(Organização
de Francisco de Assis Barbosa)
Análise
da obra
A obra de Lima Barreto é uma crônica autêntica dos subúrbios cariocas e
de sua população, retratando, de um lado, a população pobre e oprimida desse
subúrbio e, de outro, o mundo vazio de uma burguesia medíocre; de políticos
poderosos e incompetentes e de militares opressores. Parece refletir, muitas
vezes, a própria experiência do autor, principalmente a dos negros e mestiços,
que sofriam na pele o preconceito racial. Prendendo-se à autenticidade
histórica daquele tempo, sua ficção retrata acontecimentos importantes da vida
republicana. Consciente dos problemas, critica o nacionalismo exagerado e
utópico, oriundo do Romantismo.
É sempre a República Velha o tema da caricatura que surge na ficção de
Lima Barreto. Da República se fez opositor irascível e irreversível, implacável
e demolidor — utilizando os recursos da sátira, da ironia, da caricatura, da
crítica contundente, desmontou todo o esquema de sustentação do regime
republicano recém-implantado. As mazelas do governo republicano, o grau de
corrupção política e econômica que empestava o regime, não se cansou de
causticá-las por toda a sua obra. Crítico intransigente dos presidentes
republicanos, do florianismo e do hermismo, do jacobinismo, da intervenção dos
militares na política, de formas de governo autoritário e ultracentralizado e
militarizado, de todo e qualquer tipo de violência na sociedade, das ideologias
intolerantes.
Lima Barreto era um crítico mordaz da sociedade do seu tempo. Vivendo no
Rio de Janeiro da recém-proclamada República, pouca coisa escapava de seu olhar
perscrutador.
Os contos de Lima Barreto, em maior ou menor grau, são exemplos de
relações e interações entre modos tradicionais de narrar e as especificidades
do denominado conto moderno. Fogem a parâmetros estabelecidos para o gênero;
mantêm, sob a qualidade literária intrínseca, amplitude e coerência temáticas e
estilísticas presentes, de resto, em toda sua obra ficcional — nos romances e
nas novelas — e em seus artigos e crônicas.
Impôs na ficção contística — com seu estilo simples, direto e objetivo,
que feria o convencionalismo literário da época, impregnado de falsas
concepções estéticas, floreios etc. — os prenúncios do Modernismo logo a seguir
irrompante na cultura brasileira, cujos primeiros elementos e formas apareceram
justamente pela linguagem típica da escrita barretiana.
Oposto à maioria de seus contemporâneos, praticantes da escrita floreada
e vazia, aristocrática e fútil, verdadeiros instrumentos literários do tal
"sorriso da sociedade", apregoado por Afrânio Peixoto, Lima Barreto
conferia à sua obra ficcional o sentido militante de uma "missão social,
de contribuir para a felicidade de um povo, de uma nação, da humanidade".
Talvez mais até do que nos romances, o tom de denúncia conferido por Lima à sua
literatura emerge com muita intensidade e freqüência nos contos, tematizantes
em sua essência da discriminação racial e social, o preconceito de cor, o vazio
moral, intelectual e ético dos políticos, a ganância e a ambição, o arrivismo,
o bovarismo, a miséria e a opressão social.
Nos contos de Lima Barreto estão contidos os traços recorrentes de sua
obra ficcional: obsessão pela origem, marcas da religiosidade, evocação do
mistério e da surpresa, emocionadas descrições dos subúrbios cariocas, as
periferias urbanas, a divisão de classes, a exclusão social, os pobres e os
enjeitados.
Lima Barreto é um dos mais profícuos, interessantes e instigantes
analistas da realidade brasileira. Toda a obra barretiana desenvolve-se a
partir de e em torno de um tema nuclear: o poder e seus efeitos discricionários
— o poder visto e descrito por ele como "o variado conjunto de elementos,
vetores e procedimentos encadeados no interior da sociedade, compondo grandes e
pequenas cadeias, visíveis e invisíveis, tendentes a restringir e constringir o
pensamento dos homens, coibindo-lhes as possibilidades de afirmação, pessoal,
cultural, profissional, social, e a justa inserção social". Sua obra
contística — no mesmo diapasão da romanesca e da jornalística — constitui um
conjunto de registros variados do Brasil, sempre emocionados e opinativos,
geralmente irados, quase sempre sarcásticos, satíricos, irônicos.
Sucedem-se nas textos ficcionais barretianos flagrantes urbanos, o
bovarismo das elites dirigentes e dos diplomatas (e do brasileiro em geral), as
elites econômicas, a burocracia. Poucos, na literatura brasileira — nem mesmo
Machado de Assis — criaram e apresentaram um elenco de personagens tão variado
e vasto — homens e mulheres despojados pela sorte, políticos empenhados
unicamente com o poder, pseudo-intelectuais abarrotados de retórica e voltados
para a futilidade, militares crentes da própria infabilidade e "ignorantes
das coisas da guerra", os donos de jornais venais e corruptos, os
magnatas, banqueiros, empresários, fazendeiros do café, os burocratas, pequenos
burgueses, arrivistas, charlatães, almofadinhas, melindrosas, aristocratas,
gente do subúrbio, operários, artesãos, vadios, mendigos, bêbados, meliantes,
prostitutas, mandriões, subempregados, artistas, coristas, alcoviteiras, funcionários,
moças casadoiras, noivas, solteironas, loucos, adúlteros, agitadores,
usurários, estrangeiros.
Vislumbra-se no conjunto dos contos de Lima Barreto os mesmos cinco
eixos temáticos em torno dos quais desenvolve-se sua obra romanesca e sua obra
não-ficcional: a política; a mulher; o cotidiano da cidade; o subúrbio; a vida
literária — os três primeiros, assumindo escalas quase que majoritárias.
CONTOS
UM
ESPECIALISTA
Personagens:
Comendador, Coronel Carvalho, Alice.
Espaço
- Rio de Janeiro
Narrado em 3ª pessoa onisciente, o conto é centralizado na história de
promiscuidade do Comendador, que adorava as mulatas a ponto de colecionar uma
porção em seu vasto currículo de amantes, apesar de ser casado e de ter filhas.
No princípio de suas aventuras no Brasil, pois assim como seu amigo, o Coronel
Carvalho, era português, o Comendador, ainda como caixeiro-viajante no Recife,
desencaminhou uma jovem e lhe deixou uma filha nos braços, sumindo com uma
pequena herança que ela havia recebido quando da morte dos pais. Vindo para o
Rio, conseguiu evoluir à posição de Comendador que ora ostentava. No momento, o
Comendador estava envolvido com uma bela mulata, que ao final do conto descobre
ser a filha que ele abandonara anos antes.
O ataque à conduta imoral e ao falso moralismo da burguesia é explícito,
e é o alvo preferencial dos ataques de Lima Barreto, que torna público os
desvios, as vilanias, as tortuosidades e as baixezas da classe que ostentava o
puritanismo da bandeira familiar.
Lima Barreto tem o poder de retratar sua época e seu momento como um
historiador o faria, com o rigor técnico que lhe é peculiar.
O conto vai se arrastando nas tramas das festas, dos bailes e dos
espetáculos que animavam as noites da burguesia carioca, e da conversa franca e
aberta que os amigos têm com a amante do Comendador, que somente no final,
quando a mulata começa a falar sobre seu passado, descobre ser sua filha. A
descoberta final é chocante, mas o leitor não se define nem se entende com as
próprias sensações, em um efeito brilhante obtido pelo autor, que cria a
dualidade do choque moral e a piedade que sentimos com tamanha desgraça em que
cai o incestuoso pai, e a punição “justa” e forte que sobre ele recai, purgando
seus desvios de conduta e sua imoralidade explícita e despudorada. O que
qualquer um que desconhece a literatura de Lima Barreto pode notar, desde este
primeiro conto, é um poder de ironia só comparável a Machado de Assis, uma veia
satírica, a meu ver inimitável, e uma capacidade de descrever todos os meandros
de uma época e de pessoas com uma postura que lembra o Realismo pela análise
investigativa do caráter dos indivíduos e suas ambigüidades, mas antecipa o
Modernismo na forma, jocosa e aberta com que o faz, tanto na criação das cenas
e das seqüências, quanto na adoção de uma linguagem despreocupada com os
cânones gramaticais e retóricos de sua época.
O
FILHO DA GABRIELA
Personagens:
Gabriela, Horácio, Laura, Conselheiro Acácio.
Espaço:
Rio de Janeiro.
Narrado em 3ª pessoa onisciente, tem o seguinte enredo:Gabriela é
empregada na casa do casal Laura e Conselheiro Acácio, que se tornam padrinhos
de seu filho e o criam após a sua morte. No início do conto, discute com a
patroa por não obter permissão para levar a criança ao médico, já que esta
estava enferma. Durante a discussão, e diante da negativa da patroa, Gabriela
diz ter conhecimento dos relacionamentos extra-conjugais de Dona Laura, ficando
um silêncio sepulcral entre ambas, até que o choro convulsivo da patroa leva a
empregada também às lágrimas.
Lima Barreto utiliza o caso criado na narrativa para manifestar sua
idéia acerca da igualdade imanente dos seres, iguais em desgraça e frustração,
humanos na mais pura e cristalina acepção que a palavra possui, igualdade
negada pelos adereços sociais da fortuna, da sorte, do status e da pele, mas
que o instinto, a dor, o sofrimento e outras ações imanentes e naturais, vêm
revelar e trazer à tona.
A empregada resolve sair da casa da patroa após ter lhe ofendido,
revelando escrúpulos que a outra não demonstrara em relação ao marido que
traía, embora o narrador mostre sua fragilidade emocional em função da frieza
do conselheiro em sua relação com a esposa. Gabriela vaga pelas ruas da cidade
à caça de emprego mas não consegue, e enquanto procura, deixa o filho com uma
amiga que o maltrata, impaciente com o choro que não fora trazido ao mundo por
ela. Passando coincidentemente pela porta da casa da ex-patroa, Gabriela é
vista e pára para conversar. Dona Laura lhe convida a retornar, e após pensar e
relutar, Gabriela, sem outra alternativa capaz de dissuadi-la, aceita. Logo
após o retorno a patroa resolve batizar o filho da Gabriela, que aceita com
lágrimas nos olhos. O Conselheiro lhe dá o nome de Horácio, pois a criança nem
mesmo possuía um antes, fornecendo-lhe também tratamento médico regular e
educação.
Guardou, sempre, os traços da primeira infância, mantendo-se calado e
quieto a maior parte do tempo, e rompendo em erupções em outros momentos.
