Mário
Raul de Morais Andrade (São Paulo, 9 de outubro de 1893 — São Paulo, 25 de
fevereiro de 1945) foi um poeta, romancista, musicólogo, historiador, crítico
de arte e fotógrafo brasileiro. Um dos fundadores do modernismo brasileiro, ele
praticamente criou a poesia moderna brasileira com a publicação de seu livro
Pauliceia Desvairada em 1922. Andrade exerceu uma influência enorme na
literatura moderna brasileira e, como ensaísta e estudioso—foi um pioneiro do
campo da etnomusicologia—sua influência transcendeu as fronteiras do Brasil.
Andrade foi a figura central do movimento
de vanguarda de São Paulo por vinte anos. Músico treinado e mais conhecido como
poeta e romancista, Andrade esteve pessoalmente envolvido em praticamente todas
as disciplinas que estiveram relacionadas com o modernismo em São Paulo,
tornando-se o polímata nacional do Brasil. Suas fotografias e seus ensaios, que
cobriam uma ampla variedade de assuntos, da história à literatura e à música,
foram amplamente divulgados na imprensa da época. Andrade foi a força motriz
por trás da Semana de Arte Moderna, evento ocorrido em 1922 que reformulou a
literatura e as artes visuais no Brasil, tendo sido um dos integrantes do "Grupo
dos Cinco". As idéias por trás da Semana seriam melhor delineadas no
prefácio de seu livro de poesia Paulicéia Desvairada e nos próprios poemas.
Depois
de trabalhar como professor de música e colunista de jornal ele publicou seu
maior romance, Macunaíma, em 1928. Andrade continuou a publicar obras sobre
música popular brasileira, poesia e outros temas de forma desigual, sendo
interrompido várias vezes devido a seu relacionamento instável com o governo
brasileiro. No fim de sua vida, se tornou o diretor-fundador do Departamento
Municipal de Cultura de São Paulo formalizando o papel que ele havia
desempenhado durante muito tempo como catalisador da modernidade artística na
cidade—e no país.
Andrade nasceu em São Paulo, cidade onde
morou durante quase toda a vida no número 320 da Rua Aurora profª Elaine, onde
seus pais, Carlos Augusto de Andrade e Maria Luísa de Almeida Leite Moraes de Andrade
também haviam morado. Durante sua infância foi considerado um pianista
prodígio, tendo sido matriculado no Conservatório Dramático e Musical de São
Paulo em 1911. Recebeu educação formal apenas em música, mas foi autodidata em
história, arte, e especialmente poesia. Dominava a língua francesa, tendo lido
Rimbaud e os principais poetas simbolistas franceses durante a infância. Embora
escrevesse poesia durante todo o período em que esteve no Conservatório,
Andrade não pensava em fazê-lo profissionalmente até que a carreira de pianista
profissional deixou de ser uma opção viável.
Em 1913, seu irmão Renato, então com
quatorze anos de idade, morreu de um golpe recebido enquanto jogava futebol, o
que causou um profundo choque em Andrade. Ele abandonou o conservatório e se
retirou com a família para uma fazenda que possuíam em Araraquara. Ao retornar,
sua habilidade de tocar piano havia sido afetada por um tremor nas mãos. Embora
ele houvesse se formado no Conservatório, ele não se apresentou mais e começou
a estudar canto e teoria musical com a intenção de se tornar um professor de
música. Ao mesmo tempo, começou a ter um interesse mais sério pela literatura.
Em 1917, ano de sua formatura, publicou seu primeiro livro de poemas, Há uma
Gota de Sangue em Cada Poema, sob o pseudônimo de Mário Sobral.O livro contém
indícios de uma crescente percepção do autor em relação a uma identidade
particularmente brasileira, mas, assim como a maior parte da poesia brasileira
produzida na época, o faz num contexto fortemente ligado à literatura européia—especialmente
francesa.
Seu
primeiro livro parece não ter tido um impacto significativo, e Andrade decidiu
ampliar o âmbito de sua escrita. Deixou São Paulo e viajou para o campo.
Iniciou uma atividade que continuaria pelo resto da vida: o meticuloso trabalho
de documentação sobre a história, o povo, a cultura e especialmente a música do
interior do Brasil, tanto em São Paulo quanto no Nordeste[8] Andrade também
publicou ensaios em jornais de São Paulo, algumas vezes ilustrados por suas
próprias fotografias, e foi, acima de tudo, acumulando informações sobre a vida
e o folclore brasileiro. Entre as viagens, Andrade lecionava piano no
Conservatório, havendo sido também, conforme relato de Oneyda Alvarenga, aluno
de estética do poeta Venceslau de Queirós, sucedendo-o como professor no
Conservatório após sua morte em 1921.
