fontes como Gardner, Spix e
Martius, Darwin, Southey, etc. –, colocou em grande aporia aqueles intelectuais
brasileiros crentes no determinismo geográfico e climático, ao dizer que:
Tais são a
efusão e abundância vitais que distinguem o Brasil entre todos os países do
mundo. Porém, no meio desta pompa, deste esplendor da natureza, não há lugar
para o homem. Fica reduzido à insignificância pela majestade que o cerca.
Tão
formidáveis são as forças que se opõem, que nunca pôde fazer-lhes frente, ou
resistir à sua imensa pressão. Todo Brasil, apesar das grandes vantagens que
parece possuir, tem permanecido sem a menor civilização. Seus habitantes são
selvagens errantes, incapazes de combater os obstáculos que a própria natureza
espalhou em seu caminho.
Acreditar nesta sentença significava,
seguramente, conviver com a angústia e desolação, por vezes patética, de que a
civilização nunca medraria cá nestas terras — e, portanto, conceber a natureza
brasílica e, a partir dela, a nação, com uma espacialidade própria e distinta,
era tarefa das mais delicadas.
Por outro lado, a paisagem sertaneja
projetada n’Os Sertões é, para além da nomeada terra ignota, uma construção
simbólica pela qual temos o cenário do martírio e da subseqüente redenção. De
certa forma, há nela a presença de um sentido profundamente bíblico implícito à
sua maneira realista de descrevê-la. Tal como já falamos, o sertão imaginado na
primeira parte do livro
é, fundamentalmente,
a terra da provação e do desafio: “o
martírio do homem, ali, é o reflexo de tortura maior, mais ampla, abrangendo a
economia geral a vida”, diz o famoso fecho do primeiro capítulo.Mas o
próprio processo de adjetivação conferido à natureza vista, imaginada e nomeada
por sertão, é riquíssimo neste sentido.Vejamos alguns exemplos:
E
por mais inexperto que seja o observador — ao deixar as respectivas majestosas,
que se desdobram ao Sul, trocando-as pelos cenários emocionantes daquela natureza
torturada, tem a impressão persistente de calcar o fundo recém-sublevado de um
mar extinto, tendo ainda estereotipada naquelas camadas rígidas a agitação das
ondas e das voragens (...).
Nesta outra passagem, a paisagem
sertaneja é a própria projeção do martírio:
A terra
desnuda tendo contrapostas, em permanente conflito, as capacidades emissiva e
absorvente dos materiais que a formam, do mesmo passo armazena os ardores das
soalheiras e deles se esgota, de improviso. Insola-se e enregela-se, em vinte e
quatro horas. Fere-a o sol e ela absorve-lhe os raios, e multiplica-os e
reflete-os, e refrata-os, num reverberar ofuscante: pelo topo dos cerros, pelo
esbarrancado das encostas, incendeiam-se as acendalhas da sílica fraturada,
rebrilhantes, numa trama vibrátil de centelhas; a atmosfera junto ao chão vibra
num ondular vivíssimo de bocas de fornalha em que se pressente visível, no
expandir das colunas aquecidas, a efervescência dos ares; e o dia, incomparável
no fulgor, fulmina a natureza silenciosa, em cujo seio se abate, imóvel, na
quietude de um longo espasmo, a gargalhada sem folhas da flora sucumbida.
Mais do que nunca, a imagem do deserto
bíblico pode ser percebida no sertão imaginado por Euclides, neste processo de
invenção de uma paisagem nacional, substancialmente distinta das paisagens
projetadas até então sob a pena dos escritores românticos, a impressão que se
tem é a da completa lentidão e imobilidade temporal. Observemos outra passagem
bastante ilustrativa:
Ajusta-se
sobre os sertões o cautério das secas; esterilizam-se os ares urentes;
empedra-se o chão, gretando, recrestado; ruge o Nordeste nos ermos; e, como um
cilício dilacerador, a caatinga estende sobre a terra as ramagens de espinhos
(...).
A partir do fenômeno Os Sertões,
percebe-se a delimitação do conceito de sertão articulado essencialmente à
Região Nordeste e, mais especificamente, notamos algo mais significativo que
foi o processo de identificação básica da idéia de sertão com a simbologia
referente ao deserto (uma espécie de completa desertificação no significado da
palavra).Mas, embora a etimologia da palavra autorize perfeitamente esta
identificação, cabe lembrar que isto gerou um processo de restrição semântica sobre
o vocábulo. Por outro lado, não podemos deixar de negar que esta imagem do
sertão, apesar das manipulações e da inércia das autoridades, com os anos
passou a gerar no seio da sociedade brasileira uma inquietação, deixando bem
claro onde o descompasso com a civilização é mais evidente.
Voltando ao livro, sinalizemos que no
decorrer da parte intitulada A Terra, permanece o problema do olhar do
descobridor observando uma descoberta, e por mais que Euclides quisesse se
afastar desta postura, a condição de ser um intelectual amarrado às formas de
conceber o País, predominantes no imaginário dos membros da intelectualidade
litorânea, tornava impossível a realização de um movimento que transcendesse os
preconceitos. O cientista, buscando soluções para os problemas que martirizavam
a terra, via na ação humana, verdadeira fazedora de desertos, um problema.
Pioneiro de certa postura ecologicamente correta, Euclides esboça um
diagnóstico da situação dos sertões do Norte na intenção de propor saídas, sem
dúvida já naquela época possíveis, devido aos grandes avanços técnicos. Neste
ponto, sonhava com um sertão verde e exuberante, tal como chegou a esboçar em
passagens singelas do livro.
Mas o cenário sertanejo é a realidade crua
do sacrifício. Os “rudes patrícios que por ali se agitam”, vivendo o
esquecimento e o descaso imposto pela nação, sob as intempéries de clima
abrasador aniquilando pouco a pouco a chance de civilização, representariam a
grande pergunta a ser respondida: como uma gente como esta resistiu tanto ao
poderio do exército? A resposta, apesar de já sugerida em alguns momentos na
primeira parte do livro, vem no decorrer dos dois capítulos seguintes.
Em O Homem, acima de tudo, Euclides quis
estabelecer a imagem do homem nacional. Sem dúvida, é esta a parte mais
contraditória e complexa do livro. Primeiro porque, oriunda das conjecturas do
primeiro capítulo, a questão do determinismo mesológico era o substrato
analítico de onde parte a análise; em segundo lugar, porque agora entra em cena
outro problema a ser superado pelo escritor, isto é, o problema do determinismo
biológico, fruto das teses racialistas desenvolvidas e amplamente propagadas
nessa época.