Apresentava a face enrugada e o semblante sempre enfezado. Após a morte da mãe,
fechou-se mais ainda, deixando de lado os rompantes de alegria e mergulhando em
si mesmo, num estranho silêncio, aumentado pela indiferença clara que lhe
devotava o padrinho:
Já a esposa, encontrou no garoto um mecanismo para fugir à frustração e
mesquinhez da sua vida, devotando a ele os sentimentos que não via realizados
com relação ao marido e também com nenhum dos amantes que acumulara ao longo do
casamento. Horácio, o garoto, continuou isolado e fechado em seu mundo de
fantasmas que a infância lhe proporcionou, recordando em devaneios os tormentos
da infância pobre e violenta, o que acaba levando-o à demência, sofrendo
ataques de alucinação nos quais saía completamente de si, como o que ocorre no
final do conto.
Nota-se na turbulenta existência de Horácio, traços da vida do próprio
Lima Barreto, não só na demência de que também foi vítima o autor, mas
sobretudo no relacionamento com o padrinho (o seu fora o Visconde de Ouro
Preto, pelo que recebeu o Nome de Afonso ), tal qual o de Horácio, frio e
distante, tanto que chegou a despertar a frase já expressa no início desta
análise: “Os protetores são os piores tiranos.”
A
NOVA CALIFÓRNIA
Personagens:
Raimundo Flamel, Bastos (o boticário), Coronel Bentes, Tenente Carvalhais -
Principais; e Fabrício, Capitão Pelino, Cora, bêbado Belmiro e outros,
secundários.
Espaço:
Tubiacanga (RJ).
Narrado em 3ª Pessoa - onisciente, tem o seguinte enredo: Na primeira
parte, um homem misterioso e estranho chega a Tubiacanga, para curiosidade da
cidade inteira, que acompanhava a ida diária do carteiro à casa do forasteiro
para a entrega da vasta correspondência que ele recebia. Logo as atenções se voltaram
exclusivamente para ele, com toda a cidade desejando conhecer o novo morador,
saber o que fazia, como e de que vivia, dentre outras amenidades. Mas o homem
praticamente não saía de casa, e não procurou estabelecer amizade com ninguém.
Após Fabrício ter sido contratado para construir um forno na sala de jantar do
misterioso habitante, as visões passaram a ser negativas, com toda a cidade
imaginando ser ele um falsário, ou alguém pactuado com o diabo, a fazer
experiências mirabolantes em sua casa pestilenta. Coube a Bastos, dono da
Botica e homem respeitado na cidade a mudança de ânimos e opiniões na
comunidade, dizendo ser possível que se tratasse de um químico, um cientista,
que resolvera se instalar em Tubiacanga para desfrutar da tranqüilidade do lugar
para melhor desenvolver seus experimentos. Bastou tal possibilidade para a
cidade passar a adorar o visitante sem mesmo conhecê-lo, e para alguns, como o
Capitão Pelino, destilarem inveja por tamanha fama.
A segunda parte é curta, e revela o motivo da estada do forasteiro,
chamado Raimundo Flamel, em Tubiacanga. Ele procura Bastos e pede para
demonstrar-lhe uma experiência que havia desenvolvido, mas que ainda não
poderia divulgar ao mundo científico, necessitando, por isso, que três
testemunhas vissem tal feito e testemunhassem a sua autoria. O detalhe
significativo do trecho é que as pessoas que acompanhariam a experiência
deveriam ser honestas e de alta confiança, e Bastos tem enorme dificuldade em
encontrar os nomes, em clara ironia aos valores da sociedade, hipócrita e
imoral. Ficou marcado para o domingo a verificação do experimento e depois
desse dia, Flamel desapareceu misteriosamente.
A terceira parte revela de que se tratava a experiência, ao mostrar a
indignação da cidade com uma série de crimes que insistia em se repetir, e que
aumentava a revolta de todos na comunidade. Os ossos do cemitério do sossego
estavam sendo roubados, e algo assim atacava justamente dois dos pilares mais
sólidos da sociedade: a crença religiosa, e o respeito aos mortos. As pessoas
resolvem fazer vigília no cemitério para flagrar os criminosos, e após algumas
falhas conseguem fazê-lo, matando um a pancadas e deixando o outro a suspirar
moribundo, e qual não foi o espanto de todos quando perceberam tratar-se do
Tenente Carvalhais e do Coronel Bentes, que ainda murmurava, e disse o nome do
terceiro criminoso que havia conseguido fugir. Perguntado acerca do motivo para
tal desfeita com todos, o coronel disse que o farmacêutico (o terceiro
meliante) detinha uma fórmula capaz de transformar ossos humanos em ouro.
A multidão vai em peso à casa de Bastos, que consegue evitar o
linchamento prometendo passar para o papel todos os passos e etapas da
experiência e entregar a todos na manhã seguinte. A noite foi um caos, uma
verdadeira barbárie no cemitério, com todos se engalfinhando por um punhado de
ossos, havendo até batalhas e homicídio na luta por uma porção maior. Pais
reviravam túmulos de filhos, filhos de pais, em uma maratona insana e
desesperada movida pela cobiça e pela ambição desenfreadas. E enquanto as
pessoas guerreavam no cemitério, o farmacêutico Bastos fugia carregando seu
segredo, e o bêbedo Belmiro se extasiava, indiferente a tudo, com a cachaça que
retirou do bar abandonado, ficando deitado, às margens do rio Tubiacanga, tendo
a lua como testemunha de que seu alcoolismo era, sem dúvida, o mais ameno
dentre todos os crimes da cidade.
O
HOMEM QUE SABIA JAVANÊS
Personagens:
Castelo, Castro, Barão de Jacuecanga.
Espaço:
Rio de Janeiro.
Narrado em 1ª pessoa (personagem) se desenrola da seguinte forma: Em uma
confeitaria, o narrador Castelo confessava ao amigo Castro algumas das
aventuras e golpes que empreendeu na luta pela sobrevivência, centrando seu
relato no caso das aulas de Javanês que ministrou, mesmo desconhecendo o tal
idioma, ao Barão de Jacuecanga.
Na verdade um anúncio no jornal, convocando um professor de Javanês para
ministrar algumas aulas particulares interessou Castelo, que embora não
soubesse o idioma sabia que o aluno também não o sabia, bastando portanto um
pouco de criatividade para ganhar um dinheiro fácil. Castelo passa em uma
biblioteca, consulta uma enciclopédia e coleta algumas informações sobre Java,
e sobre o alfabeto lá utilizado. O barão, velho e doente, desejava aprender
javanês para ler um livro que lhe fora deixado pelo pai, que o fez prometer que
o leria antes de morrer, promessa esta que o pai também havia feito ao seu pai,
tendo, porém, deixado de cumprir. O livro traria a quem o lesse os segredos da
felicidade. O Barão faz este relato com os olhos banhados em lágrimas, mas nem
assim, Castelo deixa de lado a ideia de ensinar-lhe o que não sabia, em clara
despreocupação com o outro e falta de escrúpulos.
Ao fim de alguns dias, o Barão desiste de aprender javanês e pede a
Castelo que leia o livro para ele, pois não estaria assim deixando de cumprir a
promessa feita ao pai. O narrador inventava histórias que encantavam o velho,
que lhe cobria de presentes, aumentava o salário, enfim, iludia-se cada vez
mais com a capacidade de Castelo.
O Barão cuidou então de indicar Castelo para a Diplomacia, onde foi
recebido com louvor e admiração.
Quando passava por entre as mesas da Secretaria de Estrangeiros, alguns
cutucávamos outros dizendo tratar-se do homem que sabia javanês, outros,
invejosos e vis, diziam também saber algo importante que com certeza ele não
saberia. O caso é que acabou sendo designado a participar de um congresso de
Lingüística e começou a publicar artigos sobre a literatura javanesa em
revistas e jornais do Brasil e da Europa, sempre com grande êxito, embora
confessasse tudo copiar de artigos e revistas. Continuou sua carreira
diplomática recebendo homenagens, não faltado aí nem mesmo o Presidente da
República, que também se rendeu aos conhecimentos do gênio notável.
A grande relevância do conto reside na crítica à falsa sabedoria, e até
mesmo à sabedoria inútil, aquela que é dominada e cultivada por uma meia dúzia
de “sábios” que não partilham com mais ninguém, comunicando-se em uma língua
que somente eles dominam.
UM
E OUTRO
Personagens:
Lola, Freitas, José, Mercedes.
Espaço:
Rio de Janeiro.
Narrado em 3ª pessoa onisciente, tem o seguinte enredo: retrata uma
personagem leviana e materialista, dissimulada e promíscua que sobreviveu da
prostituição, após abandonar o marido por não mais suportar a vida pobre e difícil
do campo, e ganhou dinheiro, fez fortuna, vivendo agora uma vida de rainha, com
três criadas para lhe servir, móveis luxuosos e caros, uma casa ampla e
confortável, enfim, uma estrutura material muito bem constituída, tudo fruto
dos anos de prostituição durante os quais deitava-se com homens em troca dos
benefícios que recebia, servindo como amante temporária a vários deles e
retirando deles aquilo que mais lhe importava: dinheiro.
Lola, a prostituta espanhola, era mãe de Mercedes e amante de Freitas, funcionário
de uma casa comercial, mas sua grande paixão era um chauffeur chamado José, que
dirigia um carro preto imponente, que ao lado do condutor, compunha o universo
de fantasias de Lola. A ela nada importava além da condição adquirida,
mostrando seu perfil materialista e frio.
Lola costumava presentear o chauffeur com mimos adquiridos pelo dinheiro
que Freitas lhe dava, mas acaba se desencantando súbita e totalmente de José
quando este lhe revela que não mais dirige o carro potente, preto, imponente,
lustrado e maravilhoso que com ele compunha as fantasias dela. Lola não
conseguia dissociar as duas imagens, tanto o carro sem ele não fazia sentido,
quanto ele sem o carro não lhe dizia nada. E após ouvir dele a notícia,
deitou-se ainda uma última vez, por medo de ofender-lhe a dignidade de homem,
mas com a indiferença de quem perde completamente o gosto por aquele que lhe
vai acariciar.
Temos neste conto, além da denúncia do materialismo vazio e estúpido
revelado por Lola, a promiscuidade da sociedade carioca e um pequeno mergulho
no universo das fantasias e desejos espúrios, que ironicamente, não fazia parte
somente dos cortiços e vilas do Rio, mas também se fazia ouvir em Copacabana,
Botafogo e outro bairros requintados da cidade.
