PRÉ-MODERNISMO: EUCLIDES DA CUNHA

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EUCLIDES DA CUNHA, OS SERTÕES E CANUDOS
Ana Cristina Venâncio da Silva, Júlia Schwarcz,
Maíra Landulfo, Maria Cecília Winter,
Tila Corazza T. Pinto & Ynaê  Lopes dos Santo

O MOMENTO
   Com a Revolução Industrial iniciada na Europa no século XIII, toda a civilização entrava em uma nova fase caracterizada pela utilização do aço, do petróleo e da eletricidade. O capitalismo se estrutura em moldes modernos com o surgimento de grandes complexos industriais. Ao mesmo tempo o avanço científico leva a novas descobertas nos campos da Física e da Química.
  A chamada 2ª Revolução Industrial cria uma demanda por matéria-prima e mercado consumidor ; é o imperialismo em ação. As influências das potências européias sobre os países de baixa renda se fortificam neste novo quadro.
   A crise de 1873, que provoca a falência de investidores nas metrópoles européias devido ao excesso de produção e/ou à escassez de mercado consumidor, aumenta o interesse de tais potências por países que já possuem alguma dependência econômica ou política (por exemplo a Austrália, ex-colônia da Inglaterra e os países da América Latina em geral). Essa forma de dependência o historiador Nicolau Sevcenko chamou de indirect rule:
“...as formas das relações que se estabeleceram entre as nações periféricas ao desenvolvimento industrial e os centros econômicos europeus, modeladas pela indirect rule do novo imperialismo, foram de natureza a dissolver-lhe as peculiaridades arcaicas e harmonizá-las com um padrão de homogeneidade internacional sintonizado com os modelos das matrizes do velho mundo. ”(SEVCENKO, 1981: 32)
   Foi através desta “regra indireta” que os centros capitalistas europeus estabeleceram seus padrões de vida como padrões universais, atingindo principalmente suas áreas de influência da periferia do sistema. Os avanços tecnológicos e científicos também dão margem à posturas ideológicas como o Positivismo de Auguste Comte e o Socialismo Científico de Marx e Engels, que define o modo de produção da vida material como agente condicionador do processo de vida social, político e intelectual em geral. O Socialismo Científico era assim chamado porque não procurava construir abstratamente uma sociedade ideal mas, baseando-se na análise das realidades econômicas, da evolução histórica e do capitalismo, formula leis e princípios determinantes da História em direção a uma sociedade sem classes e igualitária. O Evolucionismo de Charles Darwin também é incorporado neste quadro; em seu livro A Origem das Espécies de 1859, Darwin expõe seus estudos sobre a evolução das espécies pelo processo de seleção natural, negando portanto a origem divina defendida pelo Cristianismo.
   Com a expansão do capitalismo, difundiram-se também estas idéias nascidas na Europa, o abalo desta influência sobre as sociedades tradicionais foi gritante, especialmente em países da periferia do sistema, como a Argélia com o Levante Argelino de 1871, o Egito com o Movimento Nacional Egípcio de 1879-1882, e o Brasil com a Guerra do Paraguai de 1864-1870 que abalou os ideais conservadores.
   O Brasil do final do século XIX foi marcado por inúmeras agitações sociais, desde movimentos separatistas como a Confederação do Equador, agitações abolicionistas, a própria abolição e até a República. O maior centro populacional do país, o Rio de Janeiro, também era considerado um grande centro comercial por intermediar os recursos da economia cafeeira, a capital inicia o século XX em uma situação realmente excepcional. A cidade era um espaço de confluência cultural e econômica que se comunicava com todo o país e acumulava recursos no comércio, nas finanças e já também nas aplicações industriais.
   Ao mesmo tempo, com o processo de abolição e com a vinda de imigrantes, a cidade passava por uma superlotação, que demandava capital móvel para fazer o pagamento dos trabalhadores, agora livres. O então ministro da Fazenda, Rui Barbosa, dá início à um processo de incentivo às atividades nas bolsa de valores, foi o chamado Encilhamento. Este processo causou uma confusão maior ainda na cidade, pois fortunas mudavam de mãos, dizia-se que “o rico de hoje era o tintureiro de ontem”, não se sabia mais quem possuía poder político ou econômico. Adiciona-se a essa confusão, a enorme e sempre crescente população da cidade que passou a se instalar em casarões formando cortiços e verdadeiros “ântros de promiscuidade”.
   Sob a influência das ideologias européias, o Estado brasileiro inicia o processo de Regeneração do Rio de Janeiro, que tem como objetivo “higienizar” a cidade, mandando a população pobre para a periferia (dando origem às favelas), e procurando construir uma imagem moderna para a capital do país. A Regeneração foi financiada por investidores estrangeiros que se aproveitavam da indirec rule, característica dominante no país. Além disso a modernização da cidade facilitaria o espaço de fluxo de matéria-prima aos portos brasileiros, e assim, facilitaria a ação do imperialismo.
   Na República, “confrontavam-se” Liberais, que se representavam basicamente pela elite paulista influenciada pelo cosmopolitismo progressista internacional e os Conservadores representados pela  vanguarda republicana, positivista e militar, influenciada por estigmas de intolerância e isolamento. Na prática, os ideais destes dois grupos são indiferenciáveis: “nada mais conservador do que um liberal no poder”, a República dos Conselheiros se dava então, com o revezamento da gestão das duas classes. O texto de Machado de Assis, Esaú e Jacó ilustra bem a “política de acordos” característica marcante no Brasil de então. É neste complexo quadro que se dá a formação de Euclides da Cunha, ele, como muitos de seus contemporâneos sofreu as influências desta sociedade caótica e das ideologias vindas de além mar.

O CONTEXTO
   Para que consigamos compreender a obra de Euclides da Cunha de uma forma mais completa, é estritamente necessário que façamos um breve parênteses, e olhemos quais eram essas “tão famosas” idéias cientificistas, positivistas e deterministas que influenciaram o autor, ou seja: vamos buscar as fontes nas quais Euclides da Cunha “bebeu”. Tentar enquadrá-lo no contexto histórico-intelectual em que viveu.
   Antes de mais nada, é importante relembrarmos que o continente Americano, mais conhecido como Novo Mundo, sempre povoou o imaginário  europeu. Exemplos clássicos, são o mito do “bom Selvagem” de Rousseau (uma espécie de herança do ideais da Revolução Francesa), onde o autor defendia a maior perfectibilidade do homem americano ( nativo), por ter se conservado no seu estado natural. Outro exemplo são as idéias de Buffon e De Pauw, que contrariamente a Rousseau, viam os americanos como degradados, imaturos e decaídos.(SCHWARCZ, 1993:45)
   Mas tal discussão não se finda no séc. XVIII.  No século seguinte ela ganha ainda mais amplitude, entrando no campo de ciência - que na época ganha  o status de ser a única e verdadeira forma de se ver e pensar o mundo. E dentro desse contexto cientificistas, George Cuvier introduz o termo raça - mostrando a existência da herança de caracteres físicos permanentes  entre os vários grupos humanos (SCHWARCZ, 1993:47) - que, consequentemente irá se confrontar com os ideais igualitários da Revolução Francesa, principalmente porque, a partir de então, o termo raça, estará vinculado a outro: cidadania.
   Ao ser legitimada, algumas das principais  questões que a ciência irá estudar são a origem e diversidade da humanidade - tendo sempre em vista uma resposta absoluta e verdadeira. E o principal debate sobre essa questão se dará entre os monogenistas e poligenistas. Enquanto os primeiros consideravam que todo homem tinha a mesma origem e que as diferenças entre eles era resultado de uma maior ou menor proximidade do Éden (teoria difundida pela Igreja Cristã), os poligenistas, que baseados em recentes estudos de cunho biológico, acreditavam que haviam diversos núcleos de produção correspondentes aos diferentes grupos humanos(SCHWARCZ, 1993: 47). Conseqüentes a esse debate, surgiram no séc. XIX disciplinas e sociedades não só divergentes como rivais. Exemplos claros será o surgimento de  antropologia criminal, que considerava que a criminalidade era algo genético, a frenologia e a antropometria, que calculavam a capacidade humana de acordo com o tamanho do cérebro de indivíduo estudado dos diferentes grupos humanos, a craniologia, estudo do crânio, dentre outros.
   Entretanto o debate tomará novo fôlego com a publicação do livro A Origem das Espécies de Charles Darwin em 1859. A partir de então o termo raça ultrapassará o campo da biologia, se estendendo às discussões culturais e políticas, além de imprimir o conceito de evolução às duas visões descritas acima, que muitas vezes irão desvirtuar ou “adaptar” as teorias darwinistas no que lhes fosse mais conveniente.
   Os adeptos do poligenismo são os que melhor realizam  essa “adaptação” das teorias de Darwin e acabam tendo seus ideais mais difundidos em relação ao seus rivais monogenistas (é importante frisar que nesse mesmo momento os dogmas da Igreja estavam sendo questionados pelos cientistas). Exemplos disso são a sociologia evolutiva de Spencer e a história determinista de Buckle e até mesmo o sentimento do “Imperialismo Europeu” que se instala nesse momento.
   A espécie humana passa a ser tratada como gênero humano e suas diferenças culturais são classificadas como diferenças entre espécies: o Homem é dividido e hierarquizado por suas diferenças; e quanto mais longe uma “espécie” se manter da outra melhor para todos.  Mas surge um problema: o que fazer então com os grupos miscigenados? A maior parte dos estudiosos e cientistas europeus e norte americanos como Broca, Gobineau e Le Bom, consideravam a miscigenação um erro, uma quebra das leis naturais, uma subversão do sistema. Segundo Lilia M. Schwarcz: “Os mestiços exemplificavam, segundo essa última interpretação, a diferença fundamental entre as raças e personificavam a ‘degeneração’ que poderia advir do cruzamento de espécies diversas”.(SCHWARCZ, 1993: 56)
   Frente a todo esse impacto causado pela publicação de Charles Darwin, outras disciplinas- ainda vinculadas às duas visões sobre a origem e diferença do Homem- irão surgir. Dentre elas, algumas se destacam: a Antropologia cultural ou Etnologia Social que restitui a idéia de que a humanidade tinha apenas uma origem e sua diferença era proveniente do processo evolutivo que ela estava fadada a passar e tinha como seus principais defensores: Morgan, Tylor e Frazer, chamada de escola evolucionista.
   Numa perspectiva mais vinculada ao poligenismo, aparece a escola determinista geográfica de Ratzel e Buckle que afirmavam que o desenvolvimento ou não de uma nação estava totalmente condicionada pelo meio físico. Houve também outra escola determinista conhecida como “darwinismo social” ou “teoria das raças”, que considerava a miscigenação algo negativo, já que não acreditava que as características adquiridas não eram transmitidas, ou seja: as raças eram imutáveis. Tal escola acreditava na existência de três raças bem distantes, o que invalidava a mestiçagem. O mundo dividido culturalmente era conseqüência da divisão de raças, e havia a raça superior. Muitos autores acreditavam nesse ideais como: Le Bom que achava que o “gênero” humano compreendia espécies de diferentes origens. Taine que considerava o indivíduo resultante direto de seu grupo construtor e que raça e nação são sinônimos. Renase que acreditava na existência e hierarquização das três raças. E por fim Gobineau que afirmava que o resultara da mistura era sempre um dano.(SCHWARCZ, 1993: 56)
   Essas premissas da escola determinista, principalmente a que defendia a existência de uma raça superior, serviram de base para um movimento que existe até hoje: a Eugenia, que acreditava que só haveria progresso nas sociedades puras, apenas uma raça estava fadada à perfectibilidade, a raça ariana e a humanidade estava dividida em espécies: a miscigenação se torna algo  irracional, contra todas as “leis naturais”.   A Europa e os E.U.A. . difundiram essas idéias pelo mundo, e elas irão influenciar escritores e pensadores de toda parte.
   Os europeus acreditavam que compunham um grupo humano puro, livre de hibridização, muito mais perto da perfectibilidade e justamente por isso era o responsável pela civilização dos demais grupos - argumento que justifica e legitima tanto a colonização americana como o “Imperialismo Europeu”, o fardo do homem branco.
   Já os norte-americanos, mesmo tendo sido colônias da Europa, comprovaram seu desenvolvimento, principalmente por terem evitado a miscigenação entre o branco dominador e o negro escravo.  E tudo o que foi dito acima serve de justificativa para que o debate da mestiçagem se dê de forma muito menos complexa nesses lugares. No Brasil, como no restante da América Latina, o mesmo não ocorre, a miscigenação é um fato. E mais do que um fato, ela vai se tornar um obstáculo, quando estudiosos e até mesmo cientistas (tanto nacionais como estrangeiros) forem analisar o território brasileiro em busca de uma identidade nacional. O Brasil se tornara uma espécie de laboratório vivo, onde cientistas procuraram comprovar na prática o que compuseram, e onde “ilustrados” brasileiros buscaram desesperadamente uma unidade, uma homogeneidade para definir o povo brasileiro, tendo como principal fonte de estudo , a ciência do séc. XIX descrita acima.

