PRÉ-MODERNISMO: MONTEIRO LOBATO (continuação 1)

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URUPÊS
Análise da obra

    Publicado em 1918, Urupês é basicamente uma série de 14 contos, tendo como ênfase a vida quotidiana e mundana do caboclo, através de seus costumes, crenças e tradições. Monteiro Lobato reuniu na obra alguns contos que a experiência de fazendeiro do Vale do Paraíba lhe proporcionou. É a obra de estreia de Monteiro Lobato.
   Urupês não contém uma única história, mas vários contos e um artigo, quase todos passados na cidadezinha de Itaoca, no interior de SP, com várias histórias, geralmente de final trágico e algum elemento cômico. O último conto, Urupês, apresenta a figura de Jeca Tatu, o caboclo típico e preguiçoso, no seu comportamento típico. No mais, as histórias contam de pessoas típicas da região, suas venturas e desventuras, com seu linguajar e costumes. 
    Para uma melhor compreensão da temática da obra, o próprio escritor nos dá pistas ao citar, em um dos seus contos, Meu Conto de Maupassant. De fato, sua literatura vai pela mesma rota do literato francês, já que se baseia em ações extremas e patéticas norteadas pelo amor e pela morte.
    O tom exagerado também se manifesta em sua linguagem. Além dos traços expressionistas (na descrição das personagens Lobato utiliza técnicas expressionistas que as deformam, quando se dedica a caracterizar a natureza passa a vazar metáforas de bela plasticidade que em vários pontos lembra a idealização romântica. Afasta-se, no entanto, dessa escola literária por utilizar uma linguagem mais simples, arejada, moderna) usados nas descrições das personagens, Lobato utiliza constantemente a ironia, o que revela uma emotividade extremamente carregada, fruto de um misto de indignação, impaciência e até intolerância ao enxergar os problemas brasileiros e como eles são provocados pela lassidão, fraqueza e indolência do caráter de nosso povo.
    A linguagem lobateana ainda inspira alguns comentários interessantes. É fácil perceber como antecipa o Modernismo, já que não apresenta a elaboração rebuscada então vigente em sua época (Monteiro Lobato criticou ferozmente a moda parnasianista de elaboração preciosista e purista da linguagem. Suas ideias combativas aparecem até mesmo em trechos que podem ser entendidos como pequenas digressões dentro das narrativas de diversos contos de Urupês). Defensor de um estilo mais simples, prático, direto, sem elucubrações linguísticas, chega até mesmo a aproveitar o andamento coloquial brasileiro dentro de sua narrativa, o que o torna embrião de feitos vistos em obras importantíssimas do Primeiro Tempo Modernista, como Macunaíma, Memórias Sentimentais de João Miramar, Brás, Bexiga e Barra Funda e Libertinagem. É só notar expressões como “Filho homem só tinha o José Benedito, d’apelido Pernambi, um passarico desta alturinha” ou “E a prova foi roncarem logo p’r’ali como dois gambás”, dois exemplos tirados a esmo do conto A Vingança da Peroba.
    Outro aspecto moderno é a construção de uma metaforização nova, em certos aspectos inusitada, se comparada ao padrão parnasianista então em moda, mas mais comum no movimento que surgiria praticamente meia década depois desse livro de Lobato.

Enredo
Os Faroleiros – O narrador, em meio a um bate-papo, propõe-se a contar uma história surpreendente. Relata que, seduzido pelo ar solitário e isolado de um farol, consegue realizar seu sonho passando uns dias nesse local. É quando conhece duas figuras misteriosas que não se conversam: Gerebita e Cabrea. O primeiro defende a idéia, insistentemente confessada para o narrador, de que o segundo está louco. Pergunta então se seria crime se defender de um ataque de um maluco matando-o. É uma premonição, além de deixar nas entrelinhas que o que está para ocorrer tinha sido premeditado. Pouco depois, os dois mergulham num duelo sangrento, em que Gerebita consegue matar o seu oponente com dentadas na jugular. Quando o narrador abandona o farol, massacrado por experiências tão carregadas, toma conhecimento dos motivos que levaram a essa tragédia. Gerebita fora casado com uma mulher chamada Maria Rita, que o trocou por Cabrea, que também é trocado por outro homem. Tempos depois o destino fez com que os dois fossem nomeados para trabalhar no mesmo farol, passando a estabelecer uma convivência de tensão surda.
    Não deixe de notar que a narrativa várias vezes se abre para que haja comentários dos ouvintes com o enunciador. É uma maneira de o texto não ficar pesado, cansativo. Além disso, deve-se observar as técnicas expressionistas (o exagero que beira o grotesco) e naturalistas (preferência pelos aspectos escabrosos do comportamento humano). Finalmente, não se deve perder de vista que este conto foge ao padrão de Monteiro Lobato, já que não é regionalista. Passa-se no litoral, ou seja, bem longe do seu conhecido Vale do Paraíba.

O Engraçado Arrependido -  Trata-se da história de Pontes, um típico piadista, que consegue arrancar risos nos atos mais simples. Até que um dia resolve ser sério, desejo que não consegue realizar, pois sempre imaginam que é mais uma peça que está pregando. Tenciona, pois, arranjar um cargo no funcionalismo público, o que só obterá se surgir uma vaga, conforme avisa seu padrinho. Resolve, de forma maquiavélica, atacar Major Antônio, homem extremamente sério e que sofre de um aneurisma prestes a estourar por qualquer esforço. Seu plano, pois, é matá-lo com suas piadas e assim ficar com o seu emprego. No começo parece difícil, devido ao caráter circunspeto do doente. Até que, depois de muitas pesquisas sobre o gosto humorístico da vítima, consegue dar o golpe fatal. Mergulha, a partir de então, no remorso, isolando-se de todos. Semanas depois, recuperado, volta à ativa, mas descobre que havia perdido a vaga, pois a demora provocada por seu sumiço forçara a nomeação de outra pessoa. O protagonista enforca-se com uma ceroula, o que para a cidade acaba sendo visto como mais uma piada.
    Note como neste conto o psicológico acaba se resvalando para o patológico, para o anormal, o patético, o exagerado. Observe, também, que ainda não é aqui que se manifesta o caráter regionalista do autor.

A Colcha de Retalhos – Neste conto já se manifesta a temática que tanto consagrou o seu autor: a crítica à decadência da zona rural. O narrador faz uma visita a Zé para propor-lhe negócios. No entanto, este recusa, o que revela sua indolência. Esse seu caráter é responsável pela decadência e atraso em que se encontra sua fazenda, reforçada pelo desânimo de sua esposa e pelo caráter arredio de sua filha, Pingo ou Maria das Dores. A única firme, forte, é uma velha, verdadeira matriarca. Mas é por pouco tempo. Anos depois surge a notícia de que Pingo, verdadeiro bicho do mato, havia fugido com um homem para manter uma relação desonrosa. É a derrocada final. A mãe da moça morre, o pai mergulha mais ainda na decadência e a matriarca já não encontra mais motivos para sua existência. O momento mais tocante é quando ela passa a descrever para o narrador a colcha que estava costurando durante anos, toda composta de peças de roupa que Pingo ia usando e dispensando desde recém-nascida. O último pedaço estava reservado para um retalho do vestido de noiva, que não chegou a existir.
    Note como a decadência em que a menina mergulha é um símbolo da decadência rural. Note também o colorido da linguagem do contista, que retrata com fidelidade o andamento do registro oral de suas personagens, como no trecho “Des’que caí daquela amaldiçoada ponte”, entre tantos outros.

