Humanismo é o nome dado a um
movimento cultural iniciado no século 14, na Itália. Ele se caracteriza pelo
estudo de textos gregos e latinos, transformados em modelos e fontes de
inspiração.
O Humanismo português (desenvolvido ao longo do
século 15 e em parte do 16) produziu manifestação literária de vários gêneros:
prosa, poesia e teatro.
As manifestações literárias mais significativas do período
humanista em Portugal foram:
· na
historiografia - as obras de Fernão Lopes, Gomes Eanes de Azurara e Rui de
Pina;
. na poesia - as obras de
João Ruiz de Castelo Branco.
. no teatro - as obras de
Gil Vicente.
Fernão Lopes pode ser considerado o criador da historiografia em
Portugal. Em 1418, foi nomeado arquivista oficial da Torre do Tombo, onde são
guardados os documentos históricos do país. Em 1434, foi promovido a
cronista-mor, passando a escrever a história dos reis de Portugal. Embora
tivesse de centralizar a sua crônica nos reis, teve o mérito de investigar as
relações sociais que movimentam o país, além de captar o sentimento coletivo do
povo português. Devido ao posto que ocupava na Torre do Tombo, pôde fundamentar
suas idéias com documentos escritos, o que constitui uma das bases da
historiografia moderna. Suas principais obras são: Crônica de D. Pedra, Crônica de D. Fernando e Crônica de D. João I.
Crônica
histórica
Fernão Lopes, considerado o introdutor da
historiografia em Portugal, é o principal representante do gênero. Sua obra
contém ironia e crítica à sociedade portuguesa. Mesmo centralizando sua crônica nas ações da
família real, Fernão Lopes também investigou as relações entre outras classes
sociais e captou o sentimento coletivo da nação. Seu maior mérito foi conciliar
pesquisa histórica e qualidade literária.
Poesia
palaciana
Essa poesia trata de assuntos da vida palaciana
e reproduz a visão de mundo dos nobres e fidalgos que a produziam. O amor é tratado de forma
mais sensual e a mulher já não é tão idealizada quanto no trovadorismo.
Leia, a seguir, um poema de João Ruiz de Castelo Branco e observe como está
carregado de lirismo, numa linguagem que mostra uma evolução em relação ao
trovadorismo.
Cantiga partindo-se
Senhora, partem tão tristes meus olhos 'por vós, meu bem, que nunca tão tristes
vistes outros nenhuns por ninguém.
Tão tristes, tão saudosos, tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos, da morte mais desejosos cem mil vezes que da
vida.
Partem tão tristes os tristes, tão fora d' esperar bem,
que nunca tão tristes vistes outros nenhuns por ninguém.
Teatro popular
Pai do teatro português, Gil Vicente também foi
músico, ator e encenador. Sua obra trata de muitos temas, sempre com uma
abordagem caracterizada pela transição entre a Idade Média e o Renascimento. Ou
seja: do pensamento teocêntrico (marcado por elementos de religião, como céu e
inferno) ao humanista (marcado pelo antropocentrismo e racionalismo).
Gil Vicente
Gil Vicente (c. 1465 — c. 1536?) é geralmente
considerado o primeiro grandedramaturgo português, além de poeta de
renome. Enquanto homem de teatro, parece ter também
desempenhado as tarefas de músico, actor e encenador. É frequentemente
considerado, de uma forma geral, o pai do teatro português, ou mesmo do teatro
ibérico já que também escreveu em castelhano - partilhando a paternidade da
dramaturgia espanhola com Juan del Encina.
Há quem o identifique com
o ourives, autor da Custódia de Belém,
mestre da balança, e com o mestre de Retórica do rei Dom Manuel. A obra vicentina é tida como reflexo da mudança dos tempos e da passagem
da Idade Média para
o Renascimento,
fazendo-se o balanço de uma época onde as hierarquias e a ordem social eram
regidas por regras inflexíveis, para uma nova sociedade onde se começa a subverter
a ordem instituída, ao questioná-la. Foi, o principal representante da
literatura renascentista portuguesa, anterior a Camões,
incorporando elementos populares na sua escrita que influenciou, por sua vez, a cultura popular portuguesa.