“MISS”
EDITH E SEU TIO
Personagens: Mme. Barbosa, Mlle Irene, Angélica, Miss Edith, Mr.
George Mac Nabs, Magalhães.
Espaço:
Rio de Janeiro.
Narrado em 3ª pessoa - onisciente, tem o enredo: Mme Barbosa é
proprietária da pensão familiar Boa vista, e mãe de Mlle Irene. O retrato que o
narrador nos apresenta das duas acentua fortemente os traços de materialismo e
interesse, que levam Irene, inclusive, a colecionar noivos, estudantes das mais
variadas profissões com os quais não conseguiu se unir definitivamente,
acabando por estar noiva do funcionário público Magalhães, burocrata mediano,
perto do que sonhara para a sua vida, mas que, retirados os contras, recebia
bem e lhe respeitava.
A mãe não era diferente ambicionando sempre muito mais do que possuía ou
poderia possuir. Eis que chega à pensão um casal de ingleses que se
apresentaram como tio e sobrinha, alugando dois quartos da pensão, um próximo
do outro. O tratamento dispensado aos demais hóspedes é modificado, com as
atenções recaindo agora somente sobre o casal de estrangeiros, que devem ser
muito bem tratados, segundo pensa a dona da pensão, para poderem falar bem do
estabelecimento e trazer mais ingleses para ele, tudo na expectativa de um
lucro maior.
Após inúmeros exemplos de submissão e adoração aos ingleses,
principalmente protagonizados pela empregada Angélica, que desenvolveu
verdadeira devoção por Miss Edith, surge a descoberta fatídica e frustrante.
Certa manhã, como fazia todos os dias, Angélica foi ao quarto de Miss Edith
despertá-la e levar-lhe uma xícara de chocolate quente, mas não a encontrou no
quarto e se espantou por encontrara cama arrumada. Lembrou-se logo de ter visto
a porta do banheiro aberta, e que Miss também lá não estava. Tal foi seu
espanto quando saindo para o corredor e viu a inglesa saindo do quarto do tio
em trajes menores.
COMO
O HOMEM CHEGOU
Personagens:
Delegado Cunsono, Doutor Sili, Douto Melaço, Doutor Jati, Fernando, Doutor
Barrado e outros.
Espaço:
Rio de Janeiro e Manaus.
Narrado em 3ª pessoa, com intervenções irônicas em 1ª pessoa, o enredo
se desenrola fazendo uma violenta crítica à burocracia do serviço público e à
ineficiência de seus funcionários, apontando um caso no qual a inépcia de um
Delegado e de seus auxiliares levou um inocente, que havia sido preso sob a
acusação de ser louco, viesse a falecer.
Um homem em Manaus, chamado Fernando foi acusado de demência por estudar
astronomia e divulgar conhecimentos misteriosos acerca dos astros, o que causou
indignação ao Doutor Barrado, uma espécie de referência intelectual do lugar,
que se revoltou com a súbita aparição de alguém com a ousadia de pensar e
investigar. O trabalho de prendê-lo coube à equipe do Delegado Cunsono, que faz
jus ao nome, e designou alguns elementos que buscaram Fernando no Amazonas. Com
a informação de que o demente era perigoso e violento, ficou decidido que a
prisão deveria ser efetuada em um carro forte, que traria o homem sem riscos
aos que o prenderiam.
Para chegar em Manaus operou-se uma verdadeira epopéia, com carro
blindado afundando e sendo retirado da água, sendo colocado no restaurante de
um barco, até que enfim chegou ao destino. Após mais alguns problemas de percurso,
que aliás, sempre quando surgiam, levavam os auxiliares do delegado a enviar um
telegrama a ele, no Rio, pedindo orientação sobre como proceder, e este
celeremente enviava a resposta, para que somente após isso, o bloco seguisse
rumo, com destino ao Rio de Janeiro. Ao fim de pouco mais de dois anos de
viagem, o carro chega ao Rio, com o prisioneiro morto. O detalhe é que os
encarregados de trazer Fernando, “o demente perigoso”, já algum tempo
desconfiavam de que ele poderia estar morto, mas não ousavam quebrar os
procedimentos, que indicavam a incomunicabilidade do preso e seu encarceramento
total e constante. Dificilmente outro texto que procure denunciar a lentidão, a
morosidade e a incompetência da burocracia pública o fará com tamanha
perfeição, e tampouco estenderá um processo por tanto tempo quanto o visto
neste conto.
HARAKASHY
E AS ESCOLAS DE JAVA
Personagens:
o narrador, Harakashy, Doutor Karitschá Lanhi.
Espaço
(fictício): Batávia, na ilha de Java.
Narrado em 1ª pessoa (personagem) este conto é na verdade uma sátira às
escolas brasileiras e a nossa Academia e Letras, metamorfoseadas nas
respectivas instituições de Java, como já foi visto em O Homem que Sabia
Javanês. Lima Barreto destila aqui todo o seu ressentimento, seu rancor e sua
mágoa por ter sido barrado na Academia e ter sofrido na Escola Politécnica, na
qual estudou Engenharia sem conseguir, contudo, a formatura.
Há críticas à ciência produzida em Java.
No conto há uma figura interessante que muito lembra Lima Barreto, pela
trajetória de sua vida contada pelo narrador. Trata-se do jovem Harakashy, que
foi preterido pelas escolas de Java por não adequar-se aos seus perfis.
Não é difícil perceber o caráter pessoal destas palavras, bem como as
utilizadas em O Filho da Gabriela, revelando mais uma vez que o tom irônico de
Lima Barreto, não poucas vezes, obedece a impulsos de origem íntima, frutos da
mágoa e da do sentimento e inferioridade que passou a sentir após a seqüência
de fatos negativos de sua vida pessoal.
CLÓ
Personagens:
Isabel, Clódia (Cló), Dr. André, Dr. Maximiliano, Fred.
Espaço:
Rio de Janeiro.
Narrado em 3ª pessoa onisciente, o conto retrata a decadência moral de
uma família durante o carnaval no Rio, tendo como centro a personagem Cló,
filha do casal Isabel e Maximiliano, irmã de Fred, que procura deliberadamente
se insinuar para o Dr. André, um amigo da família que é casado. No entanto, o
narrador procura fazer demoradas descrições dos hábitos mundanos e lascivos da
sociedade durante os festejos da carne, na clara intenção de nos oferecer um
retrato moral dessa sociedade, que certamente se confronta com aquilo que
publicam e normalmente as pessoas procuram demonstrar, emergindo então a idéia
da hipocrisia, da leviandade, e do falso moralismo que impera inabalável nos
reinos familiares cariocas. Em determinado momento, Doutor Maximiliano começa a
reclamar das dificuldades da vida, principalmente das financeiras, e o Doutor
André lhe estende uma polpuda nota, que o primeiro recusa molemente aceitando
por fim após a insistência de André. Parece que o que liga André à casa de
Maximiliano e Isabel é mesmo o despudor explícito de Cló, que a ele se insinua
com cada vez mais clareza, como nos revela o final, que é, do ponto de vista da
família melancólico.
Ao acabar, era com prazer especial, cheia de dengues nos olhos e na voz,
com um longo gozo íntimo que ela, sacudindo as ancas e pondo as mãos dobradas
pelas costas na cintura, curvava-se para o Doutor André e dizia vagamente:
Mi compra ioiô!
E repetia com mais volúpia, ainda uma vez:
Mi compra ioiô!
ADÉLIA
Personagens:
Adélia, Gertrudes e Giuseppe (seus pais), Dr. Castrioto (do dispensário).
Espaço:
Rio de Janeiro.
O artifício empregado por Lima
Barreto, criando um diálogo entre dois personagens cujos nomes sequer aparecem, em que um procura convencer o
outro de algo, e lhe conta a história que lemos como argumento. Lemos uma
história dentro de outra história, como aquelas bonecas de pano, que guardam
dentro de si inúmeras outras iguais, só que em tamanhos menores.
Este é um conto com forte carga social denunciativa, apontando os
problemas do sistema de filantropia, com base na crítica a um hábito que
parecia ser comum para a época, de haver casamento das garotas recolhidas à
Casa de Expostos no dia de Santa Isabel. Duas pessoas conversam sobre o assunto
e uma procura comprovar para a outra o caráter negativo destas instituições,
por protegerem as crianças que lá chegam nos primeiros anos de vida, para
depois lhes soltarem, sem nada que lhes assegure um futuro garantido.
Para tentar convencer seu interlocutor, o personagem conta a história de
Adélia, que fora deixada pelos pais no dispensário (orfanato) e se casou no dia
de Santa Isabel, sem amor ou nada com ele parecido. No princípio a vida sexual
ativa lhe animou e deu formas. Mas passados dois anos de casamento, o marido
lhe cai enfermo com uma tosse incurável da qual será vítima. Ela, insatisfeita
com a vida de enfermeira de alguém a quem ela não ama, acaba cedendo a um
convite recebido, que é feito e aceito repetidas vezes depois, até que Adélia
adquire hábitos novos, aparece com novas roupas, sapatos e outros elementos de
vestuário.
Na verdade a mulher começou a se prostituir, ganhou dinheiro, presentes,
comprou objetos e roupas mas perto dos 30 anos começou a emagrecer, a definhar,
a perder o viço e a beleza que lhe garantiam o sustento, e acabou morrendo. Mas
mesmo no período em que estava bem, em que era cobiçada e comercializava seus
amores, nunca perdeu o olhar vago e perdido que cultivou desde o início da vida,
desde que foi deixada na Casa de Expostos e que foi casada no dia de santa
Isabel.
LÍVIA
Personagens:
Lívia e seus pais, Godofredo, Siqueira.
Espaço:
Rio de Janeiro.
Narrado em 3ª pessoa onisciente, tem o seguinte enredo: Lívia é uma
rapariga pobre e desarranjada, que já teve inúmeros namoros mas nenhum resultou
em casamento, e que fica em casa a arrumar, varrer, pegar objetos para os
outros, preparar o café da família, amesquinhada por uma vida medíocre e
angustiada com isso. Passa o dia alimentando-se de devaneios, nos quais
consegue sua libertação da condição miserável em que se encontra, sempre
através de um bom partido, de um casamento que lhe redime e lhe garante boa
condição econômico-social. Seus delírios eram protagonizados ora por Godofredo,
ora por Siqueira, mas sempre recheados com fantasias luxuosas e requintadas,
ambientados na Europa e com tudo mais que uma mente sonhadora quer e deseja.
Trata-se de um conto curto, no qual repousa uma crítica contundente
contra os casamentos arranjados, por mera e pura conveniência, e destinados a
solucionar problemas econômicos e alavancar socialmente as pessoas.
