Ana Cristina Venâncio da Silva, Júlia
Schwarcz,
Maíra Landulfo, Maria Cecília Winter,
Tila Corazza T. Pinto & Ynaê Lopes dos Santo
Tila Corazza T. Pinto & Ynaê Lopes dos Santo
O MOMENTO
Com a Revolução Industrial iniciada na
Europa no século XIII, toda a civilização entrava em uma nova fase
caracterizada pela utilização do aço, do petróleo e da eletricidade. O
capitalismo se estrutura em moldes modernos com o surgimento de grandes
complexos industriais. Ao mesmo tempo o avanço científico leva a novas descobertas
nos campos da Física e da Química.
A chamada 2ª Revolução Industrial cria uma
demanda por matéria-prima e mercado consumidor ; é o imperialismo em ação. As
influências das potências européias sobre os países de baixa renda se
fortificam neste novo quadro.
A crise de 1873, que provoca a falência de
investidores nas metrópoles européias devido ao excesso de produção e/ou à
escassez de mercado consumidor, aumenta o interesse de tais potências por
países que já possuem alguma dependência econômica ou política (por exemplo a
Austrália, ex-colônia da Inglaterra e os países da América Latina em geral).
Essa forma de dependência o historiador Nicolau Sevcenko chamou de indirect
rule:
“...as formas das relações que se estabeleceram entre
as nações periféricas ao desenvolvimento industrial e os centros econômicos
europeus, modeladas pela indirect rule do novo imperialismo, foram de natureza
a dissolver-lhe as peculiaridades arcaicas e harmonizá-las com um padrão de
homogeneidade internacional sintonizado com os modelos das matrizes do velho
mundo. ”(SEVCENKO, 1981: 32)
Foi através desta “regra indireta” que os
centros capitalistas europeus estabeleceram seus padrões de vida como padrões
universais, atingindo principalmente suas áreas de influência da periferia do
sistema. Os avanços tecnológicos e científicos também dão margem à posturas
ideológicas como o Positivismo de Auguste Comte e o Socialismo Científico de
Marx e Engels, que define o modo de produção da vida material como agente
condicionador do processo de vida social, político e intelectual em geral. O
Socialismo Científico era assim chamado porque não procurava construir
abstratamente uma sociedade ideal mas, baseando-se na análise das realidades
econômicas, da evolução histórica e do capitalismo, formula leis e princípios
determinantes da História em direção a uma sociedade sem classes e igualitária.
O Evolucionismo de Charles Darwin também é incorporado neste quadro; em seu
livro A Origem das Espécies de 1859, Darwin expõe seus estudos sobre a evolução
das espécies pelo processo de seleção natural, negando portanto a origem divina
defendida pelo Cristianismo.
Com a expansão do capitalismo, difundiram-se
também estas idéias nascidas na Europa, o abalo desta influência sobre as
sociedades tradicionais foi gritante, especialmente em países da periferia do
sistema, como a Argélia com o Levante Argelino de 1871, o Egito com o Movimento
Nacional Egípcio de 1879-1882, e o Brasil com a Guerra do Paraguai de 1864-1870
que abalou os ideais conservadores.
O Brasil do final do século XIX foi marcado
por inúmeras agitações sociais, desde movimentos separatistas como a
Confederação do Equador, agitações abolicionistas, a própria abolição e até a
República. O maior centro populacional do país, o Rio de Janeiro, também era
considerado um grande centro comercial por intermediar os recursos da economia
cafeeira, a capital inicia o século XX em uma situação realmente excepcional. A
cidade era um espaço de confluência cultural e econômica que se comunicava com
todo o país e acumulava recursos no comércio, nas finanças e já também nas
aplicações industriais.
Ao mesmo tempo, com o processo de abolição e
com a vinda de imigrantes, a cidade passava por uma superlotação, que demandava
capital móvel para fazer o pagamento dos trabalhadores, agora livres. O então
ministro da Fazenda, Rui Barbosa, dá início à um processo de incentivo às
atividades nas bolsa de valores, foi o chamado Encilhamento. Este processo
causou uma confusão maior ainda na cidade, pois fortunas mudavam de mãos,
dizia-se que “o rico de hoje era o tintureiro de ontem”, não se sabia mais quem
possuía poder político ou econômico. Adiciona-se a essa confusão, a enorme e
sempre crescente população da cidade que passou a se instalar em casarões formando
cortiços e verdadeiros “ântros de promiscuidade”.
Sob a influência das ideologias européias, o
Estado brasileiro inicia o processo de Regeneração do Rio de Janeiro, que tem
como objetivo “higienizar” a cidade, mandando a população pobre para a periferia
(dando origem às favelas), e procurando construir uma imagem moderna para a
capital do país. A Regeneração foi financiada por investidores estrangeiros que
se aproveitavam da indirec rule, característica dominante no país. Além disso a
modernização da cidade facilitaria o espaço de fluxo de matéria-prima aos
portos brasileiros, e assim, facilitaria a ação do imperialismo.
Na República, “confrontavam-se” Liberais,
que se representavam basicamente pela elite paulista influenciada pelo
cosmopolitismo progressista internacional e os Conservadores representados
pela vanguarda republicana, positivista
e militar, influenciada por estigmas de intolerância e isolamento. Na prática,
os ideais destes dois grupos são indiferenciáveis: “nada mais conservador do
que um liberal no poder”, a República dos Conselheiros se dava então, com o
revezamento da gestão das duas classes. O texto de Machado de Assis, Esaú e
Jacó ilustra bem a “política de acordos” característica marcante no Brasil de
então. É neste complexo quadro que se dá a formação de Euclides da Cunha, ele,
como muitos de seus contemporâneos sofreu as influências desta sociedade
caótica e das ideologias vindas de além mar.
O CONTEXTO
Para que consigamos compreender a obra de
Euclides da Cunha de uma forma mais completa, é estritamente necessário que
façamos um breve parênteses, e olhemos quais eram essas “tão famosas” idéias
cientificistas, positivistas e deterministas que influenciaram o autor, ou
seja: vamos buscar as fontes nas quais Euclides da Cunha “bebeu”. Tentar
enquadrá-lo no contexto histórico-intelectual em que viveu.
Antes de mais nada, é importante
relembrarmos que o continente Americano, mais conhecido como Novo Mundo, sempre
povoou o imaginário europeu. Exemplos
clássicos, são o mito do “bom Selvagem” de Rousseau (uma espécie de herança do
ideais da Revolução Francesa), onde o autor defendia a maior perfectibilidade
do homem americano ( nativo), por ter se conservado no seu estado natural.
Outro exemplo são as idéias de Buffon e De Pauw, que contrariamente a Rousseau,
viam os americanos como degradados, imaturos e decaídos.(SCHWARCZ, 1993:45)
Mas tal discussão não se finda no séc.
XVIII. No século seguinte ela ganha
ainda mais amplitude, entrando no campo de ciência - que na época ganha o status de ser a única e verdadeira forma de
se ver e pensar o mundo. E dentro desse contexto cientificistas, George Cuvier
introduz o termo raça - mostrando a
existência da herança de caracteres físicos permanentes entre os vários grupos humanos (SCHWARCZ,
1993:47) - que, consequentemente irá se confrontar com os ideais igualitários
da Revolução Francesa, principalmente porque, a partir de então, o termo raça,
estará vinculado a outro: cidadania.
Ao ser legitimada, algumas das
principais questões que a ciência irá
estudar são a origem e diversidade da humanidade - tendo sempre em vista uma
resposta absoluta e verdadeira. E o principal debate sobre essa questão se dará
entre os monogenistas e poligenistas. Enquanto os primeiros consideravam que todo
homem tinha a mesma origem e que as diferenças entre eles era resultado de uma
maior ou menor proximidade do Éden (teoria difundida pela Igreja Cristã), os
poligenistas, que baseados em recentes estudos de cunho biológico, acreditavam
que haviam diversos núcleos de produção correspondentes aos diferentes grupos
humanos(SCHWARCZ, 1993: 47). Conseqüentes a esse debate, surgiram no séc. XIX
disciplinas e sociedades não só divergentes como rivais. Exemplos claros será o
surgimento de antropologia criminal, que
considerava que a criminalidade era algo genético, a frenologia e a
antropometria, que calculavam a capacidade humana de acordo com o tamanho do
cérebro de indivíduo estudado dos diferentes grupos humanos, a craniologia,
estudo do crânio, dentre outros.
Entretanto o debate tomará novo fôlego com a
publicação do livro A Origem das Espécies de Charles Darwin em 1859. A partir
de então o termo raça ultrapassará o campo da biologia, se estendendo às
discussões culturais e políticas, além de imprimir o conceito de evolução às
duas visões descritas acima, que muitas vezes irão desvirtuar ou “adaptar” as
teorias darwinistas no que lhes fosse mais conveniente.
Os adeptos do poligenismo são os que melhor
realizam essa “adaptação” das teorias de
Darwin e acabam tendo seus ideais mais difundidos em relação ao seus rivais
monogenistas (é importante frisar que nesse mesmo momento os dogmas da Igreja
estavam sendo questionados pelos cientistas). Exemplos disso são a sociologia
evolutiva de Spencer e a história determinista de Buckle e até mesmo o
sentimento do “Imperialismo Europeu” que se instala nesse momento.
A espécie humana passa a ser tratada como
gênero humano e suas diferenças culturais são classificadas como diferenças
entre espécies: o Homem é dividido e hierarquizado por suas diferenças; e
quanto mais longe uma “espécie” se manter da outra melhor para todos. Mas surge um problema: o que fazer então com
os grupos miscigenados? A maior parte dos estudiosos e cientistas europeus e
norte americanos como Broca, Gobineau e Le Bom, consideravam a miscigenação um
erro, uma quebra das leis naturais, uma subversão do sistema. Segundo Lilia M.