Mário de Andrade compôs uma única canção,
intitulada "Viola Quebrada". A composição é uma parceria de Mário com
Ary Kerner.
Semana de Arte Moderna
Ao mesmo tempo que Andrade efetuava seu
trabalho como pesquisador do folclore brasileiro, fez amizade com um grupo de
jovens artistas e escritores de São Paulo que, como ele, estavam interessados
no modernismo europeu. Alguns deles mais tarde integrariam o chamado
"Grupo dos Cinco", composto por ele próprio, os poetas Oswald de
Andrade (sem relação de parentesco com Mário de Andrade, apesar da coincidência
de nomes) e Menotti del Picchia, além das pintoras Tarsila do Amaral e Anita
Malfatti. Malfatti havia visitado a Europa nos anos anteriores à Primeira
Guerra Mundial, e introduziu o expressionismo em São Paulo.
Em 1922, ao mesmo tempo que preparava a
publicação de Pauliceia desvairada, Andrade trabalhou com Malfatti e Oswald de
Andrade na organização de um evento que se destinava a divulgar as obras deles
a uma público mais vasta: a Semana de Arte Moderna, que ocorreu no Teatro
Municipal de São Paulo entre os dias 11 e 18 de fevereiro. Além de uma
exposição de pinturas de Malfatti e de outros artistas associados ao
modernismo, durante esses dias foram realizadas leituras literárias e palestras
sobre arte, música e literatura. Andrade foi o principal organizador e um dos
mais ativos participantes do evento, que, apesar de ser recebido com ceticismo,
atraiu uma grande audiência. Andrade, na ocasião, apresentou o esboço do ensaio
que viria a publicar em 1925, a A Escrava que não é Isaura.
Os membros do Grupo dos Cinco continuaram
trabalhando juntos durante a década de 1920, período durante o qual a reputação
deles cresceram e as hostilidade às suas inovações estéticas foram gradualmente
diminuindo. Mário de Andrade trabalhou, por exemplo, na "Revista de
Antropofagia", fundada por Oswald de Andrade, em 1928. Mario e Oswald de
Andrade foram os principais impulsionadores do movimento modernista brasileiro.
De acordo com Paulo Mendes de Almeida, que era um amigo de ambos.
Missão de pesquisas folclóricas
Em 1935, durante uma era de instabilidade
do governo Vargas, organizou, juntamente com o escritor e arqueólogo Paulo
Duarte, um Departamento de Cultura para a unificação da cidade de São Paulo
(Departamento de Cultura e Recreação da Prefeitura Municipal de São Paulo),
onde Andrade se tornou diretor.[carece de fontes] Em 1938 Mário de Andrade
reuniu uma equipe com o objetivo de catalogar músicas do Norte e Nordeste
brasileiros.
Tinha como objetivo declarado, de acordo
com a ata da sua fundação, "conquistar e divulgar a todo país, a cultura
brasileira".O âmbito de aplicação do recém-criado Departamento de Cultura
foi bastante amplo: a investigação cultural e demográfica, como construção de
parques e recriações, além de importantes publicações culturais.
Exerceu seu cargo com a ambição que o
caracterizava: ampliar seu trabalho sobre música e folclore popular, ao mesmo
tempo organizar exposições e conferências. As missões resultaram um vasto
acervo registrados em vídeo, áudio, imagens, anotações musicais, dos lugares
percorridos pela Missão de Pesquisas Folclóricas, o que pode ser considerado
como um dos primeiros projetos multimédia da cultura brasileira. O material foi
dividido de acordo com o caráter funcional das manifestações: músicas de
dançar, cantar, trabalhar e rezar. Trouxe sua coleção fonográfica-cultural para
o Departamento, formando uma Discoteca Municipal, que era possivelmente as
melhores e maiores reunidas no hemisfério.
Num marco do Departamento de Cultura,
Claude Lévi-Strauss, então professor visitante da Universidade de São Paulo,
realizou pesquisas. Outro grande evento foi a Missão de Pesquisas Folclóricas,
que 1938, visitou mais de trinta localidades em seis estados brasileiros à
procura de material etnográfico, especialmente na música. A missão foi
interrompida, no entanto, quando, em 1938, pouco depois de instaurado o Estado
Novo (do qual era contrário),por Getúlio Vargas, Mário demitiu-se do
departamento.
