Análise
da obra
Publicado em 1918, Urupês é basicamente uma série de 14 contos, tendo
como ênfase a vida quotidiana e mundana do caboclo, através de seus costumes,
crenças e tradições. Monteiro Lobato reuniu na obra alguns contos que a
experiência de fazendeiro do Vale do Paraíba lhe proporcionou. É a obra de
estreia de Monteiro Lobato.
Urupês não contém uma única história, mas vários contos e um artigo,
quase todos passados na cidadezinha de Itaoca, no interior de SP, com várias
histórias, geralmente de final trágico e algum elemento cômico. O último conto,
Urupês, apresenta a figura de Jeca Tatu, o caboclo típico e preguiçoso, no seu
comportamento típico. No mais, as histórias contam de pessoas típicas da
região, suas venturas e desventuras, com seu linguajar e costumes.
Para uma melhor compreensão da temática da obra, o próprio escritor nos
dá pistas ao citar, em um dos seus contos, Meu Conto de Maupassant. De fato,
sua literatura vai pela mesma rota do literato francês, já que se baseia em
ações extremas e patéticas norteadas pelo amor e pela morte.
O tom exagerado também se manifesta em sua linguagem. Além dos traços
expressionistas (na descrição das personagens Lobato utiliza técnicas
expressionistas que as deformam, quando se dedica a caracterizar a natureza
passa a vazar metáforas de bela plasticidade que em vários pontos lembra a
idealização romântica. Afasta-se, no entanto, dessa escola literária por
utilizar uma linguagem mais simples, arejada, moderna) usados nas descrições
das personagens, Lobato utiliza constantemente a ironia, o que revela uma
emotividade extremamente carregada, fruto de um misto de indignação,
impaciência e até intolerância ao enxergar os problemas brasileiros e como eles
são provocados pela lassidão, fraqueza e indolência do caráter de nosso povo.
A linguagem lobateana ainda inspira alguns comentários interessantes. É
fácil perceber como antecipa o Modernismo, já que não apresenta a elaboração
rebuscada então vigente em sua época (Monteiro Lobato criticou ferozmente a
moda parnasianista de elaboração preciosista e purista da linguagem. Suas ideias
combativas aparecem até mesmo em trechos que podem ser entendidos como pequenas
digressões dentro das narrativas de diversos contos de Urupês). Defensor de um
estilo mais simples, prático, direto, sem elucubrações linguísticas, chega até
mesmo a aproveitar o andamento coloquial brasileiro dentro de sua narrativa, o
que o torna embrião de feitos vistos em obras importantíssimas do Primeiro Tempo
Modernista, como Macunaíma, Memórias Sentimentais de João Miramar, Brás, Bexiga
e Barra Funda e Libertinagem. É só notar expressões como “Filho homem só tinha
o José Benedito, d’apelido Pernambi, um passarico desta alturinha” ou “E a
prova foi roncarem logo p’r’ali como dois gambás”, dois exemplos tirados a esmo
do conto A Vingança da Peroba.
Outro aspecto moderno é a construção de uma metaforização nova, em
certos aspectos inusitada, se comparada ao padrão parnasianista então em moda,
mas mais comum no movimento que surgiria praticamente meia década depois desse
livro de Lobato.
Enredo
Os
Faroleiros – O narrador, em meio a um bate-papo,
propõe-se a contar uma história surpreendente. Relata que, seduzido pelo ar
solitário e isolado de um farol, consegue realizar seu sonho passando uns dias
nesse local. É quando conhece duas figuras misteriosas que não se conversam:
Gerebita e Cabrea. O primeiro defende a idéia, insistentemente confessada para
o narrador, de que o segundo está louco. Pergunta então se seria crime se
defender de um ataque de um maluco matando-o. É uma premonição, além de deixar
nas entrelinhas que o que está para ocorrer tinha sido premeditado. Pouco
depois, os dois mergulham num duelo sangrento, em que Gerebita consegue matar o
seu oponente com dentadas na jugular. Quando o narrador abandona o farol,
massacrado por experiências tão carregadas, toma conhecimento dos motivos que
levaram a essa tragédia. Gerebita fora casado com uma mulher chamada Maria
Rita, que o trocou por Cabrea, que também é trocado por outro homem. Tempos
depois o destino fez com que os dois fossem nomeados para trabalhar no mesmo
farol, passando a estabelecer uma convivência de tensão surda.
Não deixe de notar que a narrativa várias vezes se abre para que haja comentários
dos ouvintes com o enunciador. É uma maneira de o texto não ficar pesado,
cansativo. Além disso, deve-se observar as técnicas expressionistas (o exagero
que beira o grotesco) e naturalistas (preferência pelos aspectos escabrosos do
comportamento humano). Finalmente, não se deve perder de vista que este conto
foge ao padrão de Monteiro Lobato, já que não é regionalista. Passa-se no
litoral, ou seja, bem longe do seu conhecido Vale do Paraíba.
O
Engraçado Arrependido -
Trata-se da história de Pontes, um típico piadista, que consegue
arrancar risos nos atos mais simples. Até que um dia resolve ser sério, desejo
que não consegue realizar, pois sempre imaginam que é mais uma peça que está
pregando. Tenciona, pois, arranjar um cargo no funcionalismo público, o que só
obterá se surgir uma vaga, conforme avisa seu padrinho. Resolve, de forma
maquiavélica, atacar Major Antônio, homem extremamente sério e que sofre de um
aneurisma prestes a estourar por qualquer esforço. Seu plano, pois, é matá-lo
com suas piadas e assim ficar com o seu emprego. No começo parece difícil,
devido ao caráter circunspeto do doente. Até que, depois de muitas pesquisas
sobre o gosto humorístico da vítima, consegue dar o golpe fatal. Mergulha, a
partir de então, no remorso, isolando-se de todos. Semanas depois, recuperado,
volta à ativa, mas descobre que havia perdido a vaga, pois a demora provocada
por seu sumiço forçara a nomeação de outra pessoa. O protagonista enforca-se
com uma ceroula, o que para a cidade acaba sendo visto como mais uma piada.
Note como neste conto o psicológico acaba se resvalando para o
patológico, para o anormal, o patético, o exagerado. Observe, também, que ainda
não é aqui que se manifesta o caráter regionalista do autor.
A
Colcha de Retalhos – Neste conto já se manifesta a
temática que tanto consagrou o seu autor: a crítica à decadência da zona rural.
O narrador faz uma visita a Zé para propor-lhe negócios. No entanto, este
recusa, o que revela sua indolência. Esse seu caráter é responsável pela decadência
e atraso em que se encontra sua fazenda, reforçada pelo desânimo de sua esposa
e pelo caráter arredio de sua filha, Pingo ou Maria das Dores. A única firme,
forte, é uma velha, verdadeira matriarca. Mas é por pouco tempo. Anos depois
surge a notícia de que Pingo, verdadeiro bicho do mato, havia fugido com um
homem para manter uma relação desonrosa. É a derrocada final. A mãe da moça
morre, o pai mergulha mais ainda na decadência e a matriarca já não encontra
mais motivos para sua existência. O momento mais tocante é quando ela passa a
descrever para o narrador a colcha que estava costurando durante anos, toda
composta de peças de roupa que Pingo ia usando e dispensando desde
recém-nascida. O último pedaço estava reservado para um retalho do vestido de
noiva, que não chegou a existir.
Note como a decadência em que a menina mergulha é um símbolo da
decadência rural. Note também o colorido da linguagem do contista, que retrata
com fidelidade o andamento do registro oral de suas personagens, como no trecho
“Des’que caí daquela amaldiçoada ponte”, entre tantos outros.
A
Vingança da Peroba – Mais um conto que critica a
decadência rural provocada pela indolência dos fazendeiros. Há aqui uma
oposição entre duas famílias, os Porunga, fortes e de vida bem estabelecida,
graças à força de vontade de suas ações, e os Nunes, mergulhados na preguiça,
desorganização e cachaça. Os dois clãs desentendem-se por causa de uma paca, há
muito desejada pelo Nunes, mas que acabou sendo caçada por um Porunga. Movido
por uma mistura de rivalidade e de inveja, Nunes resolve finalmente investir em
suas terras. Seus esforços têm fruto, gerando uma boa colheita de milho.