A Vingança da Peroba – Mais um conto que critica a decadência rural provocada pela indolência dos fazendeiros. Há aqui uma oposição entre duas famílias, os Porunga, fortes e de vida bem estabelecida, graças à força de vontade de suas ações, e os Nunes, mergulhados na preguiça, desorganização e cachaça. Os dois clãs desentendem-se por causa de uma paca, há muito desejada pelo Nunes, mas que acabou sendo caçada por um Porunga. Movido por uma mistura de rivalidade e de inveja, Nunes resolve finalmente investir em suas terras. Seus esforços têm fruto, gerando uma boa colheita de milho. Resolve então construir um monjolo, pois não quer ficar atrás do seu vizinho em desenvolvimento. Corta  uma peroba imensa, que estava na divisa das duas terras. Já há aqui motivo de desentendimento, que arrefece quando os Porunga resolvem não brigar mais pela árvore. Semelhante ao conto “Faroleiros”, há o emprego da premonição no meio da narrativa. Um aleijado, que havia sido contratado por Nunes para ajudar na construção do engenho, conta uma história de que certas árvores se vingam por terem sido cortadas. O fato é que o monjolo é construído, mas todo torto, produzindo mais barulho do que outra coisa, o que justifica o seu apelido: Ronqueira. Decepcionado e envergonhado, mergulha na cachaça. Um dia, depois que ele e seu filhinho se embebedaram, acaba adormecendo na rede. Acorda com a gritaria das mulheres de sua casa: o engenho havia esmagado a cabeça da criança no pilão. Irado, Nunes destrói a machadadas a máquina assassina.

Um Suplício Moderno – Este conto apresenta o estafeta, uma espécie de carteiro, como o tipo mais humilhado das cidades do interior. Trata-se da história de Biriba, um pobre coitado que acaba se tornando o burro de carga de todas as pessoas de Itaoca, que ainda cometem o desatino de reclamar dos favores que faz para elas. Sua paciência esgota-se a ponto de pedir demissão, mas não o deixam levar adiante seu plano. Era interesse de todos ter alguém tão submisso. É quando resolve se vingar, traindo Fidêncio, seu superior. Recebe um pacote muito importante para as eleições. Não o entrega, sumindo com ele por dias. É o motivo da queda do maioral, provocando a subida do inimigo, Evandro, que não poupa quase ninguém do antigo governo, apenas o pobre Biriba, recebido de forma bastante atenciosa. Provavelmente desconfiando que tudo iria continuar como antes, mudados apenas os personagens, some de Itaoca.

Meu Conto de Maupassant – Essa narrativa é norteada pelos temas do amor e da morte, comuns em Maupassant e grandes elementos vitais de Lobato. O narrador, ao passar de trem diante de uma árvore, um saguaraji, lembra-se de um crime ocorrido há muito. Tudo havia começado com o aparecimento, nas redondezas daquele vegetal, do cadáver decapitado de uma velha. Investigações são feitas e tem-se como principal suspeito um italiano, que consegue se safar, já que não havia provas. Os anos passaram-se e novos indícios surgem sobre o caso, levando o italiano, que havia sumido no Brás, a ser mais uma vez conduzido para a justiça. Durante toda a viagem de trem, o acusado não deu trabalho algum, mostrando-se por demais submisso. Até o momento em que o veículo passa diante do saguaraji. É quando o sujeito se atira para fora do transporte, sendo depois encontrado morto junto à árvore. Fica a idéia, por muito tempo, de que o remorso pelo crime cometido o havia conduzido ao suicídio, no entanto, tudo é desfeito quando o filho da assassinada confessa o delito. Mergulha-se, pois, no clima de mistério à Maupassant.

Pollice Verso – Narra-se a história de Inácio, alguém que já de criança mostrava um gênio negativo ao gostar de dissecar pássaros. Seu pai, homem dotado de linguagem empolada (o que o tornava uma ilha em seu meio tão pobre intelectualmente) via nesse costume, no entanto, uma tendência para a Medicina e dedica todas as suas forças em ver seu filho seguindo essa carreira. O rapaz acaba realizando o sonho do pai, mas torna-se um pelintra, mais preocupado em se exibir e conseguir o mais rápido possível dinheiro para voltar aos braços da amante francesa, Yvonne, que havia conhecido nos tempos da faculdade. Seu bilhete de loteria é conseguir cuidar de um ricaço, Mendanha. Sua intenção não é curá-lo, pois não seria tão lucrativo quanto a morte, que lhe possibilitaria cobrar uma quantia exorbitante. Com o falecimento do paciente, a família recebe a conta, que acha exorbitante, levando a questão ao tribunal. Ali, Inácio conta com o corporativismo, já que os outros médicos (tão menosprezados pelo recém-formado) dão-lhe parecer favorável. Viaja, pois, para Paris, enganando a todos, dizendo que tinha se estabelecido na carreira e estava em contato com gente do alto quilate da medicina. Estava mais era curtindo a vida.

Bucólica – Outro conto regionalista que critica a “lassidão infinita” da zona rural. Narra-se o atraso em que vivem Veva e seu marido, Pedro Suão. Os dois têm uma filha, Anica, deficiente. Esse é o motivo que faz sua mãe tratar-lhe mal, desejando a morte da pequena, já que não vê utilidade em sua existência quase paralítica. O clímax, temperado a doses de crueldade absurda, está no relato que Libória, a empregada do casal, faz ao narrador. A menina havia morrido de sede, pois a mãe havia-lhe negado água, mesmo sabendo que a coitada estava com febre. O mais trágico é que a única que atendia às vontades da enferma era a criada, que naquele momento estava retida fora da casa graças a uma chuva torrencial que aparecera. O funesto está no fato de a mocinha ter se arrastado até o pote d’água, morrendo ao pé deste.
    Note como o título do conto estabelece uma gigantesca ironia com relação ao seu conteúdo.

O Mata-Pau – A história deste conto é introduzida por meio da simbologia do mata-pau, planta que surge discretamente numa árvore, mas que com o tempo cresce a ponto de sugar-lhe toda a seiva. Estabelece-se, pois, relação com Elesbão e Rosa, que há muito queriam um filho, mas não conseguiam. Até que no meio de uma noite surge uma criança na terra deles. Adotam-na, batizando-a de Manuel Aparecido. Quando cresce, acaba tendo um caso com a madrasta. Dominado por sentimento malignamente possessivo, mata o padrasto e depois consegue fazer com que Rosa passe a fazenda para o nome dele. Vende tudo e some com o dinheiro, não sem antes trancar a ex-amante em casa, que incendeia. A sorte dela é que, além de conseguir escapar, enlouquece, o que é-lhe um alívio, pois não tem noção da miséria em que caiu a sua vida.

Bocatorta – Conto carregado de elementos macabros e expressionistas. É a história de Bocatorta, uma figura hedionda e deficiente que vive isolado no meio do mato. Sua biografia é relatada numa reunião familiar, o que desperta a curiosidade em vê-lo. Uma das meninas, Cristina, fica com medo, mas acaba indo, encorajada pelo noivo. Assolada pelo medo e fragilizada pela mudança de clima que ocorre durante a viagem, fica doente, terminando por morrer. Mais tarde, um rapaz que gostava muito dela percebe algo estranho no cemitério e corre para pedir ajuda. Quando todos chegam lá, descobrem Bocatorta violando o cadáver da moça, em pleno ato de necrofilia. Acaba sendo perseguido, morrendo afogado num atoleiro que existia lá por perto.

O Comprador de Fazendas – Quase como para aliviar a leitura depois de dois textos tão pesados, este conto mostra-se mais jocoso. É a história de Moreira, dono da fazenda decadente – mais uma vez esse tema! – Espiga, que não consegue ser vendida, assim como sua filha Zilda não consegue arranjar casamento. Até que surge Trancoso, sujeito bem afeiçoado e que se mostra interessado em comprar a propriedade. Surpreendentemente, é o primeiro que se mostra a elogiar tudo, o que faz com que seja bem tratado, podendo até cortejar Zilda. Parte, prometendo fechar negócio em uma semana. Com a demora da resposta, Moreira faz pesquisas, descobrindo que o indivíduo ganhava a vida andando de fazenda em fazenda, sempre se mostrando interessado em comprar, o que lhe garantia casa e comida por alguns dias. O proprietário, frustrado, fica irado. Tempos depois, Trancoso ganha na loteria e retorna à Espiga, dessa vez para comprá-la realmente, mas é recebido com uma surra de rabo de tatu. Vai-se, aí, o sonho de vender a fazenda e de casar Zilda.