Euclides parte da certeza — evidente,
porém, interdita — de que não existia no País unidade de raça e que —
lamentando! — “talvez, não a teremos nunca”, pois, “não há um tipo
antropológico brasileiro”. Por esse caminho, e pensando nos matizes impostos
pelas teses racialistas, a mestiçagem derivada desta constatação aumentaria o
drama na cabeça de Euclides. País de mestiços nunca alcançará a civilização. Há
um fecho emblemático a essa tese na singular passagem intitulada Um parêntesis
irritante, devotamente assentada nos pressupostos do determinismo biológico.
A mistura de raças mui diversas é, na
maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda
quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam
vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso.
Todavia, nesse ponto ocorre que, ao
realizar o mapeamento dos tipos de mestiços existentes no País, estabelece
distinção qualitativamente fundamental, separando os mestiços do litoral e os
do sertão, colocando-os sob ópticas diferentes, afirmando a superioridade do
mestiço do sertão, se comparado ao existente no litoral. Notemos que há neste
trecho d’Os Sertões gigantesco esforço de subverter as teses científicas que
negavam qualquer possibilidade de avaliação positiva sobre o fenômeno do
cruzamento de raças. Não nos esqueçamos de que a visão negativa sobre o mundo
americano era já bastante antiga, mas no século XIX, calcada em depoimentos
como os do casal Agassiz, ou de Artur de Gobineau, foi amplamente propalada
pela intelectualidade da época. Como
bem lembrou Lilia
Moritz Schwarcz, estas referências sobre o Brasil causavam enorme desconforto à
intelectualidade, quando da aplicação destas teorias raciais à realidade do
contexto local33. E se a questão racial era um dos critérios, senão o mais
importante, um dos mais significativos para se estabelecer a identidade nacional,
foi realmente um trabalho intelectual bastante difícil superar a
carga pejorativa
imposta pelo olhar europeu sobre a questão racial.
Como dissemos, o mestiço do litoral —
identificado fundamentalmente com o mulato, fruto do cruzamento entre brancos e
negros — foi imaginado como este mestiço degenerado e fraco, e por esse motivo,
inevitavelmente, fadado a desaparecer. Enquanto fruto de um processo histórico
distinto, o ser híbrido formado sob o sol dos sertões interiores da terra
adquirira, ao longo dos séculos, uma feição própria, distinta e positiva. Numa
das passagens mais conhecidas do livro, encontramos as seguintes assertivas:
Porque ali
ficaram, inteiramente divorciados do resto do Brasil e do mundo, murados a
leste pela Serra Geral, tolhidos no ocidente pelos amplos campos gerais, que se
desatam para o Piauí e que ainda hoje o sertanejo acredita sem fins.
O meio
atraía-os e guardava-os.
As estradas
de um e outro lado da meridiana, impróprias à dispersão, facilitavam antes o
entrelaçamento dos extremos do país. Ligavam-nos no espaço e no tempo.
Estabelecendo no interior a contigüidade de povoamento, que faltava ainda em
parte na costa, e surgindo entre os nortistas, que lutavam pela autonomia da
pátria nascente, e os sulistas, que lhe alargavam a área, abastecendo-os por
igual com as fartas boiadas que subiam para o vale do rio das Velhas ou desciam
até as cabeceiras do Parnaíba, aquela rude sociedade, incompreendida e
olvidada, era o cerne vigoroso da nossa nacionalidade.
(...)
Raça forte
e antiga, de caracteres definidos e imutáveis mesmo nas maiores crises — quando
a roupa de couro do vaqueiro se faz a armadura flexível do jagunço — oriunda de
elementos convergentes de todos os pontos, porém diversa das demais deste país,
ela é inegavelmente um expressivo exemplo do quanto importam as reações do
meio. Expandindo-se pelos sertões limítrofes ou próximos, de Goiás,
Piauí,Maranhão, Ceará e Pernambuco, tem um caráter de originalidade completa
expresso mesmo nas fundações que erigiu.
Há nesta colocação a presença de uma tese
essencialista pela qual a compreensão do fenômeno da originalidade do sertanejo
se expressa na função da possibilidade de surgimento de uma raça diferenciada
das demais que, através do embate com o meio, fez-se forte, contrariando as
teses raciais vigentes.
Dirá mais à frente que “o sertanejo é antes de tudo um forte. Não
tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”.
As descrições dos tipos sertanejos, com
seus hábitos singulares, nos suscitam enxergar em Euclides a tentativa de, como
um antropólogo, realizar a decodificação
de uma cultura à outra. E mesmo as avaliações inevitavelmente céticas da
religiosidade popular existente no sertão, não removeram no escritor a
possibilidade de afirmar que nos sertões estavam os verdadeiros brasileiros, pelo
menos em forma embrionária, carregando dentro de si a responsabilidade de fazer
a nação. Por este motivo, ocorre verdadeira inflexão na forma pela qual
Euclides até então via o problema da Rebelião de Canudos.
Embora não muito claramente, este trecho
coloca-se no sentido de desmitificar a imagem que a propaganda republicana
fizera de Canudos:
Vivendo
quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que pelejam reflexos da vida civilizada,
tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos, de
chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular
em que jazem, no âmago do país, um terço de nossa gente. Iludidos por uma
civilização de empréstimo; respingando, em faina cega de copistas, tudo o que
de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações, tornamos, revolucionariamente,
fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade,
mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios
mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los
separa um mar, separam-no-los três séculos (...).
O sertão é o lugar do esquecimento e, por
isso mesmo, onde a brasilidade se forjou protegida da degradação e
estrangeirismo do litoral. Lá o Brasil é profundo, autêntico! A mitologia
sertaneja emerge, portanto, como representação possível do “sonho rural, a
arcádia, a terra, fonte redescoberta de toda verdade e de todo renascimento”.
Esta mitologia, segundo propôs Raoul Girardet, estrutura-se a partir da visão
“em torno da qual ele é um passado exemplar, onde o contato imediato com a
terra protege o homem da degradação do tempo, associa-o aos grandes ritmos da
natureza, assegura-lhe as condições de uma vida autêntica, liberta de toda
falsa aparência e de todo subterfúgio”. Neste sentido, o sertanejo — por assim
dizer, o homem do campo — é concebido como alguém que “conhece a exata medida do
tempo, do qual cada gesto comporta uma plenitude de significação, e sabe por
instinto o que pertence ao domínio das realidades essenciais”.
Por isso, a partir da oposição estrutural
entre campo e cidade, surge neste contexto perfeito exemplo de como estes
significados de pureza e essencialidade ligaram-se ao conceito de sertão
naquele período, enquanto as cidades do litoral eram imaginadas como sombrias e
promíscuas, elementos que impossibilitavam a construção da brasilidade. Desta
maneira, o esquecimento que o País impunha ao sertão fora, de certa forma,
benéfico, pois gerou condições de que sob o sol sertanejo se forjasse uma gente
original que, no imaginário de uma geração, passou a expressar a alma nacional.