Resolve então construir um monjolo, pois não quer ficar atrás do seu vizinho em
desenvolvimento. Corta uma peroba
imensa, que estava na divisa das duas terras. Já há aqui motivo de
desentendimento, que arrefece quando os Porunga resolvem não brigar mais pela
árvore. Semelhante ao conto “Faroleiros”, há o emprego da premonição no meio da
narrativa. Um aleijado, que havia sido contratado por Nunes para ajudar na
construção do engenho, conta uma história de que certas árvores se vingam por
terem sido cortadas. O fato é que o monjolo é construído, mas todo torto,
produzindo mais barulho do que outra coisa, o que justifica o seu apelido:
Ronqueira. Decepcionado e envergonhado, mergulha na cachaça. Um dia, depois que
ele e seu filhinho se embebedaram, acaba adormecendo na rede. Acorda com a
gritaria das mulheres de sua casa: o engenho havia esmagado a cabeça da criança
no pilão. Irado, Nunes destrói a machadadas a máquina assassina.
Um
Suplício Moderno – Este conto apresenta o estafeta,
uma espécie de carteiro, como o tipo mais humilhado das cidades do interior.
Trata-se da história de Biriba, um pobre coitado que acaba se tornando o burro
de carga de todas as pessoas de Itaoca, que ainda cometem o desatino de
reclamar dos favores que faz para elas. Sua paciência esgota-se a ponto de
pedir demissão, mas não o deixam levar adiante seu plano. Era interesse de
todos ter alguém tão submisso. É quando resolve se vingar, traindo Fidêncio,
seu superior. Recebe um pacote muito importante para as eleições. Não o
entrega, sumindo com ele por dias. É o motivo da queda do maioral, provocando a
subida do inimigo, Evandro, que não poupa quase ninguém do antigo governo,
apenas o pobre Biriba, recebido de forma bastante atenciosa. Provavelmente
desconfiando que tudo iria continuar como antes, mudados apenas os personagens,
some de Itaoca.
Meu
Conto de Maupassant – Essa narrativa é norteada pelos
temas do amor e da morte, comuns em Maupassant e grandes elementos vitais de
Lobato. O narrador, ao passar de trem diante de uma árvore, um saguaraji,
lembra-se de um crime ocorrido há muito. Tudo havia começado com o
aparecimento, nas redondezas daquele vegetal, do cadáver decapitado de uma
velha. Investigações são feitas e tem-se como principal suspeito um italiano,
que consegue se safar, já que não havia provas. Os anos passaram-se e novos
indícios surgem sobre o caso, levando o italiano, que havia sumido no Brás, a
ser mais uma vez conduzido para a justiça. Durante toda a viagem de trem, o
acusado não deu trabalho algum, mostrando-se por demais submisso. Até o momento
em que o veículo passa diante do saguaraji. É quando o sujeito se atira para fora
do transporte, sendo depois encontrado morto junto à árvore. Fica a idéia, por
muito tempo, de que o remorso pelo crime cometido o havia conduzido ao
suicídio, no entanto, tudo é desfeito quando o filho da assassinada confessa o
delito. Mergulha-se, pois, no clima de mistério à Maupassant.
Pollice
Verso – Narra-se a história de Inácio, alguém que
já de criança mostrava um gênio negativo ao gostar de dissecar pássaros. Seu
pai, homem dotado de linguagem empolada (o que o tornava uma ilha em seu meio
tão pobre intelectualmente) via nesse costume, no entanto, uma tendência para a
Medicina e dedica todas as suas forças em ver seu filho seguindo essa carreira.
O rapaz acaba realizando o sonho do pai, mas torna-se um pelintra, mais
preocupado em se exibir e conseguir o mais rápido possível dinheiro para voltar
aos braços da amante francesa, Yvonne, que havia conhecido nos tempos da
faculdade. Seu bilhete de loteria é conseguir cuidar de um ricaço, Mendanha.
Sua intenção não é curá-lo, pois não seria tão lucrativo quanto a morte, que
lhe possibilitaria cobrar uma quantia exorbitante. Com o falecimento do
paciente, a família recebe a conta, que acha exorbitante, levando a questão ao
tribunal. Ali, Inácio conta com o corporativismo, já que os outros médicos (tão
menosprezados pelo recém-formado) dão-lhe parecer favorável. Viaja, pois, para
Paris, enganando a todos, dizendo que tinha se estabelecido na carreira e
estava em contato com gente do alto quilate da medicina. Estava mais era
curtindo a vida.
Bucólica
– Outro conto regionalista que critica a “lassidão infinita” da zona rural.
Narra-se o atraso em que vivem Veva e seu marido, Pedro Suão. Os dois têm uma
filha, Anica, deficiente. Esse é o motivo que faz sua mãe tratar-lhe mal,
desejando a morte da pequena, já que não vê utilidade em sua existência quase
paralítica. O clímax, temperado a doses de crueldade absurda, está no relato
que Libória, a empregada do casal, faz ao narrador. A menina havia morrido de
sede, pois a mãe havia-lhe negado água, mesmo sabendo que a coitada estava com
febre. O mais trágico é que a única que atendia às vontades da enferma era a
criada, que naquele momento estava retida fora da casa graças a uma chuva
torrencial que aparecera. O funesto está no fato de a mocinha ter se arrastado até
o pote d’água, morrendo ao pé deste.
Note como o título do conto estabelece uma gigantesca ironia com relação
ao seu conteúdo.
O
Mata-Pau – A história deste conto é introduzida por
meio da simbologia do mata-pau, planta que surge discretamente numa árvore, mas
que com o tempo cresce a ponto de sugar-lhe toda a seiva. Estabelece-se, pois,
relação com Elesbão e Rosa, que há muito queriam um filho, mas não conseguiam.
Até que no meio de uma noite surge uma criança na terra deles. Adotam-na,
batizando-a de Manuel Aparecido. Quando cresce, acaba tendo um caso com a
madrasta. Dominado por sentimento malignamente possessivo, mata o padrasto e
depois consegue fazer com que Rosa passe a fazenda para o nome dele. Vende tudo
e some com o dinheiro, não sem antes trancar a ex-amante em casa, que
incendeia. A sorte dela é que, além de conseguir escapar, enlouquece, o que
é-lhe um alívio, pois não tem noção da miséria em que caiu a sua vida.
Bocatorta
– Conto carregado de elementos macabros e
expressionistas. É a história de Bocatorta, uma figura hedionda e deficiente
que vive isolado no meio do mato. Sua biografia é relatada numa reunião
familiar, o que desperta a curiosidade em vê-lo. Uma das meninas, Cristina,
fica com medo, mas acaba indo, encorajada pelo noivo. Assolada pelo medo e
fragilizada pela mudança de clima que ocorre durante a viagem, fica doente,
terminando por morrer. Mais tarde, um rapaz que gostava muito dela percebe algo
estranho no cemitério e corre para pedir ajuda. Quando todos chegam lá, descobrem
Bocatorta violando o cadáver da moça, em pleno ato de necrofilia. Acaba sendo
perseguido, morrendo afogado num atoleiro que existia lá por perto.
O
Comprador de Fazendas – Quase como para aliviar a leitura
depois de dois textos tão pesados, este conto mostra-se mais jocoso. É a
história de Moreira, dono da fazenda decadente – mais uma vez esse tema! –
Espiga, que não consegue ser vendida, assim como sua filha Zilda não consegue
arranjar casamento. Até que surge Trancoso, sujeito bem afeiçoado e que se mostra
interessado em comprar a propriedade. Surpreendentemente, é o primeiro que se
mostra a elogiar tudo, o que faz com que seja bem tratado, podendo até cortejar
Zilda. Parte, prometendo fechar negócio em uma semana. Com a demora da
resposta, Moreira faz pesquisas, descobrindo que o indivíduo ganhava a vida
andando de fazenda em fazenda, sempre se mostrando interessado em comprar, o
que lhe garantia casa e comida por alguns dias. O proprietário, frustrado, fica
irado. Tempos depois, Trancoso ganha na loteria e retorna à Espiga, dessa vez
para comprá-la realmente, mas é recebido com uma surra de rabo de tatu. Vai-se,
aí, o sonho de vender a fazenda e de casar Zilda.