O Estigma – Bruno, narrador, conta a história de seu amigo, Fausto, que se casou praticamente interessado em dinheiro, já que o relacionamento era o que se chamava “face noruega", ou seja, semelhante ao lado de uma vegetação em que não bate sol. Tudo se complica quando o marido se envolve com uma prima, Laurita, muito mais jovem do que a sua esposa. Até que a mocinha aparece morta com um tiro no peito. Suspeita-se que tenha se suicidado e o narrador chega a pensar que de remorso por manter um relacionamento adulterino. Tempos depois, o filho de Fausto nasce, apresentando uma marca no peito, na mesma região que Laura havia atingido para pôr fim a vida. Desenvolve então a teoria de que aquela criança, quando feto, fora a única testemunha do crime cometido por sua mãe. Em outras palavras, não houve suicídio, mas um crime passional e a criança veio ao mundo para denunciar sua progenitora. Assim que vê esse sinal, mostra para a esposa, dizendo: “Olha, mulher, quem te denuncia!”. Em pouco tempo está morta. O narrador, que visita a personagem muitos anos depois, pôde ver o sinal e descobrir que era tudo ilusão, pois não havia como a marca presente no peito da criança provar ou mesmo denunciar qualquer coisa.

Prefácio da 2ª Edição de Urupês – Explica-se aqui o que levou Lobato a produzir seus textos sobre a indolência do caipira. Tudo havia começado com um comentário para o jornal em linguagem vazada de emotividade e estilo, o que despertou nos leitores um desejo por mais textos do mesmo quilate.

Velha Praga – O artigo que transformou um “fazendeirinho” em literato disserta, de forma indignada e irônica, sobre o atraso do comportamento do caboclo, que praticamente põe toda a validade do solo e da agricultura a perder por causa de seu costume bárbaro de realizar queimadas.

Urupês – Este é um dos mais famosos textos de Monteiro Lobato. Nele, desanca uma crítica das mais ferozes que já se fez sobre qualquer tipo nacional. O alvo de seu ataque é o caboclo. Derrubando uma tradição cara, inaugurada por José de Alencar, que apontava como a mestiçagem do índio com o branco como geradora de uma nação forte, Lobato crê no contrário. Sua teoria institui a tese do caboclismo, ou seja, a mistura de raças gera um tipo fraco, indolente, preguiçoso, passivo. Sua religião manifesta-se por meio das mais primitivas formas de superstição e magia. Sua medicina é mais rala ainda. Sua política é inexistente, já que vota sem consciência, conduzido pelo maioral das terras em que mora. Seu mobiliário é o mais escasso possível, havendo, no máximo, apenas um banquinho (de três pernas, o que poupa o trabalho de nivelamento) para as visitas. Não tem sequer senso estético, coisa que até o homem das cavernas possuía. E quanto à produção, dedica-se apenas a colher o que a natureza oferece. É, portanto, o protótipo de tudo quanto há de atrasado no país.

Urupês, de Monteiro Lobato - Passeiweb

RESUMO DO CONTO "NEGRINHA"
Trabalho por Dalvina Bernardino da Silva, estudante de Letras.
    O conto Negrinha, escrito em 1920, durante a transição do Pré-Modernismo para o Modernismo, relata a história de uma pobre órfã negra, filha de escrava, que é criada por Dona Inácia, uma senhora da aristocrata dona de uma fazenda viúva e sem filhos, inconformada com a abolição da escravatura, conservando a menina unicamente para extravasar à sua crueldade, aplicando na criança os mais severos maus tratos, tantos verbais (xingamentos, ordens duras e palavras rudes) por como físicos (beliscões, tapas e “crocres”, etc), sendo seu “brinquedinho”.
    Dona Inácia descarregava sua amargura na menina, e deleitava-se com isso, a ponto de seu rosto ganhar um brilho especial só em imaginar a aplicação de um castigo na criança.
    Quando Dona Inácia recebe em sua fazenda, suas sobrinhas, vindas da capital para uma temporada de férias, ocorre uma reviravolta no cotidiano de Negrinha.
    As meninas, com suas vestes elegantes. Eram alegres e agitadas e Negrinha pensou que seriam castigadas pelas balbúrdias, assim como ela era castigada se fizesse barulho. Não houve castigo, ficando claro para Negrinha a diferença que existia entre ela e aquelas meninas.
    Estas, ao perceberem que Negrinha pode ser uma companhia de brincadeiras durante a temporada na fazenda oferecem-lhe uma boneca, e acham graça quando veemque Negrinha nunca pegou nesse brinquedo.
    No período de estadia das meninas na fazenda, Dona Inácia poupa Negrinha do rude tratamento habitual, vendo que suas sobrinhas tem com quem brincar.
    Ao final das férias, Dona Inácia, mais serena, já não castigava a criança, mas algo se transformara para Negrinha, pois uma vez que pôde vislumbrar um outro tipo de vida, que teve a liberdade de exercer seu lado criança, brincando e sem medos dos castigos, depois da partida das meninas é tomada pela tristeza e pela melancolia, e definha, em seu canto até morrer, esquecida por todos.
    Foi enterrada em um lugar comum. Na cidade grande as meninas riam e lembravam de Negrinha como uma bobinha que não sabia o que era uma boneca. E Dona Inácia foi tomada pela nostalgia, por te perdido seu “brinquedo” e por não ter mais em quem descarregar as suas maldade.

Resumo do Conto Negrinha -Monteiro Lobato
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ANÁLISE DO CONTO "NEGRINHA"

    Narrado em terceira pessoa, Negrinha conta a história de uma menina negra, orfã muito nova, criada pela senhora patroa de sua mãe quando viva.
    Pequena e assustada, Negrinha se escondia pelos cantos da casa, sempre com medo do que a senhora faria com ela. Criada em meio a surras e pontapés, a menina não tinha senso do que era certo ou errado: um mesmo ato provocava algumas vezes a ira da senhora e em outra vezes fazia a rir.
    Assim ela cresceu, em meio a castigos, sem uma única palavra de carinho, tratada como escrava, mesmo sendo apenas uma criança que sentia correr por suas veias um único desejo: ser realmente uma criança, poder correr, brincar, se divertir, sem temer o que dona Inácia faria.
    Em meio a tanta tortura e sofrimento, Negrinha provou, finalmente, do gosto que a muito esperava: quando as sobrinhas de D. Inácia, pequeninas como Negrinha, passaram as férias com a tia, a orfã recebeu, por um momento, o carinho de mãe que nunca teve ao ter a permissão da patroa para brincar com os "anjos louros".
    Mesmo quando os tais "anjos louros" partiram, Negrinha continou presa ao estado de êxtase, o qual a matou. Conforme o tempo passava a menina se afundava mais no poço da depressão. No entanto, seus últimos suspiros foram o suficiente para que a morte a levasse feliz.
    Em todo o texto percebe-se o uso de Lobato da objetividade, mesmo nas descrições das personagens. Com poucas palavras, ele nos dá a personalidade de Negrinha, assim como a de D. Inácia, não chateando o leitor com longas descrições desnecessarias.
    Nota-se também a constante presença da ironia, em especial quando se trata de Dona Inácia, como em "excelente senhora a patroa", por exemplo.
    No conto, os esteriótipos da época que é indicada são retratados através das personagens principais: Negrinha representa a classe escrava que vive em meio ao eterno sofrimento. Seu único entendimento da vida era servir e obedecer aos patrões, mais por medo do que por respeito, afinal, sem tais patrões, eles estariam em uma situação pior que já estavam.
    Por outro lado, D. Inácia representava os patrões; através dela o óbvio preconceito da época era apresentado. Em meio a personalidade da patroa, características como a impaciência e a parcialidade estão presentes, e são essas, principalmente, as que contribuem com o sofrimento de Negrinha.
    Um ponto importante sobre Inácia era o fato de nunca ter dado à luz. O próprio autor comenta, pelas entrelinhas, que a existência de Negrinha seria diferente se a patroa tivesse seus  próprios filhos. A ausência desses filhos, no entanto, foi essencial para a contextualização do conto, pois, sendo as duas personagens a retratação do patrão e do escravo, uma possível amenização dos maus-tratos contra Negrinha estaria fora da realidade do contexto histórico.
    A originalidade do texto está no fato de ele ser escrito de forma favorável ao negro, apesar da presença de preconceito por parte de D. Inácia. Mesmo narrado em terceira pessoa, é como se a história fosse contada pelo ponto de vista da menina, mostrando o quão grande era o sofrimento dos escravos; o texto não diz, portanto, que o escravo era merecedor de tal sofrimento.
    No entanto, mesmo levando em consideração o ponto de vista do escravo, o autor ainda sim era realista. Mesmo que Negrinha não merecesse a vida a qual era imposta a ela, o que ela tinha era aquilo, e qualquer coisa diferente daquilo não seria real, o que prova as ideias citadas acima.
De fato, essa obra está recheada com um tema polêmico e pode ser considerada não recomendável para crianças pela presença do preconceito e dos maus tratos, porém, o fato da personagem principal ser uma menina tão nova é o que traz a lição que o conto leva consigo. Se bem trabalhado, tanto o público adulto quanto o infantil, a quem o texto foi, originalmente, dirigido, poderão captar a mensagem que existe no conto sobre o tão polêmico assunto.

