PRÉ-MODERNISMO: LIMA BARRETO (continuação 1)

2 comments
LIMA BARRETO E A CRÍTICA (1900 – 1922)- A CONSPIRAÇÃO DE SILÊNCIO
Alice Áurea Penteado Martha
Universidade Estadual de Maringá/Brasil

O escritor em seu tempo 
    O início do século XX no Brasil, no que se refere às tendências críticas e, notadamente, no período entre 1907 e 1922, pode ser observado como reflexo e mesmo continuidade das idéias positivistas, deterministas e cientificistas que dominaram o século anterior. Denominada por Carmelo Bonet (Bonet, 1969) de Pré-modernista, a crítica tem em José Veríssimo sua estrela maior que, com sua dupla face de Jânus, conforme estudo de João Alexandre Barbosa (Barbosa, 1974, p.161), pode ser visto através de um jogo entre o crítico, interessado sobretudo na avaliação e no julgamento das obras, e o historiador literário, que tenta unir o impressionismo crítico e o modelo naturalista, tendo entre essas duas tendências o crítico social e o político. O impasse crítico constatado na produção de Veríssimo, e presente no homem de seu tempo, dificulta sobremaneira garantir que a elite intelectual do país pudesse despojar-se verdadeiramente de todo aparato cientificista/naturalista/determinista/impressionista para dedicar-se, exclusivamente, ao fato literário como manifestação estética. 
     Além de Veríssimo e de seu companheiro, Sílvio Romero, o pensamento crítico oficial do país, nos primeiros vinte anos deste século, era representado por nomes como, Gonzaga Duque, Nestor Vítor, João Ribeiro, Agrippino Grieco, Arararipe Júnior, Medeiros e Albuquerque, Osório Duque-Estrada e Andrade Murici, que compunham um quadro variado de tendências críticas. Conforme o estudo das linhagens, proposto por Wilson Martins (Martins, 1952), José Veríssimo e Ronald de Carvalho adotavam padrões de apreciação predominantemente estéticos; Araripe Júnior, Nestor Vítor, João Ribeiro, Alcides Maya, Medeiros e Albuquerque e Agrippino Grieco pertenciam à linhagem impressionista, ou do gosto e do desgosto; Osório Duque-Estrada, da linhagem gramatical, preconizava que o bom escritor é o que escreve certo. 
   Até 1922 era esse o quadro representativo da crítica no país, acrescido do nome de Tristão de Atayde, que iniciara suas atividades em 1919, e que também se filiava à corrente crítica impressionista. É importante observar, ainda, que o principal veículo divulgador da crítica do período era o jornal, notadamente, no caso daquela dirigida à obra de Afonso Henriques de Lima Barreto, que mais de perto interessa a este trabalho. Para compreender as linhas gerais dessa crítica é preciso, portanto, que se reconheça o campo intelectual da época, no sentido mesmo que lhe confere Pierre Bourdieu: 
     [...] o campo intelectual [...] constitui um sistema de linhas de força: isto é, os agentes ou sistemas de agentes que o compõem podem ser descritos como forças que se dispondo, opondo e compondo, lhe conferem sua estrutura específica num dado momento do tempo. (BOURDIEU, 1968, p.105) 
     Considerando que as ligações mantidas por um escritor com sua obra e mesmo a própria obra são afetadas pelo sistema de relações sociais, ou pela posição que o criador ocupa na estrutura do campo intelectual, Bourdieu observa a importância do julgamento de outrem para os artistas e intelectuais. No caso do escritor, segundo o sociólogo, a dependência da imagem ou do julgamento de outrem é insuperável, pois ele não escapa dos sucessos ou insucessos de sua obra, das interpretações que lhe forem dadas, da representação social, estereotipada e simplificada que o público possui sobre ele. Observando, ainda, que é no interior e por todo sistema das relações sociais que se constitui o senso público da obra do autor, segundo o qual ele é definido e em relação ao qual se deve definir, Bourdieu acha importante perguntar sobre a gênese desse senso público, ou seja, quem julga e quem consagra em meio ao caos da produção cultural. Admitindo que essa tarefa cabe a alguns homens de gosto, aponta o trabalho do editor que, agindo como dono do saber, se propõe a descobrir e a revelar novos projetos criadores. Mas, ao receber a obra, o editor a recebe com as marcas da intermediação, ou seja, uma espécie de seleção prévia, como os critérios que orientam publicações de editoras, a consagração do autor, a premiação por concurso, entre outros. Integrante do campo intelectual, o crítico, por sua vez, também recebe as obras já selecionadas, seja a marca da editora, ou do editor, seja a de um prefaciador, ou mesmo a do escritor, consagrado ou não. Nesse jogo de imagens refletidas sobre o projeto criador de um artista, o público tem papel de importância porque, através dele, o autor pode conhecer a si mesmo e a sua obra, considerando-se que o público é mediador entre autor e obra. Para Bourdieu, fica claro, assim, o sentido público da obra – julgamento sobre o valor e a verdade dela – como necessariamente coletivo, uma vez que a relação que o criador mantém com sua produção é sempre mediatizada pela relação que mantém com o seu sentido público: 
   [...] a objetivação da intenção criadora que se poderia chamar de publicação (entendendo-se com isso o fato de tornar-se público) se realiza através de uma infinidade de relações sociais particulares, relações entre o editor e o autor, entre o editor e o crítico, entre o autor e o crítico, entre os autores, etc. Em cada uma dessas relações, cada um dos agentes empenha não só a apresentação socialmente constituída que tem do outro termo da relação ( a representação de sua posição e de sua função no campo intelectual, de sua imagem pública como autor consagrado ou desprezado, como editor de vanguarda ou tradicional, etc.), mas também a representação da representação que o outro termo tem dele, isto é, da definição social de sua verdade e de seu valor que se constitui no interior e a partir do conjunto de relações entre todos os membros do universo intelectual. (BOURDIEU, 1968, p. 125) 
   É evidente, por outro lado, que o próprio escritor é parte integrante desse campo intelectual e para que se tenha uma imagem inteira de tal campo é preciso compreender não só o contexto literário brasileiro como também a posição que o escritor Lima Barreto ocupa no cenário das letras no início do século no Brasil, como observa Antonio Candido: 
    [...] o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade, (que o delimita e especifica entre todos), mas alguém desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores. (CANDIDO, 1976, p. 74) 
    Sob esse aspecto, importa conhecer não só o grupo profissional a que se liga Lima Barreto, ou seja, os escritores que com ele compõem o quadro literário nacional, como compreender também sua posição social e em que medida ele promove o diálogo entre criador e público, configurando o reconhecimento de sua atividade, justificando-a socialmente. 
    O período de 1900 a 1922 na literatura brasileira, denominado Pré-modernista por Tristão de Atayde, deve ser entendido, segundo Alfredo Bosi (BOSI, 1973), em dois sentidos até mesmo contrastantes. No primeiro, o prefixo pré assume conotação de mera anterioridade temporal e o período literário assim designado se caracteriza como extremamente conservador, aglutinando escritores neoparnasianos tradicionalistas que, sob o critério estético, podem ser considerados anti-modernistas. Nesse sentido, o pré-modernismo acaba sendo o prosseguimento das tendências realistas, naturalistas e parnasianas. No segundo, o prefixo conota forte sentido de precedência temática e formal em relação aos valores da literatura modernista, notadamente do período de 30, devendo ser visto como movimento renovador, oposto ao conservadorismo entranhado no sentido citado anteriormente, uma vez que os escritores representativos desse modo de entender o período passam a interessar-se pela realidade brasileira, propondo uma revisão crítica dos valores nacionais, muitas vezes confundida com pessimismo ou ressentimento. Assim é que, graças a essa visão de Alfredo Bosi, é possível estabelecer uma significativa distinção entre os escritores que compõem o campo intelectual do início do século. Mesmo porque seria difícil, senão impossível, abrigar escritores como Amadeu Amaral, Martins Fontes (neoparnasianos) e prosadores acadêmicos como Rui Barbosa e Coelho Neto sob o mesmo manto de produtores como Euclides da Cunha, Monteiro Lobato, Graça Aranha e Lima Barreto, em cuja textura encontramos participação social, ironia e crítica. 
   Para Antonio Candido (CANDIDO, 1976), a literatura brasileira de 1900 a 1922, configura-se como literatura de permanência, na medida em que se mostra acomodada no seu modo de conservação dos traços da literatura realista-naturalista. Segundo o crítico, essa produção, fascinada pelo encantamento plástico, pela euforia verbal em busca da perfeição greco-latina, responsabilizou-se pelo enlanguescimento do naturalismo vigoroso da obra de Aluísio de Azevedo, por exemplo, propiciando o aparecimento do romance ameno e picante, com traços de crônica social, cujo modelo oficial é Afrânio Peixoto. Mas há, ainda segundo Candido, discordâncias significativas de semelhante ponto de vista literário e elas podem ser rastreadas nas obras de escritores como Alphonsus de Guimaraens, Augusto dos Anjos e Lima Barreto. 
   Como se vê, a posição de Lima Barreto no grupo intelectual de seu tempo, quer na visão de Bosi, quer na de Candido, marca-se sempre pela dissonância em relação ao pensamento acadêmico oficial, seja no âmbito da produção literária, seja na questão do julgamento crítico, ou mesmo no que se refere às suas preocupações políticas e sociais. 
   Em relação à crítica do período, pode-se afirmar que ela não teve preocupação em aprofundar ou renovar os pontos de vista da crítica eminentemente nacionalista do período anterior. Sem condições de optar por rumos mais estéticos que científicos, tomou a direção do culto à forma, valorizando o purismo gramatical. Também como a produção literária, a crítica mostrava-se acomodada, satisfeita com os padrões assimilados com os representantes do século anterior. Amparando-se nos três mestres do passado, Sílvio Romero, Araripe Júnior e José Veríssimo, a crítica do início do século se mostrou pouco inovadora, exceção feita, talvez, às débeis tentativas de Nestor Vítor, de inspiração simbolista e idealista. 
   Os grandes jornais do tempo dão destaque às letras, concedendo-lhes seções permanentes e assinadas por críticos como José Veríssimo e Araripe Júnior que, ao lado de outros, mantêm A Semana Literária, no Correio da Manhã; João Luso, que assina as Dominicais do Jornal do Comércio; Figueiredo Pimentel que comanda o Binóculo, na Gazeta de Notícias; Medeiros e Albuquerque, que escreve a seção Crônica Literária, em A Notícia, onde também aparecem as crônicas de João do Rio. No exercício do jornalismo, letrados como Olavo Bilac, Gilberto Amado, Bastos Tigre, Alcindo Guanabara e muitos outros não só mantinham a notoriedade como ainda aumentavam, consideravelmente, seus rendimentos. As estreitas ligações entre imprensa e literatura, entre jornais e literatos, justifica a predominância da crônica jornalística na crítica do início do século no Brasil. 