Schwarcz: “Os mestiços exemplificavam, segundo essa última interpretação, a
diferença fundamental entre as raças e personificavam a ‘degeneração’ que
poderia advir do cruzamento de espécies diversas”.(SCHWARCZ, 1993: 56)
Frente a todo esse impacto causado pela
publicação de Charles Darwin, outras disciplinas- ainda vinculadas às duas
visões sobre a origem e diferença do Homem- irão surgir. Dentre elas, algumas
se destacam: a Antropologia cultural ou Etnologia Social que restitui a idéia
de que a humanidade tinha apenas uma origem e sua diferença era proveniente do
processo evolutivo que ela estava fadada a passar e tinha como seus principais
defensores: Morgan, Tylor e Frazer, chamada de escola evolucionista.
Numa perspectiva mais vinculada ao
poligenismo, aparece a escola determinista geográfica de Ratzel e Buckle que
afirmavam que o desenvolvimento ou não de uma nação estava totalmente
condicionada pelo meio físico. Houve também outra escola determinista conhecida
como “darwinismo social” ou “teoria das raças”, que considerava a miscigenação
algo negativo, já que não acreditava que as características adquiridas não eram
transmitidas, ou seja: as raças eram imutáveis. Tal escola acreditava na
existência de três raças bem distantes, o que invalidava a mestiçagem. O mundo
dividido culturalmente era conseqüência da divisão de raças, e havia a raça
superior. Muitos autores acreditavam nesse ideais como: Le Bom que achava que o
“gênero” humano compreendia espécies de diferentes origens. Taine que
considerava o indivíduo resultante direto de seu grupo construtor e que raça e
nação são sinônimos. Renase que acreditava na existência e hierarquização das
três raças. E por fim Gobineau que afirmava que o resultara da mistura era
sempre um dano.(SCHWARCZ, 1993: 56)
Essas premissas da escola determinista,
principalmente a que defendia a existência de uma raça superior, serviram de
base para um movimento que existe até hoje: a Eugenia, que acreditava que só
haveria progresso nas sociedades puras, apenas uma raça estava fadada à
perfectibilidade, a raça ariana e a humanidade estava dividida em espécies: a
miscigenação se torna algo irracional,
contra todas as “leis naturais”. A
Europa e os E.U.A. . difundiram essas idéias pelo mundo, e elas irão
influenciar escritores e pensadores de toda parte.
Os europeus acreditavam que compunham um
grupo humano puro, livre de hibridização, muito mais perto da perfectibilidade
e justamente por isso era o responsável pela civilização dos demais grupos -
argumento que justifica e legitima tanto a colonização americana como o
“Imperialismo Europeu”, o fardo do homem branco.
Já os norte-americanos, mesmo tendo sido
colônias da Europa, comprovaram seu desenvolvimento, principalmente por terem
evitado a miscigenação entre o branco dominador e o negro escravo. E tudo o que foi dito acima serve de justificativa
para que o debate da mestiçagem se dê de forma muito menos complexa nesses
lugares. No Brasil, como no restante da América Latina, o mesmo não ocorre, a
miscigenação é um fato. E mais do que um fato, ela vai se tornar um obstáculo,
quando estudiosos e até mesmo cientistas (tanto nacionais como estrangeiros)
forem analisar o território brasileiro em busca de uma identidade nacional. O
Brasil se tornara uma espécie de laboratório vivo, onde cientistas procuraram
comprovar na prática o que compuseram, e onde “ilustrados” brasileiros buscaram
desesperadamente uma unidade, uma homogeneidade para definir o povo brasileiro,
tendo como principal fonte de estudo , a ciência do séc. XIX descrita acima.
A VIDA
Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu
em Cantagalo, Rio de Janeiro, no dia 20 de janeiro de 1866. Foi criado pelos
parentes, pois sua mãe morreu quando ele
tinha três anos.
Após concluído o ginásio, ingressou na
Escola Politécnica, para cursar engenharia. Devido às dificuldades financeiras,
Euclides teve que largar o curso, e transferiu-se para Escola Militar da Praia
Vermelha. Lá, reencontrou Benjamim Constant, seu antigo professor no Colégio
Aquino, e de quem absorveria idéias
positivista e republicanas.
Já identificado com os princípios
republicanos, Euclides da Cunha cometeu um ato de insubmissão contra a
Monarquia, quando cadete na fortaleza da Praia Vermelha: durante a visita do
ministro da Guerra do Império, o conselheiro Tomás Coelho, atirou seu sabre aos
pés deste, num gesto de contestação ao regime. Foi expulso do Exército por
indisciplina.
Mudou-se para São Paulo e começou a escrever
no jornal “A Província de São Paulo” (futuro “Estado de São Paulo”, após a proclamação da República). Com a vitória
republicana, voltou ao Exército e
concluiu a Escola Militar, formando-se
em Engenharia com bacharelado em Matemática e Ciências Físicas e Naturais.
Em 1894, foi praticamente exilado (dão-lhe a
incumbência de dirigir a construção de um quartel na cidade mineira de Campanha) por assumir posição
antiflorianista. De lá, voltou para São Paulo para escrever no “Estado de São
Paulo”.
Em 1897, Euclides foi mandado para Canudos
pelo jornal como correspondente para reportar os eventos que lá ocorriam.
Enviou uma série de artigos que, futuramente, dariam origem ao “Os Sertões”. O
livro foi concluído em São José do Rio Pardo, onde morou até 1901.
“Os
Sertões” alcançam repercussão nacional, permitindo a Euclides ingressar no
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e na Academia Brasileira de Letras.
Nada disso fez com que Euclides tivesse sua vida mais facilitada. Continuou com
a Engenharia, com momentos de desemprego, enfrentando dificuldades financeiras.
Em 1909, ingressa no Colégio PedroII, no Rio
de Janeiro, para ministrar a cadeira de Lógica. No mesmo ano é assassinado pelo
amante de sua mulher, Ana de Assis, durante uma troca de tiros. Morre com 43
anos de idade. Ensaísta e narrador extraordinário de Os sertões, Euclides da Cunha é o primeiro escritor a encarnar o
gigantismo da terra brasileira, fazendo de sua obra um dos principais alicerces
da consciência nacional.
A OBRA
1) CONTRASTES E
CONFRONTOS, 1907. Coletânea de artigos saídos na imprensa
2) PERU X
BOLÍVIA,1907. Estudo técnico sobre o litígio fronteiriço entre esses dois
países andinos. Através de material técnico e histórico, Euclides mostra os
erros que terminaram por orientar a delimitação territorial entre Peru e
Bolívia.
3) À MARGEM DA
HISTÓRIA,1909. Obra publicada após a morte de Euclides também reunindo artigos
saídos na imprensa.
4) CADERNETA DE
CAMPO,1975
5) CANUDOS, DIÁRIO
DE UMA EXPEDIÇÃO, 1939.
Ambos os livros foram organizados valendo-se
de textos que Euclides publicou no “Estado de São Paulo” entre Agosto e
Setembro de 1897. Mostra como, ao produzir “Os Sertões”, Euclides retrabalhou
seus escritos anteriores.
A CIÊNCIA E O PAÍS
A historiografia das ciências no Brasil é
caracterizada pelo fato de considerar a criação das universidades na década de
30 do século XX como sendo a introdução da ciência no Brasil. A prática
científica nos períodos anteriores a essa data é geralmente considerada como
resultado da influência européia, não passando de mera repetição e copias das
teorias vigentes na Europa.
Não acreditamos que todo o trabalho
intelectual brasileiro desde meados do século XIX possa ser considerado simples
imitação, já que isso significaria "cair em certo reducionismo, deixando
de lado a atuação de intelectuais reconhecidos na época, e mesmo desconhecer a
importância de um momento em que a correlação entre a produção cientifica e o
movimento social aparece de forma bastante evidenciada."(SCHWARCZ, 1993:
17)
No caso das teorias raciais parece ainda
mais improvável a hipótese delas terem sido "importadas" e
reproduzidas aleatoriamente no Brasil. Elas podiam trazer uma sensação de
proximidade com a Europa e uma confiança no progresso e na civilização,
"pareciam justificar cientificamente organizações e hierarquias
tradicionais que pela primeira vez começavam a ser colocadas publicamente em
questão"(SCHWARCZ, 1993: 18), mas também traziam um enorme mal estar. Como
encarar a interpretação pessimista da mestiçagem presente nessas teorias num
país já tão miscigenado?
Aceitar, copiar e reproduzir essas teorias
no Brasil iria inviabilizar um projeto de construção nacional que mal tinha começado.
Os homens de ciência brasileiros tiveram que achar uma resposta original,
adaptando essas teorias utilizando o que combinava e descartando o que era
problemático para a construção de um argumento racial no país. Esses homens são
encontrados nos grupos de intelectuais reunidos nos diversos institutos de
pesquisa e "longe de conformarem um grupo homogêneo (...) estes
intelectuais guardavam, porém, certa identidade que os unia: a representação
comum de que os espaço científicos dos quais participavam lhes davam
legitimidade para discutir e apontar os impasses e perspectivas que se
apresentavam para o país"(SCHWARCZ, 1993: 37).
A ciência era para esses homens o único
caminho possível para as transformações e sobrevivência do Brasil. A vertente
cientificista buscava encontrar as leis que organizavam a sociedade brasileira,
que determinavam a formação do gênio, do espírito e do caráter do povo. Segundo
essa mesma vertente, recorrendo à leis e métodos gerais, seria possível
encontrar as especificidades da evolução brasileira e, assim, deduzir seu rumo.
Como apontou Sevcenko essa atitude seria "uma versão desdobrada do lema
lapidar do positivismo: 'Prever para Prover"(SEVCENKO, 1981: 103).