Mário de Andrade também foi um dos mentores
e fundadores do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, junto com
o advogado Rodrigo Melo Franco . Limitações de ordem política e financeira
impediram a realização desse projeto (que seria caracterizado por uma radical
investida no inventário artístico e cultural de todo o país), restringindo as
atribuições do instituto, fundado em 1937, à preservação de sítios e objetos
históricos relacionados a fatos políticos históricos e ao legado religioso no
país.
Mudou-se para o Rio de Janeiro para tomar
posse de um novo posto na UFRJ, onde dirigiu o Congresso da Língua Nacional
Cantada, um importante evento folclórico e musical. Em 1941 voltou para São
Paulo e ao antigo posto do Departamento de Cultura, apesar de não trabalhar com
a mesma intensidade que antes.
Andrade morreu em sua residência em São
Paulo devido a um enfarte, em 25 de fevereiro de 1945, quando tinha 52 anos.
Dadas as suas divergências com o regime, não houve qualquer reação oficial
significativa antes de sua morte. Dez anos mais tarde, porém, quando foram
publicadas em 1955, Poesias completas, quando já havia falecido o ditador
Vargas, começou a consagração de Andrade como um dos principais valores
culturais no Brasil. Em 1960 foi dado o seu nome à Biblioteca Municipal de São
Paulo.
Obra
Sua segunda obra, Pauliceia desvairada, o colocou entre os pioneiros do movimento
modernista no Brasil, culminando, em 1922, como uma das figuras mais proeminentes
da histórica Semana de Arte Moderna. Alguns dos seus livros de poesia mais
conhecidos são: Losango cáqui, Clã do jabuti, Remate de males, Poesias e Lira
paulistana.
Pauliceia desvairada
O "prefácio interessantíssimo" é
o prefácio de Mário de Andrade ao seu próprio livro Pauliceia Desvairada,
considerado a base do modernismo brasileiro.[15] Abre com uma citação do
escritor belga Émile Verhaeren, que é o autor de Villes Tentaculaires. O
prefácio não fala do livro, mas sim de uma atitude geral perante a literatura.
É uma espécie de manifesto poético, em versos livres.
No início do Prefácio ele próprio denuncia
a sua atitude. Depois de afirmar que "está fundado o Desvairismo",
afirma que o seu texto é meio a sério meio a brincar. O que lhe dá um caráter
inconfundível de, por um lado, programa poético e, por outro, paródia. Assim o
sério e o divertimento se misturam num todo sem fronteiras definidas. Repare-se
ainda que é um texto muito assertivo, provocativo e polêmico no que é
característico o Modernismo.
Num estilo rápido e solto, com ideias
truncadas, e que atinge um efeito de grande dinamismo. Mário de Andrade luta
por uma expressão nova, por uma expressão que não esteja agarrada a formas do
passado: "escrever arte moderna não significa jamais para mim representar
a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto."
Outra das ideias expressas por Mário de
Andrade neste Prefácio/Manifesto é que a língua portuguesa é uma opressão para
a livre expressão do escritor no Brasil. Assim ele afirma que "A língua
brasileira é das mais ricas e sonoras". Para reforçar esta ideia do
brasileiro como língua, grafa propositadamente a ortografia de modo a ficar com
o sotaque brasileiro. Assim aparece muitas vezes neste manifesto "si"
em vez de "se".
Neste ponto está a ser completamente
contra os poetas parnasianos que defendiam uma ideia de que a língua portuguesa
seria a língua dos bons e grandes escritores do passado. Neste ponto, Mário de
Andrade é um nacionalista. Mas não admira Marinetti. É contra a rima. E contra
todas as imposições externas. "A gramática apareceu depois de organizadas
as línguas. Acontece que meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas,
nem de línguas organizadas". "Os portugueses dizem ir à cidade. Os
brasileiros, na cidade. Eu sou brasileiro". (Citado por Celso Pedro Luft).
A ideia, talvez, mais importante deste
Prefácio é a de Polifonia e de Liberdade. "Arroubos… Lutas… Setas…
Cantigas… povoar!" (trecho da poesia Tietê) Estas palavras não se ligam.
Não formam enumeração. Cada uma é frase, período elíptico, reduzido ao mínimo
telegráfico".