Local e data de
nascimento
Apesar de se considerar que a data mais provável para o seu nascimento
tenha sido em 1466 — hipótese defendida,
entre outros, por Queirós Veloso —
há ainda quem proponha as datas de1460 (Braamcamp Freire)
ou entre 1470 e 1475 (Brito Rebelo).
Se nos basearmos nas informações veiculadas na própria obra do autor,
encontraremos contradições. O Velho da Horta, a Floresta de
Enganos ou o Auto da Festa, indicam 1452, 1470 e
antes de 1467, respectivamente. Desde 1965,
quando decorreram festividades oficiais comemorativas do casteleiro do
nascimento do dramaturgo, que se aceita 1465 de forma quase unânime.
Frei Pedro de Poiares localizava o seu
nascimento em Barcelos, mas as hipóteses de
assim ter sido são poucas. Pires de Lima propôs Guimarães para
sua terra natal - hipótese essa que estaria de acordo com a identificação do
dramaturgo com o ourives,
já que a cidade de Guimarães foi durante muito tempo berço privilegiado de
joalheiros. O povo de Guimarães orgulha-se desta hipótese, como se pode
verificar, por exemplo, na designação dada a uma das escolas do Concelho (em Urgeses),
que homenageia o autor.
Lisboa é também muitas
vezes defendida como o local certo. Outros, porém, indicam as Beiraspara
local de nascimento - de facto, verificam-se várias referências a esta área
geográfica de Portugal, seja na toponímia como pela forma de falar das personagens.
José Alberto Lopes da Silva[1] assinala
que não há na obra vicentina referências a Barcelos nem a Guimarães, mas sim
dezenas de elementos relacionados com as Beiras. Há obras inteiras,
personagens, caracteres, linguagem. O conhecimento que o autor mostra desta
região do país não era fácil de obter se tivesse nascido no norte e vivido a
maior parte da sua vida em Évora e Lisboa.
Poeta-ourives?
Cada livro publicado sobre Gil Vicente é, quase sempre, defensor de uma
qualquer tese que identifique ou não o autor ao ourives. A favor desta hipótese
existe o facto de o dramaturgo usar com propriedade termos técnicos de ourivesaria na
sua obra.
Alguns intelectuais portugueses polemizaram sobre o assunto. Camilo Castelo Branco escreveu, em 1881, o
documento "Gil Vicente, Embargos à fantasia do Sr. Teófilo Braga"
- este último defendia uma só pessoa para o ourives e para o poeta, enquanto
que Camilo defendia duas pessoas distintas. Teófilo Braga mudaria de opinião
depois de um estudo de Sanches
de Baena que mostrava a genealogia distinta de dois indivíduos de nome Gil
Vicente, apesar de Brito Rebelo ter conseguido comprovar a inconsistência
histórica destas duas genealogias, utilizando documentos da Torre do Tombo.
Lopes da Silva, na obra citada,
avança uma dezena de argumentos para provar que Gil Vicente era ourives quando
escreveu a sua primeira obra, uma imitação do Auto del Repelón, de Juan del Encina a
quem pede emprestada não só a história, mas também as personagens com o seu
respectivo idioma, o saiaguês.
Dados
biográficos
Apesar de se considerar que a data mais provável para o seu nascimento
tenha sido em 1466, Sabe-se que casou com Branca Bezerra, de quem nasceram
Gaspar Vicente(que morreu em 1519) e Belchior Vicente(nascido em 1505). Depois
de enviuvar, casou com Melícia Rodrigues de quem teve Paula Vicente (1519-1576),
Luís Vicente (que organizou a compilação das suas obras) e Valéria Borges.
Presume-se que tenha estudado em Salamanca, Espanha..
O seu primeiro trabalho conhecido, a peça em castelhano Auto da
Visitação, também conhecido como Monólogo do Vaqueiro,
foi representada nos aposentos da rainha D.
Maria, consorte deDom Manuel, para celebrar o nascimento do
príncipe (o futuro D. João III) -
sendo esta representação considerada como o marco de partida da história do
teatro português. Ocorreu isto na noite de 8 de Junho de 1502,
com a presença, além do rei e da rainha, de Dona
Leonor, viúva de D. João II e D.
Beatriz, mãe do rei.
Tornou-se, então, responsável pela organização dos eventos palacianos.