   Somente a partir dos anos 50, a chamada nova crítica, ao lado de outras correntes, passou a estabelecer distinções entre a crítica de jornal e a crítica literária. Segundo essas concepções, a crítica de jornal não era crítica literária, mas review – no sentido pejorativo do termo – ficando a designação de crítica literária apenas para a universitária, como demonstram as considerações de Wilson Martins: 
   A crítica de jornal é um ensaio imediato que se escreve quando saem os livros, fazendo um primeiro julgamento conscientemente precário e provisório. É um julgamento literário que abre campo para a fortuna crítica do livro e do autor. (MARTINS, 1983, p.10) 
   Assim, para Martins, a crítica de jornal é crítica propriamente dita, possibilitando aos leitores as primeiras informações sobre o livro, bem como um primeiro julgamento sobre o autor e a obra. É interessante destacar o pensamento de Martins porque, como se sabe, a crítica sobre a obra de Lima Barreto, no período entre 1909 e 1922, foi toda veiculada em jornais do Rio de Janeiro, principalmente. 
   Para João Luís Lafetá (Lafetá, 1974), entretanto, a palavra fácil e o estilo eloqüente configuram, nos primeiros vinte anos deste século, um trabalho que pode ser chamado de colunismo, jornalismo, crônica literária, mas nunca crítica. Como o objetivo era mais de informar o público sobre o assunto do livro, comentar atitudes e opiniões, bem como apontar virtudes e/ou defeitos do autor, Lafetá considera que houve apenas a intenção de se fazer crítica nesse período. Se a informação jornalística se limitasse à paráfrase da obra e às digressões sobre um determinado assunto, seria apenas noticiário; se os comentários sobre o livro se transformassem em pretextos para exercícios de estilo do crítico, a crítica, então, não passava de crônica. 
   Como os dados da mensagem são condicionados pelo veículo, de forma que fatos e opiniões sejam transmitidos a um número sempre maior de leitores, a crítica jornalística acaba elaborando um certo modelo de abordagem da obra literária, que visa, sobretudo, à informação biográfica, com algumas tentativas de estabelecimento de analogias entre traços da obra e da personalidade do escritor. A técnica do portrait associa-se ao jornalismo, com a narração de anedotas e detalhes biográficos sugestivos que acabam por ignorar a obra a ser criticada. Todavia não se pode generalizar, uma vez que muitas observações críticas já se mostravam pertinentes, propondo discussões sobre o estilo e mesmo a ideologia veiculada na obra, apesar da precariedade do veículo, ou seja, do caráter efêmero e superficial do jornal. 
   O traço imediatista e institucional desse tipo de crítica tanto pode promover o autor e sua obra, como concorrer, pelas mesmas duas características, para a marginalização de ambos. Assim, a crítica jornalística pode abrir, segundo Leyla Perrone Moisés (Moisés, 1973, pp 21,22,23), dois caminhos à obra: julgá-la segundo os pressupostos conhecidos e estabelecidos, negligenciando o caráter inovador que, por acaso, possa ter ou, ainda, considerar essa inovação como falta de sentido, a fim de defender-se do que não conhece bem. Isto porque, sendo jornalística, a crítica tende a não amadurecer seus conceitos sobre o que lê e, como guardiã dos valores institucionais, é propensa a repelir o novo e o inusitado em arte, como forma de garantir a preservação do sistema. 
   Como eco das opiniões dominantes, sem muita profundidade, esse tipo de crítica torna-se rapidamente desvalorizada e somente o distanciamento pode apontar os equívocos e a freqüente futilidade com que aborda as questões literárias. A crítica literária dos jornais aproxima-se do colunismo, do noticiário, ou mesmo da crônica literária, carregando nas amenidades e curiosidades sobre a obra e o autor em foco. Via de regra, o gosto do público e suas condições de entendimento norteiam a escolha do assunto e o enfoque a ser privilegiado por essa crítica. 
   Lima Barreto pouco tinha a oferecer a esse tipo de crítica e, consciente de sua marginalidade literária e social, nunca esmoreceu em combate ou tornou-se agregado deste ou daquele grupo literário, com vistas a uma aceitação por parte da crítica e, por extensão, do público. Crítico, ele também, mostrou-se freqüentemente preocupado com a natureza e a função da crítica literária, como demonstram seus apontamentos, de 1904, em seu Diário íntimo: 
   Um escritor, um literato, apresenta ao público, ou dá publicidade a uma obra; até que ponto um crítico tem o direito de, a pretexto de crítica, injuriá-lo? 
[...] 
 Se o crítico tem razões particulares para não gostar do autor, cabe-lhe unicamente o direito de fazer, com a máxima serenidade, sob o ponto de vista literário, a crítica do livro. (DI, p. 56-57) 
   Como se vê, uma das primeiras preocupações do escritor emergente foi a crítica literária. Ao lado dos primeiros esboços de seu Clara dos Anjos, Lima Barreto como que pressentia as agruras por que passaria com a crítica de seu tempo. Porém, mais do que isso, o trecho evidencia as primeiras inquietações de seu espírito acerca do trabalho crítico, não só aquele que recebia em função de sua obra, mas também o que ele mesmo iria realizar, comentando e criticando a produção intelectual de sua época, da forma mais digna: Um crítico não tem absolutamente direito de injuriar o escritor a quem julgar. Em carta a Mário Matos (18/11/1913), agradecendo o artigo sobre o Recordações, Lima Barreto demonstra compreender, sobretudo, a função do público no julgamento da obra: 
   O Belmiro [Belmiro Braga] [...] julga o meu modesto livro uma obra-prima. Eu, como o senhor, também não o julgo assim, porque quem faz as obras-primas não somos nós, os autores, nem os críticos, nem os amigos dos autores: são os leitores e, sobretudo, o tempo. 
   Se meu irregular livro conseguir viver por ele mesmo (de outra forma, não quero), será obra-prima ou melhor: uma grande obra, senão não o será. 
   É este o meu critério de julgamento. 
   A colaboração das gerações, portanto, do tempo, é quem dá perfeição às obras. (C1, p.246) 
   Leitor de Taine, Brunetière e Guyau, principalmente, Lima Barreto extrai desses pensadores não só uma coerente concepção da natureza e função da literatura como arte militante, mas ainda uma sólida base para compreender o trabalho da crítica, tanto a que recebe, que opina sobre suas obras, como aquela que pratica, ao emitir parecer sobre os trabalhos alheios. Em palestra escrita em Mirassol (SP), O destino da literatura, depositário importante de seu pensamento acerca da arte literária, é possível organizar suas idéias sobre crítica, a partir da análise das considerações que faz sobre Arte e Beleza: 
   A Beleza, para Taine, é a manifestação, por meio dos elementos artísticos e literários, do caráter essencial de uma idéia mais completamente do que ela se acha expressa nos fatos reais. 
   Portanto, ela já não está na forma, no encanto plástico, na proporção e harmonia de suas partes, como querem os helenizantes de última hora e dentro de cuja concepção muitas vezes não cabem as grandes obras modernas, e, mesmo, algumas antigas. 
 Não é o caráter extrínseco da obra, mas intrínseco, perante o qual aquele pouco vale. É a    substância da obra, não são suas aparências. (IL, p.58) 
  Afirmando não desprezar os atributos externos como perfeição formal, correção, ritmo e equilíbrio das partes de modo que a unidade seja obtida na diversidade, Lima Barreto deixa clara uma concepção de crítica adiantada para seu tempo, tendo em vista os pressupostos de seus contemporâneos, predominantemente impressionistas, do gosto e do desgosto, normativos e subjetivos, ao mesmo tempo, submissos ou em harmonia com a sociedade muitas vezes; ou, ainda, as críticas de traços biográficos (muito semelhantes às marcas impressionistas) que, partindo do pressuposto de que a obra nada mais é que o retrato das experiências de vida de seu autor, conforme Leyla P. Moisés, procuram desvendar o mito (obra) para descobrir o homem (autor); em seguida, mitificam esse homem, preferindo o mito secundário, inventado pela crítica, ao mito primeiro da obra. (Moisés, 1973, p.60) 
   A leitura da obra de Lima Barreto permite o estabelecimento de uma linha crítica, evidentemente esparsa pelos romances, como é o caso, principalmente, de Recordações do escrivão Isaías Caminha, pelos textos jornalísticos, pelos de confissão, especificidade do Diário íntimo, pelos textos propriamente críticos, reunidos em Impressões de leitura e em sua Correspondência ativa e passiva. É claro que não se pode falar de um método crítico nos textos de Lima Barreto, mas é possível inferir que o escritor possuía concepções muito claras sobre o fazer crítico, que pressupunha, a seu ver, não só revolver a intimidade das obras, mas também as circunstâncias que as rodeiam. Foi o que pretendeu dizer em sua escreveu com o maior respeito o nome de Lima Barreto e, num artigo de fundo, referindo-se à condenação do Tenente Wanderley, declarou que ela havia sido lavrada por doze homens conferência O destino da literatura, ao afirmar que o que vale não é o caráter extrínseco da obra, mas o intrínseco, ou seja, a substância dela, sem desprezar atributos externos – a forma, o jogo que permite a unidade na variedade. Ele não enfatizava apenas o conteúdo militante da obra literária; compreendia que a forma e o modo dessa militância também devem buscar a beleza. Ocorre que a crítica oficial valorizava sobretudo a retórica estéril, concebida como estilo elegante. A posição de Lima Barreto, ao negar primeiro plano a esses aspectos, visava apenas restabelecer o equilíbrio na postura crítica, pois a balança roubava no peso, e muito, para o exterior da obra. 
   Fazendo de Isaías Caminha o porta-voz de suas impressões sobre a crítica produzida nas redações de jornais, Lima Barreto aponta abertamente as mazelas de uma atividade marcada pelo apadrinhamento, ou ainda, pela repetição de clichês e fórmulas mais ou menos elaboradas, que tanto serviam a um romance como a uma crônica social, aliás, muito em voga no período: 
   Os livros nas redações têm a mais desgraçada sorte se não são recomendados e apadrinhados convenientemente. Ao receber-se um, lê-se-lhe o título e o nome do autor. Se é de autor consagrado e da facção do jornal, o crítico apressa-se em repetir aquelas frases vagas, muito bordadas, aqueles elogios em cliché que nada dizem da obra e dos seus intuitos; se é de outro, consagrado mas com antipatias na redação, o cliché é outro, elogioso sempre mas não afetuoso nem entusiástico. Há casos em que absolutamente não se diz uma palavra do livro (REIC, p.237)