Análise - Negrinha | Plusert'
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O DESENVOLVIMENTO DAS PERSONAGENS EM "NEGRINHA"

    Em Negrinha, as ações das personagens estão centradas, basicamente, na figura da pobre órfã adotada e os acontecimentos são todos norteados ao seu redor. Desde o seu nascimento, a história de sua vida é contada, afinal, ela morre ainda pueril, momento em que se dá todo o desenlace do conto. A patroa de Negrinha, dona Inácia, era chamada de “excelente senhora”, principalmente pela igreja, afinal era uma mulher rica, possuidora de muitos dotes, e que contribuía regularmente com a igreja. Como mesmo dizia o reverendo: “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”.
    Dona Inácia mantinha Negrinha como um animal doméstico, sem direito a nada, somente sobreviver. As atitudes de Inácia sempre foram com o intuito de mostrar a imagem de uma boa senhora à sociedade, mas, em casa, tratava cruelmente Negrinha, tendo em sua pobre figura uma possibilidade de expurgar suas raivas e neuras. Tudo era motivo para que Negrinha levasse croques, pontapés, xingamentos etc. No transcorrer do texto, toda malevolosidade dela é revelada, principalmente no momento em que ela pede para Negrinha abrir a boca para engolir um ovo que acabara de sair do cozimento.
    Na sequência, duas sobrinhas de “Santa Inácia” – como enfatiza Monteiro Lobato – vem passar as férias de dezembro e, pela primeira vez, a Negrinha pôde brincar. As meninas brincam com ela, mas ficando sempre claro que ela é adotada e, portanto, diferente, um verdadeiro animal de estimação. Após o retorno das sobrinhas de Inácia, a vida de Negrinha volta a ser como era antes. Na sequência, ela falece de desgosto, fraca e delirante, relembrando das brincadeiras que teve com as meninas, bonecas e brinquedos.
    Segundo Moisés (1986), o conto tem número reduzido de personagens e o desfecho do conto encerra as expectativas sobre os mesmos. É exatamente dessa forma que acontece com a protagonista Negrinha, que ao término falece e encerra o ciclo imaginário do leitor sobre ela.
Traçaremos agora alguns traços das personagens do conto:
Negrinha: personagem principal, o enredo circula ao seu redor. O conto é narrado sob a perspectiva do olhar discriminatório dos demais ante ela que vivia de modo subumano, adotada por dona Inácia. O nome “Negrinha”, que seria normalmente um adjetivo, é colocado como substantivo próprio no conto, mais uma forma de Lobato destacar o preconceito visceral dos demais. O conto se encerra com sua morte, que se torna uma libertação após tanto sofrimento.
Dona Inácia: a mulher que adotou Negrinha. Solteirona, tornara-se viúva sem ter filhos. Para a sociedade, mulher de caráter ilibado, digna, possuidora de riquezas e assídua freqüentadora e colaboradora da igreja. Mas, através do conto descobrimos quem ela é, de verdade. Utiliza-se do fato de ter adotado uma menina para se gabar, sendo que, na verdade, trata a menina adotada como um verdadeiro animal. Com a morte de Negrinha ao término do conto, ela lamenta de saudade: “Como era boa para dar um cocre”.
Reverendo: participação coadjuvante, somente para reforçar a ideia de “virtuosa senhora”, de dona Inácia.
Criada nova: participa do conto no momento em que Negrinha engole um “ovo quente” após a reclamação da mesma. Em outro momento surge outra criada, mais amena e que não a destratava.
Duas sobrinhas: aparecem do meio ao fim do conto; brincam com Negrinha, achando-a extravagante por nunca ter visto uma boneca.
Cuco: metáfora do tempo, que aparece no conto como um elemento que traz fantasia para Negrinha, quando ele apitava as horas. No final, o cuco aparece mais uma vez, alertando que o tempo de Negrinha na terra estava se esvaindo.

O desenvolvimento das personagens em Negrinha
oshumanos.wordpress.com/.../o-desenvolvimento-das-personagens-e...