O
Estigma – Bruno, narrador, conta a história de seu
amigo, Fausto, que se casou praticamente interessado em dinheiro, já que o
relacionamento era o que se chamava “face noruega", ou seja, semelhante ao
lado de uma vegetação em que não bate sol. Tudo se complica quando o marido se
envolve com uma prima, Laurita, muito mais jovem do que a sua esposa. Até que a
mocinha aparece morta com um tiro no peito. Suspeita-se que tenha se suicidado
e o narrador chega a pensar que de remorso por manter um relacionamento
adulterino. Tempos depois, o filho de Fausto nasce, apresentando uma marca no
peito, na mesma região que Laura havia atingido para pôr fim a vida. Desenvolve
então a teoria de que aquela criança, quando feto, fora a única testemunha do
crime cometido por sua mãe. Em outras palavras, não houve suicídio, mas um
crime passional e a criança veio ao mundo para denunciar sua progenitora. Assim
que vê esse sinal, mostra para a esposa, dizendo: “Olha, mulher, quem te
denuncia!”. Em pouco tempo está morta. O narrador, que visita a personagem
muitos anos depois, pôde ver o sinal e descobrir que era tudo ilusão, pois não
havia como a marca presente no peito da criança provar ou mesmo denunciar
qualquer coisa.
Prefácio
da 2ª Edição de Urupês – Explica-se aqui o que levou Lobato
a produzir seus textos sobre a indolência do caipira. Tudo havia começado com
um comentário para o jornal em linguagem vazada de emotividade e estilo, o que
despertou nos leitores um desejo por mais textos do mesmo quilate.
Velha
Praga – O artigo que transformou um “fazendeirinho”
em literato disserta, de forma indignada e irônica, sobre o atraso do
comportamento do caboclo, que praticamente põe toda a validade do solo e da
agricultura a perder por causa de seu costume bárbaro de realizar queimadas.
Urupês
– Este é um dos mais famosos textos de Monteiro Lobato. Nele, desanca uma crítica
das mais ferozes que já se fez sobre qualquer tipo nacional. O alvo de seu
ataque é o caboclo. Derrubando uma tradição cara, inaugurada por José de
Alencar, que apontava como a mestiçagem do índio com o branco como geradora de
uma nação forte, Lobato crê no contrário. Sua teoria institui a tese do
caboclismo, ou seja, a mistura de raças gera um tipo fraco, indolente,
preguiçoso, passivo. Sua religião manifesta-se por meio das mais primitivas
formas de superstição e magia. Sua medicina é mais rala ainda. Sua política é
inexistente, já que vota sem consciência, conduzido pelo maioral das terras em
que mora. Seu mobiliário é o mais escasso possível, havendo, no máximo, apenas
um banquinho (de três pernas, o que poupa o trabalho de nivelamento) para as
visitas. Não tem sequer senso estético, coisa que até o homem das cavernas
possuía. E quanto à produção, dedica-se apenas a colher o que a natureza
oferece. É, portanto, o protótipo de tudo quanto há de atrasado no país.
Urupês,
de Monteiro Lobato - Passeiweb
RESUMO
DO CONTO "NEGRINHA"
Trabalho por Dalvina Bernardino da
Silva, estudante de Letras.
O conto Negrinha, escrito em
1920, durante a transição do Pré-Modernismo para o Modernismo, relata a
história de uma pobre órfã negra, filha de escrava, que é criada por Dona
Inácia, uma senhora da aristocrata dona de uma fazenda viúva e sem filhos, inconformada
com a abolição da escravatura, conservando a menina unicamente para extravasar
à sua crueldade, aplicando na criança os mais severos maus tratos, tantos
verbais (xingamentos, ordens duras e palavras rudes) por como físicos
(beliscões, tapas e “crocres”, etc), sendo seu “brinquedinho”.
Dona Inácia descarregava sua amargura na menina, e deleitava-se com
isso, a ponto de seu rosto ganhar um brilho especial só em imaginar a aplicação
de um castigo na criança.
Quando Dona Inácia recebe em sua fazenda, suas sobrinhas, vindas da
capital para uma temporada de férias, ocorre uma reviravolta no cotidiano de
Negrinha.
As meninas, com suas vestes elegantes. Eram alegres e agitadas e
Negrinha pensou que seriam castigadas pelas balbúrdias, assim como ela era
castigada se fizesse barulho. Não houve castigo, ficando claro para Negrinha a
diferença que existia entre ela e aquelas meninas.
Estas, ao perceberem que Negrinha pode ser uma companhia de brincadeiras
durante a temporada na fazenda oferecem-lhe uma boneca, e acham graça quando veemque
Negrinha nunca pegou nesse brinquedo.
No período de estadia das meninas na fazenda, Dona Inácia poupa Negrinha
do rude tratamento habitual, vendo que suas sobrinhas tem com quem brincar.
Ao final das férias, Dona Inácia, mais serena, já não castigava a
criança, mas algo se transformara para Negrinha, pois uma vez que pôde
vislumbrar um outro tipo de vida, que teve a liberdade de exercer seu lado
criança, brincando e sem medos dos castigos, depois da partida das meninas é
tomada pela tristeza e pela melancolia, e definha, em seu canto até morrer,
esquecida por todos.
Foi enterrada em um lugar comum. Na cidade grande as meninas riam e
lembravam de Negrinha como uma bobinha que não sabia o que era uma boneca. E
Dona Inácia foi tomada pela nostalgia, por te perdido seu “brinquedo” e por não
ter mais em quem descarregar as suas maldade.
Resumo
do Conto Negrinha -Monteiro Lobato
www.zemoleza.com.br/.../35460-resumo-do-conto-negrinha-monteir...
ANÁLISE
DO CONTO "NEGRINHA"
Narrado em terceira pessoa, Negrinha conta a história de uma menina
negra, orfã muito nova, criada pela senhora patroa de sua mãe quando viva.
Pequena e assustada, Negrinha se escondia pelos cantos da casa, sempre
com medo do que a senhora faria com ela. Criada em meio a surras e pontapés, a
menina não tinha senso do que era certo ou errado: um mesmo ato provocava
algumas vezes a ira da senhora e em outra vezes fazia a rir.
Assim ela cresceu, em meio a castigos, sem uma única palavra de carinho,
tratada como escrava, mesmo sendo apenas uma criança que sentia correr por suas
veias um único desejo: ser realmente uma criança, poder correr, brincar, se
divertir, sem temer o que dona Inácia faria.
Em meio a tanta tortura e sofrimento, Negrinha provou, finalmente, do
gosto que a muito esperava: quando as sobrinhas de D. Inácia, pequeninas como
Negrinha, passaram as férias com a tia, a orfã recebeu, por um momento, o
carinho de mãe que nunca teve ao ter a permissão da patroa para brincar com os
"anjos louros".
Mesmo quando os tais "anjos louros" partiram, Negrinha
continou presa ao estado de êxtase, o qual a matou. Conforme o tempo passava a
menina se afundava mais no poço da depressão. No entanto, seus últimos suspiros
foram o suficiente para que a morte a levasse feliz.
Em todo o texto percebe-se o uso de Lobato da objetividade, mesmo nas
descrições das personagens. Com poucas palavras, ele nos dá a personalidade de
Negrinha, assim como a de D. Inácia, não chateando o leitor com longas
descrições desnecessarias.
Nota-se também a constante presença da ironia, em especial quando se
trata de Dona Inácia, como em "excelente senhora a patroa", por
exemplo.
No conto, os esteriótipos da época que é indicada são retratados através
das personagens principais: Negrinha representa a classe escrava que vive em
meio ao eterno sofrimento. Seu único entendimento da vida era servir e obedecer
aos patrões, mais por medo do que por respeito, afinal, sem tais patrões, eles
estariam em uma situação pior que já estavam.
Por outro lado, D. Inácia representava os patrões; através dela o óbvio
preconceito da época era apresentado. Em meio a personalidade da patroa,
características como a impaciência e a parcialidade estão presentes, e são
essas, principalmente, as que contribuem com o sofrimento de Negrinha.
Um ponto importante sobre Inácia era o fato de nunca ter dado à luz. O
próprio autor comenta, pelas entrelinhas, que a existência de Negrinha seria
diferente se a patroa tivesse seus próprios
filhos. A ausência desses filhos, no entanto, foi essencial para a
contextualização do conto, pois, sendo as duas personagens a retratação do
patrão e do escravo, uma possível amenização dos maus-tratos contra Negrinha
estaria fora da realidade do contexto histórico.
A originalidade do texto está no fato de ele ser escrito de forma
favorável ao negro, apesar da presença de preconceito por parte de D. Inácia.
Mesmo narrado em terceira pessoa, é como se a história fosse contada pelo ponto
de vista da menina, mostrando o quão grande era o sofrimento dos escravos; o
texto não diz, portanto, que o escravo era merecedor de tal sofrimento.