  Diluindo as cores fortes da sátira limana e considerando o exagero e a generalização nos tra  ços da atividade crítica, é importante observar que o escritor acusa os críticos não só de corporativismo, como, principalmente, evidencia suas falhas no papel de mediadores entre o autor e o público. Lima Barreto compreendia a importância da formação de um público para que suas obras alcançassem ressonância. Se jornais e revistas, instrumentos de divulgação da literatura, no início do século, não atuavam de modo condizente com suas responsabilidades, o autor tinha poucas chances de reconhecimento de sua posição social, uma vez que semelhante reconhecimento depende da aceitação de sua obra por parte do público.
    Lima Barreto vai mais além, denunciando também o trabalho das editoras, no caso a Garnier, cujo interesse recaía sobre escritores com pistolões ou sobre aqueles cujo nome , já conhecido, atraía leitores: 
   É necessário que surjam outras casas editoras; é necessário que os lucros imensos que a Garnier tem tido provoquem o aparecimento de energia e capitais, que nos libertem totalmente de tão abjeta tutela. 
   Não é possível que um país como o nosso, só tenha um editor e esse editor seja estrangeiro, e viva fora do país, nada conheça da nossa atividade literária e mental, se deixe guiar por pistolões e recomendações. (IL, p.282-283) 
   Em síntese, o campo intelectual do início do século e por onde transitava Lima Barreto se marca pela formação de duas frentes, tanto na produção literária quanto no julgamento dela. Assim é que temos, por um lado, escritores como Coelho Neto, Afrânio Peixoto, Olavo Bilac, entre outros, satisfeitos e perfeitamente integrados à realidade de sua época, produzindo obras consideradas porta-vozes do ideário dominante, distribuindo sorrisos e amenidades, leveza e alegria, mascarando uma realidade social dura e triste, brutalizada pelas tensões e conflitos de toda ordem. Fazendo par com essa produção, observa-se uma face da crítica, preocupada em agradar e expandir a literatura amena e idealizada, também marcada pela linguagem de clichês e pela postura do apadrinhamento. Na face menos exposta da mesma moeda, na medida em que pertence ao mesmo campo intelectual, germina uma literatura que se marca por um projeto criador oposto à proposta vigente: caracterizada pela participação social, pela militância literária, a produção limana, quer literária, jornalística ou crítica, subverte os padrões dominantes, inserindo-se nas contradições de seu tempo, preocupada em refletir o real com maior verossimilhança para, a partir daí, conscientizar e propor mudanças a essa realidade. Assim, com um projeto criador dissonante em relação ao campo em que atua, Lima Barreto se vê banido do sistema, o que provoca sua marginalização pela crítica literária oficial de sua época que, ou ignora sua obra, ou a critica de modo a configurar sua menoridade, seu caráter de ainda-não-literatura, ou, ainda, de modo a enfatizar seus aspectos negativos, que biográficos, quer de estilo. 