MÁGOA
QUE RALA
Personagens:
Dr. Mota Garção, Grauben, Lourenço.
Espaço:
Rio de Janeiro.
O conto é dividido em duas partes bastante distintas, com a primeira
servindo somente para ambientar as ações, que serão narradas na segunda parte,
e também para o narrador manifestar suas críticas e denúncias, centradas
especificamente na burguesia carioca.
Ainda na primeira parte, vem à tona o assassinato de uma mulher, uma
alemã chamada Grauben, cujo corpo foi
encontrado no Jardim Botânico, ao lado de um punhal em que estava grafada a
expressão: “Soy yo!” O delegado encarregado do caso, Dr. Matos Garção fora
nomeado por indicação, sem apresentar qualquer indício da capacidade para
ocupar o posto. O inquérito já havia se arrastado por várias semanas, muito por
obra da inépcia do delegado, até que um jovem, chamado Lourenço da Mota Orestes
resolve ir delegacia e confessar a autoria do homicídio. Com a apresentação
voluntária do assassino o Delegado o encarcerou, e convocou a Imprensa pra
revelar o desfecho do caso, sem mesmo ter ouvido detalhadamente o réu confesso.
Todas as pessoas ouvidas em depoimento, umas mais outras menos, colaboraram na
construção da ausência de responsabilidade do jovem, o que contrastava com sua
confissão, e cria um caso estranhíssimo para todos, já que tudo indicava que o
jovem não era culpado, menos sua confissão. Foi a Júri, mas ninguém, nem mesmo
o Promotor, tinha convicção da sua culpa, o que acabou levando, com certa
facilidade até, a sua absolvição. Contudo, o jovem ainda protestou contra a
decisão do Júri, dizendo ser necessária a aplicação de uma punição a uma pessoa
como ele delituosa e vil. Um artigo publicado em uma pequena revista deu conta
de um caso análogo ocorrido na Alemanha, no qual um rapaz, tendo praticado um
pequeno furto, arrependeu-se por ter manchado o nome da família e maculado a
imagem dos pais e assumiu a autoria de um homicídio que não cometeu, com o intuito
de aplacar a consciência.
UMA
VAGABUNDA
Personagens:
Frederico, Chaves, Alzira.
Espaço:
Rio de Janeiro.
Novamente Lima Barreto utiliza o artifício do narrador que relata uma
história que ouviu alguém contar a uma terceira pessoa, apresentando uma 1ª
pessoa em quase todo o texto, pra no final, ou em pequenas e discretas
passagens em seu interior, manifestar-se em 3ª pessoa.
Dois companheiros conversam em um bar, e Frederico resolve contar a
Chaves a história de Alzira, uma vagabunda que certa vez lhe pedira dinheiro
emprestado, mais precisamente 5 mil-réis, após terem se encontrado em uma bar.
Logo após, vendo-o pagar a conta com um volumoso monte de cédulas, pediu-lhe
mais 5 mil, que Frederico negou prontamente. Alzira indignou-se e lhe atirou os
cinco mil que lhe haviam sido emprestados no rosto de Frederico. No entanto, em
a outra ocasião, Frederico, sujo, maltrapilho, vivendo uma péssima fase, entra
em um bar no qual Alzira está. Ela lhe cumprimenta educadamente e lhe oferece a
passagem do bonde. Frederico procurou negar, mas Alzira a ofereceu com tanta
veemência que lhe foi impossível recusar. O detalhe mais significativo é o
choque da cena final com a idéia que faziam a mulher, demonstrando a
imperfeição dos juízos sem provas dos pré-conceitos.
SUA
EXCELÊNCIA
Personagens:
Ministro e cocheiro.
Espaço:
Baile da Embaixada.
Narrado em 3ª pessoa onisciente, este é um conto diferenciado dos
demais, sobretudo por seu caráter psicológico e a variedade de interpretações
que suscita. É notável, em sua temática a denúncia da vaidade, o narcisismo, da
autolatria manifestada pelo Ministro no início do conto, em que fica a repetir,
para a própria consciência, trechos do discurso que acabara de proferir. No
mais, a interpretação a meu ver mais clara é a de que o ministro entra em um
estado de delírio, de transe, de devaneio, que o faz perder os sentidos, e
nesse delírio, ele vê a si mesmo descendo as mesmas escadarias que instantes
atrás ele descera, só que agora ele se sentia na pele de um reles cocheiro,
perguntando a sua própria imagem se queria o carro, como se o devaneio
indicasse o caráter ambíguo da realidade e o fato de que a baixeza, a
inferioridade, a submissão também fazem parte do nosso mundo, da nossa
realidade, e que, às vezes, as pessoa poderiam passar pelos dois momentos,
sentindo e sofrendo na pele com algo que sempre impeliu aos outros.
Os melhores contos de Lima Barreto, de Lima
Barreto ...
RECORDAÇÕES
DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA
Análise
da obra
No ano de 1909 Lima Barreto fez sua estréia como escritor com o
lançamento da obra Recordações do Escrivão Isaías Caminha, publicada em
Portugal.
É possível classificar a obra como romance memorialista ou como romance
de tese. É possível também reconhecer elementos de crônica, o que confere à
obra um aspecto híbrido, mesclado, marca de sua modernidade.
Linguagem
A linguagem utilizada no romance é pré-modernista pois aproxima-se
daquela da imprensa e portanto, mais acessível a um público diversificado. O
autor, Lima Barreto, tem a preocupação de usar um registro mais próximo do
cotidiano das pessoas, além do fato de ele trabalhar com uma galeria de
personagens populares o que o fazia adotar a sua fala recheada de expressões
extremamente coloquiais. A sua escrita era, antes de mais nada, uma uma
expressão de sua consciência crítica na representação de uma realidade social
até então quase ignorada pela literatura tradicional.
Foco
narrativo
Romance narrado em primeira pessoa, autobiográfico, retrato da vida de
um grande jornal da época. Sátira a figurões da imprensa e das letras.
Extravasamento de suas decepções e revoltas. A obra pode ser considerada
biográfica, uma vez que a personagem principal não só possui as características
físicas de seu criador, mas também comunga de sua crença e sua ideologia, ou
seja, Isaías pensa como Lima Barreto - Isaías é Lima Barreto.
Temática
Os temas centrais
do romance são o preconceito racial na primeira parte, e na segunda, a
imprensa. O primeiro tema, o preconceito racial, está atrelado às condições
sociais dos negros e mulatos do período subsequente à abolição; e o segundo
núcleo temático, a imprensa, versa sobre a hipócrita, corrupta, tirana,
incapaz, desonesta imprensa do início do século que, segundo o narrador, estava
muito longe de empregar intelectuais competentes. O romance retrata vários
tipos: o jornalista, o político e o burocrata, extraídos dos contatos do autor
com as redações de jornais da época e com repartições públicas.
Enredo
O jovem Isaías Caminha, menino do interior,
tomou gosto pelos estudos através da desigualdade de nível mental entre o seu
pai, um ilustrado vigário, e sua mãe. Admirava o pai que lhe contava histórias
sobre grandes homens. Esforçou-se muito nas instruções e pouco brincava. Tinha
ambições e um dambições e um dia finalmente decide ir
para o Rio fazer-se doutor.
Aconselha-se com o tio Valentim. Este visita o Coronel Belmiro, chefe
eleitoral local, que redige uma carta recomendando Isaías para o Doutor Castro,
deputado. Segue paro o Rio com algum dinheiro e esta carta.
Instala-se no Hotel Jenikalé, na Praça da República e conhece o Senhor
Laje da Silva - diz ser padeiro e é incrivelmente afável com todos, em especial
com os jornalistas. Através dele conhece o doutor Ivã Gregoróvitch Rostóloff,
jornalista de O Globo, romeno, sentia-se sem pátria e falava 10 línguas. Vai
assim conhecendo o Rio de Janeiro. Decide procurar o Deputado Castro para
conseguir seu emprego e poder cursar Medicina.
Dirige-se a Câmera: "subi pensando no ofício de legislar que ia ver
exercer pela primeira vez, em plena Câmera dos Senhores Deputados - augustos e
digníssimos representantes da Nação Brasileira. Não foi sem espanto que
descobri em mim um grande respeito por esse alto e venerável ofício [...] Foi
com grande surpresa que não senti naquele doutor Castro, quanto certa vez
estive junto dele, nada que denunciasse tão poderosa faculdade. Vi-o durante
uma hora olhar tudo sem interesse e só houve um movimento vivo e próprio,
profundo e diferencial, na sua pessoa, quando passou por perto uma fornida
rapariga de grandes ancas, ofuscante sensualidade." Tenta falar com o
doutor Castro mas não consegue. Quando finalmente consegue, visitando a sua
residência particular (casa da amante) este o recebe friamente dizendo que era
muito difícil arranjar empregos e mando o procurar no outro dia. Caminha depois
descobre que o deputado estava de viajem para o mesmo dia e é tomado por um
acesso de raiva:
Patife! Patife! A minha indignação veio encontrar os palestradores no
máximo de entusiasmo. O meu ódio, brotando naquele meio de satisfação, ganhou
mais força [...] Gente miserável que dá sanção aos deputados, que os respeita e
prestigia! Porque não lhes examinam as ações, o que fazem e para que servem? Se
o fizessem... Ah! Se o fizessem!
Com o dinheiro no fim, sem emprego, recebe uma intimação para ir à
delegacia. O hotel havia sido roubado e prestava-se depoimentos. Ao ouvir as
palavras do Capitão Viveiros: "E o caso do Jenikalé? Já apareceu o tal
"mulatinho"?" Isaías reflete:
Não tenho pejo em confessar hoje que quando me ouvi tratado assim, as
lágrimas me vieram aos olhos. Eu saíra do colégio, vivera sempre num ambiente
artificial de consideração, de respeito, de atenções comigo [...] Hoje, agora,
depois não sei de quantos pontapés destes e outros mais brutais, sou outro,
insensível e cínico, mais forte talvez; aos meus olhos, porém, muito diminuído
de mim próprio, do meu primitivo ideal [...] Entretanto, isso tudo é uma
questão de semântica: amanhã, dentro de um século, não terá mais significação
injuriosa. Essa reflexão, porém, não me confortava naquele tempo, porque sentia
na baixeza de tratamento, todo o desconhecimento das minhas qualidades, o
julgamento anterior da minha personalidade que não queriam ouvir, sentir e
examinar.
Levado a presença do delegado, começa
o interrogatório:
- Qual é a sua profissão?
- Estudante.
- Estudante?!