A necessidade de conhecer o Brasil também
estava calcada no medo que muitos dessa geração tinham de que o país fosse
invadido pelas potências expansionistas e viesse a perder autonomia ou parte do
território. O próprio Euclides da Cunha pregava a necessidade da colonização do
interior e a construção de uma rede interna de comunicação viária.
Essa atitude reformista e salvacionista
pretendia criar um saber próprio sobre o Brasil nos seus mais diferentes
aspectos e resultava em duas reações da comunidade científica. A primeira era
acreditar no curso natural dos acontecimentos, sublimando as dificuldades
presentes e transformando a sensação de inferioridade em um mito de
superioridade. A segunda era buscar um conhecimento profundo do país para
descobrir um certa ordem no caos presente.
Acreditamos que Euclides da Cunha esteja no
segundo grupo, não só porque em momento algum aponta o embranquecimento natural
da população, mas, principalmente pelas suas tentativas de determinar um tipo
ético representativo da nacionalidade ou, pelo menos, simbólico dela.
Euclides da Cunha e a comunidade científica
Na obra de Euclides da Cunha podemos
perceber a influência de várias teorias que estavam em voga na época e, por
isso, temos que entender como ele entrou em contato com elas. O regulamento
implantado em 1874 na Escola Militar da Praia Vermelha, onde Euclides da Cunha
realizou seus estudos de engenharia, foi implantado num "ambiente
intelectual já permeável às doutrinas cientificistas, de cunho positivista,
evolucionista ou determinista."(SANTANA: 35)
Por adotar o modelo francês uma das
principais características da Escola Militar era a ênfase dada aos estudos
matemáticos e um currículo que abrangia as ciências básicas para a formação de
um engenheiro. Segundo Walnice Galvão, o estudo na Escola Militar foi muito
importante para o conhecimento presente nos Sertões, "se compararmos as
áreas de conhecimento que lá são mobilizadas com o currículo da Escola quando
ele era aluno, verificamos que ele já estava familiarizado com boa parte delas.
Tinha estudado na Escola química orgânica, mineralogia, geologia, botânica,
arquitetura civil e militar, construção de estradas, desenho topográfico,
ótica, astronomia, geodésia, administração militar, tática e estratégia,
história militar, balística, mecânica racional, tecnologia militar e as matemáticas.(...)
Como matérias de currículo, não teriam sido obrigatoriamente estudadas a fundo,
conforme se percebe no livro, mas é com vistas afinadas para estes saberes que
Euclides avalia Canudos e a guerra."(SANTANA: 43)
Como podemos explicar então o fato de
teorias não necessariamente ligadas com a engenharia estarem presentes na obra
de Euclides da Cunha, já que como afirma Sevcenko, ele se utiliza de
"bases genéricas do comtismo, para fundi-las com a sociologia organicista
e a filosofias biossociais de cunhagem inglesa e alemã"(SEVCENKO, 1981:
149). O contato com as correntes cientificistas não se davam exclusivamente via
sala de aula, mas "incorporadas ao cotidiano dos alunos através de revista
e sessões de sociedades estudantis, onde se poderiam acompanhar os debates das
teorias cientificistas mais modernas, como as de Spencer, Haeckel e
Darwin."(SANTANA: 35)
Depois de formado, Euclides da Cunha
continua em contato com os escritos desses autores e também passa a ler
escritos sobre o Brasil, como as obras de Varnhagem, Morize, Caminhoá, Silvio
Romero, Capistrano de Abreu, Teodoro Sampaio, Derby, Saint-Hilaire, Liais. Em
São Paulo, Euclides da Cunha encontra alguns desses novos autores que foram
contratados para trabalhar nas recém implantadas instituições, das quais são
exemplos: a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (1886), o Instituto
Agronômico de Campinas (1887), o Instituto Bacteriológico de São Paulo (1892),
a Escola Politécnica de São Paulo (1893) e o Museu Paulista (1894).
Euclides da Cunha era um integrante dessa
comunidade científica e, apesar de só entrar para o IHGB depois de escrever os
Sertões, já era filiado ao IHSP desde 1897 e à Comissão de História e
Estatística de São Paulo desde 1898. Estes eram os espaços que permitiam a relação
entre os filiados e as outras instituições e, principalmente, a difusão dos
trabalhos dos pesquisadores.
O LIVRO
A divisão interna da obra é fruto da
influência sofrida por Euclides do historiador francês Taine, o qual formulou
no seu livro “Histoire de la Littérature Anglaise(1863)”, a concepção
naturalista da história – teoria que
defendia que a história é determinada por três fatores: meio, raça e momento.
Tal concepção naturalista foi seguida pelo autor ao dividir “Os Sertões” em três partes correspondentes
aos fatores de Taine: “A Terra”, “O Homem” e “A Luta” . É também do historiador
francês a citação que consta na nota preliminar do livro a qual traz a idéia
que o “narrador sincero” deveria ser capaz de se sentir um bárbaro entre os
bárbaros, com um antigo entre os antigos.
No plano interpretativo, o professor Alfredo
Bosi propõe a divisão da obra em dois grandes planos: primeiro o plano
histórico, que corresponde a parte final do livro – “ A
Luta” – , sendo que este é seguido pelo plano interpretativo que, por
sua vez, corresponde às duas divisões iniciais do mesmo (“A Terra” e “O Homem”). O momento histórico se reflete na
obra tanto na estrutura determinista (que defende que os estudos devem partir
dos aspectos geológicos, passando para detecção das variações climáticas para
finalmente chegar ao último elo da cadeia que é o homem) quanto no raciocínio
homólogo entre as ciências, onde verificamos a transposição de idéias da
biologia e geologia para a explicação dos fenômenos humanos.
Como pudemos observar ao longo do presente
trabalho, Euclides da Cunha era, em poucas palavras, um engenheiro militar,
republicano, positivista que viveu na segunda metade do século XIX em um país
culturalmente preso à França; e é com esse indivíduo que devemos nos dialogar
durante a leitura desta obra. Até agora, nos detemos em fazer uma análise do
momento, do contexto, da vida, da ciência no Brasil, que envolveram o autor e
sua obra, pois acreditamos que esse é o instrumental teórico necessário para
analisar um texto de tão profundo impacto quanto “Os Sertões”. Uma leitura que
eventualmente não atente para estes detalhes pode deixar de observar a
importância desta obra, ou então, cometendo um anacronismo imensurável, taxá-la
de racista.
Passemos agora ao texto e suas características
principais.
A “Nota Preliminar” da obra mostra, de uma
maneira resumida, qual é o instrumental teórico do autor. Quando Euclides
usa termos como “sub-raça sertaneja”,
ele admite ser adepto tanto do determinismo biológico quanto do darwinismo
social. A marcha da civilização avançaria inexoravelmente sobre o sertão “no
esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes” (GALVÃO, 1998: 14),
porém, a Campanha de Canudos constituía em um retrocesso, um crime. Este é o primeiro grande contraste de uma obra cheia
deles: os homens desenvolvidos do sul e do litoral que deveriam civilizar a
sub-raça que vivia isolada na “terra ignota” do interior, leva na verdade a
morte para homens, mulheres, velhos e crianças.
O PLANO INTERPRETATIVO
As características de topógrafo, engenheiro
e geógrafo, colocam em destaque a riqueza técnica e a sensibilidade do autor na
descrição das várias paisagens do Brasil. Um exemplo dos conhecimentos técnicos
é quando o mesmo explica a sazonalidade e a previsibilidade das secas do
nordeste. Neste trecho fica demonstrado que o autor não só descreve como
problematiza as questões climáticas
porque tem conhecimento de causa.
“Como quer
que seja, o penoso regime dos estados do Norte está em função de agentes
desordenados e fugitivos, sem leis ainda definidas, sujeita às perturbações
locais, derivadas da natureza da terra. Daí as correntes aéreas que o
desequilíbram. (...)Um dos motivos da seca repousa, assim, na disposição
topográfica.(GALVÃO, 1998: 43)
O sertão é tão inóspito que até a natureza
se contorce para ali viver. E como a natureza também o homem se modifica e se
adapta a ela.
Euclides denuncia de certa forma o fato
desta área ser muito mal estudada, e, até nessa questão, culpa a natureza por
isso. O sertão e o sertanejo são algo nunca dantes entendidos e estudados e
isto é um dos fatores que fizeram de sua obra tão lida e tão comentada na
época.
As comparações entre o sul e o norte mostram
que desde o início da obra Euclides tem como objetivo mostrar como que, através
do determinismo geográfico, se formou
uma sub-raça mestiça no sertão. O sul seria a terra que atraí o homem e
o norte a que expulsa, como podemos ver nos trechos abaixo:
“E por mais
inexperto que seja o observador – ao deixar as perspectivas majestosas, que se
desdobram ao Sul, trocando-as pelos cenários emocionantes daquela natureza
torturada, tem a impressão persistente de calcar fundo recém-sublevado de um
mar extinto, tendo ainda estereotipada naquelas camadas rígidas a agitação das
ondas voragens”(GALVÃO, 1998: 29)
“
Ora, estas largas divisões, apenas esboçadas, mostram já uma essencial entre o
Sul e o Norte, absolutamente distintos pelo regime meteorológico, pela
disposição da terra e pela transição variável entre o sertão e a costa.”(GALVÃO,
1998: 74)
A partir de tais comparações o autor toma
como certeza que a aclimatação dos indivíduos seria prejudicial para o
desenvolvimento dos mesmo. O europeu do que colonizou o Norte teria sido
corrompido pelo clima, já o do sul teria mantido as características superiores
pela mesma razão.