A FIGURA DO NEGRO EM MONTEIRO LOBATO
Marisa Lajolo - Unicamp/iel 1998

Resumo
    Este artigo analisa diferentes e contraditórias representações do negro em algumas obras de Monteiro Lobato ( 1882- 1948) , particularmente Histórias de Tia Nastácia e O presidente negro (O choque das Raças) . Discutindo a posição do narrador , o artigo levanta questões relativas às implicações ideológicas destas representações lobatianas e à relação de tais representações com outras imagens de negros construídas pela literatura.
    Na verdade, não há necessidade alguma de se trazer a política para o âmbito da teoria literária: como acontece com o esporte sul-africano, elas estão juntas há muito tempo. Por "político" entendo apenas a maneira como organizamos conjuntamente nossa vida social e as relações de poder que isso implica.
    Discutir a representação do negro na obra de Monteiro Lobato, além de contribuir para um conhecimento maior deste grande escritor brasileiro, pode renovar os olhares com que se olham os sempre delicados laços que enlaçam literatura e sociedade, história e literatura, literatura e política e similares binômios que tentam dar conta do que, na página literária, fica entre seu aquém e seu além.
    Além do texto, aquém da vida.
    Tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena  ganha as primeiras atenções: ela desfruta da afetividade da matriarcal família branca para a qual trabalha e, ao mesmo tempo, apesar de suas breves mas muito significativas incursões pela sala e varanda, encontra no espaço da cozinha emblema de seu confinamento e de sua desqualificação social .
   Ao longo da obra infantil lobatiana, a exceção ao carinho brincalhão que a cerca vem sempre pela boca da Emília que em momentos de discussão e desentendimento desrespeita a velha cozinheira, como sucede em algumas passagens de Histórias de Tia Nastácia :
   Pois cá comigo - disse Emília- só aturo estas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras - coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto !
    - Bem se vê que é preta e beiçuda ! Não tem a menor filosofia, esta diaba. Sina é o seu nariz, sabe ? Todos os viventes têm o mesmo direito à vida, e para mim matar um carneirinho é crime ainda maior do que matar um homem. Facínora !
    - Emília, Emília ! - ralhou Dona Benta.
    A boneca botou-lhe a língua.
    Similares má-criações têm servido de munição para leituras que tomam o xingamento como manifestação explícita do racismo de Lobato, questão incômoda, de que os estudiosos do escrito têm de dar conta :
   (...) é fora de dúvida que Lobato subscreve preconceitos etnocêntricos e mesmo racistas (...)   
    "Tia Nastácia, por exemplo, é um poder que representa a presença da cultura e saber populares, um saber mágico, empírico, fruto do conhecimento da vida pelo seu exercício real.
    (...) Após cada história contada pela cozinheira, há comentário dos personagens. A maior parte destes comentários falam da pobreza e da ingenuidade da imaginação popular . Todos criticam as histórias de tia Nastácia, principalmente Emília, que as considera bobagens de negra velha.
     (...) apesar de todo este descontentamento com as histórias folclóricas, em A chave do tamanho, Emília consegue salvar sua vida ameaçada pelos insetos, lembrando-se de uma das histórias da cozinheira (p/139-140)
    Francamente eugenista, a trama urdida por Lobato em O choque, onde a inteligência dos brancos acabava vencendo, vem destacar posições ambíguas do escritor. Mas, se neste livro ele abraça ideias acerca da superioridade racial, em outros momentos resgata o elemento de origem africana e reconhece seu papel na cultura brasileira - como na caracterização de Tia Nastácia e Tio Barnabé - personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo representantes do saber popular. E tampouco se esquiva em denunciar as crueldades do escravismo, conforme se pode constatar no conto "Negrinha".
    Efetivamente, a representação do negro, em Lobato, não tem soluções muito diferentes do encaminhamento que a questão encontra na produção de boa parte da intelectualidade brasileira, e não só da contemporânea de Lobato, como vêm ensinando os estudos de Heloísa Toller .        
    Longe de desqualificar a questão, esta ambiguidade torna-a ainda mais relevante. Mas os melhores ângulos para discuti-la não se esgotam na denúncia bem intencionada dos xingamentos de Emília, absolutamente verossímeis e, portanto, esteticamente necessários numa obra cuja qualidade literária tem lastro forte na verossimilhança das situações e na coloquialidade da linguagem.
    Caminho mais sugestivo do que este parece ser discutir como se coloca a questão da representação do negro no livro Histórias de Tia Nastácia, onde ela comparece a partir do título. Publicada em 1937, a obra é uma antologia de contos populares contados em uma moldura narrativa familiar à obra de Lobato: tia Nastácia desfia histórias para os demais moradores do sítio que, na posição de ouvintes, comentam as histórias que ouvem. À medida que o livro prossegue, as relações entre Tia Nastácia e seus ouvintes vão se tornando mais tensas quanto mais cresce a insatisfação da plateia com as histórias narradas, às quais ninguém poupa críticas:
    Eu (...) acho muito ingênua esta história de rei e princesa e botas encantadas, disse Narizinho. Depois que li Peter Pan, fiquei exigente . Estou de acordo com a Emília (p.13)
    A crítica a histórias da carochinha não é de modo algum inovação deste livro, já que em outras passagens da obra de Lobato diferentes personagens exprimem insatisfação com histórias tradicionais, histórias estas provenientes da mesma matriz de onde vem o repertório de tia Nastácia.
    Ao lado da recorrência, na obra infantil lobatiana, de críticas severas a histórias tradicionais, também é recorrente em sua obra a narrativa "em encaixe" isto é, a narrativa dentro da narrativa como ocorre nas Histórias de tia Nastácia e que também ocorre em Peter Pan (1930) e em D.Quixote das crianças (1936). Quem nestes dois livros ocupa a posição de contador de histórias é Dona Benta. Nos dois casos ela conta as histórias que lê em livros estrangeiros, e enquanto adulta e reconhecidamente mais experiente, narra de um espaço hegemônico em relação aos seus ouvintes.
Já quando Tia Nastácia assume a posição de contadora de histórias, a relação de forças entre ela e sua audiência (a mesma das histórias de Dona Benta) é completamente outra. Tia Nastácia transfere para o lugar de contadora de histórias a inferioridade sócio cultural da posição (de doméstica) que ocupa no grupo e além disso (ou, por causa disso...), por contar histórias que vêm da tradição oral não desempenha função de mediadora da cultura escrita, ficando sua posição subalterna à de seus ouvintes, consumidores exigentes da cultura escrita, como explicitou Narizinho na citação acima.
    A assimetria de posição entre narrador/ouvinte que ocorre em Histórias de Tia Nastácia, no entanto, ocorre também em outras obras da época, e que são, igualmente, recolha emoldurada de contos folclóricos: Histórias do Pai João (Oswaldo Orico, 1933), Histórias da velha Totonha (José Lins do Rego, 1936), Histórias da Lagoa Grande (Lúcio Cardoso, 1939), O boi aruá (Luís Jardim, 1940) elencam contos desfiados por contadores negros. A originalidade vem um pouco depois pelas mãos de mestre Graciliano, com suas Histórias de Alexandre, de 1944.
    É como exceção que o livro de Lobato, ao lado do de Graciliano, destaca-se do conjunto de antologias.
    Embora Histórias de Alexandre mantenha parentesco estrutural com todas as obras acima citadas, o parentesco se enfraquece ao romper-se a situação narrativa comum a todas elas, onde a figura de um(a) negr(o)(a) conta histórias para uma platéia constituída por crianças quase sempre brancas. Alexandre narra histórias para uma audiência adulta como ele e, como ele, sertaneja, dissolvendo-se, assim, a assimetria pretos e brancos, cultura da oralidade e cultura da escrita, adulto e criança, tão marcada nas obras de Lins do Rego, Lúcio Cardoso e Luiz Jardim.
    Alexandre conta histórias para seus pares e as histórias que conta - e agora também à dessemelhança das histórias de Tia Nastácia- são, quase sempre, aventuras que ele diz ter testemunhado ou protagonizado. Como as crianças do sítio, a assistência de Alexandre é muitas vezes desconfiada do que ouve .
    Mas a incredulidade dos ouvintes de Alexandre não chega a comprometer o equilíbrio das forças que se medem no ato de contar histórias: a tensão se dissolve quando Cesária, mulher do narrador, solicitada pelo marido, avaliza as histórias. Estas, tendo sua veracidade assegurada, passam a ser aceitas pela platéia .
    Já no livro de Lobato, o antagonismo plateia/ Tia Nastácia não se resolve, uma vez que a Tia Nastácia não tem aliados. Parecendo mais sofisticados, seus ouvintes reclamam, não da veracidade das histórias, mas da verossimilhança delas e da precariedade da estrutura narrativa:
    -Esta história - ainda está mais boba que a outra. Tudo sem pé nem cabeça. Sabe o que me parece ? Parece um história que era de um jeito e foi se alterando de um contador para outro, cada vez mais atrapalhada, isto é, foi perdendo pelo caminho o pé e a cabeça. (p.21)
   Histórias de Tia Nastácia, contudo, ainda se diferencia dos demais livros de organização semelhante pelo fato de que as histórias nele contadas - e a situação de contá-las - decorrem de uma espécie de projeto explicitamente enunciado por Pedrinho, que, a partir de um artigo de jornal começa a interessar-se por folclore:
    - As negras velhas - disse Pedrinho - são sempre muito sabidas. Mamãe conta de uma que era um verdadeiro dicionário de histórias folclóricas, uma de nome Esméria, que foi uma escrava de meu avô. Todas as noites ela sentava-se na varanda e desfiava histórias e mais histórias (p. 3)
    Tia Nastácia é o povo. Tudo o que o povo sabe e vai contando de um para outro, ela deve saber. Estou com o plano de espremer Tia Nastácia para tirar o leite de folclore que há nela (p.3)
    Assim, na moldura da situação na qual as histórias de Tia Nastácia são contadas (o projeto iluminista de Pedrinho), temos já explícita e inevitável a assimetria que rege a situação. Sem idealizações e sem meias palavras, os leitores das Histórias de Tia Nastácia são voyeurs de uma situação nas qual os ouvintes das mesmas histórias, sem complacência e sem papas na língua desqualificam as matrizes populares de onde vêm as histórias que ouvem .
     - Essas histórias folclóricas são bastante bobas (...) Por isso é que não sou "democrática"! Acho o povo muito idiota ... (p.13)
    Delineia-se então, aqui, outra especificidade do livro de Lobato: a violência com que a plateia critica as histórias contadas, declarando-as insatisfatórias e sublinhando o que considera seus defeitos. Rompe, assim, Lobato, com a complacência, geralmente meio saudosista, que dá o tom dos livros similares : a obra de Lins do Rego, sobretudo, é repassada de ternura nostálgica pela contadora de histórias, ao passo que na de Lobato a narradora é uma cobaia a ser espremida para que os ouvintes se apropriem do que chamam suco folclórico, numa metáfora que tanto lembra a vontade positivista de dar concretude às coisas do mundo da cultura, quanto a antropofagia, quanto ainda - aos nossos pós-modernos ouvidos cinematográficos - a metáfora econômica que inspira o filme de João Baptista de Andrade, O homem que virou suco .
     Histórias de Tia Nastácia representa, pois, um projeto literário radicalmente distinto da atitude que oculta - na naturalidade atribuída à situação de contar histórias no serão - a latente incompatibilidade entre esta situação e os rumos que, por volta dos anos 30, ia assumindo a cultura brasileira, definitivamente embarcada numa viagem de modernização que Lobato, ainda que discordando de seu varejo, aplaudia no atacado.
     Que lugar podia haver, nesse mundo moderno, para tias nastácias e as culturas que elas representavam ?
    Já se apontou que a oralidade se manifesta estruturalmente também em outras obras de Lobato, nas quais o escritor recorre à moldura da narração oral, como D.Quixote das crianças  e Peter Pan .     
    Nestes livros, porém, o recurso à oralidade constitui estratégia adotada por Dona Benta (talvez aqui alter ego de Lobato?) para facilitar o ingresso das crianças - ouvintes no mundo da leitura. Ou seja, em D. Quixote das crianças e em Peter Pan, se a enunciação mimetiza o mundo da oralidade, o enunciado vem do moderno mundo da escrita, ao qual se subordina o da oralidade, mero instrumento de passagem deste para aquele.
    Mas como Tia Nastácia não é dona Benta, a situação de oralidade que ela protagoniza não aponta para além de si mesma e, sobretudo, não contribui para elevação cultural de seus ouvintes, já que nem os familiariza com a moderna literatura infantil como Peter Pan e tampouco os aproxima de clássicos como D.Quixote ; muito pelo contrário, constitui um rebaixamento cultural, já que é arcaico o mundo que se faz presente em suas histórias.
    Num certo sentido, esta opção formal de Lobato torna problemática a tese que proclama fontes populares como uma das matrizes onde foram buscar inspiração certas vertentes do modernismo : a apreensão e representação da incompatibilidade entre a cultura popular e a cultura das elites brasileiras, não deixa de prestar o serviço político de inscrever, na estrutura da obra, a fratura da sociedade na qual ela ocorre.
    Se a França foi buscar em suas colônias africanas a inspiração para superar o esgotamento da arte racional e burguesa, os modernistas brasileiros de 22 não precisaram nem empreender a viagem transcontinental . Em um país pós colonial, os bolsões remanescentes de formas arcaicas de cultura estão sempre ao alcance da mão e da pena, coincidindo, geralmente com os bolsões de pobreza e marginalidade em que ficam confinados os segmentos da população atropelados pela modernidade. Esta começa por subtrair-lhes os instrumentos de trabalho e termina por confiscar suas formas culturais, maquiando-as, por exemplo, de primitivismo e transformando-as em mercadoria que circula por outros segmentos sociais.
    No Brasil, a partir do final do século passado, incluem-se entre estes fornecedores de matéria prima da chamada cultura popular, ex-escravos, negros libertos e seus descendentes que, à semelhança de tia Nastácia e tio Barnabé, como com justiça proclamava um out-door da celebração do centenário da Abolição não tiveram carteira de trabalho assinada pela Princesa que abolira a escravidão ...
     Assim, o apagamento da tensão entre o mundo da cultura de uma negra analfabeta e o da cultura das crianças brancas que escutam suas histórias pode ter um sentido alienante . Por não tematizarem a diferença e, ao contrário, por diluírem em afeto complacente o inevitável choque de cultura que tinha lugar nos serões, antologias como as de Lúcio Cardoso proporcionam ao leitor a experiência apaziguante de uma situação na qual fica apagada toda a violência do modo pelo qual se processava a modernização brasileira.
    Ao explicitar no capítulo de abertura das Histórias de tia Nastácia a racionalidade programática que patrocinou, através do velho recurso ao serão, o contato entre duas formas de cultura, o livro de Lobato deixa caminho aberto para o afloramento de contradições inevitáveis num projeto - o da modernização brasileira - que põe face a face diferentes segmentos sociais. Como resultado do enfrentamento é inevitável a transformação de ambas as culturas; mas só leva a melhor a que dispõe da infraestrutura material e simbólica essencial à produção, circulação e consumo de cultura no mundo moderno, que passa a devorar a outra.
    As contradições vão se acirrando ao logo do texto lobatiano, que, ao contrário de seus pares, não se limita a reproduzir, em forma de antologia asséptica, as histórias que Tia Nastácia conta. Lobato reproduz a história encenando a situação de narração e recepção, pondo, pois, em confronto o mundo da cultura negra do qual, no caso, Tia Nastácia é legítima porta-voz e o mundo da modernidade branca, à qual dão voz tanto as crianças como a própria Dona Benta, também ela ouvinte de Tia Nastácia e também ela insatisfeita com as histórias que ouve mas, ao contrário dos outros ouvintes, capaz de apontar, com objetividade, as razões da insatisfação:
    - As histórias que correm entre nosso povo são reflexos da era mais barbaresca da Europa. Os colonizadores portugueses trouxeram estas histórias e soltaram-nas por aqui - e o povo as vai repetindo, sobretudo na roça. A mentalidade de nossa gente roceira está ainda muito próxima da dos primeiros colonizadores.
    - Por que, vovó ?
    -Por causa do analfabetismo. Como não sabem ler, só entra na cabeça dos homens do povo o que os outros contam - e os outros só contam o que ouviram. A coisa vem assim num rosário de pais a filhos. Só quem sabe ler e lê os bons livros, é que se põe de acordo com os progressos que as ciências trouxeram ao mundo (p.85)
    Ao ir lendo a reação dos ouvintes às histórias que Tia Nastácia vai contando, o leitor de Lobato sente-se tentado a tomar partido. E só por estar lendo, são muito pequenas as chances de que sua solidariedade vá para a preta velha que desfia histórias por quem, na melhor das hipóteses e como os pica-pauzinhos, ele (leitor) nutre sentimentos de afeto mas que, nem por ser autênticos, deixam de ser uma das expressões que racismo assume na cultura brasileira. O livro sublinha a inadequação das histórias a seu auditório na voz dos próprios ouvintes: são eles que estabelecem a diferença que afasta a tradição letrada e moderna que, erigindo-se em referente, confina à marginalidade a produção cultural que não venha deste mundo urbano e moderno. O contraponto de Tia Nastácia é Lewis Carroll, frequentemente invocado como modelo das boas histórias .
    -Essa, do Sargento Verde, por exemplo. É tão idiota que um sábio que quiser estudá-la acabará também idiota. Eu, francamente, passo tais histórias populares. Gosto mas é das de Andersen, das do autor de Peter Pan e das do tal Carrol, que escreveu Alice no país das maravilhas. Sendo coisas do povo, eu passo ... . (p.22)
    Esta tendência à intolerância acaba por cassar a palavra de Tia Nastácia, passando o papel de contadora de histórias a ser exercido por Dona Benta. Mas o repertório de Dona Benta, neste caso, não vem - como tinha vindo no caso de D.Quixote e de Peter Pan - de um livro que ela tenha lido para, depois, contar aos netos. As histórias que Dona Benta conta quando assume a palavra em Histórias de Tia Nastácia originam-se em matrizes culturais tão populares quanto as das histórias da cozinheira, mas, curiosamente não despertam na plateia as reações de intolerância que o repertório de tia Nastácia tinha despertado.
    A diferença de recepções pode talvez ser atribuída ao fato de que as histórias que ambas contam tenham origem semelhante, a relação de cada uma destas narradoras com o material narrado, é diferente: Dona Benta não é usuária desta cultura, mas conhecedora dela: conhece-a de livro, e não de berço.
    Com isso, a relação que Dona Benta estabelece com a matéria que narra não está distante da relação que com matrizes de cultura rural e popular estabelecem os produtores da cultura urbana e culta, entre os quais o próprio Lobato . É, pois, como se os serões nos quais Tia Nastácia conta suas histórias fossem um parêntesis na vida do Sítio, assim como o regionalismo é um parêntesis na literatura, segundo a visão que dele apresentam as histórias literárias canônicas.