Dona Leonor pediu ao dramaturgo a repetição da peça pelas matinas de
Natal, mas o autor, considerando que a ocasião pedia outro tratamento, escreveu
o Auto Pastoril Castelhano. De facto, o Auto da Visitação tem
elementos claramente inspirados na "adoração dos pastores", de acordo com
os relatos do nascimento de Cristo. A encenação incluía um
ofertório de prendas simples e rústicas, comoqueijos, ao
futuro rei, ao qual se pressagiavam grandes feitos. Gil Vicente que, além de
ter escrito a peça, também a encenou e representou, usou, contudo, o quadro
religioso natalício numa perspectiva profana. Perante o interesse de Dona
Leonor, que se tornou a sua grande protectora nos anos seguintes, Gil Vicente
teve a noção de que o seu talento lhe permitiria mais do que adaptar
simplesmente a peça para ocasiões diversas, ainda que semelhantes.
Se foi realmente ourives, terminou a sua obra-prima nesta arte - a
Custódia de Belém - feita para oMosteiro dos Jerónimos, em 1506, produzida
com o primeiro ouro vindo de Moçambique.
Três anos depois, este mesmo ourives tornou-se vedor do património de
ourivesaria no Convento de Cristo,
em Tomar, Nossa Senhora de Belém
e no Hospital de Todos-os-Santos, em Lisboa.
Consegue-se ainda apurar algumas datas em relação a esta personagem que
tanto pode ser una como múltipla: em 1511 é nomeado vassalo de el-Rei e, um ano
depois, sabe-se que era representante da bandeira dos ourives na "Casa dos Vinte e Quatro". Em 1513, o
mestre da balança da Casa da Moeda, também de nome de Gil Vicente (se é o mesmo
ou não, como já se disse, não se sabe), foi eleito pelos outros mestres para os
representar junto à vereação de Lisboa.
Será ele que dirigirá os festejos em honra de Dona Leonor, a terceira
mulher de Dom Manuel, no ano de 1520, um ano antes de passar a servir Dom João III,
conseguindo o prestígio do qual se valeria para se permitir a satirizar o clero e
a nobreza nas suas obras ou
mesmo para se dirigir ao monarca criticando as suas opções. Foi o que fez em
1531, através de uma carta ao rei onde defende os cristãos-novos.
Morreu em lugar desconhecido, talvez em 1536 porque é a partir desta
data que se deixa de encontrar qualquer referência ao seu nome nos documentos
da época, além de ter deixado de escrever a partir desta data.
O Teatro português
antes de Gil Vicente
O teatro português não nasceu com Gil Vicente. Esse mito, criado por
vários autores de renome, como Garcia de Resende,
na sua Miscelânia,
ou o seu próprio filho, Luís Vicente, por ocasião da primeira edição da
"Compilação" da obra completa do pai, poderá justificar-se pela
importância inegável do autor no contexto literário peninsular, mas não é de
todo verdadeiro já que existiam manifestações teatrais antes da noite de 7 para 8 de Junho de
1502, data da primeira representação do "Auto do vaqueiro" ou
"Auto da visitação", nos aposentos da rainha.
Já no reinado de Sancho I,
os dois actores mais antigos portugueses, Bonamis e Acompaniado, realizaram um
espectáculo de "arremedilho", tendo sido pagos pelo
rei com uma doação de terras. O arcebispo de Braga, Dom
Frei Telo, refere-se, num documento de 1281, a representações litúrgicas por
ocasião das principais festividades católicas. Em 1451, o casamento da infanta
Dona Leonor com o imperador Frederico
III da Alemanha foi acompanhado também
de representações teatrais.
Segundo as crónicas portuguesas de Fernão Lopes, Zurara, Rui de Pina ou
Garcia de Resende, também nas cortes de D. João I, D. Afonso V e D.João II,
se faziam encenações espectaculares.Rui de Pina refere-se,
por exemplo, a um "momo", em que Dom João II participou pessoalmente,
fazendo o papel de "Cavaleiro do Cisne", num cenário de ondas agitadas
(formadas com panos), numa frota de naus que causou espanto entrando sala
adentro acompanhado do som de trombetas, atabales, artilharia e música
executada por menestréis, além de uma tripulação atarefada de actores vestidos
de forma espectacular.