“A
aclimatação traduz um evolução regressiva. O tipo desaparece num esvaecimento
contínuo, que se lhe permite a descendência até à extinção total. Como o inglês
nas Barbadas, na Tasmânia ou na Austrália, o português no Amazonas, se foge ao
cruzamento, no fim de poucas gerações tem alterados os caracteres físicos e
morais de uma maneira profunda, desde a tez, que se acobreia pelos sóis e pela
eliminação incompleta do carbono, ao temperamento, que se debilita despido das
qualidades primitivas. A raça inferior, o selvagem bronco, domina-o; aliado ao
meio vence-o, esmaga-o, anula-o na concorrência formidável ao impaludismo, ao
hepatismo, às pirexias esgotantes, às canículas abrasadoras, e aos alagadiços
maleitosos.”(GALVÃO, 1998: 79)
Neste trecho temos em resumo a idéia do
porquê que o autor descreve tão detalhadamente a terra. São as teorias
deterministas, tanto biológicas quanto geográficas, que o norteam. O homem é um
fruto de seu lugar. Para o Euclides que escreve antes de ver pessoalmente o
desmonte criminoso do arraial de Canudos, as leis européias são as máximas
vigentes.
Os tipos brasileiros, como o sertanejo e o
gaúcho, resultaram não só da mestiçagem mas também da interação entre homem e
natureza, homem e sociedade. Continua a operar o paralelo entre as séries,
especialmente entre as mais próximas: as espécies de plantas e de animais devem
a sua anatomia e fisiologia tanto à herança quanto a seculares esforços de
adaptação ao meio e aos outros organismos. A simetria, que se dá por provada no
nível genético e no nível mesológico, estendendo-se ao social. E os caracteres
raciais ora confirmam-se ora se alteram no curso histórico da luta pela vida.
A descrição geográfica da região onde se
instala o “Belo Monte” de Conselheiro, é detalhada, o que dá à obra uma
característica própria do autor. O clima, o solo, os ventos, as chuvas, a
temperatura, os animais e o homem, tudo é descrito não só apenas por um
observador atento mas por um cientista natural.
O
sertão é a terra esquecida pela metrópole portuguesa e posteriormente pela
monarquia brasileira. Nela se formou isolada geograficamente um povo mestiço
que se diferenciou dos mestiços litorâneos, para melhor, em razão do próprio
isolamento no qual se mantiveram. Não podemos esquecer que “o sertanejo é antes
de tudo um forte” porque não é como “os mestiços neurastênicos do litoral”.
Eis, então, outro grande contraste que permeia toda a obra de Euclides da
Cunha. Mas antes de mais nada, o autor reforça que toda “a mestiçagem extremada
é um retrocesso”, o que vai de encontro com as teorias vigentes. Nessa época,
dizer que o homem branco não superior à qualquer tipo de mestiçagem é uma
ofensa a uma lei que até então era inquestionável.
“Porque ali
ficaram, inteiramente divorciados do resto do Brasil e do mundo, murados a
leste pela Serra Geral, tolhidos no ocidente pelos amplos campos gerais, que se
desatam para o Piauí e que ainda hoje o sertanejo acredita sem fins. O meio
atraía-o e guardava-os.”(GALVÃO,
1998: 190)
"O
abandono em que jazeram teve função benéfica. Libertou-os da adaptação
penosíssima a um estádio social superior, e simultaneamente, evitou que
descambassem para as aberrações e vícios dos meios adiantados”(GALVÃO, 1998: 103)
Eis porque o sertanejo leva vantagem sobre
o mestiço do litoral. O primeiro permaneceu isolado enquanto o segundo teve que
forçosamente se submeter às regras dos indivíduos superiores.
Para ilustrar a idéia de que o sertanejo é
um forte, Euclides da Cunha cria a metáfora da rocha viva. Como vimos na época
que escreveu os Sertões Euclides estava em São José para reconstruir um ponte
que havia tombado, ele acaba encontrando uma base muito firme para essa
reconstrução: o granito. A partir daí desenvolve uma correlação entre a pedra e
o homem do sertão.
Respondendo à criticas de que essa metáfora
entrava em contradição com sua afirmação da inexistência da unidade racial
brasileira o próprio Euclides explica-a numa segunda edição do livro. "Rocha viva...A
locução sugere-me um símile eloquente.
De fato,
a nossa formação como a do granito surge de três elementos
principais . Entretanto quem ascende por
um cerro granítico encontra os mais diversos elementos: aqui a argila pura do
feldspato decomposto, variamente colorida; além da mica fracionada, rebrilhando
escassamente sobre o chão; adiante friável, do quartzo triturado; mais longe o
bloco moutnné, de aparência errática; de e por toda a banda a mistura desses
mesmos elementos com a adição de outros, adventicios, formando a incaracterístico
solo arável, altamente complexo. Ao fundo, porém, removida a camada
superficial, está o núcleo compacto e rijo da pedra. Os elementos esparsos, em
cima, nas mais diversas misturas, porque o solo exposto guarda até os materiais
estranhos trazidos pelo vento, ali estão, embaixo, fixos numa dosagem segura, e
resistentes, e íntegros.
Assim, à medida que aprofunda, o observador
se aproxima da matriz de todo definida no local. Ora o nosso caso é idêntico -
desde que sigamos das cidades do litoral para os vilarejos do sertão.
A principio uma dispersão estonteadora de
atributos, que vão de todas as nuances da cor a todos os aspectos do caráter: “Não há distinguir-se o brasileiro intrincado
misto de brancos, negros e mulatos de todos os sangues e de todos os matizes.
Estamos à superfície da nossa gens, ou melhor, seguindo à letra a comparação de
há pouco, calcamos o húmos indefinido da nossa raça. Mas estranhando-nos na
terra vemos os primeiros grupos fixos - o
caipira no sul, e o tabaréu, ao norte - onde já se tornam raros o branco, o
negro e o índio puros. A mestiçagem generalizada produz, entretanto, ainda
todas as variedades das dosagens díspares dos cruzamentos. Mas a medida que
prosseguimos estas últimas se atenuam. Vai-se notando maior uniformidade nos
caracteres físicos e morais. Por fim a rocha viva - o sertanejo"(CUNHA,
1939: 580)
Euclides
da Cunha não encontra o tipo brasileiro, que segundo ele próprio talvez nem
exista, mas estabelece um símbolo da nacionalidade, símbolo que podia se prestar "a operar como um eixo sólido que
centrasse, dirigisse e organizasse as reflexões desnorteadas sobre a realidade
nacional."(SEVCENKO, 1981: 106)
Igualmente importantes são as descrições do
tipo de vida e dos costumes sertanejos. Euclides mostra, à seu modo, como esses
homens simples vivem, as suas relações com os animais e coma a natureza local,
bem como o seu fanatismo religioso, seu respeito á morte, sua “psique” de uma
forma geral.
“O homem dos sertões – pelo que esboçamos –
mais do que qualquer outro está em função imediata da terra. É uma variável
dependente no jogar dos elementos. Da consciência da fraqueza, para os debelar,
resulta, mais forte, este apelar constante para o maravilhoso, esta condição
inferior de pupilo estúpido da divindade. Em paragens mais benéficas a
necessidade de um tutela sobrenatural não seria tão imperiosa”(GALVÃO, 1998: 126)
Antônio Conselheiro é mostrado como um
indivíduo marcado por uma biografia
dotada de elementos sobrenaturais. Carismático e penitente, o profeta conseguiu
reunir muitos sertanejos de fé extremada. O povoado é descrito como se
constituísse um agrupamento de bárbaros, uma tribo e até mesmo um clã. O autor
dá considerável destaque para o fator que chegado certo tempo, todo o tipo de
gente se dirige para Canudos o que causou um despovoamento das cidades
vizinhas. Porém uma vez dentro do arraial, os diferentes se tornavam iguais e a
coletividade de homogeinizava de uma forma que surpreendente.
“O
sertanejo simples transmudava-se, penetrando-o, no fanático destemeroso bruto.
Absorvia-o a psicose coletiva”(GALVÃO, 1998: 163)
Em linhas gerais, podemos definir esta
parte do livro, o plano interpretativo
de Bosi, a partir dos contrastes
nela enunciados. São eles os travados entre a região sul e norte do Brasil,
entre o litoral e o sertão nordestino, entre o sertão seco (infernal) e o
sertão depois da chuvas (padisíaco) e finalmente entre o mestiço do sertão –
curiboca – e o mestiço do litoral – mulato.
As descrições ricamente cheias de detalhes
preparam o leitor para o plano histórico onde os fatos de desencadearão. Mais
do que saber o que foi a Campanha, Euclides da Cunha nos oferece a partir de
seu livro um “raio x” do sertão e do sertanejo como nunca fora antes feito. O
leitor vai para “A Luta” sabendo quem e como vivem os atores deste triste
episódio da história brasileira.
O FINAL
É importante pensar no mito que se criou em
torno tanto do autor, quanto da obra. Existe ainda hoje uma relação passional
com a figura de Euclides: duas cidades brigam para decidir aonde vão ficar seus
restos mortais – São José do Rio Pardo, aonde escreveu o livro e Cantagalo,
hoje também conhecida como Euclidolândia, aonde nasceu. O livro, publicado
cinco anos após o fim de Canudos, mesmo sendo um ataque ao exército e uma
denúncia do genocídio causado pela República, é um sucesso e vende muito assim
que publicado. Criador e criatura viram ícones. Mas para entender a criação
deste mito, é preciso ver que este é um quebra-cabeça de várias partes.
O próprio Dante Moreira Leite, justifica a
importância e repercussão do livro por sua linguagem.
“Se assim é,
se a obra de Euclides da Cunha apresenta contradições tão nítidas – algumas das
quais foram percebidas pelos primeiros leitores e críticos – pode-se perguntar
como pôde ter uma repercussão tão grande. Esta não será compreendida se não
lembrarmos o seu valor literário; embora não seja livro fácil, nem destinado a
uma leitura desatenta, Os Sertões contém elementos de intensa dramaticidade,
apresentados numa linguagem solene e adequada à grandeza da narrativa”. (LEITE, 1983:229)
Talvez o que mais marcou sua vida, tanto
quanto sua obra, foi a sua viagem a Canudos. Euclides era um cientificista,
dentre muitas outras coisas, que vivia em uma época em que não se “ia à luta”.