No sertão o tempo corre de outra forma, com
outro ritmo e dimensão. É um tempo imobilizado, o tempo das origens
cosmogônicas e imemoriais da nação. Euclides fez explicitamente referência a
esta perspectiva de temporalidade imóvel, ao escrever que no sertão:
Tem-se a
sensação esmagadora de uma imobilidade do tempo. A terra realiza a sua rotação
eterna, os dias sucedem-se astronomicamente, mas mudam aqui. Parece que é o
mesmo dia que se desdobra sobre nós — indefinido e sem horas — interrompido
apenas pelas noites ardentes e tristes.
E quando o
sol dardeja alto, ardentíssimo num céu vazio, tem-se a impressão estranha de um
spleen mais cruel do que o que se deriva dos nevoeiros de Londres; spleen
tropical feito da exaustão de um organismo e do tédio ocasionado por uma vida
sem variantes.
Neste lugar
houve a gestação do primeiro e puro brasileiro, aquele que, como Adão, foi a
árvore progenitora de todos os outros homens. O sertão, curiosa e
contraditoriamente, firma-se como terra perdida. Sua imagem desertificada transforma-o
no lugar das provações e martírios mais profundos. E, portanto, além de ter
gerado o primeiro brasileiro, gerou um ente quase sobrenatural, um homem
sublime. Voltando ao que sinalizou Girardet acerca da estrutura desta
mitologia, podemos dizer que o sertanejo passou a encarnar, portanto, o “sonho
da limpidez, de comunhão, de efusão e de harmonia”, revelado através do mito da
idade do ouro. Um “sonho de permanência — de um tempo solidificado,
cristalizado...”, isto é, assim como na fábula do Capitão
Gancho, o sertão é um mundo mágico — um “mundo onde os
relógios estão parados”.
A efeméride da guerra propriamente dita,
apesar de ser a parte mais longa d’Os Sertões, apontam para o fato de que a
civilização de empréstimo, como ele diz, cometeu um grande erro de avaliação e
que a loucura e a barbárie, na verdade, existiram dos dois lados, como forças
centrífugas a condenar toda aquela gente à morte. No substrato da narrativa
persiste, porém, a contradição estrutural do livro que é a de, ao mesmo tempo
em que adjetiva o sertanejo como cerne da nacionalidade, o cientista, preso aos
grilhões de seu credo, em vários momentos não consegue escapar dos
preconceitos.
Todavia, o que é mais significativo neste
processo hermenêutico é que ele permaneceu em aberto e, por isso,
possibilitando-nos inúmeras reavaliações.
O certo é o seguinte: se pelo caminho da
ciência do século XIX, Os Sertões encontra-se preso às amarras de uma visão de
mundo marcada por avaliações negativas sobre a terra e o homem do Brasil, pelo
caminho do simbolismo mítico, com um substrato essencialmente romântico mesmo
não declarado, mas parte integrante do imaginário de sua geração, ele supera os
preconceitos e institui novas interpretações às teorias cientificistas
vulgarizadas na época. O sertanejo é forte porque conjuga na sua constituição
histórica alguns fatores singulares: a reação ao meio arredio, a purificação
existencial, resultado do martírio secular da terra e do isolamento de sua
formação sócio-histórica e, o mais importante de tudo, encarna, de certa forma,
como fruto de uma concepção romântica presente no livro, o estereótipo do bom selvagem
rousseauniano. Os Sertões, mais do que um livro em si, é o melhor exemplo da
consciência partida de uma geração na busca de sua identidade de povo e nação.
Se em 1897 Euclides da Cunha chegou ao arraial de Canudos como mais um
repórter, preso às visões civilizadas do litoral sobre o sertão, o confronto
com a trágica realidade dilacerou internamente o escritor, transformando o
livro em um manifesto a favor da memória dos heróicos seguidores do
Conselheiro, afirmando a existência de uma brasilidade sertaneja, como algo
essencial à formação histórica do Brasil.
Não obstante, abandonando o corpus textual
d’Os Sertões, e observando seu epistolário, outra importante fonte para o
estudo de seu pensamento, assusta-nos visualizar alguém que esteve realmente
marcado durante toda vida pelo signo da tristeza, da solidão, da angústia e do
desencanto. A tragédia pessoal envolvendo seu casamento, cada vez mais vem sendo
desnudada e humanizada na intenção de resgatar e rever-se a relação com sua
mulher, Ana de Assis, como uma união marcada pela ausência dele e pela
infelicidade dela.
Inclusive, há uma legítima tentativa por
parte da família de Ana de Assis em questionar mais seriamente a postura de
esposo de Euclides, mostrando-o como alguém que não conseguiu ser feliz e dar
felicidade à mulher — daí, justificando a traição.
No entanto, apesar deste tema ser bastante
interessante, até porque em suas correspondências publicadas não encontramos
qualquer indício maior de apego para com a mulher, denunciando um problema
estrutural no relacionamento entre os dois, evitamos uma análise mais detida
acerca dessa questão, pois o casamento que realmente faz sentido discutir aqui
é outro, um casamento que Euclides manteve paralelamente, por toda a vida, com
o Brasil. União que, no início de sua trajetória intelectual, foi marcada por
um arraigado sentimento utópico de esperança e felicidade, mesmo sendo o regime
republicano algumas vezes motivo de críticas. Num artigo publicado no O Estado
de S. Paulo, a 5 de abril de 1892, ele nos fala de um sonho:
Seguiremos para o século futuro, robustos
e grandes; neste século, cuja deslumbrante grandeza escapa às mais ousadas
deduções da sociologia, através das vitórias da ciência e da indústria, a
pátria brasileira redimir-se-á; e obedecendo à grandeza do próprio destino
assumirá a hegemonia das nações latinas...
Todo um século de inatividade será
compensado em alguns anos de lutas civilizadoras — e um grande futuro será
afinal absolvição para um passado estéril.
As esperanças em um País melhor,
civilizado, soberano e que trilhasse os rumos do progresso foi compartilhada
por toda uma geração de intelectuais, militantes como ele por esta utopia.Mas
Euclides da Cunha foi alguém que, muito além das contradições de seu
pensamento, vivenciou o Brasil de forma radical, profunda e na mesma medida,
porém, da maneira mais angustiante possível, talvez só encontrando paralelo na
também polêmica personalidade de Lima Barreto.
Intelectual obstinado, não encontrou a
realização profissional e nem sequer financeira na profissão que, meio a
contragosto, escolhera. Como engenheiro, Euclides foi para si mesmo um grande
fracasso. Ao longo de sua vida, confessara inúmeras vezes seu descontentamento
com a profissão que escolhera.