Contudo, pouco resta dos textos dramáticos pré-vicentinos. Além das éclogas dialogadas
de Bernardim Ribeiro, Cristóvão Falcão e Sá de Miranda, André Dias publicou
em 1435 um "Pranto de Santa
Maria" considerado um esboço razoável de um drama litúrgico.
No Cancioneiro Geral de
Garcia de Resende existem alguns textos também significativos, como o Entremez
do Anjo (assim designado porTeófilo Braga),
de D. Francisco de Portugal, Conde de Vimioso,
ou as trovas de Anrique
da Mota (ou Farsa do alfaiate, segundo Leite de Vasconcelos)
dedicados a temas e personagens chocarreiros como "um clérigo sobre uma
pipa de vinho que se lhe foi pelo chão", entre outros episódios
divertidos.
É provável que Gil Vicente tenha assistido algumas destas
representações. Viria, contudo, sem qualquer dúvida, a superá-las em mestria e
em profundidade, tal como diria Marcelino
Menéndez Pelayo ao considerá-lo a
"figura mais importante dos primitivos dramaturgos peninsulares",
chegando mesmo a dizer que não havia "quem o excedesse na Europa do seu
tempo".
Características
principais
A sua obra vem no seguimento do teatro ibérico popular e religioso que
já se fazia, ainda que de forma menos profunda. Os temas pastoris, presentes na
escrita de Juan del Encina vão influenciar fortemente a sua primeira fase de
produção teatral e permanecerão esporadicamente na sua obra posterior, de maior
diversidade temática e sofisticação de meios. De facto, a sua obra tem uma
vasta diversidade de formas: oauto pastoril, a alegoria religiosa, narrativas bíblicas,
farsas episódicas e autos narrativos.
O seu filho, Luís Vicente, na primeira compilação de todas as suas
obras, classificou-as em autos e mistérios (de carácter sagrado e devocional) e
em farsas, comédias e tragicomédias (de
carácter profano). Contudo, qualquer classificação é redutora - de facto, basta
pensar na Trilogia das Barcas para se verificar como elementos da farsa (as
personagens que vão aparecendo, há pouco saídas deste mundo) se misturam com
elementos alegóricos religiosos e
místicos (o Bem e o Mal).
Gil Vicente retratou, com refinada comicidade, a sociedade portuguesa do século XVI,
demonstrando uma capacidade acutilante de observação ao traçar o perfil
psicológico das personagens. Crítico severo dos costumes, de acordo com a
máxima que seria ditada por Molière("Ridendo castigat
mores" - rindo se castigam os costumes), Gil Vicente é também um dos mais
importantes autores satíricos da língua
portuguesa. Em 44 peças, usa grande quantidade de personagens extraídos do
espectro social português da altura. É comum a presença de marinheiros, ciganos,
camponeses, fadas e demônios e
de referências – sempre com um lirismo nato – a dialetos e linguagens
populares.
Entre suas obras estão Auto Pastoril Castelhano" (1502) e Auto
dos Reis Magos (1503), escritas para
celebração natalina. Dentro deste contexto
insere-se ainda o Auto da Sibila Cassandra(1513), que, embora até muito
recentemente tenha sido visto como um prenúncio dos os ideais renascentistas em
Portugal, retoma uma narrativa já presente na General
Estória de Afonso X.
Sua obra-prima é a trilogia de sátiras Auto da
Barca do Inferno (1516), Auto da
Barca do Purgatório (1518) e Auto da
Barca da Glória (1519). Em 1523
escreve a Farsa
de Inês Pereira.
São geralmente apontados, como aspectos positivos das suas peças, a
imaginação e originalidade evidenciadas; o sentido dramático e o conhecimento
dos aspectos relacionados com a problemática do teatro.
Alguns autores consideram que a sua espontaneidade, ainda que
reflectindo de forma eficaz os sentimentos colectivos e exprimindo a realidade
criticável da sociedade a que pertencia, perde em reflexão e em requinte. De
facto, a sua forma de exprimir é simples, chã e directa, sem grandes floreados
poéticos.
Acima de tudo, o autor exprime-se de forma inspirada, dionisíaca,
nem sempre obedecendo a princípios estéticos e artísticos de equilíbrio. É
também versátil nas suas manifestações: se, por um lado, parece ser uma alma
rebelde, temerária, impiedosa no que toca em demonstrar os vícios dos outros,
quase da mesma forma que se esperaria de um inconsciente e tolo bobo da
corte, por outro lado, mostra-se dócil, humano e ternurento na sua poesia de
cariz religioso e quando se trata de defender aqueles a quem a sociedade
maltrata.