A VIDA
   Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu em Cantagalo, Rio de Janeiro, no dia 20 de janeiro de 1866. Foi criado pelos parentes, pois  sua mãe morreu quando ele tinha três anos.
   Após concluído o ginásio, ingressou na Escola Politécnica, para cursar engenharia. Devido às dificuldades financeiras, Euclides teve que largar o curso, e transferiu-se para Escola Militar da Praia Vermelha. Lá, reencontrou Benjamim Constant, seu antigo professor no Colégio Aquino, e de quem   absorveria idéias positivista e republicanas.
   Já identificado com os princípios republicanos, Euclides da Cunha cometeu um ato de insubmissão contra a Monarquia, quando cadete na fortaleza da Praia Vermelha: durante a visita do ministro da Guerra do Império, o conselheiro Tomás Coelho, atirou seu sabre aos pés deste, num gesto de contestação ao regime. Foi expulso do Exército por indisciplina.
   Mudou-se para São Paulo e começou a escrever no jornal “A Província de São Paulo” (futuro “Estado de São Paulo”, após  a proclamação da República). Com a vitória republicana, voltou ao  Exército e concluiu a Escola  Militar, formando-se em Engenharia com bacharelado em Matemática e Ciências Físicas e Naturais.
   Em 1894, foi praticamente exilado (dão-lhe a incumbência de dirigir a construção de um quartel na cidade  mineira de Campanha) por assumir posição antiflorianista. De lá, voltou para São Paulo para escrever no “Estado de São Paulo”.
    Em 1897, Euclides foi mandado para Canudos pelo jornal como correspondente para reportar os eventos que lá ocorriam. Enviou uma série de artigos que, futuramente, dariam origem ao “Os Sertões”. O livro foi concluído em São José do Rio Pardo, onde morou até 1901.
    “Os Sertões” alcançam repercussão nacional, permitindo a Euclides ingressar no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e na Academia Brasileira de Letras. Nada disso fez com que Euclides tivesse sua vida mais facilitada. Continuou com a Engenharia, com momentos de desemprego, enfrentando dificuldades financeiras.
   Em 1909, ingressa no Colégio PedroII, no Rio de Janeiro, para ministrar a cadeira de Lógica. No mesmo ano é assassinado pelo amante de sua mulher, Ana de Assis, durante uma troca de tiros. Morre com 43 anos de idade. Ensaísta e narrador extraordinário de Os sertões, Euclides da Cunha é o primeiro escritor a encarnar o gigantismo da terra brasileira, fazendo de sua obra um dos principais alicerces da consciência nacional.

A OBRA
1) CONTRASTES E CONFRONTOS, 1907. Coletânea de artigos saídos na imprensa
2) PERU X BOLÍVIA,1907. Estudo técnico sobre o litígio fronteiriço entre esses dois países andinos. Através de material técnico e histórico, Euclides mostra os erros que terminaram por orientar a delimitação territorial entre Peru e Bolívia.
3) À MARGEM DA HISTÓRIA,1909. Obra publicada após a morte de Euclides também reunindo artigos saídos na imprensa.
4) CADERNETA DE CAMPO,1975
5) CANUDOS, DIÁRIO DE UMA EXPEDIÇÃO, 1939.
   Ambos os livros foram organizados valendo-se de textos que Euclides publicou no “Estado de São Paulo” entre Agosto e Setembro de 1897. Mostra como, ao produzir “Os Sertões”, Euclides retrabalhou seus escritos anteriores.

A CIÊNCIA E O PAÍS
   A historiografia das ciências no Brasil é caracterizada pelo fato de considerar a criação das universidades na década de 30 do século XX como sendo a introdução da ciência no Brasil. A prática científica nos períodos anteriores a essa data é geralmente considerada como resultado da influência européia, não passando de mera repetição e copias das teorias vigentes na Europa.
   Não acreditamos que todo o trabalho intelectual brasileiro desde meados do século XIX possa ser considerado simples imitação, já que isso significaria "cair em certo reducionismo, deixando de lado a atuação de intelectuais reconhecidos na época, e mesmo desconhecer a importância de um momento em que a correlação entre a produção cientifica e o movimento social aparece de forma bastante evidenciada."(SCHWARCZ, 1993: 17)
   No caso das teorias raciais parece ainda mais improvável a hipótese delas terem sido "importadas" e reproduzidas aleatoriamente no Brasil. Elas podiam trazer uma sensação de proximidade com a Europa e uma confiança no progresso e na civilização, "pareciam justificar cientificamente organizações e hierarquias tradicionais que pela primeira vez começavam a ser colocadas publicamente em questão"(SCHWARCZ, 1993: 18), mas também traziam um enorme mal estar. Como encarar a interpretação pessimista da mestiçagem presente nessas teorias num país já tão miscigenado?
   Aceitar, copiar e reproduzir essas teorias no Brasil iria inviabilizar um projeto de construção nacional que mal tinha começado. Os homens de ciência brasileiros tiveram que achar uma resposta original, adaptando essas teorias utilizando o que combinava e descartando o que era problemático para a construção de um argumento racial no país. Esses homens são encontrados nos grupos de intelectuais reunidos nos diversos institutos de pesquisa e "longe de conformarem um grupo homogêneo (...) estes intelectuais guardavam, porém, certa identidade que os unia: a representação comum de que os espaço científicos dos quais participavam lhes davam legitimidade para discutir e apontar os impasses e perspectivas que se apresentavam para o país"(SCHWARCZ, 1993: 37).
  A ciência era para esses homens o único caminho possível para as transformações e sobrevivência do Brasil. A vertente cientificista buscava encontrar as leis que organizavam a sociedade brasileira, que determinavam a formação do gênio, do espírito e do caráter do povo. Segundo essa mesma vertente, recorrendo à leis e métodos gerais, seria possível encontrar as especificidades da evolução brasileira e, assim, deduzir seu rumo. Como apontou Sevcenko essa atitude seria "uma versão desdobrada do lema lapidar do positivismo: 'Prever para Prover"(SEVCENKO, 1981: 103).
   A necessidade de conhecer o Brasil também estava calcada no medo que muitos dessa geração tinham de que o país fosse invadido pelas potências expansionistas e viesse a perder autonomia ou parte do território. O próprio Euclides da Cunha pregava a necessidade da colonização do interior e a construção de uma rede interna de comunicação viária.
   Essa atitude reformista e salvacionista pretendia criar um saber próprio sobre o Brasil nos seus mais diferentes aspectos e resultava em duas reações da comunidade científica. A primeira era acreditar no curso natural dos acontecimentos, sublimando as dificuldades presentes e transformando a sensação de inferioridade em um mito de superioridade. A segunda era buscar um conhecimento profundo do país para descobrir um certa ordem no caos presente.
   Acreditamos que Euclides da Cunha esteja no segundo grupo, não só porque em momento algum aponta o embranquecimento natural da população, mas, principalmente pelas suas tentativas de determinar um tipo ético representativo da nacionalidade ou, pelo menos, simbólico dela.