Teóricos trabalhavam apenas sobre livros, mas Euclides vai a Canudos e suas
idéias ganham dinâmica. Dante Moreira Leite analisa como tal experiência
repercutiu em uma linguagem muito mais realista e vibrante:
“(...) o
estilo de Euclides, capaz de transmitir ao leitor a vibração de revolta diante
dos acontecimentos de Canudos; além disso, como o livro pretende ser
estritamente realista e, mais ainda, um livro de ciência, a sua prosa dramática
adquire, talvez por estar contida nos limites da realidade histórica, uma
intensidade que não teria na ficção.” (LEITE,
1983:222)
Muitas de suas concepções são alteradas.
Diversas vezes, Canudos é associado ao movimento francês da Vendéia – como
aparece : “Canudos era a nossa Vendéia” – sendo visto como um movimento monarquista
por Euclides. Mas, “o contato direto com as condições físicas e morais do
sertanejo”(BOSI) , como defende Bosi, acabou por desmentir o pressuposto.
No entanto, como depois também vai apontar
Bosi, a interpretação se achava presa a um sistema de pensar fatalista. Entre o
observador atento e a “cidadela-mundéu” dos jagunços havia mais do que um
simples olhar desprevenido: a fixação do homem e o relato da luta não se fariam
sem a tela das mediações ideológica e literária. Antônio Conselheiro vai ser sempre
o fruto mórbido de uma cultura propensa à desordem e ao crime. Como a sociedade
que o produziu, ele tende a reviver esquemas regressivos de conduta e
linguagem. Como aparece no livro:
“É
natural que estas camadas profundas de nossa estratificação étnica se
sublevassem numa anticlinal extraordinária – Antônio Conselheiro... As fases
singulares da sua existência não são, talvez, períodos sucessivos de uma
moléstia grave, mas são, com certeza, resumo abreviado, dos aspectos
predominantes de mal social gravíssimo. Por isso o infeliz, destinado à
solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior, bater de
encontro a uma civilização, indo para a história como poderia ter ido para o
hospício. Porque ele para o historiador não foi um desequilibrado. Apareceu
como integração de caracteres diferenciais – vagos, indecisos, mal percebidos
quando dispersos a multidão, mas enérgicos e definidos, quando definidos numa
‘individualidade’ (... ) É difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre
as tendências ‘pessoais e as tendências coletivas: a vida resumida do homem é
um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade...”
A linguagem, como já explicitamos
anteriormente, é extremamente marcante e importante em Os Sertões. Euclides se
utiliza inúmeras vezes de estilos e figuras com certas finalidades. Em suas
“Notas de Leitura”, ele mesmo afirma:
“Vemos o quanto é forte esta alavanca – a
palavra – que levanta sociedades inteiras, derriba tiranias seculares”.
Bosi
atenta par o uso da linguagem como modo de explicar e fundamentar o que não tem
fundamento nem explicação, a “ideologia do inapelável”. Daqui se entende o uso
exaustivo de intensificações e antinomias, que imprimem um sentido
grandiloqüente ao texto, além de: “reportar ao seu vezo de agigantar o tamanho,
agravar o peso, acelerar o ritmo, alongar as distâncias, acentuar as
diferenças, exasperar as tensões, radicalizar as tendências: em suma, ver nas
coisas todas a sua face desmedida e extrema.” (BOSI: 6)
Um exemplo do
próprio Sertões:
“Muito baixo no horizonte, o Sol descia
vagarosamente, tangenciando com o limbo rutilante o extremo das chapadas
remotas e o seu último clarão, a cavaleiro das sombras, que já se adunavam nas
baixadas, caía sobre o dorso a montanha... Aclarou-o por momentos. Iluminou,
fugaz, o préstito, que seguia à cadência das rezas. Deslizou, insensivelmente,
subindo, à medida que lentamente ascendiam as sombras, até ao alto, onde os
seus últimos raios cintilaram nos píncaros altaneiros. Estes fulguraram por
instantes, como enormes círios, prestes acesos, prestes apagados, bruxuleando
na meia-luz do crepúsculo. Brilharam as primeiras estrelas. Rutilando na
altura, a cruz resplandecente de Órion, alevantava-se sobre os sertões...” (CUNHA, 1985:314,315)
Mas todo este estilo “rebuscado”, se explique
pela narrativa tratar de uma realidade já vista e já sentida e qualificada como
trágica. Assim, a montagem do relato acaba dependendo de uma série cronológica,
o que deixa que a liberdade estilística se faça maior no momento da elocução
(pelo uso intensivo das figuras de linguagem).
E foi realmente este seu estilo que o
consagrou logo que publicou pela primeira vez Os Sertões, mesmo sendo o seu
conteúdo, quem traz sua importância: a de conseguir ultrapassar o científico,
ir à luta, ver, sentir e mudar.
Sua visão de mundo muda com sua vivência em
Canudos. Mas talvez seja um pouco complicado tratar da visão de mundo de um
homem tendo lido apenas um livro seu. Nicolau Sevcenko, em sua tese de
doutoramento, faz uma análise minuciosa
do que ele mesmo entende por “visão de mundo”, porém, para isso, se baseia em
praticamente tudo que o autor deixou escrito. Como aparece na referida tese:
“A partir da maneira como Euclides da Cunha
dispõe, dá coerência, organiza e estrutura as concepções e idéias que lhe
suscita a realidade circunjacente, no interior do espaço peculiar aberto por
sua linguagem, é que podemos descortinar a sua visão de mundo. Assumem
preponderância aqui as suas anotações de caráter mais pessoal, que serão
cotejadas com as grandes diretrizes imprimidas pelo autor à sua obra e que vêm
de ser apresentadas.” (SEVCENKO,
1981:211)
Porém,
talvez sua visão cientificista e sua posição de republicano decepcionado ajudem
a compreender seu mundo. Principalmente depois de Canudos, ele via uma inversão
em sua sociedade. Mas o mais importante de pensar é como ele aparece como um
homem de contradições e contrários. Tanto ele escreve e argumenta opondo
elementos, como vive em um oscilar de posições. Quando Euclides vai a Canudos,
perde este discurso factual e determinista; o inelutável e intransponível do
fato vai cedendo às inflexões de um pensamento propriamente humano. A linguagem
de denúncia e protesto que finaliza a narração de uma Canudos destruída cumpre
a função de um apelo em que, como Bosi afirma: “pode aparecer um nós empenhado
no que diz.”
Então vamos ao final de Canudos:
“Fechemos este livro.
Canudos
não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento
completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia
5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram.
Eram quatro apenas: um velho, dous homens feitos e uma criança, na frente dos
quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.
Forremo-nos
à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta
página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la
vacilante e sem brilhos.
Vimos como
quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a
vertigem...
Ademais não
desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se
amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares,
abraçadas aos filhos pequeninos?...
E de que
modo comentaríamos, coma só fragilidade da palavra humana, o fato singular de
não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na
véspera, e entre eles aquele Antônio Beatinho que se nos entregara, confiante –
e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa
história?
Caiu o
arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5200,
cuidadosamente contadas.
Antes, no
amanhecer daquele dia, comissão adrede escolhida descobrira o cadáver de
Antônio Conselheiro.
Jazia num
dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de um
prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de um
lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desprazido algumas flores murchas, e
repousando sobre uma esteira velha, de tabua, o corpo do ‘famigerado e bárbaro’
agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hábito azul de brim americano, mãos
cruzadas ao peito, rosto tumefacto e esquálido, os olhos fundos cheios de terra
– mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida.
Desenterraram-no
cuidadosamente. Dádiva preciosa – único prêmio, únicos despojos opimos de tal
guerra! -- faziam-se mister os máximos resguardos para que se não
desarticulasse ou deformasse, reduzindo-se a uma massa agulheta de tecidos
decompostos.
Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa
firmando a sua identidade: importava que o país se convencesse bem de que
estava, afinal extinto, aquele terribilíssimo antagonista.
Restituíram-no
à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar a sua cabeça tantas vezes maldita –
e como fora malbaratar o tempo exumando-o de novo, uma faca jeitosamente
brandida, naquela mesma atitude, cortou-lha; e a face horrenda, empastada de
escaras e de sânie, apareceu ainda uma vez ante aqueles triunfadores.
Trouxeram
depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio. Que a
ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no relevo de circunvoluções
expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura...”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O livro acaba mas não termina. Com esta
obra o Brasil ganhava uma das suas mais importantes reflexões sobre a
identidade nacional. O escritor do início da obra, positivista que acreditava
na república, é o mesmo que denuncia a dor a fome e a barbárie. Canudos foi um
crime cometido para e pela reiteração da
república. O cancro monarquista nunca existiu naquela terra esquecida
pelos seus governantes e o Estado só chegara tão longe para trazer a injustiça
e a morte. Essa não era a república reclamada pelo autor.
Como identidade nacional, podemos tirar
desta obra a seguinte frase: “A nação brasileira é o resultado de uma
angústia racial”. Euclides sofre essa angústia da qual as “leis” européias
não dão conta. O Brasil é um país sem seu tipo antropológico definido e ele,
Euclides da Cunha, é o primeiro que se propões a fazer um estudo a fundo desses
cruzamentos todos que nos formam. Euclides não mascarou a realidade porque não
pregou uma falsa igualdade social entre as “raças”, o que seria feito por
outros como Oliveira Viana, ou Afonso Celso. Se hoje podemos enxergar mais
longe que Euclides é porque somos
pigmeus olhando do ombro de gigantes como ele.