- Sim, senhor, estudante, repeti com
firmeza.
- Qual estudante, qual nada!
A sua surpresa deixara-me atônito. Que havia nisso de extraordinário, de
impossível? Se havia tanta gente besta e bronca que o era, porque não o podia
seu eu? Donde lhe vinha a admiração duvidosa? Quis-lhe dar uma resposta mas as
interrogações a mim mesmo me enleavam. Ele por sua vez, tomou o meu embaraço
como prova de que mentia.
Com ar de escarninho perguntou:
- Então você é estudante?
Dessa vez tinha-o compreendido, cheio de ódio, cheio de um santo ódio
que nunca mais vi chegar em mim. Era mais uma variante daquelas tolas
humilhações que eu já sofrera; era o sentimento geral da minha inferioridade,
decretada a priori, que eu adivinhei na sua pergunta.
O delegado continua o interrogatório até arrebatar chamando Caminha de
malandro e gatuno, que, sentindo num segundo todas as injustiças que vinha
sofrendo chama o delegado de imbecil. Foi para o xadrez.
Passa pouco mais de 3 horas na cela e é chamado ao delegado. Este se
mostra amável, tratando-o por "meu filho", dando-lhe conselhos.
Caminha sai da delegacia e decide mudar-se também do hotel. Passa a procurar
emprego mas na primeira negação percebe que devido a sua cor seria muito
difícil se ajustar na vida. Passa dias perambulando pelas ruas do Rio, passando
fome, vendendo o que tinha para comer algo, até avistar Rostóloff que o convida
para dar um passada na redação de O Globo - onde passa a trabalhar como
contínuo.
Nesta altura a narrativa sofre um corte. A ação de Caminha é posta de
lado para descrever minuciosamente os funcionamentos da imprensa carioca. Todas
as características dos grandes jornalistas, desde o diretor de O Globo, Ricardo
Loberant aos demais redatores e jornalistas são explicitadas de maneira cruel e
mordaz.
O diretor é retratado como ditador, temido por todos, com apetite de
mulheres e prazer, visando somente ao aumento das vendas do seu jornal. Somos
apresentados então a inúmeros jornalistas como Aires d'Avila, redator-chefe,
Leporace, secretário, Adelermo Caxias, Oliveira, Menezes, Gregoróvitch. A
tônica de O Globo era a crítica acerba ao governo e seus "desmandos",
Loberant se considerava o moralizador da República. Isaías se admira com a
falta de conhecimento e dificuldade para escrever desses homens que nas ruas
eram tratados como semi-deuses e defensores do povo.
Por este tempo, Caminha havia perdido suas grandes ambições e
acostumava-se com o trabalho de contínuo.
É notável o que se diz do crítico literário Floc (Frederico Lourenço do
Couto) e do gramático Lobo - os dois mais altos ápices da intelectualidade do
Globo. Lobo era defensor do purismo, de um código tirânico, de uma língua
sagrada. Acaba num hospício, sem falar, com medo que o falar errado o tenha
impregnado e tapando os ouvidos para não ouvir.
Floc "confundia arte, literatura, pensamento com distrações de
salão; não lhes sentia o grande fundo natural, o que pode haver de grandioso na
função da Arte. Para ele, arte era recitar versos nas salas, reqüestar atrizes
e pintar umas aquarelas lambidas, falsamente melancólicas. [...] as suas regras
estéticas eram as suas relações com o autor, as recomendações recebidas, os
títulos universitários, o nascimento e a condição social.
Certa noite, volta entusiasmado de uma apresentação de música e vai escrever
a crônica para o dia seguinte. Após algum tempo, o paginador o apressa. Ele
manda esperar. Floc tenta escrever o que viu e ouvira, mas seu poder criativo é
nulo, sua capacidade é fraca. Ele se desespera. O que escreve rasga. Após novo
pedido do paginador, ele se levanta, dirige-se a um compartimento próximo e se
suicida com um tiro na cabeça.
Estando a redação praticamente vazia, o redator de plantão chama Isaías
e pede para que ele se dirija para o local onde Ricardo Loberant se encontra e
jurasse que nunca diria o que viu. Isaías vai ao local indicado e surpreende
Loberant e Aires d'Avila numa sessão de orgia e os chama apressadamente para o
jornal.
Loberant passa então a olhar com mais atenção a Isaías e o promove até
repórter. Divide confidências e farras. Isaías ganha a proteção e dinheiro de
Ricardo Loberant. Depois da euforia inicial, Isaías se ressente.
Lembrava-me de que deixara toda a minha vida ao acaso e que a não pusera
ao estudo e ao trabalho com a força de que era capaz. Sentia-me repelente,
repelente de fraqueza, de falta de decisão e mais amolecido agora com o álcool
e com os prazeres... Sentia-me parasita, adulando o diretor para obter
dinheiro...
Isaías abandona a sua vida confortável e repleta de boas relações para
retornar à terra natal com a finalidade de encontrar um casamento por lá e
viver uma vida diferente daquela que levava. Já casado, mas sem filhos porque
perdera os dois que tivera, resolve registrar as suas recordações em uma
espécie de livro de memória, de onde surge Recordações do Escrivão Isaías
Caminha.
Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de
Lima Barreto ...
TRISTE
FIM DE POLICARPO QUARESMA
Análise
da obra
Publicado inicialmente em folhetins do Jornal do Comércio entre agosto e
outubro de 1911 e depois em livro em 1916, Triste Fim de Policarpo Quaresma,
obra mais famosa de Lima Barreto, condensa em si muitas das características que
consagraram seu autor como o melhor de seu tempo.
A obra focaliza fatos históricos e políticos ocorridos durante a fase de
instalação da república, mais precisamente no governo de Floriano Peixoto (1891
- 1894). Seus ataques, sempre escachados, derramam-se para todos os lados
significativos da sociedade que contempla, a Primeira República, ou seja, as
primeiras décadas desse regime aqui no Brasil.
Assim, Lima Barreto encaixa-se no Pré-Modernismo (1902-22), pois,
respeita códigos literários antigos (principalmente o Naturalismo, conforme
anteriormente apontado), mas já apresenta uma linguagem nova, mais arejada em
relação ao momento anterior.
O romance narrado em terceira pessoa, descreve a vida política do Brasil
após a Proclamação da República, caricaturizando o nacionalismo ingênuo,
fanatizante e xenófobo do Major Policarpo Quaresma, apavorado com a
descaracterização da cultura e da sociedade brasileira, modelada em valores
europeus.
Divertido e colorido no início, o livro se desdobra no sofrimento
patético do major Quaresma, incompreendido e martirizado, convertido numa
espécie de Dom Quixote nacional, otimista incurável, visionário, paladino da
justiça, expressando na sua ingenuidade a doçura e o calor humano do homem do
povo.
O romance anuncia no título o seu
desfecho pouco alegre, apesar do enredo em que os efeitos cômicos estão aliados
ao entusiasmo ingênuo do personagem central e ao seu inconformismo e obsessões.
Quaresma é um tipo rico em manifestações inusitadas: seus requerimentos pedindo
o tupi-guarani como língua oficial, seu jeito de receber chorando as visitas,
suas pesquisas folclóricas; tudo procurando despertar o riso no leitor que, no
final, presencia sua morte solitária e triste: “Com tal gente era melhor tê-lo
deixado morrer só e heroicamente num ilhéu qualquer, mas levando para o túmulo
inteiramente intacto o seu orgulho, a sua doçura, a sua personalidade moral,
sem a mácula de um empenho, que diminuísse a injustiça de sua morte, que de
algum modo fizesse crer aos algozes que eles tinham direito de matá-lo”.
Outro personagem que merece especial atenção é Ricardo Coração dos
Outros, o seresteiro do subúrbio, que enriquece a narrativa em que se mostra a
paixão pela cidade, os bairros distantes, as serenatas e os violões compondo um
cenário pitoresco do Rio de Janeiro da época.
Estrutura
da obra
A obra divide-se em três partes.
Primeira parte -
Retrata o burocrata exemplar, patriota e nacionalista extremado, interessado
pelas coisas do Brasil: a música, o folclore e o tupi-guarani. Esta parte está
ligada à Cultura Brasileira, onde conhecemos a personagem e suas manias. Sabe
tudo sobre a geografia do nosso país. Sua casa é repleta de livros que se
refiram à nossa nação. O que come e bebe é tipicamente brasileiro. Até o seu
jardim só possui plantas nativas. Chega a estudar violão – instrumento de má
fama na época, pois era associado a malandros – com Ricardo Coração dos Outros,
já que descobre que a modinha, estilo tipicamente brasileiro, era tocada com
esse instrumento.
Duas são suas grandes ações. A primeira está em estudar o folclore do
Brasil para incrementar uma festa de seu vizinho, General Albernaz com algum
folguedo popular. Descobre então o Tangolomango, brincadeira que consistia na
dança com dez crianças, até que um sujeito, com uma máscara, deveria pegar uma
a uma sucessivamente. O problema é que Quaresma empolgou-se tanto com a
brincadeira que terminou passando mal, por falta de ar, ou, como se dizia na
época, acabou tendo um “tangolomango”. Por aí já se tem uma idéia da ironia do
autor.
O clímax da falta de senso de ridículo do protagonista foi ter mandado à
Câmara um requerimento, pedindo para que a língua oficial do Brasil deixasse de
ser o Português, idioma emprestado e por isso incentivador de inúmeras polêmicas entre nossos gramáticos (seu
argumento, nesse aspecto, é o de que não podemos dominar um idioma que não é
nosso e que, portanto, não respeita a nossa realidade. Idéias bastante
interessantes, mas apenas isso, pois é ridículo imaginar que uma língua seja
mudada por decreto). No seu lugar propõe o tupi.
Resultado: vira motivo de chacota até na Imprensa. Seus colegas de
trabalham aumentam as constantes ironias que jogam sobre a ele. Um chega a
dizer que Quaresma estava errado ao querer impor aos outros uma língua que nem
ele próprio, autor do requerimento, dominava. Idéia inverídica, tanto que o
protagonista, irado, não percebe que escreve um ofício em tupi. Quando o
documento chega aos superiores, a conseqüência é nefasta: o protagonista é
internado no hospício.
Segunda parte - Mostra o
Major Quaresma desiludido com as incompreensões o que o faz se retirar para o
campo onde se empenha na reforma da agricultura brasileira e no combate às
saúvas. Nesta parte, dedicada à Agricultura Brasileira, vemos Quaresma
refugiar-se num sítio que compra, em Curuzu, e tem por intenção provar que o
solo brasileiro é o mais fértil do mundo. Dedica-se, portanto, a estudar tudo o
que se refere a agricultura. Mais uma vez, distancia-se, em sua perfeição, da
realidade. Torna-se defeituoso.