Euclides da Cunha e a comunidade científica
    Na obra de Euclides da Cunha podemos perceber a influência de várias teorias que estavam em voga na época e, por isso, temos que entender como ele entrou em contato com elas. O regulamento implantado em 1874 na Escola Militar da Praia Vermelha, onde Euclides da Cunha realizou seus estudos de engenharia, foi implantado num "ambiente intelectual já permeável às doutrinas cientificistas, de cunho positivista, evolucionista ou determinista."(SANTANA: 35)
   Por adotar o modelo francês uma das principais características da Escola Militar era a ênfase dada aos estudos matemáticos e um currículo que abrangia as ciências básicas para a formação de um engenheiro. Segundo Walnice Galvão, o estudo na Escola Militar foi muito importante para o conhecimento presente nos Sertões, "se compararmos as áreas de conhecimento que lá são mobilizadas com o currículo da Escola quando ele era aluno, verificamos que ele já estava familiarizado com boa parte delas. Tinha estudado na Escola química orgânica, mineralogia, geologia, botânica, arquitetura civil e militar, construção de estradas, desenho topográfico, ótica, astronomia, geodésia, administração militar, tática e estratégia, história militar, balística, mecânica racional, tecnologia militar e as matemáticas.(...) Como matérias de currículo, não teriam sido obrigatoriamente estudadas a fundo, conforme se percebe no livro, mas é com vistas afinadas para estes saberes que Euclides avalia Canudos e a guerra."(SANTANA: 43)
   Como podemos explicar então o fato de teorias não necessariamente ligadas com a engenharia estarem presentes na obra de Euclides da Cunha, já que como afirma Sevcenko, ele se utiliza de "bases genéricas do comtismo, para fundi-las com a sociologia organicista e a filosofias biossociais de cunhagem inglesa e alemã"(SEVCENKO, 1981: 149). O contato com as correntes cientificistas não se davam exclusivamente via sala de aula, mas "incorporadas ao cotidiano dos alunos através de revista e sessões de sociedades estudantis, onde se poderiam acompanhar os debates das teorias cientificistas mais modernas, como as de Spencer, Haeckel e Darwin."(SANTANA: 35)
   Depois de formado, Euclides da Cunha continua em contato com os escritos desses autores e também passa a ler escritos sobre o Brasil, como as obras de Varnhagem, Morize, Caminhoá, Silvio Romero, Capistrano de Abreu, Teodoro Sampaio, Derby, Saint-Hilaire, Liais. Em São Paulo, Euclides da Cunha encontra alguns desses novos autores que foram contratados para trabalhar nas recém implantadas instituições, das quais são exemplos: a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (1886), o Instituto Agronômico de Campinas (1887), o Instituto Bacteriológico de São Paulo (1892), a Escola Politécnica de São Paulo (1893) e o Museu Paulista (1894).
   Euclides da Cunha era um integrante dessa comunidade científica e, apesar de só entrar para o IHGB depois de escrever os Sertões, já era filiado ao IHSP desde 1897 e à Comissão de História e Estatística de São Paulo desde 1898. Estes eram os espaços que permitiam a relação entre os filiados e as outras instituições e, principalmente, a difusão dos trabalhos dos pesquisadores.

O LIVRO
    A divisão interna da obra é fruto da influência sofrida por Euclides do historiador francês Taine, o qual formulou no seu livro “Histoire de la Littérature Anglaise(1863)”, a concepção naturalista da história – teoria  que defendia que a história é determinada por três fatores: meio, raça e momento. Tal concepção naturalista foi seguida pelo autor ao dividir  “Os Sertões” em três partes correspondentes aos fatores de Taine: “A Terra”, “O Homem” e “A Luta” . É também do historiador francês a citação que consta na nota preliminar do livro a qual traz a idéia que o “narrador sincero” deveria ser capaz de se sentir um bárbaro entre os bárbaros, com um antigo entre os antigos.
   No plano interpretativo, o professor Alfredo Bosi propõe a divisão da obra em dois grandes planos: primeiro o plano histórico, que corresponde a parte final do livro  – “ A  Luta” – , sendo que este é seguido pelo plano interpretativo que, por sua vez, corresponde às duas divisões iniciais do mesmo (“A Terra” e  “O Homem”). O momento histórico se reflete na obra tanto na estrutura determinista (que defende que os estudos devem partir dos aspectos geológicos, passando para detecção das variações climáticas para finalmente chegar ao último elo da cadeia que é o homem) quanto no raciocínio homólogo entre as ciências, onde verificamos a transposição de idéias da biologia e geologia para a explicação dos fenômenos humanos.
   Como pudemos observar ao longo do presente trabalho, Euclides da Cunha era, em poucas palavras, um engenheiro militar, republicano, positivista que viveu na segunda metade do século XIX em um país culturalmente preso à França; e é com esse indivíduo que devemos nos dialogar durante a leitura desta obra. Até agora, nos detemos em fazer uma análise do momento, do contexto, da vida, da ciência no Brasil, que envolveram o autor e sua obra, pois acreditamos que esse é o instrumental teórico necessário para analisar um texto de tão profundo impacto quanto “Os Sertões”. Uma leitura que eventualmente não atente para estes detalhes pode deixar de observar a importância desta obra, ou então, cometendo um anacronismo imensurável, taxá-la de racista.

Passemos agora ao texto e suas características principais.
   A “Nota Preliminar” da obra mostra, de uma maneira resumida, qual é o instrumental teórico do autor. Quando Euclides usa  termos como “sub-raça sertaneja”, ele admite ser adepto tanto do determinismo biológico quanto do darwinismo social. A marcha da civilização avançaria inexoravelmente sobre o sertão “no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes” (GALVÃO, 1998: 14), porém, a Campanha de Canudos constituía em um retrocesso, um crime. Este é  o primeiro grande contraste de uma obra cheia deles: os homens desenvolvidos do sul e do litoral que deveriam civilizar a sub-raça que vivia isolada na “terra ignota” do interior, leva na verdade a morte para homens, mulheres, velhos e crianças.