O seu lirismo religioso, de raiz medieval e que demonstra influências
das Cantigas
de Santa Mariaestá bem presente, por
exemplo, no Auto de Mofina Mendes, na cena da Anunciação,
ou numa oração dita por Santo Agostinho no Auto
da Alma. Por essa razão é, por vezes, designado por "poeta da
Virgem".
O seu lirismo patriótico presente em "Exortação da Guerra", Auto
da fama ou Cortes de Júpiter, não se limita a glorificar,
em estilo épico e orgulhoso, a nacionalidade: de facto, é crítico e eticamente
preocupado, principalmente no que diz respeito aos vícios nascidos da nova
realidade económica, decorrente do comércio com o Oriente (Auto da Índia).
O lirismo amoroso, por outro lado, consegue aliar algumerotismo e
alguma brejeirice com influências mais eruditas (Petrarca,
por exemplo).
Elementos filosóficos
na obra vicentina
A obra de Gil Vicente transmite uma visão do mundo que se assemelha e se
posiciona como uma perspectiva pessoal do Platonismo:
existem dois mundos - o Mundo Primeiro, da serenidade e do amor divino, que
leva à paz interior, ao sossego e a uma "resplandecente glória", como
dá conta sua carta a D. João III; e o Mundo Segundo, aquele que retrata nas
suas farsas: um mundo "todo ele falso", cheio de
"canseiras", de desordem sem remédio, "sem firmeza certa".
Estes dois mundos reflectem-se em temas diversos da sua obra: por um lado, o
mundo dos defeitos humanos e das caricaturas, servidos sem grande preocupação
de verosimilhança ou
de rigor histórico.
Muitos autores criticam em Gil Vicente os anacronismos e
as falhas na narrativa (aquilo a que chamaríamos hoje de "gaffes"), mas, para alguém que
considerava o mundo retratado como pleno de falsidades, essas seriam apenas
mais algumas, sem importância e sem dano para a mensagem que se pretendia
transmitir. Por outro lado, o autor valoriza os elementos míticos e simbólicos religiosos
do Natal: a figura da Virgem
Mãe, do Deus Menino, da noite natalícia, demonstrando aí um zelo lírico e uma
vontade de harmonia e de pureza artística que não existe nas suas mais
conhecidas obras de crítica social.
Sem as características do maniqueísmo que
tantas vezes se constatam nas peças teatrais de quem defende uma tal visão do
Mundo, há, realmente, a presença de um forte contraste nos elementos cénicos
usados por Gil Vicente: a luz contra a sombra, não numa luta feroz, mas em
convivência quase amigável. A noite de natal torna-se também aqui a imagem
perfeita que resume a concepção cósmica de Gil Vicente: as grandes trevas
emolduram a glória divina da maternidade, do nascimento, do perdão, da
serenidade e da boa vontade - mas sem a escuridão, que seria da claridade?
Legado
Tão importante foi o trabalho de Gil Vicente que Erasmo de Roterdão,
filósofo holandês, estudara o idioma português para assim poder apreciar sua
obra no original. Seu estilo deu origem à escola de Gil Vicente, ou escola
popular, tendo por modelo as coisas simples do povo.
Note-se que a obra de Gil Vicente não se resume ao teatro, estendendo-se
também à poesia. Podemos citar vários vilancetes e cantigas,
ainda influenciadas pelo estilo palaciano e temas dos trovadores.
Vários compositores trabalharam poemas de Gil Vicente na forma de lied (principalmente
algumas traduções para o alemão, feitas por Emanuel von Geibel), como Max Bruch ou Robert Schumann, o
que demonstra o carácter universal da sua obra. Os seus filhos, Paula e Luís
Vicente, foram os responsáveis pela primeira edição das suas obras completas.
Em 1586, sai à estampa uma segunda edição, com muitas passagens censuradas pela Inquisição.
Só no século XIX se
faria a redescoberta do autor, com a terceira edição de 1834,
emHamburgo,
levada a cabo por Barreto Feio.
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