Certa vez escreveu a seu amigo paulista,
Reinaldo Porchat (1868-1953), que viria a ser o primeiro reitor da Universidade
de São Paulo, lastimando “não ser médico — afinal”, pois segundo acreditava,
“havia de ser sempre um engenheiro medíocre”. Além disso, a própria função de
pedagogo, à qual recorreu Euclides objetivando ter certa estabilidade
financeira, também, pelo que podemos imaginar, foi-lhe deveras um verdadeiro
estorvo; da mesma forma que a vida militar, iniciada ainda bem jovem, na Escola
de Engenharia da Praia Vermelha, onde, como sabemos, recebeu a primeira
catequese positivista a partir das aulas de Benjamin Constant, foi, com os
anos, parecendo-lhe algo igualmente terrível. Em correspondência datada de 27
de março de 1895, endereçada de Campanha, Euclides confidencia-se novamente ao
seu fiel amigo Porchat, e diz: “Considero-me incapaz para a vida militar,
incapaz fisicamente porque moralmente creio-me incompatível de há muito com
ela”.
Ao contrário do que muitos podem pensar,
este desânimo que Euclides confessa aos amigos mais íntimos não foi fato
isolado de determinado momento de sua vida. Ele que, como pudemos analisar em
momento anterior, foi um dos nossos grandes profetas do republicanismo,
chegando ao arraial de Canudos, em 1897, dando vivas à República e coisas do
gênero, e da mesma forma, nos anos imediatamente anteriores ao golpe de 15 de
novembro posicionou-se tão engajadamente contra o regime monárquico, no
decorrer da vida, e mais acentuadamente nos últimos anos, olhou para a política
e para o País com um imenso desalento. Euclides que se dizia tendo uma “feição serena
de filho” pela República, logo se desencantou com ela. A República que não foi,
logo nos primeiros tempos da sua vigência histórica, mostrou-se ser algo que
estava longe de realizar as promessas da propaganda que a ajudou derrubar o
velho imperador.
As utopias de progresso e civilização que
deveriam instaurar concomitantemente à democracia e à cidadania, dando corpo
definitivo à nação, não se realizaram. As grandes questões sociais continuaram
esquecidas. Ao lado de dois governos militares que se instauraram no começo da
República, uma crise financeira sem precedentes na história do País minavam os
cofres públicos,aumentando os índices de pobreza e indigência. O Rio de
Janeiro, capital federal, enquanto ainda não se tornava clara a hegemonia
oligárquica, continuava a ser depósito de uma inoperante burocracia de Estado,
agora encantada com as novas possibilidades que o novo regime oferecia. A elite
em geral, como que retrospectivamente continuava acreditando que vivia um
idílio
no mundo de uma
civilização feita de improviso. E o povo, as enormes massas rurais e urbanas,
permanecia completamente alijado da cena política, bem como, por assim dizer,
de qualquer forma de cidadania real. Educação e saúde eram, como ainda o são,
setores abandonados pelo poder público. Na verdade, a substituição do velho
regime pelo novo, na prática, não significou nada
para a grande
maioria das pessoas. A República cada vez mais foi se estruturando como um
espaço de poder das oligarquias rurais, principalmente as do Sudeste, onde mais
tarde a realidade da ideologia do regime se cristalizou na fala de um dos
presidentes, que dizia sem peso algum na consciência que “a questão operária
era um caso de polícia”, desnudando a forma aristocrática com que o governo
olhava a questão social.
Esta definitivamente não era a República
dos sonhos daqueles intelectuais envolvidos com a progenitura da bela jovem.
Paulatinamente estes iriam se retirando da cena política, e muitos deles
isolaram-se nas torres de marfim construídas por eles para amenizar a
angústia.Mas outros não possuíam esta capacidade de abstinência. Estavam
envolvidos por demais com a construção da brasilidade, com a busca da
identidade nacional. E seria para eles, como foi, algo terrível o simples virar
de costas para o cenário político. Euclides da Cunha, neste ponto, pode ser
visto como o grande paradigma desse desencanto.
Uma comprovação do precoce desalento que o
escritor passou a nutrir com a situação evidencia-se na carta enviada ao pai,
com data de 14 de junho de 1890, oito meses após a Proclamação da República,
onde há o seguinte desabafo: “desconfio
muito que entramos no desmoralizado regime da especulação mais desensofrida e
que por aí se pensa em tudo, em tudo se cogita, menos na Pátria”.
Dois anos depois, a 7 de junho, novamente
ao amigo Porchat dirá que não falaria nada “acerca da política porque” era
coisa que não enchia um só minuto de sua vida; repetindo ao mesmo mais tarde o
seguinte:
Quanto à
política ... não falemos mais nisto; afastei-me inteiramente de tal assunto —
compreendi afinal que nesta terra a política é a ocupação cômoda dos desocupados
e só tenho um arrependimento sincero e profundo na vida: o ter-me, embora
fracamente, me preocupado algum tempo com tal coisa.
Portanto, ao contrário do que se costuma
afirmar, o ceticismo com que Euclides passou a encarar as questões do País
remontam, na verdade, a tempos bem anteriores à sua marcante experiência nos
sertões da Bahia como repórter da tragédia de Canudos e,muito mais ainda, da
própria construção do livro. Estamos insistindo no caráter contraditório que a
estrutura narrativa do livro possui naquilo que lhe é essencial, isto é, o
problema da inserção do sertanejo no horizonte da nação.Vimos, inclusive, a
indefinição inicial que se obtém da leitura do livro, se considerarmos o
problema ideológico do cientificismo que é o fator condicionante da estrutura
narrativa da obra. Porém, lá no livro, como na intimidade do autor, não faltam
tensões e dúvidas, contradições e problemas para alguém que, como Euclides,
viveu intensamente as questões de seu tempo. Por esse aspecto, ele realmente
sofreu e sofreu muito, vendo os seus sonhos militantes de mocidade se
desmoronando, um a um.
Em dezembro de 1901, mais ou menos na época
em que dava fim à escritura d’Os Sertões, Euclides queixou-se enfaticamente a
um outro grande amigo, Francisco Escobar:
Neste país
não há mais vitórias... Derrota e esborrachamento em toda linha, de Cucuí à
Lagoa dos Patos! Felizmente nas entrelinhas da tua carta vejo-te o mesmo — o
mesmo fino psicológico, ligeiramente ferino e sutil, incapaz de se enlear nos
fiapos das preocupações eleitorais. Ainda bem.
Porque afinal, és como eu, um dissidente. Dissentimos,
antes da cisão, de tudo isto — e nenhum de nós se pode escravizar a uma
bandeira, porque a nossa oposição tem motivos superiores aos considerados
vulgares dos manifestozinhos que por aí expluem.