A conspiração do silêncio 
   O primeiro artigo da crítica à obra de Lima Barreto foi publicado em 1909, mas é significativo que, em 1907, antes mesmo da publicação de Recordações do escrivão Isaías Caminha, o crítico mais respeitado nos meios intelectuais do início do século, José Veríssimo, tenha se referido ao jovem escritor de forma abonadora. No dia 09/07/1907, Veríssimo anota em sua coluna denominada Revista Literária, do Jornal do Commércio, no Rio de Janeiro, ter lido na revista Floreal, dirigida por Lima Barreto, o início do primeiro romance do escritor. A importância das anotações do crítico às primeiras páginas do Recordações reside no fato de que Veríssimo formava a opinião, emitindo julgamentos severos sobre a produção literária do momento. Era, por isso, chamado de Zé Veríssimo, com o sobrenome funcionando como qualificador de seu amor à verdade, ou, ainda, de Severíssimo pelas mesmas razões. Assim, suas primeiras impressões sobre a obra têm valor e devem ser conhecidas: 
   Ai de mim, se fosse a revistar aqui quanta revistinha por aí aparece com presunção de literária, artística e científica. 
    Não teria mãos a medir e descontentaria a quase todos; pois a máxima parte delas me parecem sem o menor valor, por qualquer lado que as encaremos. Abro uma justa exceção, que não desejo fique como precedente, para uma magra brochurazinha que com o nome esperançoso de Floreal veio ultimamente a público, e onde li um artigo "Spencerismo e Anarquia", do Senhor M. Ribeiro de Almeida, e o começo de uma novela Recordações do escrivão Isaías Caminha, pelo Senhor Lima Barreto, nos quais creio descobrir alguma cousa. E escritos com uma simplicidade e sobriedade, e já tal qual sentimento de estilo que corroboram essa impressão. (VERÍSSIMO, 1907) 
   Entretanto, por ocasião do lançamento do livro, Veríssimo limitou-se a escrever uma carta a Lima Barreto, datada de 05 de março de 1910, apontando muitas imperfeições de linguagem, de estilo, bem como um defeito grave na sua composição, ou seja, o excessivo personalismo da obra. Para quem vira, quase três anos antes, um escritor promissor nos capítulos iniciais do Recordações, a opinião mostrava-se, agora, demasiadamente severa e o mais significativo é que não foi publicada. Pode-se deduzir que o crítico não quis ferir suscetibilidades, emitindo seu julgamento sobre um livro que desancava o jornalismo e os jornalistas da época. E deve-se questionar, ainda, por que, ao voltar à colaboração jornalística, em 1912, em O Imparcial, em nenhum momento se referiu à obra de Lima Barreto, mesmo ao Triste fim de Policarpo Quaresma, a essa altura já publicado? 
   O silêncio de José Veríssimo em relação à obra de Lima Barreto não pode continuar sendo explicado apenas pelo abandono do ofício crítico, uma vez que continuou a exercê-lo até 1914 e, até então, pelo menos mais duas grandes produções do escritor haviam sido publicadas, causando estragos não só à estética literária vigente, mas também às instituições nacionais como Política, República, Imprensa, entre outras. Além disso, Lima publicara um conto reconhecido como obra-prima no gênero, O homem que sabia javanês, na Gazeta da Tarde, em 1911, e alguns outros de igual valor literário. Pode-se, portanto, responsabilizar também José Veríssimo pelo exílio literário a que foi submetido o escritor, uma vez que o silêncio do crítico não deve ter ocorrido unicamente pelo afastamento das atividades literárias, mas pode ter acontecido pelas mesmas razões que jornais como o Correio da Manhã, claramente satirizado em Recordações, deixaram, inclusive, de citar o nome de Lima Barreto e de suas obras por um período bastante longo. 
   O silêncio dos primeiros anos em torno à produção limana não pode ser visto como inocente e sem sentido, pois, como a linguagem, como o discurso, ele é transparente e instaura processos significativos complexos (Orlandi, 1990). Embora não fale, o silêncio significa de modo diferente da significação verbal e, por isso, deve-se indagar: o que significou o silêncio ao redor da obra de Lima Barreto? Inicialmente, parece claro que o silêncio excluiu o escritor do campo intelectual de seu tempo, no caso o jornalismo, contra o qual apontara sua artilharia no primeiro livro, o Recordações. Após a publicação do livro, o nome de Lima Barreto foi banido pelo Correio da Manhã, onde, inclusive, havia trabalhado como repórter. O silêncio foi quebrado, entretanto, em dois momentos. No primeiro, em 1910, ao comentar a sentença dada pelo júri da Primavera de sangue ao Tenente Wanderley, responsabilizado pelo massacre dos estudantes por ocasião do trágico acontecimento, o jornal mencionou o nome do romancista entre os homens honrados do Júri; no segundo, noticiando seu falecimento, em 1922. No primeiro episódio, a revista Careta, em nota da redação, questionou a postura contraditória do periódico: 
   Em setembro, relatando os trabalhos do Tribunal do Júri, o Correio da Manhã honrados. Um desses doze homens que o Correio da Manhã considerou honrados é o autor do Recordações do escrivão Isaías Caminha. O Sr. Leão Veloso, o Aires da Silva das Recordações, é o atual diretor do Correio, Heitor Melo, parente protegido do Sr. Edmundo, é o secretário da folha e nessa qualidade devia ter visado o artigo a que aludimos. Responda-nos, pois, Heitor Melo: Se as Recordações do escrivão Isaías Caminha são obra de um homem honrado, e por conseqüência obra honesta, que juízo devemos fazer das personagens que figuram nelas? (CARETA, 08/10/1910) 
   Em 1973, em entrevista ao Pasquim, Sérgio Augusto confirma a existência dessa conspiração de silêncio, pois a encontrara ainda em vigência entre 1961 e 1965, época em que trabalhou no jornal satirizado pelo escritor: 
   Nos meus tempos de Correio da Manhã, havia uma lista [negra] que incluía, entre outros, Hélio Fernandes e – pasmem – Lima Barreto, o romancista falecido em 1922. (O PASQUIM, nº 207, 1973) 
   Lima Barreto compreendeu claramente o recado silencioso da imprensa e, em 1911, no artigo Esta minha letra, publicado pela Gazeta da Tarde, ironiza sua condição de escritor incompreendido pela crítica, atribuindo tal incompreensão às incorreções e imperfeições de sua letra quase ilegível. Confessando amor e dedicação à literatura, exterioriza a mágoa contra os problemas enfrentados por seus artigos publicados em jornais, em nome da ilegibilidade de sua letra. Transparente, a ironia evidencia a má vontade da imprensa em relação a ele, escritor pobre e humilde, em comparação a Alcindo Guanabara e a Machado de Assis, amados e respeitados pelos intelectuais: 
   Estou nessa posição absolutamente inqualificável, original e pouco classificável: um homem que pensa uma coisa, quer ser escritor, mas a letra escreve outra coisa e asnática. Que hei de fazer? 
[...] 
   Ora, esse meu companheiro [alguém que lhe dissera que mudasse de letra] é um dos homens mais simples que conheço. Mudar de letra! Onde é que ele viu isso? Com certeza ele não disse isso ao Senhor Alcindo Guanabara, cuja letra é famosa nos jornais, que o fizesse; com certeza, ele não diria ao Senhor Machado de Assis também. O motivo é simples: o Senhor Alcindo é o chefe, é príncipe do jornalismo, é deputado; e Machado de Assis era grande chanceler das letras, homem aclamado e considerado; ambos, portanto, não podiam mudar de letra; mas eu, pobre autor de um livreco, eu que não sou nem doutor em qualquer história – eu, decerto, tenho o dever e posso mudar de letra. (FM, p.294, 295) 
   Parece pequena a questão levantada por Lima Barreto: a inegibilidade de sua letra causa-lhe problemas. Porém, a mágoa do escritor comprova a existência de um significado implícito no texto: basta que o leitor substitua a palavra letra por literatura e toda significação maior de marginalidade e esquecimento da obra limana vem à tona. Embora se perceba que o silêncio o incomoda muito, o escritor, naturalmente orgulhoso, poucas vezes se refere a ele ao longo de sua produção. Porém, nas poucas vezes em que registra o silêncio crítico a sua produção, é possível notar a mágoa em seu espírito. Em 1914, por exemplo, é possível perceber o quanto o atinge o deliberado silêncio imposto pela crítica a sua obra. Nas anotações íntimas do dia 20 de abril, escancara toda sua angústia, não só frente à situação de escritor exilado em sua própria terra, mas também em relação à doença do pai, ao seu trabalho na Secretaria da Guerra, à sua vida, enfim, culminando com o internamento no hospício de 18 de agosto a 13 de outubro desse ano: 
   Hoje, pus-me a ler velhos números do Mercure de France. Lembro-me bem que os lia antes de escrever o meu primeiro livro. Publiquei-o em 1909. Até hoje nada adiantei. Não tenho editor, não tenho jornais, não tenho nada. O maior desalento me invade. 
 [...]. 
Para os jornais daqui estou incompatível. Podia tentar a aventura fora, mas não tenho liberdade; era preciso que estivesse só, só. (DI, p.171, 172) 
   É compreensível que a imprensa não se dispusesse a falar sobre um livro que a combatia violentamente, mas como justificar o mesmo silêncio em relação ao Policarpo? O próprio Lima Barreto, em março de 1916, escreve em seu Diário íntimo: 
   Meu livro, o Policarpo, saiu há quase um mês. Só um jornal falou sobre ele três vezes (de sobra). Em uma delas, Fábio Luz assinou um artigo bem agradável. Ele saiu nas vésperas do carnaval. Ninguém pensava em outra coisa. Passou-se o carnaval e Portugal teve a cisma de provocar guerra com a Alemanha. As folhas não se importavam com outra senão com o gesto comicamente davidinesco de Portugal. Enchiam colunas com notícias como esta: "A esquadra portuguesa foi mobilizada. Acham-se em pé de combate o couraçado Vasco da Gama, o cruzador Adamastor, a corveta Dona Maria da Glória, a nau Catarineta, a caravela Nossa Senhora das Dores, o brigue Voador e o bergantim Relâmpago". E não têm tempo de falar no meu livro, os jornais, estes jornais do Rio de Janeiro. (DI, p. 181) 
   Em outra anotação de 1916, o escritor insiste em registrar os jornais que teimavam em ignorá-lo, silenciando a respeito da publicação de seu segundo livro: 
   Os jornais que não noticiaram absolutamente o aparecimento do meu segundo livro foram: O Correio da Manhã e a Tribuna, do Rio de Janeiro. 
   No Correio, sou excomungado; e é justo. Na Tribuna, não sei porque, tanto mais que o mandei ao Lindolfo Cólor. (DI, p.182) 
   Como jornalista, romancista e crítico literário, Lima Barreto compreendia a importância da imprensa na divulgação das obras e ressentia-se naturalmente pelo silêncio que lhe era imposto pela crítica, referindo-se, explicitamente, ao desgosto por mais uma discriminação sofrida, como se pode observar pelo artigo publicado em A época, em setembro de 1916: 
   A única crítica que me aborrece é a do silêncio, mas esta é determinada pelos invejosos impotentes que foram chamados a coisas de letras, para enriquecerem e imperarem. Deus os perdoe, pois afirma Carlyle que "men of letters are perpetual priesthood... (HS, p.29-30) 
   Alguns críticos do momento reconhecem a existência de um escudo de silêncio em torno da obra do escritor carioca. Em 1916, J. Brito, com o pesudônimo de Carlos Eduardo, publica na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, um artigo sobre o Policarpo Quaresma, apontando o desprezo dos burgueses por Lima Barreto, em razão de sua verve e de seu colarinho, que não apresenta a alvura imaculada dos lírios; o silêncio dos jornalistas que se vingam do escritor que, por suas virtudes estéticas, não deve escrever telegramas ou reportagens policiais ao lado deles. Também Jackson de figueiredo, em artigo publicado em A Lusitana, em 1916, diz que Recordações do escrivão Isaías Caminha poderia ter feito época se não fosse um desafio ao jornalismo, revelando, no final do artigo, a conspiração do silêncio que o envolveu: 
   Ele [Lima Barreto] apareceu já definitivo com suas Memórias do escrivão Isaías Caminha (sic), livro que teria feito uma época se acaso não fosse, ele todo, como que um desafio ao nosso jornalismo, e por melhor que fosse a boa vontade de dois ou três desabusados das letras, a conspiração do silêncio fez-se ao redor daquela obra vigorosa e sincera. (FIGUEIREDO, 1916) 
   Pode-se afirmar que o silêncio da crítica jornalística à produção limana configurou uma forma de dominação, através da exclusão. Ao silenciar sobre o escritor, a crítica oficial exerceu, entre 1909 e 1922, seu poder como aparelho ideológico, disseminador das idéias e da cultura dominante. Como a palavra, o silêncio também possui suas condições de produção e, no caso de Lima Barreto, tais condições podem ser facilmente detectadas, em razão de sua marginalidade social e literária. Como se sabe, o escritor não se vinculava à literatura oficial, militando na redação de revistas e jornais modestos, como Careta, ABC, Hoje, Rio-Jornal, entre outros. Sua condição dissidente e combativa, notadamente após a publicação de seu primeiro livro, pode ser responsabilizada por sua exclusão do mundo oficial das letras no Brasil, nos primeiros anos deste século. 
   Mas, como o silêncio não é apenas uma arma do opressor, podendo ser visto também como uma forma de resistência do oprimido, é preciso enfatizar que, raramente, ao longo de sua vasta produção, o escritor refere-se ao silêncio opressor da crítica, responsável por seu ostracismo. Embora mencione algumas vezes, com certa mágoa, a ausência de notícias sobre suas obras na imprensa, como se observou anteriormente, tais menções são poucas e rápidas, em vista da dimensão de sua produção literária, jornalística e crítica. Assim, pode-se dizer que, também silenciosamente, Lima Barreto resiste ao exílio literário que lhe foi imposto pela crítica eminentemente tendenciosa, acadêmica e oficial do período. 
   Outro exemplo significativo do muro que se ergueu entre Lima Barreto e a intelectualidade de seu tempo pode ser observado na leitura das Revistas da Academia Brasileira de Letras. Embora a partir de 1910, elas tragam textos de contemporâneos do escritor, como Afrânio Peixoto, Raul Pompéia, Humberto de Campos, Euclides da Cunha, entre outros, em nenhum momento mencionam sua existência. Além das publicações dos autores citados, também eram veiculadas críticas sobre suas obras, como, por exemplo, o texto de Mário de Alencar que, em Páginas de crítica, em 1926, comenta os livros As razões do coração, de Afrânio Peixoto e Casos do amor e do instinto, de Magalhães de Azeredo, conferindo-lhes estatuto de obras-primas da literatura brasileira. Hoje, no entanto, tais obras permanecem no esquecimento. Sobre a obra de Lima Barreto, ou ainda comentários sobre sua morte, em 1922, a Revista manteve um silêncio quase absoluto. A barreira foi quebrada apenas em 1921, quando traz a relação de obras vencedoras do concurso promovido pela Academia e, entre elas, encontra-se Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, que acaba por receber um comentário marcado por evidente desprezo crítico: 
   Seu [de Lima Barreto] último romance, último tão somente na ordem cronológica, é Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (ele tem o gosto demodé dos títulos extensos, à século XVIII). 
 [...]. 
Pena é que a história do raté de nova espécie, onde há páginas de saudade melancólica e de ironia repulsiva, se alongue demasiado por processos mecânicos, que lhe diminuem ointeresse da leitura. (REVISTA DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 1921). 
    A menção honrosa, entretanto, não basta para o escritor, que apresenta sua candidatura à Academia Brasileira de Letras, em artigo publicado na Careta, em 13/08/1921, no qual defende o lugar que lhe cabe no cenário das letras nacionais e aponta a discriminação que acreditava sofrer nos meios intelectuais do país: 
   Se não disponho do Correio da Manhã ou do O Jornal, para me estamparem o nome e o retrato, sou alguma coisa nas letras brasileiras e ocultarem meu nome, ou o desmerecerem, é uma injustiça contra a qual eu me levanto com todas as armas ao meu alcance. 
   Eu sou escritor e, seja grande ou pequeno, tenho direito a pleitear as recompensas que o Brasil dá aos que se distinguem na sua literatura. (MA, p. 44) 