Euclides da Cunha - Os Sertões - Canudos
www.klepsidra.net/klepsidra3/euclides.html - 100
RAÇA E EVOLUÇÃO SOCIAL EM
“OS SERTÕES” DE EUCLIDES DA CUNHA
A busca por uma direção segura para o
progresso, que englobe, num mesmo projeto, toda a nação brasileira – nos
aspectos políticos, econômicos e sociais – é tema de grande importância no
cenário atual. As reflexões sobre esse processo adentram intensamente os
debates nos centros acadêmicos e nas instituições governamentais, porém a
preocupação com o desenvolvimento do país não é privilégio de nossos tempos.
O importante trabalho de Euclides da Cunha,
referência no pensamento social brasileiro, demonstra a preocupação de
intelectuais, no princípio do século XX, em questionar os rumos que o país
tomava e, fundamentalmente, encontrar alternativas para um projeto de
desenvolvimento nacional através de concepções teóricas e pragmáticas. Dentre
os trabalhos desse período destaca-se aqui, essencialmente, “Os Sertões”. Essa
obra possui um valor inestimável na história da teoria social no Brasil,
apresentando uma análise da realidade nacional articulada com fundamentos da
mudança social. As reflexões presentes superam o caráter historiográfico
referente ao movimento de Canudos, ampliando o campo analítico para as
possibilidades de mudança através de um processo de evolução social. A
fundamentação desse processo está calcada no evolucionismo de Herbert Spencer.
"(...)
Spencer foi um filósofo bastante conhecido em seu tempo e as idéias evolutivas
eram parte integrante de suas obras filosóficas, como, por exemplo, a Synthetic
Philosophy, onde popularizou a palavra ‘evolução’" (MARTINS, 2004: 282).
Os princípios teóricos de Spencer foram
assimilados pela intelectualidade que buscava os vários caminhos para a mudança
social no Brasil, adequando o discurso à crença no progresso da ciência e da
indústria. O processo de mudança deveria acabar com os elementos fundamentais
de uma sociedade predominantemente tradicional.
"O pensamento de Herbert Spencer servia
admiravelmente para isso, pois eles o entendiam afirmando que o progresso é
inevitável, que os levaria a um futuro industrial e que a ciência provara a
veracidade de ambas as afirmativas" (GRAHAM, 1973: 241).
Euclides da Cunha assimilou os ensinamentos
de Spencer remetendo-os à realidade brasileira, emergindo uma análise
evolucionista com algumas peculiaridades. Estas peculiaridades são norteadoras
dos elementos de divergência e convergência com o arcabouço teórico spenceriano
que impulsionava sua lógica analítica. No interior da obra “Os sertões”
destacam-se vários momentos de diálogo com a teoria evolucionista.
Assim como Spencer, Euclides da Cunha
concebia a história de maneira linear, ou seja, uma progressão sem rupturas e
com continuidade. A tese spenceriana de que todas as sociedades partem de um
mesmo ponto é refutada por Euclides da Cunha que adere à concepção poligenista,
isto é, a origem diferenciada de cada sociedade, o que garante,
fundamentalmente, a especificidade de cada formação social.
"A
inspiração nas formulações de Spencer sobre a evolução orgânica baseada na
passagem de formas de vida simples (primitiva, comunitária) para de formas de
vida crescentemente complexas (organizações em instituições como o Estado e
indústrias) levava-o a demarcar as dificuldades de progresso da sociedade
brasileira em razão do cruzamento de raças, do mestiçamento, da inferioridade,
da colonização, do isolamento, da cisão entre o litoral e o sertão, das
dificuldades políticas e econômicas e da precariedade da ciência" (REZENDE, 2001: 207).
Essa evolução, segundo Spencer, seria a
passagem da homogeneidade para a heterogeneidade através da complexidade
(simples-instáveis para os complexos-estáveis) e que o organismo social mais
complexo deveria dominar o menos complexo. Euclides da Cunha relutava em
aceitar essa tese que pressupunha a dominação sobre os organismos sociais menos
evoluídos.
"O
grande problema era, então, a ausência de um projeto de civilização que levasse
em conta o jagunço destemido, o tabaréu ingênuo, o caipira simplório, o
sertanejo das caatingas nordestinas e do chão úmido da Amazônia. Os setores
preponderantes pretendiam impor formas de mudanças sociais que desconsideravam
as especificidades brasileiras. Segundo ele, uma sociedade que pretendia imitar
as instituições e os modos de ser e de agir europeus não criaria jamais um
autêntico projeto civilizador" (REZENDE,
2001: 203).
Nessa perspectiva, Euclides da Cunha
construiu uma argumentação que negava esse processo de domínio do “mais forte”
sobre o mais “fraco”, o que no período de transição do século XIX para o XX
remetia à superioridade da Europa e a legitimação do imperialismo
internacional. Contra uma possível colonização, apontava elementos da realidade
nacional que pudessem delinear um caminho para o progresso por vias
“tupiniquins”. Afirmava que o progresso só era possível através de um projeto
civilizatório que englobasse toda a nação.
"O país
somente poderia civilizar-se, para Euclides da Cunha, através de um projeto de
integração nacional em que estivessem incluídos todos os brasileiros. A
evolução significava a criação de condições econômicas, políticas e sociais
para o rompimento da exclusão da maioria da população" (REZENDE, 2001: 213).
Como era recorrente nos meios intelectuais
no início do século XX, a preocupação com o mestiçamento na sociedade
brasileira permeava a reflexão de Euclides da Cunha. Para ele, a evolução
social estava articulada com a questão racial.
Como pensar o progresso da nação no tocante
à influência das diferentes raças componentes do “tipo social brasileiro”?
Como, no meio desse entrelaçamento de raças, buscar o cerne da evolução social
no Brasil? O autor de “Os sertões” apresentava a resposta.
"Não
temos unidade de raça. Não a teremos talvez nunca.
Predestinamos-nos
à formação de uma raça histórica em um futuro remoto, se o permitir dilatado
tempo de vida nacional autônoma. Invertemos sob este aspecto, a ordem natural
dos fatos. A nossa evolução biológica reclama a garantia de evolução social.
Estamos
condenados à civilização.
Ou
progredimos, ou desaparecemos" (CUNHA,
1968: 54).
A unidade de raça era um devir relacionado
diretamente com a autonomia da vida nacional ou à evolução nos moldes
peculiares à nação. Esta, por sua vez, necessitava de um “tipo social” que
encarnasse a resistência às influências externas. A partir da teoria de
Spencer, Euclides da Cunha faz uma análise dos “tipos sociais” sertanejos em
relação aos litorâneos, de acordo com os legados individuais, ou seja, partindo
do pressuposto de que não existe o homem em geral (tese positivista) e sim, o
homem circunstancial. Segundo ele, através das partes seria possível entender o
todo.
"É
difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências pessoais e as
tendências coletivas: a vida resumida de um homem é um capítulo instantâneo da
vida de sua sociedade (...). Acompanhar a primeira é seguir paralelamente e com
mais rapidez a segunda: acompanhá-las juntas é observar a mais completa
mutualidade de influxos" (CUNHA,
1968: 112).
Essa afirmativa remete a preocupação
constante em demonstrar a diversidade étnica do país, a qual todo processo de
mudança rumo ao progresso deveria estar assentado.
"O
estudo de Euclides da Cunha sobre a Guerra de Canudos procurou revelar o
significado do embate entre duas civilizações bárbaras, ambas brasileiras,
através, principalmente, da obra de Spencer" (REZENDE, 2001: 206).
Em “Os Sertões”, o Brasil é dividido em duas
partes, litoral e sertão, que pertencem a um conjunto de relações que torna
bastante visível a formação de duas civilizações distintas. Os indivíduos
pertencentes a essas civilizações possuíam características peculiares, moldadas
pela interação de elementos físicos (clima, relevo, vegetação, etc.) e
elementos sociais (miséria, educação, conflito, etc.). Esse princípio norteia
sua análise, que busca no sertanejo (jagunço) os caracteres que, segundo sua ótica,
consolidariam a resistência à “dominação civilizatória exterior” e seriam a
engrenagem da evolução social no país.
Euclides da Cunha não via de bom grado o
mestiçamento em geral, o que ele frisava sobre essa questão era a resistência
contida no mestiço (branco com o indígena) específico dos sertões.
"Esse
mestiço era, então, completamente diferente do mestiço do litoral. A sua
segregação social e espacial, o meio físico e o clima teriam contribuído para
que se formasse no país um tipo diverso capaz de ações de resistência como as
que ocorreram no movimento de Canudos" (REZENDE, 2001: 212).
O mulato litorâneo e outras variantes eram
consideradas, nesse prisma, como um retrocesso.
"A
mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as
conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sôbre o produto o influxo de
uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem
extremada é um retrocesso. O indo-europeu, o negro e o brasílio-guarani ou o
tapuia, exprimem estádios evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sôbre
obliterar as qualidades preeminentes do primeiro, é um estimulante à
revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço –
traço de união entre raças, breve existência individual em que se comprimem
esforços seculares – é, quase sempre, um desequilibrado" (CUNHA, 1968: 82).
Há, em seu pensamento, uma tensão com essa
problemática, em um momento desqualifica e, posteriormente relativiza. Porém, o
que buscava com essas considerações era um tipo específico de homem nesse
emaranhado de mestiços, aquele resistente proveniente da aridez dos sertões,
das dificuldades cotidianas e que, não estaria degenerado pelos vícios da vida
civilizada.
"Ao
invés da inversão extravagante que se observa nas cidades do litoral, onde
funções altamente complexas se impõem a órgãos mal constituídos, comprimindo-os
e atrofiando-os antes do pleno desenvolvimento – nos sertões a integridade
orgânica do mestiço desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas,
destinos, porque é a sólida base física do desenvolvimento moral ulterior" (CUNHA, 1968: 85).