No entanto, mesmo levando em consideração o ponto de vista do escravo, o
autor ainda sim era realista. Mesmo que Negrinha não merecesse a vida a qual
era imposta a ela, o que ela tinha era aquilo, e qualquer coisa diferente
daquilo não seria real, o que prova as ideias citadas acima.
De fato, essa obra está recheada com
um tema polêmico e pode ser considerada não recomendável para crianças pela
presença do preconceito e dos maus tratos, porém, o fato da personagem
principal ser uma menina tão nova é o que traz a lição que o conto leva
consigo. Se bem trabalhado, tanto o público adulto quanto o infantil, a quem o
texto foi, originalmente, dirigido, poderão captar a mensagem que existe no
conto sobre o tão polêmico assunto.
Análise - Negrinha | Plusert'
plusert.blogspot.com/2011/09/analise-negrinha.html
O
DESENVOLVIMENTO DAS PERSONAGENS EM "NEGRINHA"
Em Negrinha, as ações das personagens estão centradas, basicamente, na
figura da pobre órfã adotada e os acontecimentos são todos norteados ao seu
redor. Desde o seu nascimento, a história de sua vida é contada, afinal, ela
morre ainda pueril, momento em que se dá todo o desenlace do conto. A patroa de
Negrinha, dona Inácia, era chamada de “excelente senhora”, principalmente pela
igreja, afinal era uma mulher rica, possuidora de muitos dotes, e que
contribuía regularmente com a igreja. Como mesmo dizia o reverendo: “dama de
grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”.
Dona Inácia mantinha Negrinha como um animal doméstico, sem direito a
nada, somente sobreviver. As atitudes de Inácia sempre foram com o intuito de
mostrar a imagem de uma boa senhora à sociedade, mas, em casa, tratava
cruelmente Negrinha, tendo em sua pobre figura uma possibilidade de expurgar
suas raivas e neuras. Tudo era motivo para que Negrinha levasse croques,
pontapés, xingamentos etc. No transcorrer do texto, toda malevolosidade dela é
revelada, principalmente no momento em que ela pede para Negrinha abrir a boca
para engolir um ovo que acabara de sair do cozimento.
Na sequência, duas sobrinhas de “Santa Inácia” – como enfatiza Monteiro
Lobato – vem passar as férias de dezembro e, pela primeira vez, a Negrinha pôde
brincar. As meninas brincam com ela, mas ficando sempre claro que ela é adotada
e, portanto, diferente, um verdadeiro animal de estimação. Após o retorno das
sobrinhas de Inácia, a vida de Negrinha volta a ser como era antes. Na
sequência, ela falece de desgosto, fraca e delirante, relembrando das
brincadeiras que teve com as meninas, bonecas e brinquedos.
Segundo Moisés (1986), o conto tem número reduzido de personagens e o
desfecho do conto encerra as expectativas sobre os mesmos. É exatamente dessa
forma que acontece com a protagonista Negrinha, que ao término falece e encerra
o ciclo imaginário do leitor sobre ela.
Traçaremos agora alguns traços das
personagens do conto:
Negrinha:
personagem principal, o enredo circula ao seu redor. O conto é narrado sob a
perspectiva do olhar discriminatório dos demais ante ela que vivia de modo
subumano, adotada por dona Inácia. O nome “Negrinha”, que seria normalmente um
adjetivo, é colocado como substantivo próprio no conto, mais uma forma de
Lobato destacar o preconceito visceral dos demais. O conto se encerra com sua
morte, que se torna uma libertação após tanto sofrimento.
Dona
Inácia: a mulher que adotou Negrinha. Solteirona,
tornara-se viúva sem ter filhos. Para a sociedade, mulher de caráter ilibado,
digna, possuidora de riquezas e assídua freqüentadora e colaboradora da igreja.
Mas, através do conto descobrimos quem ela é, de verdade. Utiliza-se do fato de
ter adotado uma menina para se gabar, sendo que, na verdade, trata a menina
adotada como um verdadeiro animal. Com a morte de Negrinha ao término do conto,
ela lamenta de saudade: “Como era boa para dar um cocre”.
Reverendo:
participação coadjuvante, somente para reforçar a ideia de “virtuosa senhora”,
de dona Inácia.
Criada
nova: participa do conto no momento em que Negrinha
engole um “ovo quente” após a reclamação da mesma. Em outro momento surge outra
criada, mais amena e que não a destratava.
Duas
sobrinhas: aparecem do meio ao fim do conto; brincam com
Negrinha, achando-a extravagante por nunca ter visto uma boneca.
Cuco:
metáfora do tempo, que aparece no conto como um elemento que traz fantasia para
Negrinha, quando ele apitava as horas. No final, o cuco aparece mais uma vez,
alertando que o tempo de Negrinha na terra estava se esvaindo.
O
desenvolvimento das personagens em Negrinha
oshumanos.wordpress.com/.../o-desenvolvimento-das-personagens-e...
A
FIGURA DO NEGRO EM MONTEIRO LOBATO
Marisa
Lajolo - Unicamp/iel 1998
Resumo
Este artigo analisa diferentes e contraditórias representações do negro
em algumas obras de Monteiro Lobato ( 1882- 1948) , particularmente Histórias
de Tia Nastácia e O presidente negro (O choque das Raças) . Discutindo a
posição do narrador , o artigo levanta questões relativas às implicações
ideológicas destas representações lobatianas e à relação de tais representações
com outras imagens de negros construídas pela literatura.
Na verdade, não há necessidade alguma de se trazer a política para o
âmbito da teoria literária: como acontece com o esporte sul-africano, elas
estão juntas há muito tempo. Por "político" entendo apenas a maneira
como organizamos conjuntamente nossa vida social e as relações de poder que
isso implica.
Discutir a representação do negro na obra de Monteiro Lobato, além de
contribuir para um conhecimento maior deste grande escritor brasileiro, pode
renovar os olhares com que se olham os sempre delicados laços que enlaçam
literatura e sociedade, história e literatura, literatura e política e
similares binômios que tentam dar conta do que, na página literária, fica entre
seu aquém e seu além.
Além do texto, aquém da vida.
Tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena ganha as primeiras atenções: ela desfruta da
afetividade da matriarcal família branca para a qual trabalha e, ao mesmo
tempo, apesar de suas breves mas muito significativas incursões pela sala e
varanda, encontra no espaço da cozinha emblema de seu confinamento e de sua
desqualificação social .
Ao longo da obra infantil lobatiana, a exceção ao carinho brincalhão que
a cerca vem sempre pela boca da Emília que em momentos de discussão e
desentendimento desrespeita a velha cozinheira, como sucede em algumas
passagens de Histórias de Tia Nastácia
:
Pois cá comigo - disse Emília- só aturo
estas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto
nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e
até bárbaras - coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não
gosto, e não gosto !
- Bem se vê que é preta e beiçuda ! Não tem
a menor filosofia, esta diaba. Sina é o seu nariz, sabe ? Todos os viventes têm
o mesmo direito à vida, e para mim matar um carneirinho é crime ainda maior do
que matar um homem. Facínora !
- Emília, Emília ! - ralhou Dona Benta.
A boneca botou-lhe a língua.
Similares má-criações têm servido de munição para leituras que tomam o
xingamento como manifestação explícita do racismo de Lobato, questão incômoda,
de que os estudiosos do escrito têm de dar conta :
(...) é fora de dúvida que Lobato
subscreve preconceitos etnocêntricos e mesmo racistas (...)
"Tia Nastácia, por exemplo, é um poder que representa a presença da
cultura e saber populares, um saber mágico, empírico, fruto do conhecimento da
vida pelo seu exercício real.
(...) Após cada história contada pela cozinheira, há comentário dos
personagens. A maior parte destes comentários falam da pobreza e da ingenuidade
da imaginação popular . Todos criticam as histórias de tia Nastácia,
principalmente Emília, que as considera bobagens de negra velha.
(...) apesar de todo este descontentamento com as histórias folclóricas,
em A chave do tamanho, Emília consegue salvar sua vida ameaçada pelos insetos,
lembrando-se de uma das histórias da cozinheira (p/139-140)
Francamente eugenista, a trama urdida por Lobato em O choque, onde a inteligência dos brancos acabava vencendo, vem
destacar posições ambíguas do escritor. Mas, se neste livro ele abraça ideias
acerca da superioridade racial, em outros momentos resgata o elemento de origem
africana e reconhece seu papel na cultura brasileira - como na caracterização
de Tia Nastácia e Tio Barnabé - personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo
representantes do saber popular. E tampouco se esquiva em denunciar as
crueldades do escravismo, conforme se pode constatar no conto
"Negrinha".