(...) E se
como eu, pensas que somos desventurados numa farsa lastimavelmente triste; e
julgar como eu julgo, que este país é organicamente inviável; e se, comigo
chegaste — rigorosamente, como no final de um teorema — à conclusão desanimadora
de que chamamos política a uma grande conspiração contra o caráter nacional —
se tudo isto é exato, estamos ainda formados, juntos, na mesma linha avançada e
superior dos cépticos que ao menos não terão desapontamentos e desilusões.
Euclides ia vendo o tempo passar e as
coisas gradativamente piorarem mais e mais. O sonho acabara e ele estava
mergulhado num enorme pesadelo.
Daí, para além do sentimento moralmente
conservador, se sentia um velho ainda quando da pouca idade que tinha: um velho
em plena mocidade de vinte e poucos anos. Este sentimento de apatia e
descontentamento, infelicidade e insatisfação com o mundo e com a realidade que
o cercava vão se tornando mais e mais constantes. Isto se refletia no olhar
sobre o processo de modernização que a cidade do Rio de Janeiro viveu, no final
do século e principalmente no primeiro decênio do novo. Um exemplo muito
interessante disto é o desânimo com que confessa a Domício da Gama sua postura
crítica diante da chegada ao País da grande maravilha da modernidade
capitalista: o automóvel.
A
vida entre nós, como já te disse noutra carta, mudou. Há um delírio de
automóveis, de carros, de corsos, de banquetes, de recepções, de conferências,
que me perturba — ou que me atrapalha, no meu ursismo incurável. Dá vontade da gente
representar a ridícula comédia da virtude, de Catão, saindo por estas ruas de
sapatos rotos, camisa de fiapos e cabelos despenteados. Que saudades da antiga
simplicidade brasileira (...).
Noutra correspondência escrita quatro
meses depois, em fevereiro de 1908, enviada a Francisco Escobar, permanecerá o
mesmo tom pessimista embalado por um manto de saudosismo por uma época e estilo
de vida que, aparentemente, estava deixando efetivamente de existir, a partir
dos processos de modernização característicos da conflitante inserção do País
na Belle Époque.
Leiamos:
Verás o Rio.
Admirarás os célebres melhoramentos. Fulminaremos juntos, o pioramento dos
homens. Daremos pasto à nossa velha ironia ansiosa por enterrar-se nos cachaços
gordos de alguns felizes malandros que andam por aí fonfonando desabaladamente,
de automóvel, ameaçando atropelar-nos a nós outros, pobres altivos diabos que
teimamos em andar nesta vida, dignamente, pelo nosso pé.
Vemos, a toda luz, um homem avesso ao
cosmopolitismo, onde o Brasil e a República, bem como quase todas as suas
outras crenças, pareciam ruir completamente devido à força das circunstâncias.
Poucos meses antes do trágico incidente que o vitimou de morte, lamentava e ao
mesmo tempo buscava forças para reagir em carta dirigida a Oliveira Lima:
Estamos
num período de estéreis e exclusivas preocupações políticas. Só se lêem —
verdadeiramente — os entrelinhados do jornal, onde se desenha com maior fidelidade,
neste momento histórico, a fisionomia real de nossa gente. Ninguém lê; ninguém
escreve; ninguém pensa. A mofina literatura nacional traduz-se, naturalmente, numa
vasta poliantéia, a 100 réis por linhas, de mofinas. De todo absorvidas no
presente, às voltas com seus interessículos, estes homens, são descuidados do
futuro, ainda menos curam do passado; (...). Entretanto, quero crer que ainda
haverá meia dúzia de espíritos capazes do esforço heróico de um rompimento com
tanta frivolidade. E entre eles me alinharei.
Euclides se encontrava num beco sem saída.
Sozinho, cada vez mais fechado em seu mundo de angústia e desencanto, não lhe
restou outra saída senão olhar para os remansos que os sertões da terra
poderiam possibilitar. É curioso, mas, além de ser um dos construtores da
mítica do sertão, o escritor foi alguém que, durante a vida toda, convivendo
com as certezas da ciência de seu tempo, conviveu também com o sonho de ir
fixar-se no sertão, de se retirar — fugir da agitação urbana e ir para os
ermos. Discutíamos pouco atrás alguns sentidos possíveis com que a idéia de
sertão surgia no pensamento euclidiano desde os seus primórdios até a escritura
do grande livro.Vimos, inclusive, que Euclides formulou boa parte de sua
lírica, marcada por acentuado romantismo, imaginando um sertão idílico e
pitoresco, bem longe do realismo que estrutura todo Os sertões. Todavia, nele
convivem ao mesmo tempo o cientista e o poeta, o sonhador e o pessimista, o
gigante e o anão. Em agosto de 1892, aos 26 anos de idade, escrevera a Reinaldo
Porchat:
Passo
agora uma existência soberanamente monótona, uma vida marcada a relógio, mecânica
e automática, como de uma máquina, oscilando indefinidamente, sem variantes, de
casa para a Escola e da Escola para a casa — (...) Acredito porém que isto
durará, não dou para a vida sedentária, tenho alguma coisa de árabe — já vivo a
idealizar uma vida mais movimentada, numa comissão qualquer arriscada, aí por
esses sertões desertos e vastos da nossa terra, distraindo-me na convivência
simples e feliz do bugre.
Há aqui ainda a presença do Euclides
militante, homem que de alguma forma queria trabalhar pela construção da Nação
Republicana e se via em plenas condições de se embrenhar nos sertões e
trabalhar pela pátria.Mais de uma década depois, durante sua viagem ao
Amazonas, em missão diplomática, novamente, apesar de todo o ceticismo com que
nesta época enxergava a situação, dará um depoimento do mesmo tipo.
Considerava-se um bandeirante, um filho da roça, que se mostrou bastante
animado antes de partir para os sertões da Amazônia, pois achava que seria
possível levar adiante este ideal; porque, não “desejava a Europa, o Bulevar,
os brilhos de uma posição”, desejava “o sertão, a picada malograda, a vida
afanosa e triste de pioneiro”.
E quando, pouco tempo depois, já se
encontrava por lá, diria a outro correspondente:
Não te
direi os dias que aqui passo, a aguardar o meu deserto, o meu deserto bravio e
salvador onde pretendo entrar com os arremessos britânicos de um Levingstone e
a desesperança italiana de um Lara, em busca de um capítulo novo no romance mal
arranjado desta minha vida.
Entramos, então, no derradeiro momento da
trama. Ao final de sua vida, mesmo antes de conhecer o trágico desfecho da
Piedade, Euclides anunciava no interior de seus sentimentos a morte do Brasil
que tanto amara ao longo de toda a sua vida. Chegou mesmo a confessar para
Oliveira Lima que “andam nesta terra tão ao nível das maiores mediocridades as
mais altas posições, que fora, na verdade, ridículo o entristecer-me com o não
conseguir o modesto lugar de professor de lógica”.