Considerações finais 
   Em síntese, o retrospecto do campo intelectual, espaço de atuação do escritor, ao considerar os agentes ou os sistemas de agentes que o compõem, seja a produção literária seja a crítica e seus veículos, leva à constatação do caráter dissidente do homem/autor e da produção, ambos em descompasso com o campo em que atuam. Um dos sinais da dissonância entre Lima Barreto e o campo intelectual em que se move é o escudo de silêncio, formado em torno de sua obra, traduzindo, de forma inegável, a resistência do pensamento crítico dominante em relação aos propósitos do escritor de desmascaramento do mandarinato literário brasileiro do período pauta. 
   O silêncio em torno da obra e da pessoa do escritor, nos primeiros anos de produção, pode ser considerado fundador, nas acepção que lhe concede Orlandi, ou seja, como ele significa em si mesmo, faz sentido e um sentido determinado. E qual é esse sentido? Parece claro que não-dizendo sobre a obra de Lima Barreto, a crítica disse que não o considerava escritor bastante para merecer colunas literárias nos jornais cariocas, principalmente, e tampouco menções honrosas por parte da Revista da Academia Brasileira de Letras, veículo oficial da intelectualidade. Mas disse mais claramente o quanto a artilharia limana atingira o alvo pretendido, o mandarinato das letras, desmascarando a literatura e o jornalismo de favores e apadrinhamentos. O silêncio ratificou a força e a vigência da discriminação racial na cultura brasileira, onde predominavam ainda, segundo Cruz Costa, o positivismo; o evolucionismo, nas suas formas darwinista e evolucionista; o ecletismo e ainda a corrente das idéias católicas. (Costa, 1956, p.364) Assim, se o escritor denunciava o predomínio de semelhantes idéias, condenando-as, não poderia receber as benesses do poder literário, seja no campo jornalístico, seja na Academia Brasileira de Letras. 


Alice Áurea Penteado: Lima Barreto e a crítica: um escritor ... 


A CONTRIBUIÇÃO DE LIMA BARRETO PARA O ENTENDIMENTO DA CRÍTICA EDUCACIONAL BRASILEIRA DO INÍCIO DO SÉCULO XX 
Silvana Fernandes Lopes 

RESUMO 
Este artigo procura ampliar a compreensão da crítica educacional do início do século XX, tomando como objeto de exame o pensamento social de Lima Barreto. Até a emergência dos “profissionais da educação”, o pensamento educacional era elaborado por publicistas e literatos, num fértil debate, cujos resultados apareciam na produção jornalística e literária. Por meio do exame de artigos, crônicas, romances e contos de Lima Barreto, é possível apreender uma determinada concepção educacional, subjacente às críticas e à caracterização ficcional da educação escolar, assim como um interessante esboço do perfil cultural da sociedade brasileira do período. Os limites nos quais esbarra a leitura crítica do autor, expressos na contradição entre a negação das condições dadas e a sua afirmação, explícita ou implícita, nos seus referenciais teóricos e valorativos, revelam o caráter histórico do pensamento e da crítica social e educacional. 
Palavras Chave: Brasil; Educação; Ensino Superior; Educação na Literatura 

Introdução 
   Lima Barreto apresenta, ao longo de toda a sua produção jornalística e literária, uma visão bastante atenta da organização escolar brasileira do início do século XX, especialmente do Rio de Janeiro, e formula críticas à falta de especialização do ensino brasileiro, à desarticulação entre os conteúdos escolares e a realidade, à superficialidade teórica e prática desses conteúdos, às deficiências do currículo e à má qualidade de formação de professores e alunos 
   O objetivo último deste artigo é mostrar a fertilidade da utilização do texto literário como fonte para a história e especificamente para a história da educação. Para isso, tomarei como exemplo a obra de Lima Barreto, focalizando nela um dos temas mais recorrentes: o ensino superior. Buscarei demonstrar, então, que a visão crítica desse autor nos auxilia a identificar limites e contradições que marcaram todo o pensamento educacional do início do século XX. 
   Em um período em que as relações capitalistas se consolidavam no país, as preocupações educacionais se intensificavam significativamente. Numa fase de efervescência política e cultural, diferentes movimentos político-sociais convergiram para a defesa da universalização da educação escolar. Os primeiros especialistas em educação, ou seja, os teóricos e educadores profissionais, canalizando os anseios em torno da educação escolar, acabaram por reduzir o debate a uma discussão meramente pedagógica. E mais do que isso, inspirados no pensamento escolanovista americano e europeu, contribuíram decisivamente para a constituição do liberalismo em ideologia educacional 
   A intensa penetração do ideário liberal na fase de implantação do regime republicano reforçava sobremaneira o “mito da escolaridade” e, à medida que a transição econômico-social avançava, a crença na instituição escolar como a responsável pela posição social dos indivíduos e pelo progresso vai deitando raízes no pensamento educacional brasileiro. 
   Apesar de as ideias educacionais defendidas pelos renovadores circularem nos meios intelectuais desde o período imperial, os primeiros profissionais da educação emergiram nas décadas de 20 e 30. Antes disso, o pensamento educacional era elaborado e divulgado basicamente por publicistas, políticos e literatos. Na insuficiência de literatura educacional específica no período, por meio de sua obra, Lima Barreto oferece uma reflexão interessante sobre a educação escolar do período. 
   Esse autor justifica explicitamente a sua “intromissão” em assuntos da educação, criticando a produção dos teóricos dessa área, muito influenciados pela psicologia americana. 
   Sempre foi uma das minhas preocupações a instrução pública. Não quero dizer com isto que vá fazer concorrência ao Senhor Carneiro Leão, ao Senhor Leitão da Cunha ou meu amigo Denis Júnior. 
   Entretanto, sem ter a autoridade especial desses senhores que fizeram estudos profundos e transcendentes a respeito, tenho procurado na medida das minhas forças concorrer para o progresso do ensino público e disseminar as ideias úteis que encontro aqui e ali, em livros modestos, que os pedagogos de verdade não têm, tão absorvidos andam êles com as cousas dificílimas de psicologia infantil e cousas correlatas. 
   E vai além, afirmando que os romancistas teriam melhores condições de avaliar o ensino, porque em geral se atem “à observação direta da realidade”, ao contrário do que fariam os especialistas. 
  Ainda há dias aqui, nestas colunas, tive ocasião de aludir a uma opinião do romancista paulista, Leo Vaz, sobre tal assunto. 
  Essa opinião, como os senhores devem estar lembrados, vem exarada no seu curioso romance – O Professor Jeremias – que devia estar, a estas horas, em todas as mãos. 
Agora, cabe-me a vez de dar a respeito de instrução pública a opinião de outro romancista, também brilhante, que a adquiriu, não lendo compêndios ou tratados ou estudos yankees, alemães, suecos e noruegueses, mas com a observação direta da realidade. (Uma idéia, p. 130-131) CRJ – 29 mai. 1920. 
   Lima Barreto sustenta a sua crítica aos educadores profissionais na constatação de que, baseados em uma produção teórica alheia à nossa realidade, os nossos pedagogos propõem alternativas inadequadas a essa realidade e que, por isso, resultam inócuas na solução dos problemas educacionais brasileiros. Além dessa crítica direta, sua produção jornalística é pródiga em ironia ao caráter ultrapassado de muitas dessas teorias. 
   Ultimamente, arranjaram aqui, com as escolas locais, uma universidade anódina e idiota – o que bem mostra o nosso amor às palavras compassadas e pomposas e à figuração, denunciando também tal criação a mentalidade obsoleta dos nossos pedagogos, que ainda namoram instituições fósseis do ensino medieval e falam em radiografia com a linguagem do defunto Rui de Pina, misturada com a do Padre Antônio Vieira, a quem deus tenha em sua santa guarda. Amém, Jesus. (As reformas e os “doutôres”, p. 238) FM – 16 jan. 1921. 
   Lima Barreto ironiza, portanto, os conhecimentos formulados pelas chamadas “novas correntes” do pensamento pedagógico, ou seja, o escolanovismo.[...] Nunca fui dado a essas sabedorias infusas e confusas entre as quais ocupa lugar saliente a chamada ‘pedagogia’ [...]. (Como resposta, p. 71) MA – 8 abr. 1922. 
   Afonso Henriques de Lima Barreto viveu entre 1881 e 1922, mas só postumamente passou a ser reconhecido tanto pelo público leitor quanto pela crítica literária. Mais precisamente, a partir da publicação, em 1956, das suas obras completas, é que foi possível avaliar a importância de sua produção para a literatura brasileira. 
   A academia veio a se ocupar da análise desse autor e de sua obra somente a partir da década de 70, e essa análise resultou numa fértil produção que revela a importância de Lima Barreto. 
   É importante salientar que as contribuições ao entendimento do seu papel no cenário nacional têm se dado não só na área específica da literatura, como também nas áreas das ciências humanas e sociais. 
  Neste artigo, apresentarei primeiramente a visão de Lima Barreto sobre a educação superior, e também tratarei de questões metodológicas importantes para o uso do texto literário na pesquisa histórica em seguida para, finalmente, procurar verificar até que ponto o pensamento de Lima Barreto expressa os limites históricos da crítica educacional do início do século XX. 
   Como fontes de investigação, utilizo dois tipos de documentos: a produção jornalística e a produção ficcional limiana. Na produção jornalística busco apreender o ponto de vista explícito do autor, e na ficção, os diferentes pontos de vista expressos por meio de suas personagens, procurando identificar os grupos sociais representados por elas. 
   Entendo que o autor não pretende apenas mascarar suas posições por meio das personagens, mas há um esforço de expressar o ponto de vista do outro, segundo a sua percepção. Essa questão será mais bem discutida na terceira parte deste texto. 