Efetivamente, a representação do negro, em Lobato, não tem soluções
muito diferentes do encaminhamento que a questão encontra na produção de boa
parte da intelectualidade brasileira, e não só da contemporânea de Lobato, como
vêm ensinando os estudos de Heloísa Toller .
Longe de desqualificar a questão, esta ambiguidade torna-a ainda mais
relevante. Mas os melhores ângulos para discuti-la não se esgotam na denúncia
bem intencionada dos xingamentos de Emília, absolutamente verossímeis e,
portanto, esteticamente necessários numa obra cuja qualidade literária tem
lastro forte na verossimilhança das situações e na coloquialidade da linguagem.
Caminho mais sugestivo do que este parece ser discutir como se coloca a
questão da representação do negro no livro Histórias
de Tia Nastácia, onde ela comparece a partir do título. Publicada em 1937,
a obra é uma antologia de contos populares contados em uma moldura narrativa
familiar à obra de Lobato: tia Nastácia desfia histórias para os demais
moradores do sítio que, na posição de ouvintes, comentam as histórias que
ouvem. À medida que o livro prossegue, as relações entre Tia Nastácia e seus
ouvintes vão se tornando mais tensas quanto mais cresce a insatisfação da plateia
com as histórias narradas, às quais ninguém poupa críticas:
Eu (...) acho muito ingênua esta história
de rei e princesa e botas encantadas, disse Narizinho. Depois que li Peter Pan,
fiquei exigente . Estou de acordo com a Emília (p.13)
A crítica a histórias da carochinha não é de modo algum inovação deste
livro, já que em outras passagens da obra de Lobato diferentes personagens
exprimem insatisfação com histórias tradicionais, histórias estas provenientes
da mesma matriz de onde vem o repertório de tia Nastácia.
Ao lado da recorrência, na obra infantil lobatiana, de críticas severas
a histórias tradicionais, também é recorrente em sua obra a narrativa "em
encaixe" isto é, a narrativa dentro da narrativa como ocorre nas Histórias de tia Nastácia e que também
ocorre em Peter Pan (1930) e em D.Quixote das crianças (1936). Quem
nestes dois livros ocupa a posição de contador de histórias é Dona Benta. Nos
dois casos ela conta as histórias que lê em livros estrangeiros, e enquanto
adulta e reconhecidamente mais experiente, narra de um espaço hegemônico em
relação aos seus ouvintes.
Já quando Tia Nastácia assume a
posição de contadora de histórias, a relação de forças entre ela e sua
audiência (a mesma das histórias de Dona Benta) é completamente outra. Tia
Nastácia transfere para o lugar de contadora de histórias a inferioridade sócio
cultural da posição (de doméstica) que ocupa no grupo e além disso (ou, por
causa disso...), por contar histórias que vêm da tradição oral não desempenha
função de mediadora da cultura escrita, ficando sua posição subalterna à de
seus ouvintes, consumidores exigentes da cultura escrita, como explicitou
Narizinho na citação acima.
A assimetria de posição entre narrador/ouvinte que ocorre em Histórias
de Tia Nastácia, no entanto, ocorre também em outras obras da época, e que são,
igualmente, recolha emoldurada de contos folclóricos: Histórias do Pai João (Oswaldo Orico, 1933), Histórias da velha Totonha (José Lins do Rego, 1936), Histórias da Lagoa Grande (Lúcio
Cardoso, 1939), O boi aruá (Luís
Jardim, 1940) elencam contos desfiados por contadores negros. A originalidade
vem um pouco depois pelas mãos de mestre Graciliano, com suas Histórias de Alexandre, de 1944.
É como exceção que o livro de Lobato, ao lado do de Graciliano,
destaca-se do conjunto de antologias.
Embora Histórias de Alexandre
mantenha parentesco estrutural com todas as obras acima citadas, o parentesco
se enfraquece ao romper-se a situação narrativa comum a todas elas, onde a
figura de um(a) negr(o)(a) conta histórias para uma platéia constituída por
crianças quase sempre brancas. Alexandre narra histórias para uma audiência
adulta como ele e, como ele, sertaneja, dissolvendo-se, assim, a assimetria
pretos e brancos, cultura da oralidade e cultura da escrita, adulto e criança,
tão marcada nas obras de Lins do Rego, Lúcio Cardoso e Luiz Jardim.
Alexandre conta histórias para seus pares e as histórias que conta - e
agora também à dessemelhança das histórias de Tia Nastácia- são, quase sempre,
aventuras que ele diz ter testemunhado ou protagonizado. Como as crianças do
sítio, a assistência de Alexandre é muitas vezes desconfiada do que ouve .
Mas a incredulidade dos ouvintes de Alexandre não chega a comprometer o
equilíbrio das forças que se medem no ato de contar histórias: a tensão se
dissolve quando Cesária, mulher do narrador, solicitada pelo marido, avaliza as
histórias. Estas, tendo sua veracidade assegurada, passam a ser aceitas pela
platéia .
Já no livro de Lobato, o antagonismo plateia/ Tia Nastácia não se
resolve, uma vez que a Tia Nastácia não tem aliados. Parecendo mais
sofisticados, seus ouvintes reclamam, não da veracidade das histórias, mas da
verossimilhança delas e da precariedade da estrutura narrativa:
-Esta história - ainda está mais boba que a
outra. Tudo sem pé nem cabeça. Sabe o que me parece ? Parece um história que
era de um jeito e foi se alterando de um contador para outro, cada vez mais
atrapalhada, isto é, foi perdendo pelo caminho o pé e a cabeça. (p.21)
Histórias de Tia Nastácia, contudo, ainda se diferencia dos demais
livros de organização semelhante pelo fato de que as histórias nele contadas -
e a situação de contá-las - decorrem de uma espécie de projeto explicitamente
enunciado por Pedrinho, que, a partir de um artigo de jornal começa a
interessar-se por folclore:
- As negras velhas - disse Pedrinho - são
sempre muito sabidas. Mamãe conta de uma que era um verdadeiro dicionário de
histórias folclóricas, uma de nome Esméria, que foi uma escrava de meu avô.
Todas as noites ela sentava-se na varanda e desfiava histórias e mais histórias
(p. 3)
Tia Nastácia é o povo. Tudo o que o povo sabe e vai contando de um para
outro, ela deve saber. Estou com o plano de espremer Tia Nastácia para tirar o
leite de folclore que há nela (p.3)
Assim, na moldura da situação na qual as histórias de Tia Nastácia são
contadas (o projeto iluminista de Pedrinho), temos já explícita e inevitável a
assimetria que rege a situação. Sem idealizações e sem meias palavras, os
leitores das Histórias de Tia Nastácia
são voyeurs de uma situação nas qual os ouvintes das mesmas histórias, sem
complacência e sem papas na língua desqualificam as matrizes populares de onde
vêm as histórias que ouvem .
- Essas histórias folclóricas são bastante
bobas (...) Por isso é que não sou "democrática"! Acho o povo muito
idiota ... (p.13)
Delineia-se então, aqui, outra especificidade do livro de Lobato: a
violência com que a plateia critica as histórias contadas, declarando-as
insatisfatórias e sublinhando o que considera seus defeitos. Rompe, assim,
Lobato, com a complacência, geralmente meio saudosista, que dá o tom dos livros
similares : a obra de Lins do Rego, sobretudo, é repassada de ternura
nostálgica pela contadora de histórias, ao passo que na de Lobato a narradora é
uma cobaia a ser espremida para que os ouvintes se apropriem do que chamam suco
folclórico, numa metáfora que tanto lembra a vontade positivista de dar
concretude às coisas do mundo da cultura, quanto a antropofagia, quanto ainda -
aos nossos pós-modernos ouvidos cinematográficos - a metáfora econômica que
inspira o filme de João Baptista de Andrade,
O homem que virou suco .
Histórias de Tia Nastácia
representa, pois, um projeto literário radicalmente distinto da atitude que
oculta - na naturalidade atribuída à situação de contar histórias no serão - a
latente incompatibilidade entre esta situação e os rumos que, por volta dos
anos 30, ia assumindo a cultura brasileira, definitivamente embarcada numa
viagem de modernização que Lobato, ainda que discordando de seu varejo,
aplaudia no atacado.
Que lugar podia haver, nesse mundo moderno, para tias nastácias e as
culturas que elas representavam ?