Terceira parte
- Acentua-se a sátira política. Motivado pela Revolta da Armada, Quaresma apóia
Floriano Peixoto e, aos poucos, vai identificando os interesses pessoais que
movem as pessoas, desnudando o tiranete grotesco em que se convertera o
"Marechal de Ferro". Quaresma larga seus projetos agrícolas ao saber
que estava ocorrendo a Revolta da Armada, quando marinheiros se rebelaram
contra o presidente Floriano Peixoto. Na filosofia do protagonista, sua pátria
só seria grande quando a autoridade fosse respeitada. Em defesa desse ideal,
volta para a Capital, para alistar-se nas tropas de defesa do regime.
O interessante é notar a alienação em que a população mergulha diante de
um tema tão preocupante como uma revolta. Recuperada do susto dos constantes
tiroteios, parte da população chega a ver tudo como um festival, havendo até
quem colecionasse as balas perdidas.
Enfim, a revolta é sufocada. Quaresma é transferido para a Ilha das
Cobras, onde trabalhará como carcereiro. É então que presencia uma cena que lhe
é chocante. Um juiz aparece por lá e distribui (esse termo é o mais adequado
mesmo) as condenações aleatoriamente, sem julgamento ou qualquer outro tipo de
análise. Indignado, pois acreditava que sua pátria, para ser perfeita, tem de
estar sustentada em fortes ideais de justiça, escreve uma carta para o
presidente, pedindo a reparação de tal erro.
Infelizmente, o herói não foi interpretado adequadamente, o que revela
uma certa miopia dos governantes. Por causa de tal pedido, é preso e condenado
à morte, pois foi visto como uma traição. Há nesse ponto uma ironia, pois justo
o único personagem que se preocupou com o seu país foi considerado traidor,
enquanto outros, que se aproveitaram no conflito para conseguir vantagens
políticas, como Armando Borges, Genelício e Bustamante, saíram-se vitoriosos.
No final, tal qual Dom Quixote, Quaresma acorda, recobra a razão. Percebe
que a pátria, por que sempre lutara, era uma ilusão, nunca existira. Num
momento pungente, tocante, descobre que passara toda a sua vida numa
inutilidade.
Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, na configuração dos elementos da
narrativa, notamos a presença predominante da ironia e as impertinências
contidas na figura central do romance, Quaresma, alegando que o tupi, por ser a
língua nativa brasileira proporcionaria melhor adaptação ao nosso aparelho
fonador. Além disso, segundo ele, os portugueses são os donos da língua e, para
alterá-la teríamos de pedir licença a eles.
O narrador é solidário com sua personagem pois não deixa de criticar os
que zombam de Quaresma. No livro, encontramos ora um Quaresma, entusiasmado,
apaixonado pelo Brasil, ora um Quaresma desiludido, amargo, diante da
ingratidão do país para com seus bons objetivos. Nesse ponto, o que vemos é um
personagem condenado à solidão, já que seus ideais batem de frente com os
interesses políticos e com o capital estrangeiro.
Desse modo, temos o personagem central vivendo três momentos na obra:
valorizando as coisas da terra – a história, a geografia, a literatura, o
folclore; no sítio do sossego a frustrada busca de uma solução para o problema
agrário, o que faz o romance se vestir de uma profunda atualidade; finalmente,
o envolvimento na Revolta da Armada, o que acaba lhe custando a vida.
Enredo
O funcionário público Policarpo Quaresma, nacionalista e patriota
extremado, é conhecido por todos como major Quaresma, no Arsenal de Guerra, onde
exerce a função de subsecretário. Sem muitos amigos, vive isolado com sua irmã
Dona Adelaide, mantendo os mesmos hábitos há trinta anos. Seu fanatismo
patriótico se reflete nos autores nacionais de sua vasta biblioteca e no modo
de ver o Brasil. Para ele, tudo do país é superior, chegando até mesmo a
"amputar alguns quilômetros ao Nilo" apenas para destacar a
grandiosidade do Amazonas. Por isso, em casa ou na repartição, é sempre
incompreendido.
Esse patriotismo leva-o a valorizar o violão, instrumento marginalizado
na época, visto como sinônimo de malandragem. Atribuindo-lhe valores nacionais,
decide aprender a tocá-lo com o professor Ricardo Coração dos Outros. Em busca
de modinhas do folclore brasileiro, para a festa do general Albernaz, seu
vizinho, lê tudo sobre o assunto, descobrindo, com grande decepção, que um bom
número de nossas tradições e canções vinha do estrangeiro. Sem desanimar,
decide estudar algo tipicamente nacional: os costumes tupinambás. Alguns dias
depois, o compadre, Vicente Coleoni, e a afilhada, Dona Olga, são recebidos no
melhor estilo Tupinambá: com choros, berros e descabelamentos. Abandonando o
violão, o major volta-se para o maracá e a inúbia, instrumentos indígenas
tipicamente nacionais.
Ainda nessa esteira nacionalista, propõe, em documento enviado ao
Congresso Nacional, a substituição do português pelo tupi-guarani, a verdadeira
língua do Brasil. Por isso, torna-se objeto de ridicularizarão, escárnio e
ironia. Um ofício em tupi, enviado ao Ministro da Guerra, por engano, levá-o à
suspensão e como suas manias sugerem um claro desvio comportamental, é
aposentado por invalidez, depois de passar alguns meses no hospício.
Após recuperar-se da insanidade, Quaresma deixa a casa de saúde e compra
o Sossego, um sítio no interior do Rio de Janeiro; está decidido a trabalhar na
terra. Com Adelaide e o preto Anastácio, muda-se para o campo. A idéia de tirar
da fértil terra brasileira seu sustento e felicidade anima-o. Adquire vários
instrumentos e livros sobre agricultura e logo aprende a manejar a enxada.
Orgulhoso da terra brasileira que, de tão boa, dispensa adubos, recebe a visita
de Ricardo Coração dos Outros e da afilhada Olga, que não vê todo o progresso
no campo, alardeado pelo padrinho. Nota, sim, muita pobreza e desânimo naquela
gente simples.
Depois de algum tempo, o projeto agrícola de Quaresma cai por terra,
derrotado por três inimigos terríveis. Primeiro, o clientelismo hipócrita dos
políticos. Como Policarpo não quis compactuar com uma fraude da política local,
passa a ser multado indevidamente.O segundo, foi a deficiente estrutura agrária
brasileira que lhe impede de vender uma boa safra, sem tomar prejuízo. O
terceiro, foi a voracidade dos imbatíveis exércitos de saúvas, que, ferozmente,
devoravam sua lavoura e reservas de milho e feijão. Desanimado, estende sua dor
à pobre população rural, lamentando o abandono de terras improdutivas e a falta
de solidariedade do governo, protetor dos grandes latifundiários do café. Para
ele, era necessária uma nova administração.
A Revolta da Armada - insurreição dos marinheiros da esquadra contra o
continuísmo florianista - faz com que Quaresma abandone a batalha campestre e,
como bom patriota, siga para o Rio de Janeiro. Alistando-se na frente de
combate em defesa do Marechal Floriano, torna-se comandante de um destacamento,
onde estuda artilharia, balística, mecânica.
Durante a visita de Floriano Peixoto ao quartel, que já o conhecia do
arsenal, Policarpo fica sabendo que o marechal havia lido seu "projeto
agrícola" para a nação. Diante do entusiasmo e observações oníricas do
comandante, o Presidente simplesmente responde: "Você Quaresma é um
visionário".
Após quatro meses de revolta, a Armada ainda resiste bravamente. Diante
da indiferença de Floriano para com seu "projeto", Quaresma
questiona-se se vale a pena deixar o sossego de casa e se arriscar, ou até
morrer nas trincheiras por esse homem. Mas continua lutando e acaba ferido.
Enquanto isso, sozinha, a irmã Adelaide pouco pode fazer pelo sítio do Sossego,
que já demonstra sinais de completo abandono. Em uma carta à Adelaide,
descreve-lhe as batalhas e fala de seu ferimento. Contudo, Quaresma se restabelece
e, ao fim da revolta, que dura sete meses, é designado carcereiro da Ilha das
Enxadas, prisão dos marinheiros insurgentes.
Uma madrugada é visitado por um emissário do governo que,
aleatoriamente, escolhe doze prisioneiros que são levados pela escolta para
fuzilamento. Indignado, escreve a Floriano, denunciando esse tipo de atrocidade
cometida pelo governo. Acaba sendo preso como traidor e conduzido à Ilha das
Cobras. Apesar de tanto empenho e fidelidade, Quaresma é condenado à morte.
Preocupado com sua situação, Ricardo busca auxílio nas repartições e com amigos
do próprio Quaresma, que nada fazem, pois temem por seus empregos. Mesmo
contrariando a vontade e ambição do marido, sua afilhada, Olga, tenta ajudá-lo,
buscando o apoio de Floriano, mas nada consegue. A morte será o triste fim de
Policarpo Quaresma
Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima
Barreto - Passeiweb
http://passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/t/triste_fim_de_policarpo_quar
CLARA
DOS ANJOS
Análise
da obra
Concluído em 1922, ano da morte de Lima Barreto, o romance Clara dos
Anjos é uma denúncia áspera do preconceito racial e social, vivenciado por uma
jovem mulher do subúrbio carioca.
O Realismo-naturalismo, que tanto influenciou Lima Barreto na composição
de Clara dos Anjos, é cientificista e determinista, considerando que as ações
humanas são produtos de leis naturais: do meio, das características
hereditárias e do momento histórico. Portanto, os romances naturalistas
procuravam, através da representação literária, demonstrar teses extraídas de
teorias científicas. Para isso, o Naturalismo buscou compor um registro
implacável da realidade, incluindo seus aspectos repugnantes e grotescos. São
exatamente esses os aspectos que mais chamam à atenção na narrativa exagerada
de Clara dos Anjos.
Em Clara dos Anjos relata-se a estória de uma pobre mulata, filha de um
carteiro de subúrbio, que apesar das cautelas excessivas da família, é iludida,
seduzida e, como tantas outras, desprezada, enfim, por um rapaz de condição
social menos humilde do que a sua. É uma estória onde se tenta pintar em cores
ásperas o drama de tantas outras raparigas da mesma cor e do mesmo ambiente. O
romancista procurou fazer de sua personagem uma figura apagada, de natureza
"amorfa e pastosa", como se nela quisesse resumir a fatalidade que
persegue tantas criaturas de sua casta.