Lima Barreto e o ensino superior 
   No conjunto de suas obras, Lima Barreto tratou dos mais variados assuntos, incluindo os principais acontecimentos políticos e costumes do seu tempo. Dentre os temas eleitos pelo autor, o ensino superior aparece como um dos mais recorrentes. 
   O autor apresenta um detalhado diagnóstico da qualidade do ensino superior das primeiras décadas do século XX. 
   A precariedade do conhecimento veiculado pela educação superior é exaustivamente discutida na sua obra. São quase sempre, além de medíocres intelectualmente, ignorantes como um bororó de tudo o que fingiram estudar. Aquilo que os antigos chamavam humanidades, em geral, êles ignoram completamente. Não são falhas, que todos têm na sua instrução; são abismos hiantes que a dêles apresenta. (A superstição do doutor, p. 40) BA – mai. 1918. 
    No conto Como o “homem” chegou, o doutor Barrado é um notório exemplo de ignorância. 
   [...] Procurou quem o guiasse até o Rio, embora lhe parecesse curta e fácil a viagem. Examinou bem o mapa e, vendo que a distância era de palmo e meio, considerou que dentro dela não lhe cabia o carro. Por este e aquele, soube que os fabricantes de mapas não têm critério seguro: era fazer uns muito grandes, ou muito pequenos, conforme são para enfeitar livros ou adornar paredes. Sendo assim, a tal distância de doze polegadas bem podia esconder viagem de um dia e mais. (Como o “homem” chegou, p. 286-287) CA – 18 out. 1914. 
   A má formação dos doutores aparece vinculada a uma série de fatores, tais como a inadequação do ensino à realidade, a superficialidade do conteúdo, os problemas na organização curricular e a má qualidade dos professores. 
   [...] com o nosso ensino superior feito em pontos manuscritos ou impressos, em cadernos e outros bagaços, muito espremidos, das disciplinas do curso, sem professôres atentos ao   progresso do saber professado por êles e, por êles encerrado no dia em que recebem o decreto de nomeação – causa tôda a nossa estagnação intelectual, desalenta os mais animosos, não dá vontade às inteligências livres para o esfôrço mental e vamos assim ficando como os chineses, parados intelectualmente, mas sempre cheios de admiração pelos grotescos exames de Cantão. (A superstição do doutor, p.49) BA – maio/1918 
   Em grego, as obras consultadas foram unicamente duas, tal e qual 
   Outra questão associada à má formação é a crescente facilitação nos exames, tanto nos preparatórios quanto nos do curso superior. 
   A maioria dos candidatos ao “doutorado” é de meninos ricos ou parecidos, sem nenhum amor ao estudo, sem nenhuma vocação nem ambição intelectual. O que eles veem no curso não é o estudo sério das matérias, não sentem a atração misteriosa do saber, não se comprazem com a explicação que a ciência oferece da natureza; o que eles veem é o título que lhes dá namoradas, consideração social, direito a altas posições e os diferencia do filho de “Seu” Costa, contínuo de escritório do poderoso papai. Animados por esse espírito, vão, com excelentes aprovações, às vezes, obtendo os exames preliminares e, afinal, matriculam-se na academia, como dizem eles no seu jargão pretensioso – podendo ela ser civil ou militar. Na escola ou faculdade, as cousas se passam muito mais facilmente. Não há filho de sujeito mais ou menos notável, que não vá adiante no curso, sem a menor dificuldade. É mais fácil que obter os preparatórios. (A superstição do doutor, p. 40-41) BA – mai. 1918. 
   Essa sua visão crítica desemboca numa percepção particularmente acurada e demolidora do valor atribuído pela sociedade brasileira aos portadores de título superior. 
   A rigor, um estudante do curso de Direito, por exemplo, concluído seu curso de quatro ou cinco anos, se tornaria bacharel e, caso defendesse a tese de doutorado seria, então, doutor. No entanto, vamos encontrar certa indiferenciação entre esses dois títulos na sociedade, conforme pode ser depreendido em suas obras. Lima Barreto cunhou o termo “doutomania” para expressar a ideologia de valorização do título, vigente na sociedade de sua época, também conhecida como bacharelismo. Essa “doutomania” estaria difundida por todas as camadas sociais. 
     Para a massa total dos brasileiros, o doutor é mais inteligente do que outro qualquer, e só ele é inteligente; é mais sábio, embora esteja disposto a reconhecer que ele é, às vezes, analfabeto; é mais honesto, apesar de tudo; é mais bonito, conquanto seja um Quasímodo; é branco, sendo mesmo da cor da noite; é muito honesto, mesmo que se conheçam muitas velhacadas dele; é mais digno; é mais leal e está, de algum modo, em comunicação com a divindade. (A superstição do doutor, p. 42-43) BA – mai. 1918. 
   Nem os jornais escapam a essa superstição. Antigamente, os autores eram conhecidos pelos seus simples nomes; agora, eles aparecem sempre citados com o seu título universitário. (A instrução pública, p. 92) VU – 11 mar. 1915. 
    No romance O Triste fim de Policarpo Quaresma podemos verificar o comportamento dos convidados da festa de noivado de Ismênia em relação ao seu noivo, Cavalcanti, um jovem recém formado em Odontologia. 
   Cavalcanti ainda não tinha tido tempo de atender a este e já era obrigado a ouvir a observação de outro. 
– É muito bonito ser formado. Se eu tivesse ouvido meu pai, não estava agora a quebrar a cabeça no “deve” e “haver”. Hoje, torço a orelha e não sai sangue. 
[...] 
   Nos intervalos da conversa, todos eles olhavam o novel dentista como se fosse um ente sobrenatural. Para aquela gente toda, Cavalcanti não era mais um simples homem, era homem e mais alguma cousa sagrada e de essência superior; e não juntavam à imagem que tinham dêle atualmente, as cousas que porventura ele pudesse saber ou tivesse aprendido. Isto não entrava  nela de modo algum; e aquele tipo, para alguns, continuava a ser vulgar, comum, na aparência, mas a sua substância tinha mudado, era outra diferente da deles e fora ungido de não sei que cousa vagamente fora da natureza terrestre, quase divina. (TF, p. 68-69) 
   Também podemos encontrar a admiração inspirada pelo médico Doutor Armando Borges. 
    Quaresma mesmo recebeu-o com as maiores marcas de admiração e o doutor, gozando aquele seu sobre-humano prestígio, ia conversando pausadamente, sentenciosamente, dogmaticamente; e, à proporção que conversava, talvez para que o efeito não lhe dissipasse, virava com a mão direita o grande anelão “simbólico”, o talismã, que cobria a falange do dedo indicador esquerdo, ao jeito de marquise. (TF, p. 158) 
   Denunciando a “doutomania”, Lima Barreto enfatiza o caráter formal do título de ensino superior. A posse do diploma não era garantia de conhecimento, mas seria um “passaporte” para a riqueza, via casamentos de interesse ou via emprego público. 
   Nesse sentido, é com frequência que encontramos, nas obras do autor, o título superior como uma possibilidade de ascensão social, por meio de casamentos “vantajosos”. 
   Crescendo assim pelo Brasil a procura de maridos formados, por parte de herdeiras ricas, o nosso ensino superior vai perdendo o seu caráter próprio e tomando uma feição de aprendizado para noivo, mesclado de baixas preocupações monetárias, nas cogitações dos respectivos alunos. É uma fábrica de caça-dotes. 
   O cidadão ainda não saiu doutor e já sonha casar-se rico; e, durante todo curso, com rápidas olhadelas pelos tratados e apressadas visitas aos laboratórios e gabinetes, só pensa em uma cousa: como é que há de casar-se rico? (A prenda, p. 126) MA – 30 abr. 1921. 
   As moças ricas não podem compreender o casamento senão com o doutor; e as pobres, quando alcançam um matrimônio dessa natureza, enchem de orgulho a família tôda, os colaterais, e os afins. (A nobreza de Bruzundanga, p. 56-57) 
   As famílias, os pais, querem casar as filhas com os doutores; e, se estes não têm emprego, lá correm à Câmara, ao Senado, às secretarias, pedindo, e põem em jogo a influência dos parentes e aderentes. 
   Então, o orçamento aparece com autorizações de reformas e o bacharelete está empregado, repimpado como diretor, cônsul, enviado extraordinário e diz para nós outros: “Eu venci”. (A instrução pública, p. 92) VU – 11 mar. 1915. 
    Da perspectiva do noivo, a posse do título era vista como a grande possibilidade para o arranjo de um casamento lucrativo. Em Numa e Ninfa, o narrador descreve as estratégias de Numa para negociar um bom casamento com seu título de bacharel em direito, casamento esse que se concretiza e Numa consegue, de fato, ascender socialmente. 
   De indústria, o juiz se mantivera até então solteiro. Esperava, com rara segurança de coração, que o casamento lhe desse o definitivo empurrão na vida. Aproveitara sempre o seu estado civil para encarreirar-se. Ora ameaçava casar com a filha de fulano e obtinha isso; ora deixava transparecer que gostava da filha de beltrano, e conseguia aquilo [...]. (NN, p. 34) 
   Do ponto de vista das famílias mais abastadas, vê-se que elas procuravam casar suas filhas com bacharéis e doutores, mesmo quando estes eram pobres. Em Triste fim de Policarpo Quaresma, a personagem Coleoni, pai abastado de Olga, que pretende se casar com o Doutor Armando Borges, assim raciocina: 
   Ela quer um doutor – pensava ele – que arranje! Com certeza, não terá ceitil, mas eu tenho e as cousas se acomodam. Ele se havia habituado a ver no doutor nacional, o marquês ou o barão de sua terra natal. Cada terra tem a sua nobreza; aqui, é doutor, bacharel ou dentista; e julgou muito aceitável comprar a satisfação de enobrecer a filha com umas meias dúzias de contos de réis. (TF, p. 86) 
  O importante era o título, que faria com que os genros pudessem exercer cargos públicos ou eletivos e, assim, gerir e aumentar o patrimônio familiar. 
   A expectativa de ascensão social poderia se concretizar com a ocupação de cargos públicos, mais prestigiados na época do que os da iniciativa privada. Porém, o principal requisito para um candidato a um cargo público, até para se realizar a prática de “favores”, era o de ser portador de um diploma do ensino superior. É a associação entre a má qualidade do ensino superior e o seu caráter de trampolim para o emprego público que sustenta as suas críticas exacerbadas ao oportunismo e à incompetência do funcionalismo público no Brasil. 
    Arranjaste um cursozinho muito vagabundinho de bacharel em direito, procuraste os parentes em Minas, politicões, republicanos históricos e com outras condecorações democráticas, e o Rio Branco nomeou-te amanuense, sem concurso, da Secretaria do Exterior. (Carta aberta, p. 201) MA – 08 set. 1917. 
   Nas primeiras décadas da República houve uma ampliação do ensino superior, em parte pela necessidade concreta de quadros para compor a burocracia e, em parte, pela pressão exercida pelas camadas altas e médias preocupadas com a manutenção ou com a aquisição de prestígio social. Essa situação é identificada por Lima Barreto, que responsabiliza a valorização do título de “doutor” pelo inchaço das nossas escolas superiores. 
  Esses privilégios e a diminuição da livre concorrência que eles originam, fazem que as escolas superiores fiquem cheias de uma porção de rapazes, alguns às vezes mesmo inteligentes, que, não  tendo nenhuma vocação para as profissões em que simulam estar, só têm em vista fazer exame, passar nos anos, obter diplomas, seja como for, a fim de conseguirem boas colocações no mandarinato nacional e ficarem cercados do ingênuo respeito com que o povo tolo cerca o doutor. (A universidade, p. 119) FM – 13 mar. 1920. 
   Sentindo que a crendice geral dava esse prestígio quase divino ao “doutor”, todos os pais, desde que pudessem um bocadinho, começaram a encaminhar os filhos para as escolas ditas superiores. 
   É preciso, no Brasil, ter uma carta nem que seja de embrulhar manteiga; é um aforisma doméstico, conhecido e repetido, nos serões do lar, do norte ao sul do país. (A superstição do doutor, p. 44-45) BA – mai. 1918.) 
   O problema educacional que se colocava desde o Império assim poderia ser resumido: ou se expandia o ensino superior por meio da equivalência e da autonomia dos cursos provinciais e particulares, ou se suprimia a exigência do diploma para o desempenho de cargos públicos. Com base na denúncia da “doutomania”, Lima Barreto reforça a proposta de extinção do ensino superior, ou, pelo menos, dos privilégios que esse diploma garantia. 
   Muitas outras medidas radicais me ocorrem, como sejam: uma revisão draconiana nas pensões graciosas, uma reforma cataclismática no ensino público, suprimindo o “doutor” ou tirando deste a feição de brâmane do código de Manu, cheio de privilégios e isenções; a confiscação de certas fortunas, etc., etc. (No ajuste de contas..., p. 96) BA – 11 mai. 1918. 
   O Estado da Bruzundanga, de acordo com a sua carta constitucional, declararia livre o exercício de qualquer profissão, extinguindo todo e qualquer privilégio de diploma. (O ensino na Bruzundanga, p. 10) 
   Lima Barreto denuncia que o título superior gozava de um prestígio extraordinário na sociedade brasileira, mas só os membros das camadas mais altas é que tinham acesso a ele. Dessa forma, estaria estabelecido um círculo vicioso que mantinha o status quo. E de fato, a principal função do ensino superior no período era a de fornecedor de diplomas que garantiam a ocupação de cargos de maior remuneração, poder e prestígio. A expansão de oferta de ensino superior ao longo das primeiras décadas do século XX levou a medidas que acentuaram seu caráter seletivo, como uma estratégia para conter a desvalorização do título e, assim, manter os privilégios dos seus portadores. 
   Associando as novas exigências de titulação para a ocupação de cargos públicos a um crescimento de “doutores” disponíveis no mercado, o autor critica, de forma sistemática, a não correspondência entre a formação educacional desses “doutores” e as tarefas que teriam que desempenhar na burocracia. 
   Os doutores, então, cresceram em número e o exercício da profissão para que estavam oficialmente habilitados, não dando margem, devido à pletora deles, para o ganho remunerador de cada um, encaminharam-se eles para os empregos públicos que nenhuma capacidade especial exigem. 
     O Tesouro, o Tribunal de Contas, as secretarias ministeriais e outras repartições menos importantes, ficaram cheias de amanuenses, escriturários, oficiais, engenheiros, médicos, advogados, dentistas, farmacêuticos; e, todos estes, no íntimo ou claramente, se julgam com mais direito às recompensas burocráticas e às promoções que os seus colegas, que não têm título algum. (A superstição do doutor, p. 45-46) BA – mai. 1918. 
   O aumento de requisitos educacionais para a ocupação de postos de trabalho teria relação não só com o aumento do número de pessoas “qualificadas”, e que precisavam ser incorporadas, porque politicamente interessante, mas também porque assim era possível justificar a exclusão da maioria. 
   O trecho abaixo, extraído do romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, sintetiza, na voz do seu protagonista-narrador, as questões aqui abordadas. 
   Quantas prerrogativas, quantos direitos especiais, quantos privilégios, êsse título dava! Podia ter dois ou mais empregos apesar da Constituição; teria direito à prisão especial e não precisava saber nada. Bastava o diploma. (RE, p. 55) 