    A hipótese é verossímil e ganha força em outras passagens da obra lobatiana como, por exemplo, no fato de o Tio Barnabé (versão masculina de Tia Nastácia ...) também ficar confinado, ao longo de toda a obra infantil  lobatiana a papéis secundários. Mesmo em O saci, obra que aparentemente desmente essa secundariedade, o papel dele é o de coadjuvante de Pedrinho, auxiliar ao qual o menino recorre em situação bastante próxima da que originou as Histórias de Tia Nastácia.
    Se no livro que lhe leva o nome, Tia Nastácia poderia ensinar a Pedrinho o folclore que ele queria conhecer (curiosidade, como já se viu, despertada pela leitura de um jornal), em O Saci o menino recorre a Tio Barnabé quando, interessado em sacis, é informado de que Tio Barnabé um expert no assunto .
    -Pois saci, Pedrinho, é uma coisa que branco da cidade nega, diz que não há - mas há. Não existe negro velho por aí, desses que nascem e morrem no meio do mato, que não jure ter visto saci. Nunca vi nenhum, mas sei quem viu. - Quem ? - O tio Barnabé. Fale com ele . Negro sabido está ali ! Entende de todas as feitiçarias, e de saci, de mula-sem cabeça, de lobisomem - de tudo .
    Se o espaço de Tia Nastácia é a beira do fogão, a marginalidade narrativa de Tio Barnabé concretiza-se no detalhe de sua cabana localizar-se nos confins do sítio:
     Tio Barnabé era um negro de mais de oitenta anos que morava no rancho coberto de sapé lá junto da ponte (p.184) .
     Ou, seja, como já se sugeria acima: se não havia lugar para os dois negros no sítio da Dona Benta como haveria lugar para eles no Brasil de Lobato ?
      A hipótese da inadequação de Tia Nastácia e de Tio Barnabé à modernidade dos anos 30 do qual o sítio de Dona benta é emblema e utopia confirma-se em outras passagens da obra lobatiana. Todas as vezes que Tia Nastácia acompanha os pica-pauzinhos nas aventuras que se passam além da porteira do sítio, ela cumpre, nos novos espaços, o mesmo papel que cumpria dentro do sítio: fazendo bolinhos para o Minotauro ou fritando batatas para o príncipe Codadad é a velha Nastácia que se reencontra sempre, numa imobilidade ficcional que parece combinar bem com a representação da imobilidade social a que estão confinados os segmentos dos quais ela pode ser o emblema.
    É quase como se pudéssemos dizer que, no Brasil dos anos 30 que se queria moderno, só restava a Tia Nastácia papel de informante, de fornecedora de histórias das quais as outras personagens lobatianas se apropriavam como antropólogo em viagem de campo, garimpando alteridades e exotismos que, retrabalhados passam a constituir tanto objeto da ciência (o folclore) quanto objetos de alta valorização estética (a obra modernista), em nenhum dos dois casos retornando o produto a seus sujeitos de origem.
    Se o conjunto da obra infantil lobatiana confirma e reforça a marginalidade da cultura popular representada por Tia Nastácia, esta marginalidade ganha tintas trágicas na obra adulta do escritor . Em pelo menos dois contos não infantis a mesma marginalidade ressurge, conduzindo a desenlace diverso : tanto o jardineiro Timóteo quanto o negro Leandro (de "Bugio Moqueado") podem emblematizar, no fim trágico de cada um, a impossibilidade de sobrevivência de certos segmentos da população brasileira a partir da instauração do processo de modernização.
    Em particular no caso de Timóteo, o texto lobatiano acumula índices que configuram o passadismo da cultura que o jardineiro representa, em contraste com a cultura moderna representada pelos novos donos da fazenda, brancos e proprietários de um carro no qual chegam à fazenda com plano de modernizá-la ... Em outra clave, mas no mesmo acorde, funciona a dramática denúncia do narrador lobatiano do racismo do qual Negrinha é vítima, constituindo o conjunto destas representações do negro na obra adulta de lobato contraponto eficiente do paternalismo afetuoso - embora, como se viu, rompido em Histórias de tia Nastácia - que pontua a relação dos moradores do sítio para com tia Nastácia.
    A questão do negro se recoloca quando analisada a partir de outro livro, de publicação anterior a Histórias de tia Nastácia, absolutamente ímpar na obra lobatiana, e que verticaliza a discussão. Trata-se do romance O presidente negro que, nas primeiras edições intitulava-se O choque das raças, hoje subtítulo do livro.
    Publicado inicialmente em folhetins do jornal carioca A Manhã, em 1926, um pouco antes de Lobato mudar-se para Nova Iorque (onde foi adido comercial da representação diplomática brasileira) O presidente Negro representava as esperanças editoriais lobatianas em terras do Tio Sam. Constava de seus planos a criação de uma Tupy Publishing Company, em cujo patrimônio os elementos escandalosos e polêmicos do livro eram considerados de muito valor:
    Um escândalo literário equivale no mínimo a 2.000.000 dólares para o autor e com essa dose de fertilizante não há Tupy que não grele. Esse ovo de escândalo foi recusado por cinco editores conservadores e amigos de obras bem comportadas, mas acaba de encher de entusiasmo um editor judeu que quer que eu o refaça e ponha mais matéria de exasperação. Penso como ele e estou com idéias de enxertar um capítulo no qual conte a guerra donde resultou a conquista pelos Estados Unidos do México e toda essa infecção spanish da América Central. O meu judeu acha que com isso até uma proibição policial obteremos - o que vale um milhão de dólares. Um livro proibido aqui sai na Inglaterra e entra boothegued como o whisky e outras implicâncias dos puritanos. (Cartas escolhidas S Paulo. 6a. ed. 1970 p. 112)
    Passando-se nos Estados Unidos do ainda hoje remoto ano de 2228, a ação de O presidente negro, como a das Histórias de Tia Nastácia não se oferece ex-abrupto a seus leitores: tem a mediá-la a voz do desajeitadíssimo Airton que, por acidente, torna-se confidente de um cientista e através de uma máquina do tempo assiste, como numa tela de cinema, a acontecimentos que têm lugar na América do Norte, no ano de 2228. Como a partir de um certo ponto a máquina se desarranja, o resto da história é contado a ele em parcelas semanais, pela filha do cientista, que desafia Airton a escrever a história.
    Não é preciso dizer que O presidente Negro é a história resultante da aposta:
    Através do porviroscópio, Jane testemunha e narra o desenlace do conflito racial nos Estados Unidos que acaba tendo uma solução tão final quanto o foi a solução nazista para o problema judeu: a aniquilação dos negros, através de sua esterilização em massa . Na voz de Airton ressoa o horror bem educado pelo genocídio, e é a parcimônia de sua reação e o tom comedido dela que incomodam .
    Ou seja, o decoro de Airton tem efeitos de sentido tão problemáticos quanto a vigorosa voz dos netos de Dona Benta que, sem papas na língua, desancam as histórias que lhes conta tia Nastácia.
A discussão desta divergência precisa levar em conta que Airton não está falando do aqui nem do agora, nem de Lobato nem de seus leitores. O choque das raças que o romance narra explode em outro hemisfério e alguns séculos à frente, o que, literalmente, afasta o tema polêmico, mecanismo de atenuamento que se reforça pelo tom de paródia e chanchada dos capítulos finais que, abandonando o futuro e a distância, voltam a centrar-se no aqui e agora de um Rio de Janeiro bastante provinciano.
    Por outro lado, certos traços assumidos pela cultura afro-americana na segunda metade do século XX, na esteira do black is beautiful conferem traço profético a um detalhe do livro de Lobato: na história, o processo de esterilização dos negros se fazia à revelia deles, embutido num processo de alisamento dos cabelos e de despigmentação, o que hoje evoca inescapavelmente o caso de Michael Jackson ...
    Pode-se, assim, ler em O presidente negro uma grande metáfora das consequências da desculturação de um grupo étnico e, simultaneamente, o grau de solidariedade entre ciência, arte, tecnologia e comunicação, tal como são praticados nas instâncias centrais e que só encontram seu sentido último nas lutas que pelo poder se travam no corpo social. Comunicação, tecnologia, arte e ciência, no caso, serviram para a população branca exterminar a população negra.
    Reflexão que, se não deixa de ser melancólica, permite retomar a epígrafe e enlaçar o pensamento de Terry Eagleton com Histórias de Tia Nastácia e com O presidente negro.
    Em ambas as obras, a representação do negro e de sua inserção no seio de uma sociedade que se quer branca não hesita no realismo das soluções narrativas adotadas, inscritas ambas na moldura da oralidade . Quer na chave do realismo fantástico da história norte-americana, quer na do realismo miúdo e cotidiano do sítio de Dona Benta, o conflito é violento porque ele não era menos violento na vida real, nem abaixo nem acima do Equador. E a literatura, uma das arenas mais sensíveis na encenação deste conflito, representa-o, no caso de Lobato, num discurso sinuoso que ao des-velar as convenções de apaziguamento inaugura uma tradição que, ainda que do avesso, é hoje passada a limpo em poemas como por exemplo "Charqueada grande", de Oliveira Ferreira da Silveira que fecha este texto:
Charqueada grande
Um talho fundo na carne do mapa:
Américas e África margeiam.
Um navio negreiro como faca:
mar de sal, sangue e lágrimas no meio
Um sol bem tropical batendo forte,
ventos alíseos no varal dos juncos
e sal e sol e vento sul no corte
de uma ferida que não seca nunca.