Publicou,
em 1928, Macunaíma o herói sem nenhum caráter e Ensaio sobre a Música
Brasileira. Dois anos após, seus poemas "Mulher" e "Noturno de
Belo Horizonte" são lidos, pelo professor da Cadeira de Estudos
Brasileiros da Faculdade de Letras de Coimbra, Manoel de Souza Pinto, na
conferência Poesia Moderníssima do Brasil.
Em 1938 transferiu-se para o Rio de
Janeiro, onde exerceu o cargo de diretor do Instituto de Artes na antiga Universidade
do Distrito Federal (hoje Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Regressando
a São Paulo em 1942, regeu durante muitos anos a cadeira de História da Música
no Conservatório Dramático e Musical.
Possuidor de uma cultura ampla e profunda
erudição, foi o fundador e primeiro diretor do Departamento de Cultura de São
Paulo da Prefeitura Municipal de São Paulo, onde implantou a Sociedade de
Etnologia e Folclore, o Coral Paulistano e a Discoteca Pública Municipal - a
"Discoteca Oneyda Alvarenga".
Foi
amigo e partilhou os ideais estéticos modernistas de Oswald de Andrade.
O próximo livro de poemas por Andrade,
Losango cáqui (publicado em 1926, mas escrito em 1922), continua na mesma linha
do trabalho anterior. Em Clã do jabuti (1927) e Remate de males (1930), faz
amplo uso da sua pesquisa etnográfica.
Desde 1930, coincidindo com a Revolução de
1930, a sua poesia sofre mudanças. Parte do seu trabalho posterior, como Poesia
(1942), é resvala para um tom mais íntimo e sereno, embora mantenha uma outra
linha de acusação e de política social, com obras como O Carro da miséria e
Lira paulistana(1946).
A esse último trabalho pertence um longo
poema intitulado "Meditação sôbre o Tietê", um livro denso e
complexo, pelos críticos, foi descrito como seu primeiro trabalho "sem
importância", apesar das animadoras críticas sobre o poema. A Meditação é
um poema sobre a cidade e concentra-se no rio Tietê, que atravessa São Paulo. O
poema é simultaneamente um resumo da trajetória poética de Andrade, em diálogo
com seus poemas anteriores.
Mário de Andrade foi também um excelente
escritor. Escreveu vários contos publicados: Primeiro andar (1926) e Contos
Novos (1946), bem como crônicas (Os Filhos da Candinha, 1945). Ele foi o autor
de dois romances: Amar, verbo intransitivo (1927) e Macunaíma (1928). O
primeiro causou um escândalo na época, uma vez que reconta a iniciação sexual
de um adolescente com uma mulher madura, uma alemã contratada pelo pai do jovem.O
segundo, desde sua primeira edição, é apresentado pelo autor como uma rapsódia,
e não como romance, é considerado um dos romances capitais da literatura
brasileira.
A fonte principal para Macunaíma vem do
trabalho etnográfico do alemão Koch-Grünberg, conforme relata o próprio autor.
Koch-Grünberg, no livro Von Roraima zum Orinoco, recolheu lendas e histórias
dos índios taulipangues e arecunás, da Venezuela e Amazônia brasileira. A
partir desses materiais, Andrade criou o que ele chamou rapsódia, um termo
ligado a tradição oral da literatura. O livro editado por Tele Ancona Lopes
possui extenso material sobre o intertexto deste livro.
O protagonista, Macunaíma, é chamado de
"o herói sem nenhum caráter".
Obras publicadas
Há uma
Gota de Sangue em Cada Poema, 1917
Pauliceia
Desvairada, 1922
A
Escrava que Não É Isaura, 1925
Losango
Cáqui, 1926
Primeiro
Andar, 1926
O clã do
Jabuti, 1927
Amar,
Verbo Intransitivo, 1927
Ensaios
Sobra a Música Brasileira, 1928
Macunaíma,
1928
Compêndio
Da História Da Música, 1929 (Reescrito como Pequena História da Música Brasileira,
1942)
Modinhas
Imperiais, 1930
Remate
de Males, 1930
Música,
Doce Música, 1933
Belasarte,
1934
O
Aleijadinho de Álvares De Azevedo, 1935
Lasar
Segall, 1935
Música
do Brasil, 1941
Poesias,
1941
O
Movimento Modernista, 1942
O Baile
das Quatro Artes, 1943
Os
Filhos da Candinha, 1943
Aspectos
da Literatura Brasileira 1943
O
Empalhador de Passarinhos, 1944
Lira
Paulistana, 1945
O Carro
da Miséria, 1947
Contos
Novos, 1947
O
Banquete, 1978 (Editado por Jorge Coli)
Dicionário
Musical Brasileiro, 1989 (editado por Flávia Toni)
Será o
Benedito!, 1992
Introdução
à estética musical, 1995 (editado por Flávia Toni)
Legado
Andrade morreu em sua residência em São
Paulo devido a um enfarte do miocárdio, em 25 de fevereiro de 1945, quando
tinha 51 anos. Dadas as suas divergências com o regime, não houve qualquer
reação oficial significativa antes de sua morte. Dez anos mais tarde, porém,
quando foram publicados em 1955, Poesias completas, quando já havia falecido
Vargas, começou a consagração de Andrade como um dos principais valores
culturais no Brasil. Em 1960 foi dado o seu nome à Biblioteca Municipal de São
Paulo.