Considerações Metodológicas 
   As análises realizadas da obra de Lima Barreto muitas vezes acentuam o caráter memorialista de sua produção, o que conduz a uma espécie de biografismo do autor. Este trabalho, no entanto, sugere que se siga outro caminho. 
   A literatura é aqui entendida como a expressão de uma visão de mundo e como tal é um fato social, e não individual. Para o materialismo histórico, o pensamento e o modo de sentir dos homens, tomados individualmente, estão sujeitos à múltiplas determinações e, portanto, as suas experiências, as suas vicissitudes, enfim, a sua vida pessoal, colabora para a constituição de uma visão de mundo. Mesmo considerando essa questão, neste trabalho o eixo norteador é a relação que se estabelece entre a obra do autor e a sua inserção social. Se as experiências pessoais são responsáveis pelas diferenças individuais que explicam muitas das contradições vividas pelos homens dentro de uma mesma classe social, é essa classe que determina, em última instância, a sua visão de mundo. 
   No caso de Lima Barreto, o contato com a sua biografia revela que os temas e os interlocutores eleitos na sua obra têm uma relação direta com as suas experiências pessoais, mas é possível perceber que as concepções implícitas ou as formas de abordagem desses temas são determinadas, de alguma maneira, pela classe social. 
   Goldmann, inspirado na categoria lukacsiana de consciência de classe, formula a noção de consciência possível. As diferentes classes sociais elaborariam diferentes visões de mundo, mesmo que de forma parcial. Essas diferentes consciências estariam situadas em níveis qualitativamente diferentes, isto é, umas permitindo uma maior compreensão da realidade do que outras. A consciência possível seria “o máximo de realidade que poderia conhecer uma classe social sem chocar-se contra os interesses econômicos e sociais ligados a sua existência como classe”. 
   Colocando em outros termos, havendo uma identidade parcial entre sujeito e objeto, a consciência possível seria o limite máximo que uma determinada classe social poderia ter de consciência da sua própria realidade. “Ela determina os quadros categoriais que estruturam a visão de mundo da classe e, sobretudo, ela define o campo no interior do qual o grupo pode, sem modificar sua estrutura, variar suas maneiras de pensar e de conhecer”. 
   Ainda de acordo com Goldmann, somente análises concretas poderiam explicar o grau de desenvolvimento da consciência de classe, num dado momento e num dado lugar. Essas análises operariam com duas categorias: a consciência possível e a consciência real, que seria “o que ela [classe social] conhece, de fato, dessa realidade durante certo período num determinado país”. 
   Seria, então, a partir dessa avaliação que se compreenderia o papel das diferentes classes sociais, suas visões de mundo ou suas ideologias. 
   A visão de mundo poderia ser definida como um “ponto de vista coerente e que, em certas condições, se impõe a determinadas classes sociais. Por outro lado, o pensamento e o modo de sentir dos homens, tomados individualmente, estão submetidos a múltiplas influências, não 
permitindo o mesmo grau de unidade e de coerência no seu ponto de vista particular. 
   Essa mediação entre o geral e o particular explicam as contradições vividas pelos homens dentro de uma mesma classe social. 
   A categoria classe social torna-se, assim, fundamental na compreensão da consciência de classe/ consciência possível, daí a sua fertilidade como referência. 
   Como entender o pensamento de um autor como Lima Barreto, os seus limites e/ ou contradições, sem levar em conta a sua inserção nas camadas médias do início do século? 
   A definição ou caracterização da classe média brasileira já é, em si, um problema teórico. Outro problema é encontrar uma unidade ideológica entre os trabalhadores da classe média. 
   Sem dúvida, há uma unidade mínima, que é a aceitação da hierarquização do trabalho, mas ela não garante uma posição política única. Ao contrário, os estudos sobre a classe média brasileira demonstram a diversidade de posições políticas assumidas pelas frações sociais que a compõem a cada momento histórico. Indicam ainda que, num mesmo momento histórico, essas frações assumem posições muito distintas. Essa extrema diversidade e mobilidade justificam a tendência a nomeá-las camadas médias, ainda que admitindo a unidade mínima que as caracteriza enquanto classe. 
   A compreensão da ambiguidade ideológica das camadas médias brasileiras é uma peça chave. Os intelectuais, e entre eles os literatos, são representantes dessas camadas médias e expressam, por isso, essa ambiguidade. Nossos literatos do início do século, período eleito para este estudo, traziam as contradições peculiares à intelectualidade da época. Membros das camadas médias, que cresciam com a industrialização, com a urbanização, com a burocratização e com a imigração, faziam parte de um grupo que não pertencia às classes fundamentais, e, portanto, sem condições econômicas e sociais para uma ação política autônoma. Suas atividades ligadas ao aparelho de Estado e ao setor de serviços, fortemente vinculadas à estrutura social gerada pela oligarquia, favoreciam a dependência do status quo. 
   Além disso, havia o medo da proletarização. 
   Por outro lado, com o avanço da urbanização, o fato de ocuparem postos na burocracia estatal e no comércio imprimia, nessas camadas, a ilusão de uma autonomia em relação aos setores oligárquicos. Mais do que isso, durante esse período se desenvolveram as condições sociais para a profissionalização intelectual e a constituição de um campo intelectual relativamente autônomo. Essa situação peculiar das camadas médias carregava de ambiguidade as suas posições ideológicas,fazendo com que oscilassem entre aliar-se às camadas populares e aderir à elite. 
   Assim, se nas obras dos intelectuais desse período encontramos um ensaio crítico da sociedade brasileira, expressão da autonomia relativa que sua visada gozava, em relação às suas condições de existência, eles eram levados à cumplicidade com os padrões vigentes, que garantiam o seu status privilegiado. E Lima Barreto se insere nesse quadro social. 
   Resta, então, reforçar que os conceitos aqui sumariados são utilizados como um horizonte para a exploração do pensamento do autor. As categorias consciência de classe ou consciência possível, para além das diferenças teóricas que existem na sua formulação básica, guardam uma ideia, que aqui importa, de que a inserção social sustenta e, portanto, ilumina a nossa compreensão das visões de mundo. Além disso, essas categorias desembocam na noção de consciência limite, que traz em si a ideia de progresso e de conservação. Se por um lado, aponta para o máximo de avanço a que um indivíduo pode chegar na sua visada, por outro, implica um limite, determinado pela sua inserção no mundo, além do qual não se pode ir. Essas noções são fundamentais para a compreensão do pensamento social de Lima Barreto. 