O PLANO INTERPRETATIVO
   As características de topógrafo, engenheiro e geógrafo, colocam em destaque a riqueza técnica e a sensibilidade do autor na descrição das várias paisagens do Brasil. Um exemplo dos conhecimentos técnicos é quando o mesmo explica a sazonalidade e a previsibilidade das secas do nordeste. Neste trecho fica demonstrado que o autor não só descreve como problematiza as  questões climáticas porque tem conhecimento de causa.
    “Como quer que seja, o penoso regime dos estados do Norte está em função de agentes desordenados e fugitivos, sem leis ainda definidas, sujeita às perturbações locais, derivadas da natureza da terra. Daí as correntes aéreas que o desequilíbram. (...)Um dos motivos da seca repousa, assim, na disposição topográfica.(GALVÃO, 1998: 43)
   O sertão é tão inóspito que até a natureza se contorce para ali viver. E como a natureza também o homem se modifica e se adapta a ela.
   Euclides denuncia de certa forma o fato desta área ser muito mal estudada, e, até nessa questão, culpa a natureza por isso. O sertão e o sertanejo são algo nunca dantes entendidos e estudados e isto é um dos fatores que fizeram de sua obra tão lida e tão comentada na época.
   As comparações entre o sul e o norte mostram que desde o início da obra Euclides tem como objetivo mostrar como que, através do determinismo geográfico, se formou  uma sub-raça mestiça no sertão. O sul seria a terra que atraí o homem e o norte a que expulsa, como podemos ver nos trechos abaixo:
   “E por mais inexperto que seja o observador – ao deixar as perspectivas majestosas, que se desdobram ao Sul, trocando-as pelos cenários emocionantes daquela natureza torturada, tem a impressão persistente de calcar fundo recém-sublevado de um mar extinto, tendo ainda estereotipada naquelas camadas rígidas a agitação das ondas voragens”(GALVÃO, 1998: 29)
    “ Ora, estas largas divisões, apenas esboçadas, mostram já uma essencial entre o Sul e o Norte, absolutamente distintos pelo regime meteorológico, pela disposição da terra e pela transição variável entre o sertão e a costa.”(GALVÃO, 1998: 74)
   A partir de tais comparações o autor toma como certeza que a aclimatação dos indivíduos seria prejudicial para o desenvolvimento dos mesmo. O europeu do que colonizou o Norte teria sido corrompido pelo clima, já o do sul teria mantido as características superiores pela mesma razão.
    “A aclimatação traduz um evolução regressiva. O tipo desaparece num esvaecimento contínuo, que se lhe permite a descendência até à extinção total. Como o inglês nas Barbadas, na Tasmânia ou na Austrália, o português no Amazonas, se foge ao cruzamento, no fim de poucas gerações tem alterados os caracteres físicos e morais de uma maneira profunda, desde a tez, que se acobreia pelos sóis e pela eliminação incompleta do carbono, ao temperamento, que se debilita despido das qualidades primitivas. A raça inferior, o selvagem bronco, domina-o; aliado ao meio vence-o, esmaga-o, anula-o na concorrência formidável ao impaludismo, ao hepatismo, às pirexias esgotantes, às canículas abrasadoras, e aos alagadiços maleitosos.”(GALVÃO, 1998: 79)
    Neste trecho temos em resumo a idéia do porquê que o autor descreve tão detalhadamente a terra. São as teorias deterministas, tanto biológicas quanto geográficas, que o norteam. O homem é um fruto de seu lugar. Para o Euclides que escreve antes de ver pessoalmente o desmonte criminoso do arraial de Canudos, as leis européias são as máximas vigentes.
    Os tipos brasileiros, como o sertanejo e o gaúcho, resultaram não só da mestiçagem mas também da interação entre homem e natureza, homem e sociedade. Continua a operar o paralelo entre as séries, especialmente entre as mais próximas: as espécies de plantas e de animais devem a sua anatomia e fisiologia tanto à herança quanto a seculares esforços de adaptação ao meio e aos outros organismos. A simetria, que se dá por provada no nível genético e no nível mesológico, estendendo-se ao social. E os caracteres raciais ora confirmam-se ora se alteram no curso histórico da luta pela vida.
    A descrição geográfica da região onde se instala o “Belo Monte” de Conselheiro, é detalhada, o que dá à obra uma característica própria do autor. O clima, o solo, os ventos, as chuvas, a temperatura, os animais e o homem, tudo é descrito não só apenas por um observador atento mas por um cientista natural.
    O sertão é a terra esquecida pela metrópole portuguesa e posteriormente pela monarquia brasileira. Nela se formou isolada geograficamente um povo mestiço que se diferenciou dos mestiços litorâneos, para melhor, em razão do próprio isolamento no qual se mantiveram. Não podemos esquecer que “o sertanejo é antes de tudo um forte” porque não é como “os mestiços neurastênicos do litoral”. Eis, então, outro grande contraste que permeia toda a obra de Euclides da Cunha. Mas antes de mais nada, o autor reforça que toda “a mestiçagem extremada é um retrocesso”, o que vai de encontro com as teorias vigentes. Nessa época, dizer que o homem branco não superior à qualquer tipo de mestiçagem é uma ofensa a uma lei que até então era inquestionável.
   “Porque ali ficaram, inteiramente divorciados do resto do Brasil e do mundo, murados a leste pela Serra Geral, tolhidos no ocidente pelos amplos campos gerais, que se desatam para o Piauí e que ainda hoje o sertanejo acredita sem fins. O meio atraía-o e guardava-os.”(GALVÃO, 1998: 190)
   "O abandono em que jazeram teve função benéfica. Libertou-os da adaptação penosíssima a um estádio social superior, e simultaneamente, evitou que descambassem para as aberrações e vícios dos meios adiantados”(GALVÃO, 1998: 103)
    Eis porque o sertanejo leva vantagem sobre o mestiço do litoral. O primeiro permaneceu isolado enquanto o segundo teve que forçosamente se submeter às regras dos indivíduos superiores.
     Para ilustrar a idéia de que o sertanejo é um forte, Euclides da Cunha cria a metáfora da rocha viva. Como vimos na época que escreveu os Sertões Euclides estava em São José para reconstruir um ponte que havia tombado, ele acaba encontrando uma base muito firme para essa reconstrução: o granito. A partir daí desenvolve uma correlação entre a pedra e o homem do sertão.
    Respondendo à criticas de que essa metáfora entrava em contradição com sua afirmação da inexistência da unidade racial brasileira o próprio Euclides explica-a numa segunda edição do livro. "Rocha viva...A locução sugere-me um símile eloquente.
    De fato,  a nossa formação como a do granito surge de três elementos principais  . Entretanto quem ascende por um cerro granítico encontra os mais diversos elementos: aqui a argila pura do feldspato decomposto, variamente colorida; além da mica fracionada, rebrilhando escassamente sobre o chão; adiante friável, do quartzo triturado; mais longe o bloco moutnné, de aparência errática; de e por toda a banda a mistura desses mesmos elementos com a adição de outros, adventicios, formando a incaracterístico solo arável, altamente complexo. Ao fundo, porém, removida a camada superficial, está o núcleo compacto e rijo da pedra. Os elementos esparsos, em cima, nas mais diversas misturas, porque o solo exposto guarda até os materiais estranhos trazidos pelo vento, ali estão, embaixo, fixos numa dosagem segura, e resistentes, e íntegros.
   Assim, à medida que aprofunda, o observador se aproxima da matriz de todo definida no local. Ora o nosso caso é idêntico - desde que sigamos das cidades do litoral para os vilarejos do sertão.
   A principio uma dispersão estonteadora de atributos, que vão de todas as nuances da cor a todos os aspectos do caráter: “Não há distinguir-se o brasileiro intrincado misto de brancos, negros e mulatos de todos os sangues e de todos os matizes. Estamos à superfície da nossa gens, ou melhor, seguindo à letra a comparação de há pouco, calcamos o húmos indefinido da nossa raça. Mas estranhando-nos na terra vemos os primeiros grupos fixos  - o caipira no sul, e o tabaréu, ao norte - onde já se tornam raros o branco, o negro e o índio puros. A mestiçagem generalizada produz, entretanto, ainda todas as variedades das dosagens díspares dos cruzamentos. Mas a medida que prosseguimos estas últimas se atenuam. Vai-se notando maior uniformidade nos caracteres físicos e morais. Por fim a rocha viva - o sertanejo"(CUNHA, 1939: 580)
     Euclides da Cunha não encontra o tipo brasileiro, que segundo ele próprio talvez nem exista, mas estabelece um símbolo da nacionalidade,  símbolo que podia se prestar "a operar como um eixo sólido que centrasse, dirigisse e organizasse as reflexões desnorteadas sobre a realidade nacional."(SEVCENKO, 1981: 106)
    Igualmente importantes são as descrições do tipo de vida e dos costumes sertanejos. Euclides mostra, à seu modo, como esses homens simples vivem, as suas relações com os animais e coma a natureza local, bem como o seu fanatismo religioso, seu respeito á morte, sua “psique” de uma forma geral.
    “O homem dos sertões – pelo que esboçamos – mais do que qualquer outro está em função imediata da terra. É uma variável dependente no jogar dos elementos. Da consciência da fraqueza, para os debelar, resulta, mais forte, este apelar constante para o maravilhoso, esta condição inferior de pupilo estúpido da divindade. Em paragens mais benéficas a necessidade de um tutela sobrenatural não seria tão imperiosa”(GALVÃO, 1998: 126)
    Antônio Conselheiro é mostrado como um indivíduo marcado por uma  biografia dotada de elementos sobrenaturais. Carismático e penitente, o profeta conseguiu reunir muitos sertanejos de fé extremada. O povoado é descrito como se constituísse um agrupamento de bárbaros, uma tribo e até mesmo um clã. O autor dá considerável destaque para o fator que chegado certo tempo, todo o tipo de gente se dirige para Canudos o que causou um despovoamento das cidades vizinhas. Porém uma vez dentro do arraial, os diferentes se tornavam iguais e a coletividade de homogeinizava de uma forma que surpreendente.
   “O sertanejo simples transmudava-se, penetrando-o, no fanático destemeroso bruto. Absorvia-o a psicose coletiva”(GALVÃO, 1998: 163)
    Em linhas gerais, podemos definir esta parte do livro, o plano interpretativo  de  Bosi, a partir dos contrastes nela enunciados. São eles os travados entre a região sul e norte do Brasil, entre o litoral e o sertão nordestino, entre o sertão seco (infernal) e o sertão depois da chuvas (padisíaco) e finalmente entre o mestiço do sertão – curiboca – e o mestiço do litoral – mulato.
    As descrições ricamente cheias de detalhes preparam o leitor para o plano histórico onde os fatos de desencadearão. Mais do que saber o que foi a Campanha, Euclides da Cunha nos oferece a partir de seu livro um “raio x” do sertão e do sertanejo como nunca fora antes feito. O leitor vai para “A Luta” sabendo quem e como vivem os atores deste triste episódio da história brasileira.