Já se apontou que a oralidade se manifesta estruturalmente também em
outras obras de Lobato, nas quais o escritor recorre à moldura da narração
oral, como D.Quixote das crianças e Peter
Pan .
Nestes livros, porém, o recurso à oralidade constitui estratégia adotada
por Dona Benta (talvez aqui alter ego de Lobato?) para facilitar o ingresso das
crianças - ouvintes no mundo da leitura. Ou seja, em D. Quixote das crianças e
em Peter Pan, se a enunciação mimetiza o mundo da oralidade, o enunciado vem do
moderno mundo da escrita, ao qual se subordina o da oralidade, mero instrumento
de passagem deste para aquele.
Mas como Tia Nastácia não é dona Benta, a situação de oralidade que ela
protagoniza não aponta para além de si mesma e, sobretudo, não contribui para
elevação cultural de seus ouvintes, já que nem os familiariza com a moderna
literatura infantil como Peter Pan e tampouco os aproxima de clássicos como
D.Quixote ; muito pelo contrário, constitui um rebaixamento cultural, já que é
arcaico o mundo que se faz presente em suas histórias.
Num certo sentido, esta opção formal de Lobato torna problemática a tese
que proclama fontes populares como uma das matrizes onde foram buscar
inspiração certas vertentes do modernismo : a apreensão e representação da
incompatibilidade entre a cultura popular e a cultura das elites brasileiras,
não deixa de prestar o serviço político de inscrever, na estrutura da obra, a
fratura da sociedade na qual ela ocorre.
Se a França foi buscar em suas colônias africanas a inspiração para
superar o esgotamento da arte racional e burguesa, os modernistas brasileiros
de 22 não precisaram nem empreender a viagem transcontinental . Em um país pós
colonial, os bolsões remanescentes de formas arcaicas de cultura estão sempre
ao alcance da mão e da pena, coincidindo, geralmente com os bolsões de pobreza
e marginalidade em que ficam confinados os segmentos da população atropelados
pela modernidade. Esta começa por subtrair-lhes os instrumentos de trabalho e
termina por confiscar suas formas culturais, maquiando-as, por exemplo, de
primitivismo e transformando-as em mercadoria que circula por outros segmentos
sociais.
No Brasil, a partir do final do século passado, incluem-se entre estes
fornecedores de matéria prima da chamada cultura popular, ex-escravos, negros
libertos e seus descendentes que, à semelhança de tia Nastácia e tio Barnabé,
como com justiça proclamava um out-door da celebração do centenário da Abolição
não tiveram carteira de trabalho assinada pela Princesa que abolira a
escravidão ...
Assim, o apagamento da tensão entre o mundo da cultura de uma negra
analfabeta e o da cultura das crianças brancas que escutam suas histórias pode
ter um sentido alienante . Por não tematizarem a diferença e, ao contrário, por
diluírem em afeto complacente o inevitável choque de cultura que tinha lugar
nos serões, antologias como as de Lúcio Cardoso proporcionam ao leitor a
experiência apaziguante de uma situação na qual fica apagada toda a violência
do modo pelo qual se processava a modernização brasileira.
Ao explicitar no capítulo de abertura das Histórias de tia Nastácia a racionalidade programática que
patrocinou, através do velho recurso ao serão, o contato entre duas formas de
cultura, o livro de Lobato deixa caminho aberto para o afloramento de
contradições inevitáveis num projeto - o da modernização brasileira - que põe
face a face diferentes segmentos sociais. Como resultado do enfrentamento é
inevitável a transformação de ambas as culturas; mas só leva a melhor a que
dispõe da infraestrutura material e simbólica essencial à produção, circulação
e consumo de cultura no mundo moderno, que passa a devorar a outra.
As contradições vão se acirrando ao logo do texto lobatiano, que, ao
contrário de seus pares, não se limita a reproduzir, em forma de antologia
asséptica, as histórias que Tia Nastácia conta. Lobato reproduz a história
encenando a situação de narração e recepção, pondo, pois, em confronto o mundo
da cultura negra do qual, no caso, Tia Nastácia é legítima porta-voz e o mundo
da modernidade branca, à qual dão voz tanto as crianças como a própria Dona
Benta, também ela ouvinte de Tia Nastácia e também ela insatisfeita com as
histórias que ouve mas, ao contrário dos outros ouvintes, capaz de apontar, com
objetividade, as razões da insatisfação:
- As histórias que correm entre nosso povo
são reflexos da era mais barbaresca da Europa. Os colonizadores portugueses
trouxeram estas histórias e soltaram-nas por aqui - e o povo as vai repetindo,
sobretudo na roça. A mentalidade de nossa gente roceira está ainda muito
próxima da dos primeiros colonizadores.
- Por que, vovó ?
-Por causa do analfabetismo. Como não sabem
ler, só entra na cabeça dos homens do povo o que os outros contam - e os outros
só contam o que ouviram. A coisa vem assim num rosário de pais a filhos. Só
quem sabe ler e lê os bons livros, é que se põe de acordo com os progressos que
as ciências trouxeram ao mundo (p.85)
Ao ir lendo a reação dos ouvintes às histórias que Tia Nastácia vai
contando, o leitor de Lobato sente-se tentado a tomar partido. E só por estar
lendo, são muito pequenas as chances de que sua solidariedade vá para a preta
velha que desfia histórias por quem, na melhor das hipóteses e como os pica-pauzinhos,
ele (leitor) nutre sentimentos de afeto mas que, nem por ser autênticos, deixam
de ser uma das expressões que racismo assume na cultura brasileira. O livro
sublinha a inadequação das histórias a seu auditório na voz dos próprios
ouvintes: são eles que estabelecem a diferença que afasta a tradição letrada e
moderna que, erigindo-se em referente, confina à marginalidade a produção
cultural que não venha deste mundo urbano e moderno. O contraponto de Tia
Nastácia é Lewis Carroll, frequentemente invocado como modelo das boas
histórias .
-Essa, do Sargento Verde, por exemplo. É tão idiota que um sábio que
quiser estudá-la acabará também idiota. Eu, francamente, passo tais histórias
populares. Gosto mas é das de Andersen, das do autor de Peter Pan e das do tal
Carrol, que escreveu Alice no país das maravilhas. Sendo coisas do povo, eu
passo ... . (p.22)
Esta tendência à intolerância acaba por cassar a palavra de Tia
Nastácia, passando o papel de contadora de histórias a ser exercido por Dona
Benta. Mas o repertório de Dona Benta, neste caso, não vem - como tinha vindo
no caso de D.Quixote e de Peter Pan - de um livro que ela tenha lido para,
depois, contar aos netos. As histórias que Dona Benta conta quando assume a
palavra em Histórias de Tia Nastácia
originam-se em matrizes culturais tão populares quanto as das histórias da
cozinheira, mas, curiosamente não despertam na plateia as reações de
intolerância que o repertório de tia Nastácia tinha despertado.
A diferença de recepções pode talvez ser atribuída ao fato de que as
histórias que ambas contam tenham origem semelhante, a relação de cada uma
destas narradoras com o material narrado, é diferente: Dona Benta não é usuária
desta cultura, mas conhecedora dela: conhece-a de livro, e não de berço.
Com isso, a relação que Dona Benta estabelece com a matéria que narra
não está distante da relação que com matrizes de cultura rural e popular
estabelecem os produtores da cultura urbana e culta, entre os quais o próprio
Lobato . É, pois, como se os serões nos quais Tia Nastácia conta suas histórias
fossem um parêntesis na vida do Sítio, assim como o regionalismo é um
parêntesis na literatura, segundo a visão que dele apresentam as histórias
literárias canônicas.
A hipótese é verossímil e ganha força em outras passagens da obra
lobatiana como, por exemplo, no fato de o Tio Barnabé (versão masculina de Tia
Nastácia ...) também ficar confinado, ao longo de toda a obra infantil lobatiana a papéis secundários. Mesmo em O saci, obra que aparentemente desmente
essa secundariedade, o papel dele é o de coadjuvante de Pedrinho, auxiliar ao
qual o menino recorre em situação bastante próxima da que originou as Histórias
de Tia Nastácia.
Se no livro que lhe leva o nome, Tia Nastácia poderia ensinar a Pedrinho
o folclore que ele queria conhecer (curiosidade, como já se viu, despertada
pela leitura de um jornal), em O Saci o
menino recorre a Tio Barnabé quando, interessado em sacis, é informado de que
Tio Barnabé um expert no assunto .