Espaço
O romance passa-se no subúrbio carioca e Lima Barreto descreve o
ambiente suburbano com riqueza de detalhes, como os vários tipos de “casas,
casinhas, casebres, barracões, choças” e a vida das pessoas que ali vivem.
Ao descrever o subúrbio, Lima Barreto aborda o advento dos “bíblias”, os
protestantes que alugam uma antiga chácara e passam a conquistar novos fiéis
para seu culto:
“Joaquim dos Anjos ainda conhecera a "chácara" habitada pelos
proprietários respectivos; mas, ultimamente, eles se tinham retirado para fora
e alugado aos "bíblias"… O povo não os via com hostilidade, mesmo
alguns humildes homens e pobres raparigas dos arredores freqüentavam-nos, já
por encontrar nisso um sinal de superioridade intelectual sobre os seus iguais,
já por procurarem, em outra casa religiosa que não a tradicional, lenitivo para
suas pobres almas alanceadas, além das dores que seguem toda e qualquer
existência humana.” E reflete sobre a nova seita:
“Era Shays Quick ou Quick Shays daquela raça curiosa de yankees
fundadores de novas seitas cristãs. De quando em quando, um cidadão protestante
dessa raça que deseja a felicidade de nós outros, na terra e no céu, à luz de
uma sua interpretação de um ou mais versículos da Bíblia, funda uma novíssima
seita, põe-se a propagá-la e logo encontra dedicados adeptos, os quais não
sabem muito bem por que foram para tal novíssima religiãozinha e qual a
diferença que há entre esta e a de que vieram.”
A crítica às “novas seitas cristãs” revela também a ojeriza de Lima
Barreto à influência americana no Brasil. Como o colocou Antônio Arnoni Prado,
o autor de Clara dos Anjos “interessou-se pelos Estados Unidos, em virtude do
tratamento desumano que este país dispensava aos seus cidadãos de cor. (…)
Censurou duramente a discriminação racial americana, assim como o expansionismo
imperialista dos ‘yankees’, que, através da diplomacia do dólar, ia, a seu ver,
convertendo o Brasil num autêntico protetorado.” Nada mais profético.
Personagens
Marrameque - Poeta
modesto, semiparalisado, Marramaque frequentara uma pequena roda de boêmios e
literatos e dizia ter conhecido Paula Nei e ser amigo pessoal de Luís Murat.
Lima Barreto denuncia, na figura de Marramaque, a influência das rodas
literárias, grupos fechados que abundam no Brasil; a cultura da oralidade, dos
que aprendem “muita coisa de ouvido e, de ouvido, falava de muitas delas”,
tendo um cultura superficial, de verniz; e o azedume dos que não conseguem
brilhar nas “rodas de gente fina”.
Clara: a
“natureza elementar” - Clara era a segunda filha do casal, “o único filho
sobrevivente…os demais…haviam morrido.” Tinha dezessete anos, era ingênua e
fora criada “com muito desvelo, recato e carinho; e, a não ser com a mãe ou
pai, só saía com Dona Margarida, uma viúva muito séria, que morava nas
vizinhanças e ensinava a Clara bordados e costuras.”
O autor reitera sempre a personalidade frágil da moça – sua “alma
amolecida, capaz de render-se às lábias de um qualquer perverso, mais ou menos
ousado, farsante e ignorante, que tivesse a animá-lo o conceito que os
bordelengos fazem das raparigas de sua cor” – como resultado de sua educação
reclusa e “temperada” pelas modinhas:
“Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a
modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A mãe não tinha
caráter, no bom sentido, para o fazer; limitava-se a vigiá-la caninamente; e o
pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela. E ela
vivia toda entregue a um sonho lânguido de modinhas e descantes, entoadas por
sestrosos cantores, como o tal Cassi e outros exploradores da morbidez do
violão. O mundo se lhe representava como povoado de suas dúvidas, de queixumes
de viola, a suspirar amor.”
Essa “natureza elementar” de Clara se traduzia na ausência de ambição em
melhorar seu modo de vida ou condição social por meio do trabalho ou do estudo:
“Nem a relativa independência que o ensino da música e piano lhe poderia
fornecer, animava-a a aperfeiçoar os seus estudos. O seu ideal na vida não era
adquirir uma personalidade, não era ser ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro
marido. Era constituir função do pai, enquanto solteira, e do marido, quando
casada. (…) Não que ela fosse vadia, ao contrário; mas tinha um tolo escrúpulo
de ganhar dinheiro por suas próprias mãos. Parecia feio a uma moça ou a uma
mulher.”
A descrição de Clara reforça os malefícios da formação machista,
superprotetora, repressiva e limitadora reservada às mulheres na nossa
sociedade. Ecoa, portanto, a descrição de Luísa, do romance O Primo Basílio, de
Eça de Queirós, ou a Ana Rosa de O Mulato, de Aluísio de Azevedo. Todas são, na
verdade, herdeiras diretas da figura de formação débil, educada nas leituras
dos romances românticos, que é Emma Bovary, criada por Gustave Flaubert no
romance inaugural do Realismo, Madame Bovary (1857).
Cassi: o
corruptor - Por intermédio de Lafões, o carteiro Joaquim passa a receber em
casa o pretendente de Clara, Cassi Jones de Azevedo, que pertencia a uma posição
social melhor. Assim o descreve Lima Barreto:
“Era Cassi um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento,
insignificante, de rosto e de corpo; e, conquanto fosse conhecido como
consumado "modinhoso", além de o ser também por outras façanhas verdadeiramente
ignóbeis, não tinha as melenas do virtuose do violão, nem outro qualquer traço
de capadócio. Vestia-se seriamente, segundo as modas da rua do Ouvidor; mas,
pelo apuro forçado e o degagé suburbanos, as suas roupas chamavam a atenção dos
outros, que teimavam em descobrir aquele aperfeiçoadíssimo "Brandão",
das margens da Central, que lhe talhava as roupas. A única pelintragem,
adequada ao seu mister, que apresentava, consistia em trazer o cabelo ensopado
de óleo e repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente ao meio — a
famosa "pastinha". Não usava topete, nem bigode. O calçado era
conforme a moda, mas com os aperfeiçoamentos exigidos por um elegante dos
subúrbios, que encanta e seduz as damas com o seu irresistível violão.”
O padrinho Marramaque, que já lhe conhecia a fama, tenta afastá-lo de
Clara quando percebe seu interesse. Na festa de aniversário da afilhada,
provoca Cassi e deixa claro que ele não é bem-vindo ali e que seria melhor que
se retirasse. Cassi vinga-se de modo violento: junta-se a um capanga e ambos
assassinam Marramaque. Clara, que já suspeitava das ameaças do rapaz ao
padrinho, passa a temê-lo, mas ele consegue seduzi-la, principalmente ao
confessar seu crime, dizendo que matou por amor a ela.
Malandro e perigoso, Cassi já havia se
envolvido em problemas com a justiça antes, mas sempre fora acobertado pela sua
família, especialmente sua mãe, que não queria que fosse preso. Assim,
conseguia subornar a polícia e continuar impune, mesmo depois de ter levado a
mãe de uma de suas vítimas ao suicídio e da perseguição da imprensa.
O exagero narrativo de Lima Barreto torna-se patente ao descrever a
figura do sedutor. Branco, sardento e de cabelos claros, é a antítese de Clara.
Como o apontou Lúcia Miguel Pereira: “Até os animais da predileção de Cassi, os
galos de briga, são apresentados com visível má vontade: ‘horripilantes
galináceos’ de ‘ferocidade repugnante’.”
Joaquim dos Anjos - carteiro,
acredita-se músico escreveu a polca, valsas,tangos e acompanhamentos de modina.
polca: siti sem unhas; valsa: mágos do coração.
Uma polca sua - "Siri sem unhas" - e uma valsa - "Mágoas
do Coração: - tiveram algum sucesso, a ponto de vender ele a propriedade de
cada uma, por cinquenta mil-réis, a uma casa de músicas pianos da Rua do
Ouvidor. O seu saber musical era fraco; adivinha mais do que empregava noções
teóricas que tivesse estudo.
Aprendeu a "artinha" musical da terra do seu nascimento, nos
arredores de Diamantina, em cujas festas de igrejas a sua flauta brilhara, e
era tido por muitos como o primeiro flautista do lugar. Embora gozando desta
fama animadora, nunca quis ampliar os seus conhecimentos musicais. Ficara na
"artinha" de Francisco Manuel, que sabia de cor, mas não saíra dela,
para ir além" (p.21/22)
Natural de Diamantina, filho único. A convite de um inglês, pesquisador,
foi para o Rio de Janeiro e lá ficou. Confiava em todos que o rodeavam.
"Um dos traços mais simpáticos do caráter de Joaquim dos Anjos era
a confiança que depositava nos outros,
e a boa fé. Ele não tinha, como diz o povo, malícia no coração. Não era
inteligente, mas também não era peco; não era sagaz, mas também não era tolo;
entretanto, não podia desconfiar de ninguém, porque isso lhe fazia mal à
consiência." (p.115)
Dona Engrácia
- era católica, romana, filhos trazidos na mesma religião, era caseira,
insegura, e rude.
Calado - músico e compositor brasileiro (polcas "Cruzes, minha
prima!")
Patápio Silva -
"Uma polca sua - "Siri sem unha"- e uma valsa - "Mágoas do
coração" - tiveram algum sucesso, a ponto de vender ele a propriedade de
cada uma, por cinquenta mil-réis, a uma casa de música e piano da Rua
Ouvidor." (p.21).
João Pintor
- era um cidadão que visitava "os bíblias" aqueles que pregavam o
evangelho. "era preto retinto, grossos lábios, malares proeminentes, testa
curta dentes muito bons e muitos claros, longos braços, manoplas enormes,
longas pernas e uns tais pés que não havia calçado."(p.25).
Mr. Shays - chefe da seita
bíblica, homem tenaz cheio de eloqüência bíblica faz seus adeptos ouvir a
palavra. Quando os adeptos se acham preparados põem-se a propagá-la.
Eduardo Lafões
- religiosamente ia aos domingos à casa de Joaquim para jogar o solo. Eduardo
Lafões gostava dos assuntos do comércio. Era um homem simplório, que só tinha
agudeza de sentidos para o dinheiro. Vivendo sempre em círculos limitados,
habituado a ver o valor dos homens nas roupas e no parentesco, ele não podia
conceber que torvo indivíduo era o tal Cassi; que alma suja e má era dele, para
se interessar generosamente por alguém.