O FINAL
   É importante pensar no mito que se criou em torno tanto do autor, quanto da obra. Existe ainda hoje uma relação passional com a figura de Euclides: duas cidades brigam para decidir aonde vão ficar seus restos mortais – São José do Rio Pardo, aonde escreveu o livro e Cantagalo, hoje também conhecida como Euclidolândia, aonde nasceu. O livro, publicado cinco anos após o fim de Canudos, mesmo sendo um ataque ao exército e uma denúncia do genocídio causado pela República, é um sucesso e vende muito assim que publicado. Criador e criatura viram ícones. Mas para entender a criação deste mito, é preciso ver que este é um quebra-cabeça de várias partes.
   O próprio Dante Moreira Leite, justifica a importância e repercussão do livro por sua linguagem.
   “Se assim é, se a obra de Euclides da Cunha apresenta contradições tão nítidas – algumas das quais foram percebidas pelos primeiros leitores e críticos – pode-se perguntar como pôde ter uma repercussão tão grande. Esta não será compreendida se não lembrarmos o seu valor literário; embora não seja livro fácil, nem destinado a uma leitura desatenta, Os Sertões contém elementos de intensa dramaticidade, apresentados numa linguagem solene e adequada à grandeza da narrativa”. (LEITE, 1983:229)
   Talvez o que mais marcou sua vida, tanto quanto sua obra, foi a sua viagem a Canudos. Euclides era um cientificista, dentre muitas outras coisas, que vivia em uma época em que não se “ia à luta”. Teóricos trabalhavam apenas sobre livros, mas Euclides vai a Canudos e suas idéias ganham dinâmica. Dante Moreira Leite analisa como tal experiência repercutiu em uma linguagem muito mais realista e vibrante:
   “(...) o estilo de Euclides, capaz de transmitir ao leitor a vibração de revolta diante dos acontecimentos de Canudos; além disso, como o livro pretende ser estritamente realista e, mais ainda, um livro de ciência, a sua prosa dramática adquire, talvez por estar contida nos limites da realidade histórica, uma intensidade que não teria na ficção.” (LEITE, 1983:222)
   Muitas de suas concepções são alteradas. Diversas vezes, Canudos é associado ao movimento francês da Vendéia – como aparece : “Canudos era a nossa Vendéia” – sendo visto como um movimento monarquista por Euclides. Mas, “o contato direto com as condições físicas e morais do sertanejo”(BOSI) , como defende Bosi, acabou por desmentir o pressuposto.
   No entanto, como depois também vai apontar Bosi, a interpretação se achava presa a um sistema de pensar fatalista. Entre o observador atento e a “cidadela-mundéu” dos jagunços havia mais do que um simples olhar desprevenido: a fixação do homem e o relato da luta não se fariam sem a tela das mediações ideológica e literária. Antônio Conselheiro vai ser sempre o fruto mórbido de uma cultura propensa à desordem e ao crime. Como a sociedade que o produziu, ele tende a reviver esquemas regressivos de conduta e linguagem. Como aparece no livro:
   “É natural que estas camadas profundas de nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária – Antônio Conselheiro... As fases singulares da sua existência não são, talvez, períodos sucessivos de uma moléstia grave, mas são, com certeza, resumo abreviado, dos aspectos predominantes de mal social gravíssimo. Por isso o infeliz, destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a história como poderia ter ido para o hospício. Porque ele para o historiador não foi um desequilibrado. Apareceu como integração de caracteres diferenciais – vagos, indecisos, mal percebidos quando dispersos a multidão, mas enérgicos e definidos, quando definidos numa ‘individualidade’ (... ) É difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências ‘pessoais e as tendências coletivas: a vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade...”
    A linguagem, como já explicitamos anteriormente, é extremamente marcante e importante em Os Sertões. Euclides se utiliza inúmeras vezes de estilos e figuras com certas finalidades. Em suas “Notas de Leitura”, ele mesmo afirma:
    “Vemos o quanto é forte esta alavanca – a palavra – que levanta sociedades inteiras, derriba tiranias seculares”.
     Bosi atenta par o uso da linguagem como modo de explicar e fundamentar o que não tem fundamento nem explicação, a “ideologia do inapelável”. Daqui se entende o uso exaustivo de intensificações e antinomias, que imprimem um sentido grandiloqüente ao texto, além de: “reportar ao seu vezo de agigantar o tamanho, agravar o peso, acelerar o ritmo, alongar as distâncias, acentuar as diferenças, exasperar as tensões, radicalizar as tendências: em suma, ver nas coisas todas a sua face desmedida e extrema.” (BOSI: 6)
Um exemplo do próprio Sertões:
     “Muito baixo no horizonte, o Sol descia vagarosamente, tangenciando com o limbo rutilante o extremo das chapadas remotas e o seu último clarão, a cavaleiro das sombras, que já se adunavam nas baixadas, caía sobre o dorso a montanha... Aclarou-o por momentos. Iluminou, fugaz, o préstito, que seguia à cadência das rezas. Deslizou, insensivelmente, subindo, à medida que lentamente ascendiam as sombras, até ao alto, onde os seus últimos raios cintilaram nos píncaros altaneiros. Estes fulguraram por instantes, como enormes círios, prestes acesos, prestes apagados, bruxuleando na meia-luz do crepúsculo. Brilharam as primeiras estrelas. Rutilando na altura, a cruz resplandecente de Órion, alevantava-se sobre os sertões...” (CUNHA, 1985:314,315)
     Mas todo este estilo “rebuscado”, se explique pela narrativa tratar de uma realidade já vista e já sentida e qualificada como trágica. Assim, a montagem do relato acaba dependendo de uma série cronológica, o que deixa que a liberdade estilística se faça maior no momento da elocução (pelo uso intensivo das figuras de linguagem).
   E foi realmente este seu estilo que o consagrou logo que publicou pela primeira vez Os Sertões, mesmo sendo o seu conteúdo, quem traz sua importância: a de conseguir ultrapassar o científico, ir à luta, ver, sentir e mudar.
   Sua visão de mundo muda com sua vivência em Canudos. Mas talvez seja um pouco complicado tratar da visão de mundo de um homem tendo lido apenas um livro seu. Nicolau Sevcenko, em sua tese de doutoramento,  faz uma análise minuciosa do que ele mesmo entende por “visão de mundo”, porém, para isso, se baseia em praticamente tudo que o autor deixou escrito. Como aparece na referida tese:
    “A partir da maneira como Euclides da Cunha dispõe, dá coerência, organiza e estrutura as concepções e idéias que lhe suscita a realidade circunjacente, no interior do espaço peculiar aberto por sua linguagem, é que podemos descortinar a sua visão de mundo. Assumem preponderância aqui as suas anotações de caráter mais pessoal, que serão cotejadas com as grandes diretrizes imprimidas pelo autor à sua obra e que vêm de ser apresentadas.” (SEVCENKO, 1981:211)
    Porém, talvez sua visão cientificista e sua posição de republicano decepcionado ajudem a compreender seu mundo. Principalmente depois de Canudos, ele via uma inversão em sua sociedade. Mas o mais importante de pensar é como ele aparece como um homem de contradições e contrários. Tanto ele escreve e argumenta opondo elementos, como vive em um oscilar de posições. Quando Euclides vai a Canudos, perde este discurso factual e determinista; o inelutável e intransponível do fato vai cedendo às inflexões de um pensamento propriamente humano. A linguagem de denúncia e protesto que finaliza a narração de uma Canudos destruída cumpre a função de um apelo em que, como Bosi afirma: “pode aparecer um nós empenhado no que diz.”
     Então vamos ao final de Canudos:
     “Fechemos este livro.
       Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dous homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.
      Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos.
      Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem...
     Ademais não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos?...
     E de que modo comentaríamos, coma só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e entre eles aquele Antônio Beatinho que se nos entregara, confiante – e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa história?
     Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5200, cuidadosamente contadas.
     Antes, no amanhecer daquele dia, comissão adrede escolhida descobrira o cadáver de Antônio Conselheiro.
     Jazia num dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de um prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desprazido algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de tabua, o corpo do ‘famigerado e bárbaro’ agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hábito azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefacto e esquálido, os olhos fundos cheios de terra – mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida.
     Desenterraram-no cuidadosamente. Dádiva preciosa – único prêmio, únicos despojos opimos de tal guerra! -- faziam-se mister os máximos resguardos para que se não desarticulasse ou deformasse, reduzindo-se a uma massa agulheta de tecidos decompostos.
Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que o país se convencesse bem de que estava, afinal extinto, aquele terribilíssimo antagonista.
     Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar a sua cabeça tantas vezes maldita – e como fora malbaratar o tempo exumando-o de novo, uma faca jeitosamente brandida, naquela mesma atitude, cortou-lha; e a face horrenda, empastada de escaras e de sânie, apareceu ainda uma vez ante aqueles triunfadores.
    Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no relevo de circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura...”

CONSIDERAÇÕES FINAIS
    O livro acaba mas não termina. Com esta obra o Brasil ganhava uma das suas mais importantes reflexões sobre a identidade nacional. O escritor do início da obra, positivista que acreditava na república, é o mesmo que denuncia a dor a fome e a barbárie. Canudos foi um crime cometido para e pela reiteração da  república. O cancro monarquista nunca existiu naquela terra esquecida pelos seus governantes e o Estado só chegara tão longe para trazer a injustiça e a morte. Essa não era a república reclamada pelo autor.
    Como identidade nacional, podemos tirar desta obra  a seguinte frase: “A nação brasileira é o resultado de uma angústia racial”. Euclides sofre essa angústia da qual as “leis” européias não dão conta. O Brasil é um país sem seu tipo antropológico definido e ele, Euclides da Cunha, é o primeiro que se propões a fazer um estudo a fundo desses cruzamentos todos que nos formam. Euclides não mascarou a realidade porque não pregou uma falsa igualdade social entre as “raças”, o que seria feito por outros como Oliveira Viana, ou Afonso Celso. Se hoje podemos enxergar mais longe que Euclides é  porque somos pigmeus olhando do ombro de gigantes como ele.