Nesse ponto, soam como uma espécie de crônica
duma morte anunciada estas reflexões feitas por ele em 8 de agosto de 1909,
seis dias antes da derradeira tragédia:
Estou na reserva desde os vinte anos,
quadra em que me assaltou o pessimismo incurável com que vou atravessando esta
existência no pior dos países do mundo. Talvez não acredites: ando nas ruas
desta aldeia de avenidas, com as nostalgias de um inglês smart perdido numa
enorme aringa da África Central. Nostalgia e Revolta: tu não imaginas como
andam propícios os tempos a todas as mediocridades.
Estamos
no período hilariante dos grandes homens pulhas, dos Pachecos empavesados e dos
Acácios triunfantes. Nunca se berrou tão convictamente tanta asneira sob o sol!
Na Câmara e no Largo São Francisco, os mirabeaux andam aos pontapés. Em cada
esquina um O’Connel; em cada degrau de Secretaria um salvador das instituições
e da pátria. Da noite para o dia surgem não sei quantos imortais... É
asfixiante! A atmosfera moral é magnífica para os batráquios.Mas apaga o homem.
Já [...] penso em romper a fundo com tudo isto: dois ou três artigos
desabalados e rijos — tomando a frente de toda essa sujeira [...] canalha com o
meu rubro desassombro de caboclo sans peur et sans reproche. Mas contenho-me
(...).
Euclides foi alguém que depositou todas as
suas esperanças na razão e na ciência do século de Marx, Comte, Darwin e
Spencer; e quis, com estas certezas, interceder e transformar a realidade do
País, fazendo com que trilhasse o rumo do progresso e da civilização.Mas
sabemos que seus sonhos e esperanças mais concretas se evaporaram como água em
pleno ar. Para ele conviver com o fardo dessa derrota na consciência foi algo
extremamente dramático.
O grande filósofo e historiador das
religiões Mircea Eliade, numa passagem extremamente feliz, afirmou que “um
homem exclusivamente racional é uma abstração; jamais o encontramos na realidade”,
pois a experiência humana está mergulhada num universo de sonhos, mistérios e
simbolismos onde a fronteira entre o racional e o irracional pode ser muito
mais tênue do que pensa a filosofia ocidental. De certa maneira, cabe a menção
à crítica filosófica que Albert Camus fez à ciência moderna em Le Mythe de
Sisyphe, onde diz que “toda ciência desta terra não me dará nada que possa
assegurar-me que este mundo é meu”. Euclides da Cunha, a quem devemos celebrar
sempre pela obra e pelo exemplo de empenho em encontrar soluções que conduzam a
um país melhor, à sua maneira vivenciou intensamente o significado trágico desta
sentença.
A angústia com sua vida e seu país tomavam
conta da mente do escritor, e o homem só via tristeza nas situações que o
cercavam. O casamento infeliz, a insatisfação com a profissão e as constantes
dificuldades financeiras que, não poucas vezes, o forçavam a trabalhar a
contragosto, tornavam para ele a vida um grande martírio. O sertão, o interior,
o coração das terras — onde ‘há calma, repouso e paz para o espírito — surgia à
sua imaginação como a única possibilidade de felicidade e superação da condição
de simples mortal.
A nação que não era agravada em sua
consciência de ex-mosqueteiro, o sentimento
de derrota — que não
foi só seu, diga-se de passagem, foi de toda uma geração.Mas ele, muito mais
que qualquer outro, exilado na solidão de si mesmo, não teve outra saída senão
sonhar com uma salvação, individual e, por vezes, coletiva, a esperá-lo lá onde
o Brasil é profundo, nalguma vereda deste grande sertão.
Euclides da Cunha, Os Sertões ea invenção de um Brasil
profundo
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CRIME
E EXPIAÇÃO: A RECEPÇÃO DE OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA
José
Leonardo do NASCIMENTO e Valentim FACIOLI (orgs.).
André
Botelho
Passado um ano das comemorações do centenário de Os sertões: campanha de Canudos (1902) de Euclides da Cunha (1866-1909), os
leitores e, em particular, os pesquisadores da obra euclidiana ganham com
Juízos críticos: Os sertões e os olhares da sua época um instrumento
imprescindível para avaliar a força do chamado “livro vingador” já no seu contexto
intelectual original de publicação.
Partindo do volume Juízos críticos,
publicado em 1904 pela editora Laemmert, reunindo algumas das primeiras resenhas de Os sertões de Euclides
da Cunha, publicado dois anos antes pela mesma editora, os organizadores
acrescentaram a ele dois textos fundamentais. O primeiro, um artigo do botânico
José de Campos Novaes publicado originalmente no número 1, ano III, de 31 de
janeiro de 1903, da Revista do Centro de Ciências e Artes de Campinas, então
dirigida pelo próprio Campos Novaes. O
segundo, o discurso de recepção a Euclides da Cunha na Academia Brasileira de
Letras em 18 de dezembro de 1906 proferido por Sílvio Romero. Além de
meticulosa preparação do texto pelos organizadores com notas esclarecedoras
sobretudo sobre as datas de publicação das críticas e indicações bibliográficas
dos seus autores (elementos ausentes na edição original), deve-se ressaltar
ainda o ensaio “Os sertões e os olhares
de sua época” de José Leonardo do Nascimento, que abre o volume. O autor
aliás é organizador de outro valioso trabalho sobre a obra euclidiana publicado
também em 2003 (Os sertões de Euclides da
Cunha: releituras e diálogos, São Paulo, Editora da Unesp).
Apenas a reedição do volume Juízos críticos da Laemmert já configuraria
uma contribuição importante dos organizadores aos estudos euclidianos, uma vez
que torna os textos nele reunidos mais acessíveis aos leitores, permitindo
que se acompanhe a repercussão inicial de Os sertões na imprensa da época.
Repercussão que ao mesmo tempo expressa e parece ter garantido o sucesso imediato ao “livro vingador”, como se
depreende da leitura da antologia. E isso desde a crítica de José Veríssimo publicada no rodapé
literário do Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, no dia seguinte à publicação
do livro de Euclides, isto é, 3 de dezembro de 1902, até as de Araripe Júnior, publicadas em fevereiro e março de 1903
no Jornal do Comércio, passando pelas de Medeiros e Albuquerque, Coelho Neto e
outros literatos já consagrados à época e outros críticos hoje menos conhecidos,
como J. da Penha, Leopoldo de Freitas e Múcio Teixeira, entre outros.
Como observa José Leonardo do Nascimento sobre Juízos críticos da
editora Laemmert:
[...] o livro é, por inúmeras razões,
precioso: permite reconstruir o debate ocorrido em torno de Os sertões,
remontar à natureza da sua recepção e às razões de seu sucesso nos meios
culturais brasileiros do início século XX. A análise das leituras
contemporâneas ao livro vingador permite o acesso ao ambiente cultural de
origem da obra e, por conseguinte, ao sentido provável atribuído pelo autor às
suas teses (p. 7).