-Pois saci, Pedrinho, é uma coisa que
branco da cidade nega, diz que não há - mas há. Não existe negro velho por aí,
desses que nascem e morrem no meio do mato, que não jure ter visto saci. Nunca
vi nenhum, mas sei quem viu. - Quem ? - O tio Barnabé. Fale com ele . Negro
sabido está ali ! Entende de todas as feitiçarias, e de saci, de mula-sem cabeça,
de lobisomem - de tudo .
Se o espaço de Tia Nastácia é a beira do fogão, a marginalidade
narrativa de Tio Barnabé concretiza-se no detalhe de sua cabana localizar-se
nos confins do sítio:
Tio Barnabé era um negro de mais de
oitenta anos que morava no rancho coberto de sapé lá junto da ponte (p.184) .
Ou, seja, como já se sugeria
acima: se não havia lugar para os dois negros no sítio da Dona Benta como
haveria lugar para eles no Brasil de Lobato ?
A hipótese da inadequação de Tia
Nastácia e de Tio Barnabé à modernidade dos anos 30 do qual o sítio de Dona
benta é emblema e utopia confirma-se em outras passagens da obra lobatiana.
Todas as vezes que Tia Nastácia acompanha os pica-pauzinhos nas aventuras que
se passam além da porteira do sítio, ela cumpre, nos novos espaços, o mesmo
papel que cumpria dentro do sítio: fazendo bolinhos para o Minotauro ou
fritando batatas para o príncipe Codadad é a velha Nastácia que se reencontra
sempre, numa imobilidade ficcional que parece combinar bem com a representação
da imobilidade social a que estão confinados os segmentos dos quais ela pode
ser o emblema.
É quase como se pudéssemos dizer que, no Brasil dos anos 30 que se
queria moderno, só restava a Tia Nastácia papel de informante, de fornecedora
de histórias das quais as outras personagens lobatianas se apropriavam como
antropólogo em viagem de campo, garimpando alteridades e exotismos que,
retrabalhados passam a constituir tanto objeto da ciência (o folclore) quanto
objetos de alta valorização estética (a obra modernista), em nenhum dos dois casos
retornando o produto a seus sujeitos de origem.
Se o conjunto da obra infantil lobatiana confirma e reforça a
marginalidade da cultura popular representada por Tia Nastácia, esta
marginalidade ganha tintas trágicas na obra adulta do escritor . Em pelo menos
dois contos não infantis a mesma marginalidade ressurge, conduzindo a desenlace
diverso : tanto o jardineiro Timóteo quanto o negro Leandro (de "Bugio
Moqueado") podem emblematizar, no fim trágico de cada um, a
impossibilidade de sobrevivência de certos segmentos da população brasileira a
partir da instauração do processo de modernização.
Em particular no caso de Timóteo, o texto lobatiano acumula índices que
configuram o passadismo da cultura que o jardineiro representa, em contraste
com a cultura moderna representada pelos novos donos da fazenda, brancos e
proprietários de um carro no qual chegam à fazenda com plano de modernizá-la
... Em outra clave, mas no mesmo acorde, funciona a dramática denúncia do
narrador lobatiano do racismo do qual Negrinha é vítima, constituindo o
conjunto destas representações do negro na obra adulta de lobato contraponto
eficiente do paternalismo afetuoso - embora, como se viu, rompido em Histórias
de tia Nastácia - que pontua a relação dos moradores do sítio para com tia
Nastácia.
A questão do negro se recoloca quando analisada a partir de outro livro,
de publicação anterior a Histórias de tia Nastácia, absolutamente ímpar na obra
lobatiana, e que verticaliza a discussão. Trata-se do romance O presidente
negro que, nas primeiras edições intitulava-se O choque das raças, hoje
subtítulo do livro.
Publicado inicialmente em folhetins do jornal carioca A Manhã, em 1926, um pouco antes de
Lobato mudar-se para Nova Iorque (onde foi adido comercial da representação
diplomática brasileira) O presidente
Negro representava as esperanças editoriais lobatianas em terras do Tio Sam.
Constava de seus planos a criação de uma Tupy Publishing Company, em cujo
patrimônio os elementos escandalosos e polêmicos do livro eram considerados de
muito valor:
Um escândalo literário equivale no mínimo a
2.000.000 dólares para o autor e com essa dose de fertilizante não há Tupy que
não grele. Esse ovo de escândalo foi recusado por cinco editores conservadores
e amigos de obras bem comportadas, mas acaba de encher de entusiasmo um editor
judeu que quer que eu o refaça e ponha mais matéria de exasperação. Penso como
ele e estou com idéias de enxertar um capítulo no qual conte a guerra donde
resultou a conquista pelos Estados Unidos do México e toda essa infecção
spanish da América Central. O meu judeu acha que com isso até uma proibição
policial obteremos - o que vale um milhão de dólares. Um livro proibido aqui
sai na Inglaterra e entra boothegued como o whisky e outras implicâncias dos
puritanos. (Cartas escolhidas S Paulo. 6a. ed. 1970 p. 112)
Passando-se nos Estados Unidos do ainda hoje remoto ano de 2228, a ação
de O presidente negro, como a das Histórias de Tia Nastácia não se oferece
ex-abrupto a seus leitores: tem a mediá-la a voz do desajeitadíssimo Airton
que, por acidente, torna-se confidente de um cientista e através de uma máquina
do tempo assiste, como numa tela de cinema, a acontecimentos que têm lugar na
América do Norte, no ano de 2228. Como a partir de um certo ponto a máquina se
desarranja, o resto da história é contado a ele em parcelas semanais, pela
filha do cientista, que desafia Airton a escrever a história.
Não é preciso dizer que O
presidente Negro é a história resultante da aposta:
Através do porviroscópio, Jane testemunha e narra o desenlace do
conflito racial nos Estados Unidos que acaba tendo uma solução tão final quanto
o foi a solução nazista para o problema judeu: a aniquilação dos negros,
através de sua esterilização em massa . Na voz de Airton ressoa o horror bem
educado pelo genocídio, e é a parcimônia de sua reação e o tom comedido dela
que incomodam .
Ou seja, o decoro de Airton tem efeitos de sentido tão problemáticos
quanto a vigorosa voz dos netos de Dona Benta que, sem papas na língua,
desancam as histórias que lhes conta tia Nastácia.
A discussão desta divergência precisa
levar em conta que Airton não está falando do aqui nem do agora, nem de Lobato
nem de seus leitores. O choque das raças que o romance narra explode em outro
hemisfério e alguns séculos à frente, o que, literalmente, afasta o tema
polêmico, mecanismo de atenuamento que se reforça pelo tom de paródia e
chanchada dos capítulos finais que, abandonando o futuro e a distância, voltam
a centrar-se no aqui e agora de um Rio de Janeiro bastante provinciano.
Por outro lado, certos traços assumidos pela cultura afro-americana na
segunda metade do século XX, na esteira do black is beautiful conferem traço
profético a um detalhe do livro de Lobato: na história, o processo de
esterilização dos negros se fazia à revelia deles, embutido num processo de
alisamento dos cabelos e de despigmentação, o que hoje evoca inescapavelmente o
caso de Michael Jackson ...
Pode-se, assim, ler em O
presidente negro uma grande metáfora das consequências da desculturação de
um grupo étnico e, simultaneamente, o grau de solidariedade entre ciência,
arte, tecnologia e comunicação, tal como são praticados nas instâncias centrais
e que só encontram seu sentido último nas lutas que pelo poder se travam no
corpo social. Comunicação, tecnologia, arte e ciência, no caso, serviram para a
população branca exterminar a população negra.
Reflexão que, se não deixa de ser melancólica, permite retomar a
epígrafe e enlaçar o pensamento de Terry Eagleton com Histórias de Tia Nastácia e com O
presidente negro.
Em ambas as obras, a representação do negro e de sua inserção no seio de
uma sociedade que se quer branca não hesita no realismo das soluções narrativas
adotadas, inscritas ambas na moldura da oralidade . Quer na chave do realismo
fantástico da história norte-americana, quer na do realismo miúdo e cotidiano
do sítio de Dona Benta, o conflito é violento porque ele não era menos violento
na vida real, nem abaixo nem acima do Equador. E a literatura, uma das arenas
mais sensíveis na encenação deste conflito, representa-o, no caso de Lobato,
num discurso sinuoso que ao des-velar as convenções de apaziguamento inaugura
uma tradição que, ainda que do avesso, é hoje passada a limpo em poemas como
por exemplo "Charqueada grande", de Oliveira Ferreira da Silveira que
fecha este texto:
Charqueada
grande
Um talho fundo na carne do mapa:
Américas e África margeiam.