Euclides da Cunha - Os Sertões - Canudos
www.klepsidra.net/klepsidra3/euclides.html - 100

RAÇA E EVOLUÇÃO SOCIAL EM
“OS SERTÕES” DE EUCLIDES DA CUNHA

    A busca por uma direção segura para o progresso, que englobe, num mesmo projeto, toda a nação brasileira – nos aspectos políticos, econômicos e sociais – é tema de grande importância no cenário atual. As reflexões sobre esse processo adentram intensamente os debates nos centros acadêmicos e nas instituições governamentais, porém a preocupação com o desenvolvimento do país não é privilégio de nossos tempos.
   O importante trabalho de Euclides da Cunha, referência no pensamento social brasileiro, demonstra a preocupação de intelectuais, no princípio do século XX, em questionar os rumos que o país tomava e, fundamentalmente, encontrar alternativas para um projeto de desenvolvimento nacional através de concepções teóricas e pragmáticas. Dentre os trabalhos desse período destaca-se aqui, essencialmente, “Os Sertões”. Essa obra possui um valor inestimável na história da teoria social no Brasil, apresentando uma análise da realidade nacional articulada com fundamentos da mudança social. As reflexões presentes superam o caráter historiográfico referente ao movimento de Canudos, ampliando o campo analítico para as possibilidades de mudança através de um processo de evolução social. A fundamentação desse processo está calcada no evolucionismo de Herbert Spencer.
   "(...) Spencer foi um filósofo bastante conhecido em seu tempo e as idéias evolutivas eram parte integrante de suas obras filosóficas, como, por exemplo, a Synthetic Philosophy, onde popularizou a palavra ‘evolução’" (MARTINS, 2004: 282). 
   Os princípios teóricos de Spencer foram assimilados pela intelectualidade que buscava os vários caminhos para a mudança social no Brasil, adequando o discurso à crença no progresso da ciência e da indústria. O processo de mudança deveria acabar com os elementos fundamentais de uma sociedade predominantemente tradicional.
   "O pensamento de Herbert Spencer servia admiravelmente para isso, pois eles o entendiam afirmando que o progresso é inevitável, que os levaria a um futuro industrial e que a ciência provara a veracidade de ambas as afirmativas" (GRAHAM, 1973: 241).
   Euclides da Cunha assimilou os ensinamentos de Spencer remetendo-os à realidade brasileira, emergindo uma análise evolucionista com algumas peculiaridades. Estas peculiaridades são norteadoras dos elementos de divergência e convergência com o arcabouço teórico spenceriano que impulsionava sua lógica analítica. No interior da obra “Os sertões” destacam-se vários momentos de diálogo com a teoria evolucionista.
   Assim como Spencer, Euclides da Cunha concebia a história de maneira linear, ou seja, uma progressão sem rupturas e com continuidade. A tese spenceriana de que todas as sociedades partem de um mesmo ponto é refutada por Euclides da Cunha que adere à concepção poligenista, isto é, a origem diferenciada de cada sociedade, o que garante, fundamentalmente, a especificidade de cada formação social.
   "A inspiração nas formulações de Spencer sobre a evolução orgânica baseada na passagem de formas de vida simples (primitiva, comunitária) para de formas de vida crescentemente complexas (organizações em instituições como o Estado e indústrias) levava-o a demarcar as dificuldades de progresso da sociedade brasileira em razão do cruzamento de raças, do mestiçamento, da inferioridade, da colonização, do isolamento, da cisão entre o litoral e o sertão, das dificuldades políticas e econômicas e da precariedade da ciência" (REZENDE, 2001: 207).  
    Essa evolução, segundo Spencer, seria a passagem da homogeneidade para a heterogeneidade através da complexidade (simples-instáveis para os complexos-estáveis) e que o organismo social mais complexo deveria dominar o menos complexo. Euclides da Cunha relutava em aceitar essa tese que pressupunha a dominação sobre os organismos sociais menos evoluídos.
   "O grande problema era, então, a ausência de um projeto de civilização que levasse em conta o jagunço destemido, o tabaréu ingênuo, o caipira simplório, o sertanejo das caatingas nordestinas e do chão úmido da Amazônia. Os setores preponderantes pretendiam impor formas de mudanças sociais que desconsideravam as especificidades brasileiras. Segundo ele, uma sociedade que pretendia imitar as instituições e os modos de ser e de agir europeus não criaria jamais um autêntico projeto civilizador" (REZENDE, 2001: 203).
   Nessa perspectiva, Euclides da Cunha construiu uma argumentação que negava esse processo de domínio do “mais forte” sobre o mais “fraco”, o que no período de transição do século XIX para o XX remetia à superioridade da Europa e a legitimação do imperialismo internacional. Contra uma possível colonização, apontava elementos da realidade nacional que pudessem delinear um caminho para o progresso por vias “tupiniquins”. Afirmava que o progresso só era possível através de um projeto civilizatório que englobasse toda a nação.
   "O país somente poderia civilizar-se, para Euclides da Cunha, através de um projeto de integração nacional em que estivessem incluídos todos os brasileiros. A evolução significava a criação de condições econômicas, políticas e sociais para o rompimento da exclusão da maioria da população" (REZENDE, 2001: 213).
    Como era recorrente nos meios intelectuais no início do século XX, a preocupação com o mestiçamento na sociedade brasileira permeava a reflexão de Euclides da Cunha. Para ele, a evolução social estava articulada com a questão racial.
    Como pensar o progresso da nação no tocante à influência das diferentes raças componentes do “tipo social brasileiro”? Como, no meio desse entrelaçamento de raças, buscar o cerne da evolução social no Brasil? O autor de “Os sertões” apresentava a resposta.
   "Não temos unidade de raça. Não a teremos talvez nunca.
     Predestinamos-nos à formação de uma raça histórica em um futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida nacional autônoma. Invertemos sob este aspecto, a ordem natural dos fatos. A nossa evolução biológica reclama a garantia de evolução social.
    Estamos condenados à civilização.
    Ou progredimos, ou desaparecemos" (CUNHA, 1968: 54).
    A unidade de raça era um devir relacionado diretamente com a autonomia da vida nacional ou à evolução nos moldes peculiares à nação. Esta, por sua vez, necessitava de um “tipo social” que encarnasse a resistência às influências externas. A partir da teoria de Spencer, Euclides da Cunha faz uma análise dos “tipos sociais” sertanejos em relação aos litorâneos, de acordo com os legados individuais, ou seja, partindo do pressuposto de que não existe o homem em geral (tese positivista) e sim, o homem circunstancial. Segundo ele, através das partes seria possível entender o todo.
   "É difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências pessoais e as tendências coletivas: a vida resumida de um homem é um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade (...). Acompanhar a primeira é seguir paralelamente e com mais rapidez a segunda: acompanhá-las juntas é observar a mais completa mutualidade de influxos" (CUNHA, 1968: 112).
    Essa afirmativa remete a preocupação constante em demonstrar a diversidade étnica do país, a qual todo processo de mudança rumo ao progresso deveria estar assentado.
    "O estudo de Euclides da Cunha sobre a Guerra de Canudos procurou revelar o significado do embate entre duas civilizações bárbaras, ambas brasileiras, através, principalmente, da obra de Spencer" (REZENDE, 2001: 206).
   Em “Os Sertões”, o Brasil é dividido em duas partes, litoral e sertão, que pertencem a um conjunto de relações que torna bastante visível a formação de duas civilizações distintas. Os indivíduos pertencentes a essas civilizações possuíam características peculiares, moldadas pela interação de elementos físicos (clima, relevo, vegetação, etc.) e elementos sociais (miséria, educação, conflito, etc.). Esse princípio norteia sua análise, que busca no sertanejo (jagunço) os caracteres que, segundo sua ótica, consolidariam a resistência à “dominação civilizatória exterior” e seriam a engrenagem da evolução social no país.
     Euclides da Cunha não via de bom grado o mestiçamento em geral, o que ele frisava sobre essa questão era a resistência contida no mestiço (branco com o indígena) específico dos sertões.
    "Esse mestiço era, então, completamente diferente do mestiço do litoral. A sua segregação social e espacial, o meio físico e o clima teriam contribuído para que se formasse no país um tipo diverso capaz de ações de resistência como as que ocorreram no movimento de Canudos" (REZENDE, 2001: 212). 
    O mulato litorâneo e outras variantes eram consideradas, nesse prisma, como um retrocesso.
     "A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sôbre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso. O indo-europeu, o negro e o brasílio-guarani ou o tapuia, exprimem estádios evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sôbre obliterar as qualidades preeminentes do primeiro, é um estimulante à revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço – traço de união entre raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares – é, quase sempre, um desequilibrado" (CUNHA, 1968: 82).
    Há, em seu pensamento, uma tensão com essa problemática, em um momento desqualifica e, posteriormente relativiza. Porém, o que buscava com essas considerações era um tipo específico de homem nesse emaranhado de mestiços, aquele resistente proveniente da aridez dos sertões, das dificuldades cotidianas e que, não estaria degenerado pelos vícios da vida civilizada.
    "Ao invés da inversão extravagante que se observa nas cidades do litoral, onde funções altamente complexas se impõem a órgãos mal constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os antes do pleno desenvolvimento – nos sertões a integridade orgânica do mestiço desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, destinos, porque é a sólida base física do desenvolvimento moral ulterior" (CUNHA, 1968: 85).
    Para Euclides da Cunha, a “raça forte” dos sertões iria se sobrepor à “raça fraca” do litoral impulsionando o progresso para uma civilização compatível com os elementos nacionais, essencialmente, sua diversidade. Dessa forma, demonstrava em sua análise uma preocupação constante com os rumos do país e as possibilidades de um projeto nacional que levasse o Brasil à evolução social.