Questões que, como lembra Nascimento, ganham maior inteligibilidade
quando se confronta a recepção da obra na imprensa à recepção das críticas pelo
próprio Euclides da Cunha que, aliás, [...]
manifestou-se sobre o assunto de três maneiras distintas: através de cartas aos
críticos e aos amigos; através dos comentários impressos a partir da terceira
edição, nas últimas páginas de Os sertões; através, finalmente, de anotações
que fez do próprio punho num exemplar do livro que pertenceu
a Basílio de Magalhães (p. 8, n. 1).
Juízos críticos: Os sertões e os
olhares da sua época, no entanto, vai além da contribuição do volume
original de 1904. Acertam os organizadores, a meu ver, ao somarem a ele os
referidos textos de Campos Novaes e Sílvio Romero no presente volume. E isso em
função de pelo menos dois aspectos que, dispersos tanto nas demais resenhas que
formam a antologia, como nos numerosos estudos dedicados à obra euclidiana
desde então, encontram-se sintetizados exemplarmente nos textos escolhidos.
O primeiro texto, de Campos Novaes, permite recuperar os “reparos
críticos” feitos pelo botânico “em nome da ciência” às “conclusões euclidianas
sobre a flora sertaneja” (p. 8) respondidas por Euclides nas páginas finais de
Os sertões desde a sua terceira edição. Permite, sobretudo, recuperar o sentido
intelectual dos embates em torno do caráter científico ou não das sugestões de
Euclides num momento em que as formas da razão ligadas à ciência e a autoridade
cognitiva a ela conferida se transformavam em fontes básicas de legitimidade
nas sociedades industriais emergentes. E cuja adoção, entre nós, embora
exprimindo genericamente a tentativa de atualização do pensamento brasileiro ao
discurso cientificista, realizou-se freqüentemente por meio da naturalização da
nossa herança colonial e das relações sociais que, tendo por base a experiência
de três séculos de escravidão, estruturaram a sociedade brasileira.
Essa discussão é importante. Não por acaso praticamente em todas as
resenhas da antologia afirma-se, como no caso de José Veríssimo, nega-se, como
no de José Maria Moreira Guimarães, ou suspeita-se, como no de Araripe Júnior,
da idéia de que Os sertões promova um
bem-sucedido “consórcio da arte com a ciência”, idéia cara ao próprio Euclides
(p. 9). Ilustrativo dessa questão é a sugestão de J. da Penha sobre a
convivência em Euclides do “poeta” e do “engenheiro” e sua recusa da hierarquia
estabelecida em Os sertões entre fatores raciais e sociais no processo de
definição dos sertanejos e dos brasileiros em geral:
Desculpe-me o alentado artista e
pensador que lhe contraponha nesse tocante, uma objeção ligeira, à qual já dei
publicidade há perto de seis anos. Convenho em que a fixação de nosso tipo
ainda é uma função do prazo secular, em que se há de cumprir a luta dos três
elementos formadores. Mas a evolução social preceder a evolução biológica, é
subverter a ordem natural, e não apreendo bem por que motivos” (Penha,
2003, p. 29)
O segundo texto acrescentado na antologia, o discurso de recepção a
Euclides da Cunha na Academia Brasileira de Letras proferido por Sílvio Romero em
1906, permite que se apreenda o sentido político da recepção de Os sertões, pois o discurso, como sugere
Nascimento, constitui “ao mesmo tempo, uma interpretação do livro e um libelo
contra a situação política e social do país” (p. 8). Nele, o autor de História
da literatura brasileira: contribuições e estudos gerais para o exato
conhecimento da literatura brasileira (1888) “manifestou, ao lado do apreço
pelos méritos intelectuais do novo imortal, uma visão pessimista do futuro do
país entregue aos desvarios de sua elite intelectual e política” que estaria de
acordo com a perspectiva de Euclides, já que uma [...] das notas mais vibrantes
de Os sertões é a expressão de
desencanto de seu autor para com a república.
Sílvio Romero, quatro anos mais tarde, redesenhou-o com cores cruas e
apocalípticas. Por isto, o ano de 1906 constitui-se numa espécie de balanço
crítico do regime instituído em 1889 e reavaliado por Euclides em 1902 (p. 8). Quando
da eleição de Euclides da Cunha para a ABL, vale lembrar que Graça Aranha, que havia
publicado no mesmo ano de 1902 o seu Canaã,
livro por vários motivos antípoda de Os
sertões, sobretudo pela visão ufanista que apresenta do Brasil já sugerida
no título, fizera inicialmente campanha para o almirante Jaceguai, argumentando
junto a Machado de Assis, Joaquim Nabuco e José Veríssimo sobre a necessidade
de uma composição mais vasta do quadro social da instituição, defendendo seu
candidato “mais em termos de sua capacidade política e mundana que literária:
“É a Marinha, é a inteligência geral,
culta e agradável” (Azevedo, 2002, p.
108). Eclipsada, contudo, pela candidatura de Euclides, eleito afinal com o
voto do próprio Graça Aranha (aliás membro fundador da ABL sem que, àquela
altura, tivesse publicado qualquer livro), o almirante teve de esperar ainda
mais um ano para tornar-se imortal (Idem, ibidem).
Apesar da eleição de Euclides da Cunha para a ABL não representar
exatamente a vitória da maneira de encarar o Brasil nas suas ambigüidades, antagonismos
e conflitos sociais constitutivos formulada em seu livro, mais do que ilustrar
as disputas do pequeno mundo dos letrados, no entanto, o episódio parece
indicar a força social de Os sertões no
contexto intelectual brasileiro à época de sua publicação. E através dele, como
sugere José Leonardo do Nascimento, o descontentamento com a República por
parte expressiva de diferentes grupos sociais e intelectuais que, num momento
inicial, haviam- na apoiado de modo entusiástico (p. 8).
Embora assumam matizes diferenciados e não sejam poucas as variáveis que
nelas intervêm, as duas dimensões apontadas, a intelectual e a política, aparecem
quase sempre inter-relacionadas nas resenhas reunidas nesta antologia. Em
outras palavras, a afirmação ou a negação do caráter “científico” e/ou
“artístico” das formulações euclidianas, o peso da “ciência” ou da “arte”, da
“razão analítica” ou da “imaginação” na
configuração de Os Sertões
imbricam-se freqüentemente com a ratificação, rejeição ou mesmo condenação da
sua interpretação sobre o massacre de homens, mulheres e crianças no sertão da
Bahia e, particularmente, da atribuição de responsabilidades aos próprios sertanejos
ou antes ao exército brasileiro pela tragédia.