Lima Barreto e os Limites Históricos da Consciência Educacional 
   Concebendo a literatura como uma forma de expressão e de intervenção na realidade, Lima Barreto tinha a pretensão de fazer uma leitura crítico-social e por essa, entre outras razões, é considerado um representante do movimento pré-modernista. 
   Especialmente nos artigos O destino da literatura, Literatura militante e Literatura e política, do livro Impressões de leitura, podemos encontrar muitas referências ao papel que atribuía à literatura. Fazendo críticas à produção de Coelho Neto, o autor assim se posiciona: 
   As cogitações políticas, religiosas, sociais, morais, do seu século, ficaram-lhe inteiramente estranhas. Em tais anos, cujo máximo problema mental, problema que interessava tôdas as inteligências de quaisquer naturezas que fôssem, era uma reforma social e moral, o Senhor Neto não se deteve jamais em examinar esta trágica angústia do seu tempo, não deu para o estudo das soluções apresentadas um pouco do seu talento [...]. 
   Essa posição, afirmada e reiterada por sociólogos e historiadores da literatura, faz dele uma importante fonte de estudos do início do século. 
   Retomando a questão já mencionada na introdução deste artigo, os teóricos e educadores profissionais brasileiros se constituíram como tal a partir das décadas de 20 e de 30. Os escolanovistas, como ficaram conhecidos esses primeiros especialistas, reivindicavam que a educação fosse discutida e planejada exclusivamente por profissionais da área. 
  Num período em que as relações capitalistas no país avançavam, rápida e eficientemente, em direção a uma modernização conservadora, claramente alinhada ao estágio imperialista dos países hegemônicos, a educação tomava uma importância significativa nas preocupações nacionais. A bandeira da universalização da escola foi empunhada por diferentes segmentos da sociedade, desde os mais reconhecidamente conservadores até os mais progressistas que, por motivos diversos, acabaram endossando a ideologia liberal da escola como a instituição responsável pela redenção da sociedade. No âmbito político-institucional, esses intensos debates em torno da escola resultaram, na prática, em um número expressivo de reformas educacionais que visavam, em última instância, à modernização da educação de elite. 
   Era nesse ambiente que Lima Barreto estava inserido. Atento às mudanças que se operavam na sociedade brasileira, principalmente urbana, o autor questionava e censurava veementemente os resultados sociais desse processo de modernização. 
   Através do estudo de suas obras, é possível identificar um libelo contra a dependência ao capital europeu e americano, a brutal concentração de renda das elites brasileiras e o aumento da miséria da população rural e urbana. 
   Por outro lado, as suas críticas ao modelo econômico-social não ultrapassavam o limite da ordem capitalista. Não era o sistema capitalista o alvo de seus ataques e sim a forma que esse sistema assumiu no Brasil. 
   O agravamento das condições de vida e de trabalho dos operários, a influência da Revolução Russa de 1917 e as demais tentativas revolucionárias na Europa marcaram a ascensão da organização do movimento operário no Brasil no período entre 1917 e 1920. Nessa conjuntura, o trabalho de agitação e propaganda desenvolvido pelas lideranças anarquistas e a atividade concreta do anarcossindicalismo na organização de sindicatos e ligas tiveram um peso importante. 
   No entanto, vivendo num período conturbado em que as questões sociais estavam colocadas e em que o operariado tentava se organizar, não há registro de que Lima Barreto tenha tido qualquer militância em movimentos da época, a não ser a sua contribuição com artigos em jornais libertários, dentre os diversos com os quais colaborou. Mesmo quando propõe uma “revolução social”, aos “moldes” da Revolução Russa, as medidas por ele sugeridas têm um caráter reformista e não revolucionário. 
   Essa espécie de consciência o confirma como um representante das camadas médias na sua expressão mais progressista, ou mais precisamente, como um típico representante da intelectualidade do início do século XX. 
   Os literatos, em particular, não se opunham radicalmente à ordem instituída e ao poder constituído, já que dependiam das instituições vigentes que os formavam e os projetavam socialmente como intelectuais, como a escola e a imprensa. 
   Lima Barreto, em suas denúncias contra a imprensa, frequentes em toda a sua obra, parecia visar o caráter empresarial que crescentemente assumia a atividade jornalística, comprometida com o modo como o capitalismo avançava entre nós. 
   No entanto, se criticou de forma ácida a grande imprensa da época, tomando o Correio da Manhã, jornal de muito prestígio, como caso típico da corrupção intelectual e submissão ao poder (no romance Recordações do escrivão Isaías Caminha), por outro lado, exerceu intensamente o jornalismo profissional, inclusive como colaborador do próprio Correio da Manhã. 
   No que se refere especificamente à educação superior, objeto deste trabalho, é possível perceber, pela análise de sua produção, as contradições que marcam as suas críticas e reflexões. O tom da crítica era indiscutivelmente de denúncia; um forte teor de denúncia na avaliação do sistema educacional da época, mas que resulta num esboço de propostas genéricas e superficiais de reformulação desse sistema. 
   Enquanto socialistas e anarquistas procuravam formular e viabilizar um projeto de educação popular, Lima Barreto propunha a extinção do Colégio Pedro II e dos colégios militares como uma solução para a economia de gastos com a educação de elite. 
   Se por um lado, o autor apresenta uma crítica contundente em relação ao ensino superior, denunciando a ideologia de valorização do “doutor” presente na sociedade, a análise de suas obras acaba por revelar a grande importância que o próprio Lima Barreto atribui à educação superior. As suas críticas se concentram na má qualidade e superficialidade da educação escolar. Assim como ocorreria posteriormente com os escolanovistas, mais do que o caráter elitista do sistema escolar brasileiro, incomoda a péssima qualidade dessa educação de elite. 
   Expressão dessas limitações, ou desse ranço conservador do autor, e peça exemplar na caracterização da sua consciência crítica da educação de seu tempo, é o trecho que se segue a propósito das “normalistas”. 
   Há dias fui ao Largo do Estácio que conheci com a velha Igreja do “Espírito Santo”, quando era menino e frequentava o Colégio Paula Freitas. Desde muito que isso não fazia, de modo que o aspecto da praça me surpreendeu. 
   Não esperava vê-lo assim tão florido de damas e moças, a tagarelarem, a consultarem livros e cadernos, numa atitude de sábios em seu gabinete de trabalho. 
   Estranhei e não compreendi aquele aspecto do velho largo transformado em pátio de universidade. Que diabo queria dizer aquilo? fiz de mim para mim. 
   Aproximei-me sorrateiramente de um grupo de encantadoras meninas e pus-me a ouvir-lhes a conversa. Uma dizia: 
– Diva, não foi Pedro Álvares Cabral quem descobriu o Brasil. Você está enganada. 
– Então, quem foi? 
– Foi Vicente Yáñez Pinzon. 
– Quem foi que te disse isto? 
– É o doutor Felisberto quem o afirma. Não é assim Nair? 
– É verdade; mas diz também que foi Diogo de Leppe. 
– Afinal, acode uma quarta moça do grupo, ninguém sabe ao certo quem foi o descobridor do Brasil. 
   Tão proveitosa conversa não me interessava e fui ouvir outra em grupo mais distante. Tratava-se aí da medição do meridiano terrestre. Elas contavam a história dessa medição desde os gregos até Delambre. Causou-me pasmo que aquelas moças soubessem geodésia, quando me parecia ignorarem o teorema de Hiparco. Então, perguntei humildemente a um fiscal de bonde: 
– Quem são essas moças? 
– São alunas da Escola Normal. (O “Estácio” atual, p. 158-159) MA – 22 jul. 1922. 
   Contudo, é impossível não admirar e reverenciar um pensador que pôs a descoberto tantas mazelas de nossa sociedade e da escola por ela produzida.A acuidade e o brilhantismo do seu enfoque do bacharelismo, do funcionalismo público, da incompetência e da corrupção que impregnava as nossas instituições o colocam, indiscutivelmente, na vanguarda da crítica social produzida em sua época. 
   Os seus limites, expressos na contradição entre a negação das condições dadas e a sua afirmação explícita ou implícita nos referenciais teóricos e valorativos que embasem as suas reflexões, desvelam, com particular clareza, o caráter histórico do pensamento e da crítica social e educacional. 
   O diagnóstico que elabora da formação escolar de sua época antecipa as questões básicas que os “teóricos da educação” levantariam, com a autoridade de “especialistas” no célebre “Manifesto dos Pioneiros da educação Nova: ao povo e ao governo”, publicado em 1932. Também nesse documento, assim como na produção teórica dos seus signatários, muitos dos quais exerceram atividades concretas de intervenção na realidade educacional da época, as mesmas limitações se revelam e gradualmente se intensificam com a crise econômica e política dos anos 20 e 30.


A CONTRIBUIÇÃO DE LIMA BARRETO PARA O ENTENDIMENTO ...

www.cchla.ufpb.br/saeculum/saeculum22_dos05_lopes.pdf 

2 comentários