Raça e evolução social em "Os Sertões" de Euclides da Cunha
www.espacoacademico.com.br/058/58borges.htm - 26k 

ENTRE A LINGUAGEM E A POESIA: UMA
ANÁLISE SINTÁTICA SOBRE OS SERTÕES
Déborah Christina de Mendonça Oliveira (UCB)

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar alguns aspectos sintáticos presentes na obra Os Sertões de autoria de Euclides da Cunha. O trabalho terá como foco de análise os seguintes pontos: as construções das sentenças, a pontuação utilizada, as formas verbais e a posição dos adjetivos presentes na referida obra. Tais aspectos receberão, muitas vezes, um tratamento linguístico; isso significa que a abordagem dos temas terá como referencial teórico as teorias linguísticas mais recentes. Sabe-se, no entanto,que o estudo do estilo não se esgota nos aspectos formais de composição.
Palavras-chave: Adjetivos; Euclides da Cunha; formas verbais; pontuação; sintaxe.

Introdução
   O presente trabalho foi suscitado por uma discussão inicial acerca de Os Sertões de Euclides da Cunha, promovida por meio de uma mesa-redonda intitulada “Linguagem, poesia e ciência: encontros e confrontos em Os Sertões”, da qual participei em maio de 2010, na Universidade Católica de Brasília, cujo objetivo era debater aspectos literários e linguísticos da obra em questão.    Portanto, a análise apresentada, neste artigo, é resultante,em parte, da apresentação feita na ocasião desta mesa-redonda.
   Este estudo terá como enfoque alguns aspectos da sintaxe do texto de Euclides da Cunha, a saber: a forma de construção das sentenças, a pontuação, as formas verbais e a posição dos adjetivos. Tais aspectos receberão, muitas vezes, um tratamento linguístico; isso significa que a abordagem dos temas terá como referencial teórico as teorias linguísticas mais recentes. Sabe-se, no entanto, que o estudo do estilo não se esgota nos aspectos formais de composição.
    Antes de iniciar a análise, não se pode deixar de fazer menção, nestas notas preliminares, ao contexto histórico em que se estabeleceu o texto Os Sertões, pois grande é a influência que fatores, tais como: o contexto histórico, social e político exercem na estruturação do conteúdo da obra e na análise dos efeitos de sentido que encontramos na manifestação verbal do texto.
    A obra Os Sertões de autoria de Euclides da Cunha foi publicada em 1902. Em 1897, Euclides da Cunha havia sido enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo, como correspondente, ao norte da Bahia, para fazer a cobertura do conflito no arraial de Canudos, liderado por Antônio Conselheiro. Segundo o Governo da época, a revolta era liderada por fanáticos monarquistas, que lutavam contra a República. O livro Os Sertões é fruto, provavelmente, do que o autor viu e pesquisou sobre o movimento. Nos primeiros artigos que Euclides enviou para o jornal O Estado de S. Paulo, o autor apresentou o conflito de Canudos sob a ótica republicana, que via no movimento uma tentativa contra o Governo. Entretanto, após um olhar mais acurado, o autor pôde fornecer ao leitor a real
dimensão da história, que ele define como um crime na significação integral da palavra.
    A obra está dividida em três partes: A terra, O Homem e A Luta. A linguagem do autor é, muitas vezes, técnica e sisuda, permeada de expressões científicas. O estilo utilizado por Euclides, representado pelas construções sintáticas, infunde na obra uma preocupação estética, em que a forma tenta reproduzir o conteúdo do texto. O texto narra a situação de miséria do sertanejo, causada pela seca, e o massacre promovido pelo Exército brasileiro para pôr fim à iniciativa de Antônio Conselheiro e de seu grupo, como bem observou Souza (2009):
   O narrador que se acopla estruturalmente ao pintor euclidiano da natureza procura sempre apresentar o efeito trágico da guerra de Canudos, e não a guerra em si mesma. Não se atém aos golpes e contragolpes das cenas de batalhas entre os exércitos rivais. Concentra-se no emolduramento dos quadros da natureza, viabilizando a pintura das cenas dramáticas, que representam a reviravolta catastrófica dos abatidos em combate. (p. 37)
    Depois de feitas a introdução e a contextualização da obra em discussão, passemos à análise dos aspectos propostos para este trabalho.

1. A construção das sentenças
   Em primeiro lugar, ressalta-se a maneira como as construções são elaboradas em Os Sertões. Observam-se períodos extensos seguidos, às vezes, de sentenças curtas, que funcionam como hiatos ou como freadas bruscas para repousar a leitura de um texto que é denso. Esses intervalos consistem em frases soltas e isoladas, que podem retomar um período anterior ou apresentar um período seguinte, como no trecho destacado abaixo:
    Estiram-se então planuras vastas. Galgando-as pelos taludes, que as soerguem dando-lhes a aparência exata de tabuleiros suspensos, topam-se, a centenas de metros, extensas áreas ampliando-se, boleadas, pelos quadrantes, numa prolongação indefinida, de mares. É a paragem formosíssima dos campos gerais, expandida em chapadões ondulantes – grandes tablados onde campeia a sociedade rude dos vaqueiros... Atravessemo-la. (p. 17)
    Essa característica da obra de Euclides da Cunha é apresentada também por Souza (2009), que afirma que a mutação repentina em um parágrafo de uma única oração, na forma imperativa, manifesta a intenção do narrador de atravessar a belíssima região.
   Segundo ele, o ditame inclui, ainda, um convite ao leitor disposto à excursão nos maravilhosos domínios dos campos gerais.
   Os períodos extensos da obra exemplificam o caráter criativo da linguagem humana e oferecem provas da recursividade nas línguas naturais. O aspecto criativo da linguagem humana constitui uma diferença essencial entre os sistemas linguísticos de comunicação humana e os sistemas de comunicação animal. De acordo com Chomsky (1998), nenhuma criança tem de aprender que há sentenças de três palavras e sentenças de quatro palavras, mas não sentenças de três palavras e meia, e que é sempre possível construir uma sentença mais complexa, com uma forma e significados definidos.
    A abordagem gerativa, por exemplo, tem como questão de investigação identificar as características das línguas naturais que lhes atribuem caráter único. Para isso, a teoria prima por um estudo internalista da linguagem, que tenta descobrir as propriedades do estado inicial da Faculdade de Linguagem. Pode-se afirmar que o recurso de que as línguas humanas dispõem para gerar sequências potencialmente infinitas em extensão, a partir de regras finitas, é denominado recursividade. Essa característica pode ser observada nos trechos de Os Sertões como no apresentado abaixo, que reúne 87 palavras em um único período:
    Adiante, a partir de Monte Alto, estas conformações naturais se bipartem: do rumo firme do norte a série do grés figura-se progredir até o platô atenoso do Açuruá, associando-se ao calcário que aviva as paisagens na orla do grande rio, prendendo-as às linhas dos cerros talhados em diáclase, tão bem expressos no perfil fantástico do Bom Jesus da lapa; enquanto para nordeste, graças a degradações intensas (porque a Serra Geral segue por ali com anteparo aos alísios, condensando-os em diluvianos aguaceiros) se desvendam, ressurgindo, as formações antigas. (p.17)
   Usando esse processo de concatenação, podem-se construir sentenças curtas e muito longas. Isso significa que a competência de um falante nativo permite a ele formar sentenças muito extensas, utilizando a recursividade. No entanto, questões relativas ao desempenho impedem os falantes de produzir sentenças muito extensas. Isso ocorre, porque no nível do desempenho entram em jogo questões como: limitação de memória, dificuldade de processamento, atenção, entre outras.

2. A pontuação
     Como afirmado na seção anterior, o livro de Euclides da Cunha é construído por períodos ora muito curtos, ora muito extensos. Portanto, para proporcionar uma leitura adequada dos enunciados, o autor apresenta uma pontuação com rigoroso senso de disciplina e contenção.
   De acordo com Corrêa (1978), para garantir fluidez e agilidade na leitura do texto, Euclides utiliza a pontuação como um recurso para quebrar a monotonia dos períodos infindáveis, nos quais a ideia central se amplifica em sucessivos desdobramentos.
    Multiplicam-se, assim, os ponto-e-vírgulas, as vírgulas e demais sinais de pontuação que exercem uma função importante no estilo da linguagem do autor. Sem pontuação, os períodos infindáveis da obra se tornariam, provavelmente, ininteligíveis.
    Um aspecto, ainda relevante, é a forma como a pontuação é utilizada. Em muitos casos, o autor parece “desobedecer” às regras de pontuação padrão. Além disso, faz pausas em momentos inesperados.
   Na tradição gramatical, a pontuação é compreendida como recurso rítmico e melódico da escrita, uma vez que essa não dispõe dos mesmos recursos da língua falada.
    Segundo Rocha Lima (1969), a pontuação constitui pausas rítmicas, assinaladas na pronúncia por entonações características, que na escrita são representadas por sinais especiais. Com base nessa definição, pode-se, por exemplo, analisar trechos como o seguinte a partir dos efeitos melódicos que o autor gostaria de imprimir em seu texto:
     Nada é mais surpreendedor do que vê-lo desaparecer de improviso. Naquela ocasião combalida
operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhes, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual do órgãos; [...] (p. 119)
    Na tradição linguística, é também possível explicar o uso da pontuação recorrendo às questões fonológicas. Por outro lado, é possível levantar questões relativas à sintaxe das sentenças. Observa-se, por exemplo, que o uso da vírgula em períodos simples e compostos respeita as fronteiras de constituintes e que a vírgula funciona, entre outras coisas, para marcar deslocamentos dentro da sentença.
    Um constituinte pode ser definido como uma unidade sintática hierarquicamente construída, que possui uma função sintática e que se forma a partir de um núcleo. Um constituinte pode receber o nome de sintagma. Em uma sentença ambígua como: “O juiz julgou o réu inocente”, extraída de Mioto et al (2005), o uso de uma vírgula após a palavra “réu” poderia minimizar a possibilidade de dupla interpretação. Nesse caso, a pontuação marcaria o fato de que nessa interpretação, “inocente” não está modificando o termo “réu”.
    Voltemos ao texto de Euclides da Cunha. Portanto, a pontuação utilizada pelo autor exerce uma função importante na linguagem de Os Sertões. Segundo Corrêa (1978), o estilo de Euclides da Cunha pode ser comparado a um desses rios dos sertões brasileiros cujas águas não se detêm nos remansos, no suave e sereno deslizamento da corrente; vão saltando os obstáculos, precipitam-se com fúria nos abismos, avançam ou recuam em refreios bruscos, procurando conter-se no curso sinuoso do leito. Assim, a pontuação, apresentada na obra, tem como objetivo gerar um caráter melódico, além de apontar um estilo único.