Sexualidade
Apenas 50 anos após a morte do escritor a
questão da sexualidade de Mário de Andrade foi abordada em livro por Moacir
Werneck de Castro, que referiu que na sua roda de amigos não se suspeitava que
fosse homossexual, "supunhamos que fosse casto ou que tivesse amores
secretos. Se era ou não, isso não afeta a sua obra, nem seu caráter". E só
em 1990, o seu amigo António Cândido se referiu directamente ao assunto:
"O Mário de Andrade era um caso muito complicado, era um bissexual,
provavelmente". O episódio do rompimento de relações com Oswald de Andrade
é hoje largamente citado: Oswald ironizou que Mário se "parecia com Oscar
Wilde por detrás" e referia-se a ele como "Miss São Paulo". No
entanto, persiste fortemente nos meios académicos um "silêncio" sobre
o assunto.
Mário na cultura popular
Mário de Andrade já foi retratado como
personagem no cinema e na televisão, interpretado por Paulo Hesse no filme O
Homem do Pau-Brasil (1982) e Pascoal da Conceição nas minisséries Um Só Coração
(2004) e JK (2006).
pt.wikipedia.org/wiki/Mário_de_Andrade -
Homossexualidade
“trava” biografia de Mário Andrade
Jornal Opção
- Edição 1911 de 19 a 25 de fevereiro de 2012
Euler de
França Belém
O Ezra Pound brasileiro era homossexual,
usava cocaína e abusava de bebidas alcoólicas. Um vulcão de complicações, o
autor de “Macunaína” vai ganhar uma biografia explosiva.
Álbum de
família/1935
Mário de
Andrade, autor do romance “Macunaíma”: o poeta e prosador foi o intelectual que
sedimentou as ideias revolucionárias da Semana de Arte Moderna de 1922 e
contribuiu para mudar a linguagem da literatura brasileira
Finalmente!
O escritor Mário de Andrade, autor do romance “Macunaíma” e do poema “Pauliceia
Desvairada”, morto há 61 anos, em 25 de fevereiro de 1951, vai ganhar uma
biografia, escrita pelo jornalista Jason Tércio. Na sexta-feira, 10, no
suplemento de cultura do “Valor Econômico”, o ótimo “Eu&”, o jornalista e
biógrafo Tom Cardoso revela, no texto “Enfim, uma biografia de Mário”, a
história da biografia em andamento. É um fato a comemorar, pois, embora nascido
há 118 anos (9 de outubro de 1893), o papa da Semana de Arte Moderna de 1922 e
um dos principais inventores do modernismo no Brasil, o modernismo com cor
local, jamais havia ganhado uma biografia — decente ou indecente. Qual o motivo
do “esquecimento”, se Mário é um dos autores mais estudados do país? Simples:
sua homossexualidade, quase sempre apresentada en passant, inclusive com
sugestões de que tinha amantes mulheres — quatro ou cinco grandes amores
femininos. A própria reportagem de Tom Cardoso — não é uma resenha, porque o
“livro”, que deve ser publicado pela Editora Objetiva, teve apenas sua primeira
versão concluída — passa ao largo. O autor, sabendo das dificuldades de lidar
com um intelectual tão múltiplo (e defendido pelos acadêmicos) — “um vulcão de
complicações”, como ele disse, numa carta a Sérgio Buarque de Holanda, em 1934
—, é cuidadoso. O texto do “Valor” tangencia a questão da homossexualidade e
não menciona a paixão de Mário por drogas, inclusive cocaína, e bebida
alcoólica. Como nem sempre tinha dinheiro para adquirir uísque e vinhos
refinados, tomava porres homéricos de cerveja. Mas é preciso mesmo cuidado com
o tema da homossexualidade, não por temor à família e aos tabus tropicais, e
sim porque não define um escritor da qualidade e complexidade de Mário. Há
sempre o risco de, ao se abusar do sensacionalismo, o biógrafo concentrar-se
nos baixos instintos, no apelo ao popularesco. Ainda assim, como a
homossexualidade não é crime e não é motivo para que alguém se envergonhe,
merece ser referenciada num texto exaustivo, como uma biografia detida, sobre o
autor de “Amar, Verbo Intransitivo”. O jornalista, escritor e tradutor Moacir
Werneck de Castro, no perspicaz “Mário de Andrade — Exílio no Rio” (Rocco, 237
páginas), escreve: “Deve-se notar que Mário de Andrade, ao estudar em
profundidade a obra de um escritor e/ou artista, não deixava de assinalar
aspectos que considerava importantes da vida sexual deles. Em Machado de Assis
aponta a ‘forte sensualidade nitidamente sexual do artista’, o fato de ter casado
e vivido com uma só mulher, com o que ‘simboliza o conceito do amor burguês’.