Para Euclides da Cunha, a “raça forte” dos
sertões iria se sobrepor à “raça fraca” do litoral impulsionando o progresso
para uma civilização compatível com os elementos nacionais, essencialmente, sua
diversidade. Dessa forma, demonstrava em sua análise uma preocupação constante
com os rumos do país e as possibilidades de um projeto nacional que levasse o
Brasil à evolução social.
Raça e evolução social em "Os Sertões" de Euclides da
Cunha
www.espacoacademico.com.br/058/58borges.htm - 26k
ENTRE A LINGUAGEM E A POESIA: UMA
ANÁLISE SINTÁTICA SOBRE OS SERTÕES
Déborah Christina de Mendonça Oliveira (UCB)
RESUMO: O
presente artigo tem como objetivo analisar alguns aspectos sintáticos presentes
na obra Os Sertões de autoria de
Euclides da Cunha. O trabalho terá como foco de análise os seguintes pontos: as
construções das sentenças, a pontuação utilizada, as formas verbais e a posição
dos adjetivos presentes na referida obra. Tais aspectos receberão, muitas
vezes, um tratamento linguístico; isso significa que a abordagem dos temas terá
como referencial teórico as teorias linguísticas mais recentes. Sabe-se, no
entanto,que o estudo do estilo não se esgota nos aspectos formais de
composição.
Palavras-chave:
Adjetivos; Euclides da Cunha; formas verbais; pontuação; sintaxe.
Introdução
O presente trabalho foi suscitado por uma
discussão inicial acerca de Os Sertões de Euclides da Cunha, promovida por meio
de uma mesa-redonda intitulada “Linguagem, poesia e ciência: encontros e
confrontos em Os Sertões”, da qual participei em maio de 2010, na Universidade
Católica de Brasília, cujo objetivo era debater aspectos literários e linguísticos
da obra em questão. Portanto, a
análise apresentada, neste artigo, é resultante,em parte, da apresentação feita
na ocasião desta mesa-redonda.
Este estudo terá como enfoque alguns
aspectos da sintaxe do texto de Euclides da Cunha, a saber: a forma de
construção das sentenças, a pontuação, as formas verbais e a posição dos
adjetivos. Tais aspectos receberão, muitas vezes, um tratamento linguístico; isso
significa que a abordagem dos temas terá como referencial teórico as teorias linguísticas
mais recentes. Sabe-se, no entanto, que o estudo do estilo não se esgota nos aspectos
formais de composição.
Antes de iniciar a análise, não se pode
deixar de fazer menção, nestas notas preliminares, ao contexto histórico em que
se estabeleceu o texto Os Sertões, pois grande é a influência que fatores, tais
como: o contexto histórico, social e político exercem na estruturação do
conteúdo da obra e na análise dos efeitos de sentido que encontramos na manifestação
verbal do texto.
A obra Os
Sertões de autoria de Euclides da Cunha foi publicada em 1902. Em 1897,
Euclides da Cunha havia sido enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo, como correspondente,
ao norte da Bahia, para fazer a cobertura do conflito no arraial de Canudos,
liderado por Antônio Conselheiro. Segundo o Governo da época, a revolta era liderada
por fanáticos monarquistas, que lutavam contra a República. O livro Os Sertões
é fruto, provavelmente, do que o autor viu e pesquisou sobre o movimento. Nos
primeiros artigos que Euclides enviou para o jornal O Estado de S. Paulo, o
autor apresentou o conflito de Canudos sob a ótica republicana, que via no
movimento uma tentativa contra o Governo. Entretanto, após um olhar mais
acurado, o autor pôde fornecer ao leitor a real
dimensão da
história, que ele define como um crime na significação integral da palavra.
A obra está dividida em três partes: A terra,
O Homem e A Luta. A linguagem do autor é, muitas vezes, técnica e sisuda,
permeada de expressões científicas. O estilo utilizado por Euclides,
representado pelas construções sintáticas, infunde na obra uma preocupação
estética, em que a forma tenta reproduzir o conteúdo do texto. O texto narra a situação
de miséria do sertanejo, causada pela seca, e o massacre promovido pelo
Exército brasileiro para pôr fim à iniciativa de Antônio Conselheiro e de seu
grupo, como bem observou Souza (2009):
O
narrador que se acopla estruturalmente ao pintor euclidiano da natureza procura
sempre apresentar o efeito trágico da guerra de Canudos, e não a guerra em si
mesma. Não se atém aos golpes e contragolpes das cenas de batalhas entre os
exércitos rivais. Concentra-se no emolduramento dos quadros da natureza,
viabilizando a pintura das cenas dramáticas, que representam a reviravolta
catastrófica dos abatidos em combate. (p. 37)
Depois de feitas a introdução e a
contextualização da obra em discussão, passemos à análise dos aspectos
propostos para este trabalho.
1. A construção das sentenças
Em primeiro lugar, ressalta-se a maneira
como as construções são elaboradas em Os Sertões. Observam-se períodos extensos
seguidos, às vezes, de sentenças curtas, que funcionam como hiatos ou como
freadas bruscas para repousar a leitura de um texto que é denso. Esses
intervalos consistem em frases soltas e isoladas, que podem retomar um período
anterior ou apresentar um período seguinte, como no trecho destacado abaixo:
Estiram-se
então planuras vastas. Galgando-as pelos taludes, que as soerguem dando-lhes a aparência
exata de tabuleiros suspensos, topam-se, a centenas de metros, extensas áreas ampliando-se,
boleadas, pelos quadrantes, numa prolongação indefinida, de mares. É a paragem
formosíssima dos campos gerais, expandida em chapadões ondulantes – grandes tablados
onde campeia a sociedade rude dos vaqueiros... Atravessemo-la. (p. 17)
Essa característica da obra de Euclides da
Cunha é apresentada também por Souza (2009), que afirma que a mutação repentina
em um parágrafo de uma única oração, na forma imperativa, manifesta a intenção
do narrador de atravessar a belíssima região.
Segundo ele, o ditame inclui, ainda, um
convite ao leitor disposto à excursão nos maravilhosos domínios dos campos
gerais.
Os períodos extensos da obra exemplificam o
caráter criativo da linguagem humana e oferecem provas da recursividade nas
línguas naturais. O aspecto criativo da linguagem humana constitui uma
diferença essencial entre os sistemas linguísticos de comunicação humana e os
sistemas de comunicação animal. De acordo com Chomsky (1998), nenhuma criança
tem de aprender que há sentenças de três palavras e sentenças de quatro
palavras, mas não sentenças de três palavras e meia, e que é sempre possível
construir uma sentença mais complexa, com uma forma e significados definidos.
A abordagem gerativa, por exemplo, tem como
questão de investigação identificar as características das línguas naturais que
lhes atribuem caráter único. Para isso, a teoria prima por um estudo
internalista da linguagem, que tenta descobrir as propriedades do estado
inicial da Faculdade de Linguagem. Pode-se afirmar que o recurso de que as línguas
humanas dispõem para gerar sequências potencialmente infinitas em extensão, a
partir de regras finitas, é denominado recursividade. Essa característica pode
ser observada nos trechos de Os Sertões como no apresentado abaixo, que reúne
87 palavras em um único período:
Adiante,
a partir de Monte Alto, estas conformações naturais se bipartem: do rumo firme
do norte a série do grés figura-se progredir até o platô atenoso do Açuruá,
associando-se ao calcário que aviva as paisagens na orla do grande rio, prendendo-as
às linhas dos cerros talhados em diáclase, tão bem expressos no perfil
fantástico do Bom Jesus da lapa; enquanto para nordeste, graças a degradações
intensas (porque a Serra Geral segue por ali com anteparo aos alísios,
condensando-os em diluvianos aguaceiros) se desvendam, ressurgindo, as formações
antigas. (p.17)
Usando esse processo de concatenação,
podem-se construir sentenças curtas e muito longas. Isso significa que a
competência de um falante nativo permite a ele formar sentenças muito extensas,
utilizando a recursividade. No entanto, questões relativas ao desempenho
impedem os falantes de produzir sentenças muito extensas. Isso ocorre, porque
no nível do desempenho entram em jogo questões como: limitação de memória, dificuldade
de processamento, atenção, entre outras.
2. A pontuação
Como afirmado na seção anterior, o livro
de Euclides da Cunha é construído por períodos ora muito curtos, ora muito
extensos. Portanto, para proporcionar uma leitura adequada dos enunciados, o
autor apresenta uma pontuação com rigoroso senso de disciplina e contenção.
De acordo com Corrêa (1978), para garantir
fluidez e agilidade na leitura do texto, Euclides utiliza a pontuação como um
recurso para quebrar a monotonia dos períodos infindáveis, nos quais a ideia
central se amplifica em sucessivos desdobramentos.
Multiplicam-se, assim, os ponto-e-vírgulas,
as vírgulas e demais sinais de pontuação que exercem uma função importante no
estilo da linguagem do autor. Sem pontuação, os períodos infindáveis da obra se
tornariam, provavelmente, ininteligíveis.
Um aspecto, ainda relevante, é a forma como
a pontuação é utilizada. Em muitos casos, o autor parece “desobedecer” às
regras de pontuação padrão. Além disso, faz pausas em momentos inesperados.
Na tradição gramatical, a pontuação é
compreendida como recurso rítmico e melódico da escrita, uma vez que essa não
dispõe dos mesmos recursos da língua falada.
Segundo Rocha Lima (1969), a pontuação
constitui pausas rítmicas, assinaladas na pronúncia por entonações
características, que na escrita são representadas por sinais especiais. Com
base nessa definição, pode-se, por exemplo, analisar trechos como o seguinte a
partir dos efeitos melódicos que o autor gostaria de imprimir em seu texto:
Nada
é mais surpreendedor do que vê-lo desaparecer de improviso. Naquela ocasião
combalida
operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta
o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias
adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos,
novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os
ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhes,
prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento
habitual do órgãos; [...] (p. 119)
Na tradição linguística, é também possível
explicar o uso da pontuação recorrendo às questões fonológicas. Por outro lado,
é possível levantar questões relativas à sintaxe das sentenças. Observa-se, por
exemplo, que o uso da vírgula em períodos simples e compostos respeita as fronteiras
de constituintes e que a vírgula funciona, entre outras coisas, para marcar
deslocamentos dentro da sentença.