Tratam-se de pontos polêmicos, como se sabe. Tomemos dois exemplos
polares. Para o engenheiro militar José Maria Moreira Guimarães, como escreveu
no Correio da Manhã nos dias 3 e 4 de fevereiro e 4 e 7 de março de 1903,
[...] Os sertões é obra de imaginação: “...
ainda não se afirmou que esse belo trabalho é mais produto do poeta e do
artista que do observador e do filósofo. Por igual não se encontram nesse livro
as virtudes da imaginação e os atributos da reflexão” (p. 10).
Como observa Nascimento, se “Moreira Guimarães procura fundamentar esta
afirmação peremptória, por intermédio de uma análise interna da narrativa
euclidiana, das relações e significados dos conceitos empregados, relacionando
cerca de vinte críticas a Os sertões
e distinguindo, entre elas, um número expressivo de “contradições’”, seu parti pris
[...] é revelador do desconforto causado –
entre os oficiais do exército – pelas análises da campanha de Canudos feitas
pelo ex-tenente e ex-adido ao Estado Maior das forças combatentes no sertão da Bahia.
Guimarães fala em nome da República e do exército, ou para usar uma de suas
expressões, do “soldado [...] cidadão”, dedicado “à Pátria identificada com a
República” (pp. 10-11).
Nesse sentido, prossegue Nascimento, “Moreira Guimarães avalia
atentamente os pontos de vista expressos por Os sertões, demonstrando contradições nos seus argumentos, com a
finalidade de isentar a república da denúncia euclidiana do crime cometido nos
sertões” (pp. 11-12).
Já Sílvio Romero, interpreta Os
sertões [...] como um trabalho de sociologia
– não como obra exclusivamente literária ou como panfleto político – voltado
para a descrição da população de trabalhadores que sustenta materialmente,
segundo ele, os embevecimentos de uma elite chique, ociosa e disposta nas
magníficas cidades da franja litorânea brasileira (p. 12).
Ressalta Romero que [...] a
intelectualidade local, para exorcizar a denúncia que contém, definiu a obra
[Os sertões] como arte literária: [...] a crítica indígena [...] não vos
compreendeu cabalmente. Tomou o vosso livro por um produto meramente literário
[...]. Viu nele apenas as cintilações de estilo [...] considerou-o ao demais
como uma espécie de oposição política [...]. Vosso livro não é um produto de
literatura fácil, ou de politiquismos inquietos. É um sério e fundo estudo
social de nosso povo (p. 12).
Por isso com seu discurso, sugere Nascimento, Sílvio Romero [...] plantou [...] uma espécie de marco
extremo na crítica do regime republicano. O seu ponto de vista é radicalmente
distinto do de Moreira Guimarães e permite que se estabeleça entre um e outro,
de maneira nuançada, as visões diversas sobre a república que se exprimem
através da análise do livro de Euclides da Cunha e de suas teses sobre a campanha
de Canudos e a história do Brasil (p. 13).
Observa ainda Nascimento que Romero respondia, num certo sentido, ao
próprio Euclides que ao tomar posse na ABL [...] reafirmou o ponto de vista de
que a história brasileira é feita pelo alto ou pelas “cimalhas”. Euclides entendia
– e era este o significado desta imagem arquitetônica – que no Brasil o
ordenamento jurídico-político, avançado, modernizador, gerado pelas e nas
sociedades organizadas, acopla-se a uma nacionalidade informe. Romero procura completar
o argumento euclidiano. A elite reforma pelas “cimalhas” porque a ela não
importa modificar a constituição íntima da sociedade, por ser a grande
beneficiária das anomalias nacionais.
As reformas têm, portanto, um limite intransponível e visam garantir o domínio
de poucos sobre a imensa massa de trabalhadores e de despossuídos de toda casta
dispersos pelo país (pp. 12-13).
Confrontados e desencantados pela percepção de que a República fora em
muitos aspectos apenas uma reforma de Estado e que as inovações institucionais
e a liberalização jurídico-política ficaram circunscritas apenas à adaptação da
grande empresa agrária ao regime de trabalho livre e às relações de troca no
mercado que, ao menos em tese, elas pressupunham (Fernandes, 1965), Euclides da
Cunha e Sílvio Romero acabam, no entanto, sugere Nascimento, por relativizar [...]
as formas políticas conferindo peso e importância às transformações sociais. Um
“sociocratismo” caracteriza numerosos autores dessa geração que, para não
“fetichizarem” formas políticas, acabarão por concluir pela desimportância da
ação política. A quase despolitização do fenômeno canudense por Euclides da
Cunha [assevera Nascimento] [...] abriu,
quem sabe, a via “sociocrática”,
que
enaltece a transformação social, desclassifica a negociação política, critica
os poderes locais dos “senhores de baraço e cutelo”, insiste na centralização das
decisões e no seu caráter cientificamente avisado. Aspectos que farão escola no
Brasil do novecentos e que estarão na base de um pensamento propugnador da
centralização e claramente autocrático
(pp. 21-22).
Como os dois exemplos selecionados sugerem, os leitores, em geral, e os
especialistas na obra
euclidiana, em particular, encontrarão
em Juízos críticos: Os sertões e os
olhares da sua época material imprescindível para uma aproximação e/ou
reavaliação da recepção intelectual, social e política de Os sertões, como
também uma interpretação penetrante e fecunda desse processo no ensaio de José Leonardo
do Nascimento que abre o volume.
Incluindo-me na primeira categoria de leitores, constato que desde há
cem anos atrás a narrativa exemplar e polêmica do conflito de Canudos de
Euclides da Cunha, guardadas as devidas proporções, parece desempenhar, como o
“castigo” na ficção de Fiódor Dostoiévski1 ou a “pena” na sociologia de Emille Durkheim, um
papel expiatório na sociedade brasileira. É porque os livros não operam apenas
no plano intelectual, mas também no sociopolítico, enraizando-se nas consciências
e participando da organização dos grupos sociais e da sociedade como um todo.
Assim, parece que como Euclides ao escrevê-lo e seus contemporâneos ao
recebê-lo, prosseguiremos com Os sertões: campanha de Canudos para tentar
recompor, no plano simbólico, a fratura que o extermínio dos sertanejos criou
na sociedade brasileira em meio ao seu processo de modernização conservadora e
em nome da razão de Estado.
Razão de Estado, aliás, da qual o próprio Euclides se fizera
inicialmente porta voz e que já na “Nota preliminar” que abre Os sertões, para além
do cientificismo biológico dominante à época, parece querer se redimir ao afirmar:
“Gumplowicz, maior do que Hobbes”(Cunha, 1982, p. 7). Questão perene como se
sabe.
Crime e
expiação: a recepção de Os sertões de Euclides da Cunha
www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v19n54/a11v1954.pdf -
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