Manuel Borges de Azevedo e Salustiana Baeta
de Azevedo - pais de Cassi. O pai não gostava dos
procedimentos do filho, enquanto a mãe, cobria-lhe as desfeitas com as
proteções.
Dona Margarida Weber Pestana - viúva, mãe de Ezequiel, descendente
de Alemão; ela, russa. Casou no Brasil
com tipógrafo que falecera dois anos após o casamento. Era dona de uma pensão,
mulher corajosa.
"O Senhor Ataliba do Timbó deu em certa ocasião em persegui-la com
ditinho de Amor chulo. Certo dia, ela não teve dúvidas: meteu-lhe o
guarda-chuva com vigor. À noite, no intuito de defender as suas galinhas da
sanha dos ladrões, de quando em quando, abria um postigo, que abrira na janela
da cozinha, e fazia fogo de revólver. Era respeitada pela sua coragem, pela sua
bondade que era mulato, mais tinha os olhos glaucos, translúcidos, de sua mãe
meio eslava, meio alemã, olhos tão estranhos - olhos tão estranhos e nós e,
sobretudo, ao sangue dominante no pequeno." (p.60)
D. Laurentina Jácone -
gostava de rezer, ficar zelando a igreja.
D. Vicêntina
- cartomante.
"Além desta, havia uma digna de nota: era Dona Vicência. Morava na
vizinhança também e vivia a deitar cartas e cortar "cousas feitas". O
seu procedimento era inatacável e exercia a sua profissão de cartomante com
toda a seriedade e convicção."(p.60)
Praxedes Maria dos Santos -
"gostava de ser tratado por doutor Praxedes. Foi um dos convidados de
Joaquim. Era um homem bom. Ficou indeterminada das correspondência de Clara com
o Cassi.
Etelvina -
crioula, colega de Clara, notou a impaciência de Clara porque o rapaz Cassi
ainda não chegara à festa.
Leonardo Flores
- grande poeta.
Velho Valentim - era português.
Barcelos - um
português fichado na detenção.
Arnaldo - era um
colega do grupo dos valdevino (desoculpados que andava com Cassi).
"Cassi explicou-lhe então que devia ir, naquela tarde, à venda do
Nascimento, cuja rua e cujo número lhe deu. Chegando lá, simularia ter ido
procurar por "Seu" Menezes, que ele conhecia.
- Se ele não estiver? - indagou Arnaldo.
- Você diz que fica à espera e ouve o que se conversa lá. Nela, devem
estar, entre outros o aleijadinho que anda sempre fardado. Ele não conhece
você, como os outros, conforme espero. O que você ouvir, guarda e me conta. Se
Meneses aparecer, você diz que quero falar com ele, negócio de interesse
dele." (p.91).
Menezes - o
dentista da família. Intermediário dos bilhetes e cartas de Cassi para Clara.
Senhor Monção
- caixeiro vendedor; Belmiro Bernedes & Cia. - "tocava realejo",
era um moço português, simpático, educado, e bom porte.
Helena - tia de Marramaque, econômica,
prendada, costurava para o arsenal do governo.
D. Castolina
- mulher de Meneses.
Leopoldo - marinheiro. Cedo, saiu de seio
da família para melhorar de vida. Há 30 anos não via família. Meneses com a sua
pobreza tratou de visitar o imrão já que eram os únicos vivos da família.
Enredo
Clara é uma mulata pobre, que vive no subúrbio carioca com seus pais,
Joaquim e Engrácia, mulher “sedentária e caseira.” Joaquim era carteiro,
“gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já
foi muito estimado em outras épocas, não o sendo atualmente como outrora”.
Também “compunha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas.” Além da música,
a outra diversão do pai de Clara era passar as tardes de domingo jogando solo
com seus dois amigos: o compadre Marramaque e o português Eduardo Lafões, um
guarda de obras públicas.
Clara engravida e Cassi Jones desaparece. Convencida pela vizinha, dona
Margarida, que procurara na tentativa de conseguir um empréstimo e fazer um
aborto, ela confessa o que está acontecendo à sua mãe. É levada a procurar a família
de Cassi e pedir “reparação do dano”. A mãe do rapaz humilha Clara,
mostrando-se profundamente ofendida porque uma negra quer se casar com seu
filho. Clara “agora é que tinha a noção exata da sua situação na sociedade.
Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira,
ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não era
uma moça como as outras; era muito menos no conceito de todos.”
O autor representa, na figura de Clara e no seu drama, a condição social
da mulher, pobre e negra, geração após geração. No final do romance, consciente
e lúcida, Clara reflete sobre a sua situação:
“O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o
caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil Dona Margarida, para
se defender de Cassi e semelhantes, e bater-se contra todos os que se
opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e
moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a
covardia com que elas o admitiam...”
E, na cena final, ao relatar o que se passara na casa da família de
Cassi Jones para a sua mãe, conclui, em desespero, como se falasse em nome
dela, da mãe e de todas as mulheres em iguais condições: “— Nós não somos nada
nesta vida.”
Clara dos Anjos, de Lima Barreto -
Passeiweb
OS
BRUZUNDANGAS
Os Bruzundangas, publicado em 1923, é obra póstuma de Lima Barreto. Uma coletânea de crônicas, onde o autor com a percepção aguda e crítica, não deixa escapar nada. Satiriza uma fictícia nação onde ele mesmo teria residido. Seus capítulos enfocam, entre outros temas, a diplomacia, a Constituição, transações e propinas, os políticos e eleições em Bruzundanga. Critica os privilégios da nobreza, o poder das oligarquias rurais, a futilidade das sanguessugas do erário, desigualdades, saúde e educação tratadas com desdém, enfim, mazelas parecidas às de um país real. Ao lê-lo, tem-se impressão de que o escritor não se fez arauto de seu tempo; o Brasil é que patinou nos descaminhos de si.
Com malandrice carioca e estilo ágil, próximo da caricatura e zombaria,
o afro-brasileiro Lima Barreto é mestre da ficção de escárnio. Nas raízes do
imaginário país grassam oportunistas, apaniguados, retrógrados e escravocratas
de quatro costados. Sobre os usos e costumes das autoridades, escreve que não
atendem às necessidades do povo, tampouco lhe resolvem os problemas. Cuidam de
enriquecer e firmar a situação dos descendentes e colaterais. Diz: não há homem
influente que não tenha parentes e amigos ocupando cargos de Estado; não há
doutores da lei e deputados que não se considerem no direito de deixar aos
filhos, netos, sobrinhos e primos gordas pensões pagas pelo Tesouro da República.
Enquanto isto, a população é escorchada de impostos e vexações fiscais; vive
sugada para que parvos, com títulos altissonantes disso ou daquilo, gozem
vencimentos, subsídios e aposentadorias duplicados, triplicados, afora os
rendimentos que vêm de outras e quaisquer origens.
Ao presidente de Bruzundanga, que deve ser um deslumbrado e completo
idiota, chamam-no "Manda-chuva"; à justiça, "Chicana". A
Carta Magna redigida por espertos (e não expertos) explicita um providencial
adendo: toda a vez que um artigo ferir interesses de parentes de pessoas da
‘situação’ ou de membros dela, fica entendido que não tem aplicação. No fundo,
todos flertam com a "situação" porque ela garante o continuísmo. À
plebe desmemoriada e ignorante, pra que não fique gritando viva o doutor
Clarindo!, viva o doutor Carlindo!, viva o doutor Arlindo! – quando o
verdadeiro nome do doutor é Gracindo, criou-se a "Guarda do
Entusiasmo", constituída de dez mil indicados sem concurso, uniformizados
"de povo", com função de disciplinar e reorientar as aclamações e
vivas da multidão.
Muito mais é Bruzundanga em seus cânones sócio-políticos, religiosos e
culturais, e no atraso visceral – conforme se lê no prefácio – de uma nata
enquistada no canibalismo simbólico da "Arte de Furtar": os maiores
ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões.
No primeiro capítulo de Os Bruzundangas, Lima Barreto critica a
superficialidade e o preciosismo da literatura parnasiana, além da linguagem
misteriosa e mística do Simbolismo. Cita ainda um verso do poeta Worspikt em
que há a repetição da consoante "L" (aliteração), recurso chamado no
livro de "harmonia imitativa".
No capítulo "Um Grande Financeiro", Lima Barreto critica os
economistas incompetentes e contraditórios da Bruzundanga, através do
personagem caricatural Felixhimino Ben Karpatoso.
"Bruzundangas" é um substantivo feminino que pode significar
"palavreado confuso, mistura de coisas
imprestáveis, mixórdia, trapalhada, embrulhada". Neste livro, Lima Barreto
fala da arte de furtar, de nepotismos desenfreados, de favorecimentos e
privilégios. A própria sociedade, as eleições, a religião, os literatos e a
imprensa são cáusticamente abordados por ele e servem de pano de fundo para a
construção de sua obra literária.
O livro é um diário de viagem de um brasileiro que morou tempos na
Bruzundanga, conheceu sua literatura, a escola samoieda (falsa, monótona e
afastada da cultura, com autores fúteis e aconchavados com a classe dominante);
sua economia confusa que exauri a riqueza do país, sendo dominada pelos
cafeeiros da província de Kaphet.
Mostra também a obsessão por títulos como os de nobreza e os de doutor,
mesmo quando seus possuidores não são nobres e são pouco letrados. A seguir
critica a legislação (a Constituição, baseada na de um país visitado por
Gulliver, tem uma lei que diz que se a lei não for conveniente a situação ela
não é válida), a política (os presidentes, chamados Mandachuvas, assim como os
ministros, os heróis e os deputados, são estúpidos e vazios), o processo
democrático (tão corrupto quanto era na República Velha), a ciência, o resto da
cultura (quase nula, por vezes perto do negativo), o exército e a política
internacional.
Lima Barreto fala de dois tipos de nobreza existentes na Bruzundanga: a
nobreza doutoral e a que ele chama "de palpite". A primeira é formada
pelos doutores, os que têm diploma de nível superior. Lima Barreto diz que a
sociedade em geral valoriza extremamente os doutores. No final do capítulo
referente à nobreza doutoral, ele expõe uma escala de valores dos cursos de
nível superior, os dois mais valorizados são o de Medicina e o de Direito,
respectivamente.
Repleto de caricaturas de personagens da vida política da época, como
Venceslau Brás e o Barão de Rio Branco, o livro é uma crítica ferina a
sociedade brasileira, sua literatura e sua organização político- econômica.
Os Bruzundangas, de Lima Barreto -
Passeiweb
http://passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/o/os_bruzundangas
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