Um constituinte pode ser definido como uma
unidade sintática hierarquicamente construída, que possui uma função sintática
e que se forma a partir de um núcleo. Um constituinte pode receber o nome de
sintagma. Em uma sentença ambígua como: “O juiz julgou o réu inocente”,
extraída de Mioto et al (2005), o uso de uma vírgula após a palavra “réu”
poderia minimizar a possibilidade de dupla interpretação. Nesse caso, a
pontuação marcaria o fato de que nessa interpretação, “inocente” não está
modificando o termo “réu”.
Voltemos ao texto de Euclides da Cunha.
Portanto, a pontuação utilizada pelo autor exerce uma função importante na
linguagem de Os Sertões. Segundo Corrêa (1978), o estilo de Euclides da Cunha
pode ser comparado a um desses rios dos sertões brasileiros cujas águas não se
detêm nos remansos, no suave e sereno deslizamento da corrente; vão saltando os
obstáculos, precipitam-se com fúria nos abismos, avançam ou recuam em refreios
bruscos, procurando conter-se no curso sinuoso do leito. Assim, a pontuação, apresentada
na obra, tem como objetivo gerar um caráter melódico, além de apontar um estilo
único.
3. As formas verbais
Passemos à análise das formas verbais. Em Os
Sertões, os verbos são muito utilizados em repetições, que podem tentar
transmitir ao leitor uma sensação de movimento, como no trecho abaixo:
[...]
desarmando-se; desapertando os cinturões, para a carreira desafogada; e
correndo, correndo ao acaso, correndo em grupos, em bandos erradios, correndo
pelas estradas e pelas trilhas que as recortam, correndo para o recesso das
caatingas, tontos, apavorados, sem chefes... (p. 367)
Segundo Corrêa (1978), nesse trecho tem-se
uma sensação física de movimento, acompanhando o temor e o pânico que se
apoderaram dos soldados que saíam em retirada.
Tal
sensação, que acompanha a ideia de movimento, veiculada no plano do conteúdo,
dá-se pela repetição do verbo “correr” no gerúndio, no plano da expressão.
O gerúndio possui uma característica
marcante quanto ao seu aspecto: poder marcar um processo contínuo, conforme
excerto abaixo:
De sorte que
quem o contorna, seguindo para o norte, observa notáveis mudanças de relevos: a
princípio o traço contínuo e dominante das montanhas,
precipitando-o, com destaque saliente, sobre a linha projetante das praias;
depois, no segmento da orla marítima entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo,
um aparelho litoral revolto, feito da envergadura desarticulada das serras, riçado
de cumiadas e corroído de angras, escancelando-se em baías, e repartindo-se em
ilhas, e desagregando-se em recifes desnudos, à maneira de escombros do
conflito secular que ali se trava entre os mares e a terra. (p. 11-12, grifos meus)
Ressalta-se que a noção de aspecto
distingue-se da noção de tempo verbal. O aspecto é uma categoria gramatical que
representa distinções na estrutura temporal do evento. Um evento, por exemplo,
pode ser entendido como ocorrendo em um único momento, como uma única
ocorrência ou como uma série de ocorrências que se repetem; pode ser visto
começando, continuando ou terminando. O gerúndio, em geral, apresenta um
aspecto contínuo ou progressivo, em que o evento estende-se no tempo. No caso
da obra euclidiana, parece que o gerúndio agrega à leitura uma interpretação de
continuidade e de movimento.
Souza (2009) afirma que, desde o prólogo
dramático, o narrador de Os Sertões apresenta, por meio das formas verbais, o
perspectivismo da percepção do viajante que contorna o planalto central,
seguindo para o norte. A arte do narrador representa a pluralidade das
percepções do observador, a fim de que a multiplicidade narrativa se apresente
de modo ordenado.
Na grandiosa abertura do prólogo dramático,
a movimentação do planalto, que se representa no dinamismo dos verbos “desce”,
“desata-se”, “descamba”, decorre da configuração metonímica da percepção.
(SOUZA, 2009, p. 17, grifos meus)
A observação feita por Souza (2009) revela o
aspecto itinerante do narrador do texto. Essa sensação de movimento é
garantida, portanto, por um ponto de vista plural, traduzido nas ocorrências
verbais, presentes na narrativa de Euclides da Cunha.
4. Os adjetivos
O último ponto que iremos discutir é a
posição dos adjetivos na obra Os Sertões. Esse uso parece ser ressaltado em
vários estudos sobre a obra. De acordo com Corrêa (1978), alguns críticos
chegam a colocar, no adjetivo, a tônica do estilo de Euclides da Cunha. Com
efeito, não se pode negar que nesse elemento resida uma das marcas da linguagem
do escritor.
Uma preocupação do autor é a posição do
adjetivo no sintagma nominal. No português do Brasil, o adjetivo pode ser
posicionado à direita ou à esquerda do núcleo nominal: pode-se ter “bonita
garota” e “garota bonita”. No entanto, essa aparente mobilidade do adjetivo
pode marcar alteração de sentido na sentença, como em: “Paulo é um grande
homem” e “Paulo é um homem grande”. Essa possibilidade de estar anteposto ou
posposto ao nome, entretanto, não é geral à classe dos adjetivos, como
observado em: “camisa verde” e “*verde camisa”.
A ordem adjetivo – substantivo atribui ao
caracterizado a função típica dos elementos da área esquerda do sintagma
nominal, tais como: quantificadores e determinantes em geral. Cabe salientar
que a simples inversão de ordem pode fazer de uma palavra como “inimigo” mudar
de função sintática, como: “um avião inimigo” e “um inimigo terrível”. Esses
exemplos extraídos de Perini (2001) demonstram que, no primeiro sintagma, o
termo “inimigo” funciona como modificador e no segundo, funciona como núcleo do
sintagma nominal, o qual é modificado por “terrível”. A ordem adjetivo – substantivo
parece ser mais enfática, enquanto que a ordem substantivo – adjetivo apresenta
o adjetivo como elemento caracterizador por excelência, uma vez que essa é a ordem
não marcada.
O texto de Euclides da Cunha prefere a
ordem substantivo – adjetivo, tais como nos sintagmas: “veados ariscos”,
“estações benéficas”, “vales secos”, “flora estupenda”, entre outros. Para
Corrêa (1978), a preferência de Euclides da Cunha por essa forma é uma decorrência
do valor que ele emprestava ao adjetivo como elemento caracterizador por excelência.
A estrutura substantivo – adjetivo, preferida pelo autor, pode ser evidenciada nos
excertos abaixo, extraídos de Os Sertões:
O
sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem raquitismo exaustivo dos mestiços
neurastênicos do litoral A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de
vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a
estrutura corretíssima das organizações atléticas. (p. 118)
Segue a
boiada vagarosamente, à cadência daquele canto triste e preguiçoso. (p. 131)
Tal uso pode ser justificado, ainda, se
atentarmos para a nota preliminar do autor, na qual Euclides da Cunha afirma
ter a intenção de que a obra expresse a sinceridade que deve ter um narrador
diante da história, ou seja, existe uma preocupação com a objetividade e
exatidão dos conteúdos descritos. Esse aspecto do texto deve-se à refutação euclidiana
do divórcio da ciência e da arte. A respeito da união entre ciência e poesia na
obra euclidiana, Souza (2009) afirma:
Como cientista ou poeta, mas sobretudo como
cientista e poeta, a Euclides não importa senão ser geopoeta, que é o poeta que
se emparelha com a terra na tentativa de corresponder ao ritmo formativo da
potência telúrica. Não basta observá-la com a ótica monocular dos conceitos solidificados.
Necessário se torna conciliar dinamicamente a imaginação poética e a observação
científica. Se não se dissolve a solidez dos conceitos na fluidez das imagens,
não se obtém uma visão genuína da terra. (p. 121)
Portanto, o uso da adjetivação em Os
Sertões, particularmente, na ordem
substantivo –
adjetivo está relacionado tanto ao caráter estético da obra, quanto ao rigor
descritivo da terra,
do homem e da luta.
Conclusão
O presente artigo analisou, portanto, alguns
aspectos da linguagem da obra Os Sertões, em particular, aspectos relativos à
construção sintática do texto euclidiano. Observou-se que a tessitura do livro
garante um caráter estético e uma expressividade linguística ímpar. O conjunto
de recursos linguísticos utilizados pelo autor imprime no texto um estilo
primoroso.
Constatou-se, assim, que as construções das
sentenças revelam o caráter criativo da linguagem por meio de orações ora muito
extensas, ora muito curtas, que funcionam como freadas bruscas na leitura do
texto. A inteligibilidade dos períodos infindáveis é garantida pela pontuação
vasta e precisa.
Verificamos, ainda, que as formas verbais,
empregadas no livro, permitem ao leitor a sensação de movimento, essencial à
natureza multiperspectivada do narrador itinerante.
Por fim, a análise demonstrou como a posição
dos adjetivos (na maioria, pospostos aos substantivos que eles modificam) na
estrutura dos sintagmas nominais do texto infunde na obra a relação entre
ciência e poesia, entre forma e conteúdo.
A análise, aqui proposta, tentou apresentar
uma visão plural da obra, suscitada, inicialmente, pela proposta da mesa-redonda,
da qual esse estudo é resultante. Essa perspectiva deve ser adotada para fazer
uma análise adequada ao enfoque transdisciplinar do texto euclidiano.
Entre a linguagem e a poesia: uma análise sobre
Os Sertões
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