Um navio negreiro como faca:
mar de sal, sangue e lágrimas no meio
Um sol bem tropical batendo forte,
ventos alíseos no varal dos juncos
e sal e sol e vento sul no corte
de uma ferida que não seca nunca.
A
figura do negro em Monteiro Lobato
lfilipe.tripod.com/lobato.htm
OBRA
INFANTIL DE MONTEIRO LOBATO CAUSA POLÊMICA POR RACISMO
Livro
Caçadas de Pedrinho está sob mandado de segurança
As histórias infantis de Monteiro Lobato estão dando o que falar. E não
é porque são grandes clássicos da literatura. O tema em pauta é o racismo. Em
2010, a obra Caçadas de Pedrinho foi acusada de possuir teor racista pelo
Conselho Nacional de Educação (CNE), que recomendou que o livro não fosse
distribuído pelo governo nas escolas públicas. Posteriormente, a relatora do
caso voltou atrás e decidiu que cada professor deveria dar explicações sobre o
preconceito presente no livro para os alunos. Depois disso, o Instituto de
Advocacia Racial e Ambiental (Iara) junto com o mestre em educação Antonio
Gomes da Costa Neto entraram com um mandado de segurança contra o livro Caçadas
de Pedrinho e contra o relatório do CNE. O
embate pode estar prestes a acabar, já que há uma reunião de conciliação
marcada para setembro pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
A discriminação estaria presente, entre outras passagens, no tratamento
da personagem Tia Nastácia e de animais como o macaco e o urubu. Uma das frases
do livro diz: “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou,
que nem uma macaca de carvão”. O livro Caçadas
de Pedrinho retrata o momento em que o Marquês de Rabicó encontra uma onça
rondando o Sítio do Pica-pau Amarelo. Pedrinho, Narizinho, a boneca Emília e
Rabicó decidem caçar o bicho, escondidos de Dona Benta e Tia Anastácia, que
seriam contra a ideia. Durante a expedição, eles conhecem Quindim, um
rinoceronte que fala, e o trazem para viver no sítio.
Mandado
de segurança
O caso começou quando Antonio Gomes da Costa Neto fazia mestrado na
Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). O foco dele estava em
políticas públicas e etnico-raciais. Antonio concluiu que não haviam medidas
concretas para o tratamento de livros que continham passagens racistas. “O
livro estava no programa nacional Biblioteca nas Escolas. Pedimos uma análise
do conselho de educação do DF, mas nada foi feito. É por isso que levamos o
caso para o CNE”, explica. Antonio fez uma análise detalhada do livro e
encontrou 20 passagens contendo racismo.
Antonio Neto esclarece que o objetivo não era que Caçadas de Pedrinho fosse censurado ou banido. O que eles pediam,
mas a Editora Globo não aceitou, era que a nova edição da obra trouxesse uma
explicação sobre racismo. “Na época que o
livro foi escrito, por volta de 1924, racismo não era crime, mas hoje há lei
para isso. A 3ª edição, de 2009, veio de acordo com a nova ortografia e trouxe
explicações sobre legislação ambiental, já que há uma caça à onça na história
que hoje seria proIbida. Por que, então, não trouxe explicação sobre legislação
racial?”, questiona Antonio. Ele critica também a segunda posição do CNE: “Essa resolução transfere a responsabilidade
para o professor da educação básica,
muitas vezes, sem preparo para lidar com o tema”.
VVVVO advogado do caso, Humberto
Ademi, explica que “se esse tipo de
pensamento for repetido nas escolas, vai alimentar o racismo no Brasil. Não é
certo o governo financiar obras com conteúdo preconceituoso”. Ele conta que
o ministro da Educação, Fernando Haddad, não homologou a primeira decisão do
Conselho Nacional de Educação, de suspender a obra das escolas. “O CNE mudou de
posição por pressões. Queremos que o livro não seja financiado com dinheiro
público do jeito que está. São quase R$ 6 milhões gastos com um livro racista”,
comenta o advogado. Por causa dessas complicações, Antonio Gomes da Costa Neto
e o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) entraram com um mandado de
segurança contra o livro e contra o relatório do CNE.
Confira a petição inicial do processo junto ao Supremo Tribunal Federal.
Ed Alves/CB/D.A Press Antonio Gomes da Costa Neto exige que a Editora
Globo coloque uma nota explicativa na abertura do livro falando sobre as
passagens racistas da obra
Conciliação
A polêmica sobre o livro pode acabar em setembro, quando haverá uma
reunião de conciliação, convocada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) Vai
acontecer no dia 11 de setembro de 2012, às 19h30, no STF uma audiência de
conciliação ao mandado de segurança 30.952 que trata do suposto racismo no
livro Caçadas de Pedrinho. Estarão presentes o Ministro de Estado da Educação,
o Advogado-Geral da União, autoridades do Conselho Nacional de Educação, além
de outros interessados no caso.
Antes da reunião, acontecerá uma série de palestras e fóruns para
debater o caso com especialistas e com a população. O primeiro deles, já
marcado, vai ser em 9 de agosto: uma palestra com Frei David, do Educafro
(Educação para Afrodescendentes e carentes).
Especialistas
Há opiniões divergentes sobre o caso. Em Monteiro Lobato: livro a livro,
Marisa Lajolo e João Luís Ceccantini, fazem uma análise frase a frase de toda a
bibliografia de Lobato. O livro traz também cartas de leitores, entrevistas e
outros elementos para esclarecer a construção de textos pelo autor. O livro
conclui que Monteiro Lobato não colocou teor racista na obra, mas sim fez
reflexões sobre a realidade do Brasil, usando humor e ironia. “A obra de Lobato
não insufla racismo, tampouco reflete atitudes preconceituosas. Ao contrário,
condena-as. Dona Benta repreende Emília quando falta ao respeito com Tia
Nastácia”, exemplifica Marisa Lajolo, pós-doutora em literatura comparada e
professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Federal de
Campinas (Unicamp).
Para ela os negros são vistos com carinho na obra: “Tia Nastácia e Tio Barnabé – negros que figuram como personagens e às
vezes protagonistas da obra infantil lobatiana, são representados com respeito
e afeto”. De acordo com Marisa, as críticas a obra de Monteiro Lobato
ocorre porque ele questionou os valores de seu tempo: “ O extraordinário valor da obra lobatiana decorre de sua capacidade de
retratar – de forma crítica, divertida e irreverente – o quadro de valores
então vigente. Esta sua independência tem custado ao autor censura de
diferentes segmentos sociais: da igreja católica ao estado novo, mas Lobato
sobrevive!”
Já Regina Dalcastagnè especialista em narrativa brasileira contemporânea
e professora do Departamento de Literatura da UnB considera Monteiro Lobato um
ator racista: “Monteiro Lobato é racista.
Não é uma declaração aqui ou ali, está em toda a obra dele. Não há como
discutir se ele é ou não racista pois é explícito em sua literatura”.
Regina explica que a escritora Ana Maria Gonçalves fez uma análise profunda da
vida do autor por meio das cartas que ele escrevia. Algumas dessas cartas eram
direcionadas ao médico diretor da Sociedade Eugênica de São Paulo, instituição
de 1913 que pregava a eliminação dos negros por meio do “branqueamento” da
população.
“Monteiro Lobato se expressava de modo
eufórico a favor da eugenia (eliminação dos negros e branqueamento do povo). As
pessoas não gostam de admitir que ele era preconceituoso porque construíram uma
imagem fantasiosa desse autor na cabeça, por ser ele criador de obras clássicas
infantis, como Sítio do Pica-pau Amarelo”, critica
Regina. Ela considera que o Ministério da Educação deve investir dinheiro em
outras obras: “Esse é um livro
ultrapassado e preconceituoso. Tem tanta obra mais moderna e interessante por
aí precisando de apoio que seria muito melhor para as crianças”.
Fonte:- Email – antonio.sedf@gmail.com
Obra
infantil de Monteiro Lobato causa polêmica por racismo - Odiario
maringa.odiario.com/.../obra-infantil-de-monteiro-lobato-causa-pole...
Gostaria de saber, o que, realmente, Lobato revela no conto "O Comprador de Fazendas", do livro Urupês. O que ele quis dizer nesse conto.
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