A figura do negro em Monteiro Lobato
lfilipe.tripod.com/lobato.htm

OBRA INFANTIL DE MONTEIRO LOBATO CAUSA POLÊMICA POR RACISMO
Livro Caçadas de Pedrinho está sob mandado de segurança

     As histórias infantis de Monteiro Lobato estão dando o que falar. E não é porque são grandes clássicos da literatura. O tema em pauta é o racismo. Em 2010, a obra Caçadas de Pedrinho foi acusada de possuir teor racista pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), que recomendou que o livro não fosse distribuído pelo governo nas escolas públicas. Posteriormente, a relatora do caso voltou atrás e decidiu que cada professor deveria dar explicações sobre o preconceito presente no livro para os alunos. Depois disso, o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) junto com o mestre em educação Antonio Gomes da Costa Neto entraram com um mandado de segurança contra o livro Caçadas de Pedrinho e contra o relatório do CNE. O  embate pode estar prestes a acabar, já que há uma reunião de conciliação marcada para setembro pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
    A discriminação estaria presente, entre outras passagens, no tratamento da personagem Tia Nastácia e de animais como o macaco e o urubu. Uma das frases do livro diz: “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão”. O livro Caçadas de Pedrinho retrata o momento em que o Marquês de Rabicó encontra uma onça rondando o Sítio do Pica-pau Amarelo. Pedrinho, Narizinho, a boneca Emília e Rabicó decidem caçar o bicho, escondidos de Dona Benta e Tia Anastácia, que seriam contra a ideia. Durante a expedição, eles conhecem Quindim, um rinoceronte que fala, e o trazem para viver no sítio.
Mandado de segurança
    O caso começou quando Antonio Gomes da Costa Neto fazia mestrado na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). O foco dele estava em políticas públicas e etnico-raciais. Antonio concluiu que não haviam medidas concretas para o tratamento de livros que continham passagens racistas. “O livro estava no programa nacional Biblioteca nas Escolas. Pedimos uma análise do conselho de educação do DF, mas nada foi feito. É por isso que levamos o caso para o CNE”, explica. Antonio fez uma análise detalhada do livro e encontrou 20 passagens contendo racismo.
     Antonio Neto esclarece que o objetivo não era que Caçadas de Pedrinho fosse censurado ou banido. O que eles pediam, mas a Editora Globo não aceitou, era que a nova edição da obra trouxesse uma explicação sobre racismo. “Na época que o livro foi escrito, por volta de 1924, racismo não era crime, mas hoje há lei para isso. A 3ª edição, de 2009, veio de acordo com a nova ortografia e trouxe explicações sobre legislação ambiental, já que há uma caça à onça na história que hoje seria proIbida. Por que, então, não trouxe explicação sobre legislação racial?”, questiona Antonio. Ele critica também a segunda posição do CNE: “Essa resolução transfere a responsabilidade para o  professor da educação básica, muitas vezes, sem preparo para lidar com o tema”.
VVVVO advogado do caso, Humberto Ademi, explica que “se esse tipo de pensamento for repetido nas escolas, vai alimentar o racismo no Brasil. Não é certo o governo financiar obras com conteúdo preconceituoso”. Ele conta que o ministro da Educação, Fernando Haddad, não homologou a primeira decisão do Conselho Nacional de Educação, de suspender a obra das escolas. “O CNE mudou de posição por pressões. Queremos que o livro não seja financiado com dinheiro público do jeito que está. São quase R$ 6 milhões gastos com um livro racista”, comenta o advogado. Por causa dessas complicações, Antonio Gomes da Costa Neto e o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) entraram com um mandado de segurança contra o livro e contra o relatório do CNE.
    Confira a petição inicial do processo junto ao Supremo Tribunal Federal.
    Ed Alves/CB/D.A Press Antonio Gomes da Costa Neto exige que a Editora Globo coloque uma nota explicativa na abertura do livro falando sobre as passagens racistas da obra
Conciliação
    A polêmica sobre o livro pode acabar em setembro, quando haverá uma reunião de conciliação, convocada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) Vai acontecer no dia 11 de setembro de 2012, às 19h30, no STF uma audiência de conciliação ao mandado de segurança 30.952 que trata do suposto racismo no livro Caçadas de Pedrinho. Estarão presentes o Ministro de Estado da Educação, o Advogado-Geral da União, autoridades do Conselho Nacional de Educação, além de outros interessados no caso.
    Antes da reunião, acontecerá uma série de palestras e fóruns para debater o caso com especialistas e com a população. O primeiro deles, já marcado, vai ser em 9 de agosto: uma palestra com Frei David, do Educafro (Educação para Afrodescendentes e carentes).
Especialistas
    Há opiniões divergentes sobre o caso. Em Monteiro Lobato: livro a livro, Marisa Lajolo e João Luís Ceccantini, fazem uma análise frase a frase de toda a bibliografia de Lobato. O livro traz também cartas de leitores, entrevistas e outros elementos para esclarecer a construção de textos pelo autor. O livro conclui que Monteiro Lobato não colocou teor racista na obra, mas sim fez reflexões sobre a realidade do Brasil, usando humor e ironia. “A obra de Lobato não insufla racismo, tampouco reflete atitudes preconceituosas. Ao contrário, condena-as. Dona Benta repreende Emília quando falta ao respeito com Tia Nastácia”, exemplifica Marisa Lajolo, pós-doutora em literatura comparada e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Federal de Campinas (Unicamp).
    Para ela os negros são vistos com carinho na obra: “Tia Nastácia e Tio Barnabé – negros que figuram como personagens e às vezes protagonistas da obra infantil lobatiana, são representados com respeito e afeto”. De acordo com Marisa, as críticas a obra de Monteiro Lobato ocorre porque ele questionou os valores de seu tempo: “ O extraordinário valor da obra lobatiana decorre de sua capacidade de retratar – de forma crítica, divertida e irreverente – o quadro de valores então vigente. Esta sua independência tem custado ao autor censura de diferentes segmentos sociais: da igreja católica ao estado novo, mas Lobato sobrevive!”
    Já Regina Dalcastagnè especialista em narrativa brasileira contemporânea e professora do Departamento de Literatura da UnB considera Monteiro Lobato um ator racista: “Monteiro Lobato é racista. Não é uma declaração aqui ou ali, está em toda a obra dele. Não há como discutir se ele é ou não racista pois é explícito em sua literatura”. Regina explica que a escritora Ana Maria Gonçalves fez uma análise profunda da vida do autor por meio das cartas que ele escrevia. Algumas dessas cartas eram direcionadas ao médico diretor da Sociedade Eugênica de São Paulo, instituição de 1913 que pregava a eliminação dos negros por meio do “branqueamento” da população.
    “Monteiro Lobato se expressava de modo eufórico a favor da eugenia (eliminação dos negros e branqueamento do povo). As pessoas não gostam de admitir que ele era preconceituoso porque construíram uma imagem fantasiosa desse autor na cabeça, por ser ele criador de obras clássicas infantis, como Sítio do Pica-pau Amarelo”, critica Regina. Ela considera que o Ministério da Educação deve investir dinheiro em outras obras: “Esse é um livro ultrapassado e preconceituoso. Tem tanta obra mais moderna e interessante por aí precisando de apoio que seria muito melhor para as crianças”.
Fonte:- Email – antonio.sedf@gmail.com

Obra infantil de Monteiro Lobato causa polêmica por racismo - Odiario
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2 comentários

  1. Gostaria de saber, o que, realmente, Lobato revela no conto "O Comprador de Fazendas", do livro Urupês. O que ele quis dizer nesse conto.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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