3. As formas verbais
   Passemos à análise das formas verbais. Em Os Sertões, os verbos são muito utilizados em repetições, que podem tentar transmitir ao leitor uma sensação de movimento, como no trecho abaixo:
   [...] desarmando-se; desapertando os cinturões, para a carreira desafogada; e correndo, correndo ao acaso, correndo em grupos, em bandos erradios, correndo pelas estradas e pelas trilhas que as recortam, correndo para o recesso das caatingas, tontos, apavorados, sem chefes... (p. 367)
    Segundo Corrêa (1978), nesse trecho tem-se uma sensação física de movimento, acompanhando o temor e o pânico que se apoderaram dos soldados que saíam em retirada.
   Tal sensação, que acompanha a ideia de movimento, veiculada no plano do conteúdo, dá-se pela repetição do verbo “correr” no gerúndio, no plano da expressão.
    O gerúndio possui uma característica marcante quanto ao seu aspecto: poder marcar um processo contínuo, conforme excerto abaixo:
   De sorte que quem o contorna, seguindo para o norte, observa notáveis mudanças de relevos: a
princípio o traço contínuo e dominante das montanhas, precipitando-o, com destaque saliente, sobre a linha projetante das praias; depois, no segmento da orla marítima entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, um aparelho litoral revolto, feito da envergadura desarticulada das serras, riçado de cumiadas e corroído de angras, escancelando-se em baías, e repartindo-se em ilhas, e desagregando-se em recifes desnudos, à maneira de escombros do conflito secular que ali se trava entre os mares e a terra. (p. 11-12, grifos meus)
   Ressalta-se que a noção de aspecto distingue-se da noção de tempo verbal. O aspecto é uma categoria gramatical que representa distinções na estrutura temporal do evento. Um evento, por exemplo, pode ser entendido como ocorrendo em um único momento, como uma única ocorrência ou como uma série de ocorrências que se repetem; pode ser visto começando, continuando ou terminando. O gerúndio, em geral, apresenta um aspecto contínuo ou progressivo, em que o evento estende-se no tempo. No caso da obra euclidiana, parece que o gerúndio agrega à leitura uma interpretação de continuidade e de movimento.
   Souza (2009) afirma que, desde o prólogo dramático, o narrador de Os Sertões apresenta, por meio das formas verbais, o perspectivismo da percepção do viajante que contorna o planalto central, seguindo para o norte. A arte do narrador representa a pluralidade das percepções do observador, a fim de que a multiplicidade narrativa se apresente de modo ordenado.
   Na grandiosa abertura do prólogo dramático, a movimentação do planalto, que se representa no dinamismo dos verbos “desce”, “desata-se”, “descamba”, decorre da configuração metonímica da percepção. (SOUZA, 2009, p. 17, grifos meus)
   A observação feita por Souza (2009) revela o aspecto itinerante do narrador do texto. Essa sensação de movimento é garantida, portanto, por um ponto de vista plural, traduzido nas ocorrências verbais, presentes na narrativa de Euclides da Cunha.

4. Os adjetivos
    O último ponto que iremos discutir é a posição dos adjetivos na obra Os Sertões. Esse uso parece ser ressaltado em vários estudos sobre a obra. De acordo com Corrêa (1978), alguns críticos chegam a colocar, no adjetivo, a tônica do estilo de Euclides da Cunha. Com efeito, não se pode negar que nesse elemento resida uma das marcas da linguagem do escritor.
     Uma preocupação do autor é a posição do adjetivo no sintagma nominal. No português do Brasil, o adjetivo pode ser posicionado à direita ou à esquerda do núcleo nominal: pode-se ter “bonita garota” e “garota bonita”. No entanto, essa aparente mobilidade do adjetivo pode marcar alteração de sentido na sentença, como em: “Paulo é um grande homem” e “Paulo é um homem grande”. Essa possibilidade de estar anteposto ou posposto ao nome, entretanto, não é geral à classe dos adjetivos, como observado em: “camisa verde” e “*verde camisa”.
    A ordem adjetivo – substantivo atribui ao caracterizado a função típica dos elementos da área esquerda do sintagma nominal, tais como: quantificadores e determinantes em geral. Cabe salientar que a simples inversão de ordem pode fazer de uma palavra como “inimigo” mudar de função sintática, como: “um avião inimigo” e “um inimigo terrível”. Esses exemplos extraídos de Perini (2001) demonstram que, no primeiro sintagma, o termo “inimigo” funciona como modificador e no segundo, funciona como núcleo do sintagma nominal, o qual é modificado por “terrível”. A ordem adjetivo – substantivo parece ser mais enfática, enquanto que a ordem substantivo – adjetivo apresenta o adjetivo como elemento caracterizador por excelência, uma vez que essa é a ordem não marcada.
    O texto de Euclides da Cunha prefere a ordem substantivo – adjetivo, tais como nos sintagmas: “veados ariscos”, “estações benéficas”, “vales secos”, “flora estupenda”, entre outros. Para Corrêa (1978), a preferência de Euclides da Cunha por essa forma é uma decorrência do valor que ele emprestava ao adjetivo como elemento caracterizador por excelência. A estrutura substantivo – adjetivo, preferida pelo autor, pode ser evidenciada nos excertos abaixo, extraídos de Os Sertões:
   O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. (p. 118)
    Segue a boiada vagarosamente, à cadência daquele canto triste e preguiçoso. (p. 131)
   Tal uso pode ser justificado, ainda, se atentarmos para a nota preliminar do autor, na qual Euclides da Cunha afirma ter a intenção de que a obra expresse a sinceridade que deve ter um narrador diante da história, ou seja, existe uma preocupação com a objetividade e exatidão dos conteúdos descritos. Esse aspecto do texto deve-se à refutação euclidiana do divórcio da ciência e da arte. A respeito da união entre ciência e poesia na obra euclidiana, Souza (2009) afirma:
   Como cientista ou poeta, mas sobretudo como cientista e poeta, a Euclides não importa senão ser geopoeta, que é o poeta que se emparelha com a terra na tentativa de corresponder ao ritmo formativo da potência telúrica. Não basta observá-la com a ótica monocular dos conceitos solidificados. Necessário se torna conciliar dinamicamente a imaginação poética e a observação científica. Se não se dissolve a solidez dos conceitos na fluidez das imagens, não se obtém uma visão genuína da terra. (p. 121)
    Portanto, o uso da adjetivação em Os Sertões, particularmente, na ordem
substantivo – adjetivo está relacionado tanto ao caráter estético da obra, quanto ao rigor
descritivo da terra, do homem e da luta.

Conclusão
   O presente artigo analisou, portanto, alguns aspectos da linguagem da obra Os Sertões, em particular, aspectos relativos à construção sintática do texto euclidiano. Observou-se que a tessitura do livro garante um caráter estético e uma expressividade linguística ímpar. O conjunto de recursos linguísticos utilizados pelo autor imprime no texto um estilo primoroso.
   Constatou-se, assim, que as construções das sentenças revelam o caráter criativo da linguagem por meio de orações ora muito extensas, ora muito curtas, que funcionam como freadas bruscas na leitura do texto. A inteligibilidade dos períodos infindáveis é garantida pela pontuação vasta e precisa.
   Verificamos, ainda, que as formas verbais, empregadas no livro, permitem ao leitor a sensação de movimento, essencial à natureza multiperspectivada do narrador itinerante.
   Por fim, a análise demonstrou como a posição dos adjetivos (na maioria, pospostos aos substantivos que eles modificam) na estrutura dos sintagmas nominais do texto infunde na obra a relação entre ciência e poesia, entre forma e conteúdo.
    A análise, aqui proposta, tentou apresentar uma visão plural da obra, suscitada, inicialmente, pela proposta da mesa-redonda, da qual esse estudo é resultante. Essa perspectiva deve ser adotada para fazer uma análise adequada ao enfoque transdisciplinar do texto euclidiano.

Entre a linguagem e a poesia: uma análise sobre Os Sertões
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