Castro Alves era ‘uma sensualidade perfeitamente sexuada e radiosa’; poeta que
‘canta, e, sem querer, prega uma pansexualidade aceita’”.
O
escritor era mesmo homossexual? Ou era “pansexual” ou bissexual? Ou era
assexuado? Há indícios de uma sexualidade viva em Mário, mas não a sexualidade
tradicional, definida, fixada pelo comportamento moral e, às vezes, religioso.
O cérebro do modernismo patropi teve relacionamentos com mulheres, como sua
professora de alemão Kaethe Meichen-Blosen. O que não se sabe, e certamente não
se saberá em profundidade — não há memórias e as cartas divulgadas até agora
não são reveladoras, antes insinuantes, quando o são —, é como era mesmo o relacionamento.
Mário era dado a amores platônicos com mulheres e mantinha relacionamento
estreito com vários jovens — escritores e jornalistas. “Estreito” não
significa, porém, “sexual”. A biografia que Jason Tércio está escrevendo não é
autorizada. Entretanto, temendo alguma retaliação, o jornalista e escritor
procurou a família de Mário. Um sobrinho, que fala em nome dos herdeiros, o
tratou “com respeito e cordialidade”. Tom Carvalho diz que “ele não teria
apresentando nenhum obstáculo legal ou moral — disse apenas que não via
necessidade de uma biografia sobre seu tio”.
Na
verdade, a biografia é necessária, desde que não se concentre no
sensacionalismo. Mário é uma espécie de Ezra Pound brasileiro. Como se sabe,
Pound copidescou o longo poema “A terra desolada”, do maior poeta do século 20,
o norte-americano T. S. Eliot (ao lado de Fernando Pessoa e Carlos Drummond de
Andrade). Tornou-o mais preciso e o intransigente Eliot acatou as sugestões.
James Joyce também aceitou algumas orientações de Pound ao compor “Ulysses”.
Mário, na verdade, fez muito mais. Além de contribuir para que a literatura
brasileira — e até o jornalismo (há, claro, quem escreva como se fosse um poeta
parnasiano ou, até, romântico, mas é exceção) e mesmo a fala — perdesse a
coloração empolada e pomposa, sendo decisivo para a modernização da língua,
tornando-a mais universal, sem perder o ethos local, Mário escreveu centenas de
cartas para escritores como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo
Neto, Fernando Sabino e, entre outros, Pedro Nava, sempre apontando qualidades,
defeitos, reticências, preguiças nos seus textos. Tornou-se uma referência para
poetas e prosadores. Mário fazia aquilo que é necessário: situava o autor no
contexto da poesia (e da prosa) brasileira e internacional.,
Às vezes, pensa-se que se está fazendo uma
literatura avançada, modelar até para a literatura mundial, quando, na verdade,
está-se a repetir o que já foi feito, e não raro com qualidade inferior. Mário
tinha conhecimento técnico, uma formação excepcional, para dizer aos “moços” se
estavam avançando, recuando ou apenas repetindo ou diluindo. O
escritor-orientador não criava uma camisa-de-força; pelo contrário, apresentava
o problema, sugeria mudança de foco, mas admitia que o caminho deveria ser
trilhado pelo poeta, contista ou romancista. Os escritores ficavam esperando as
cartas e praticamente todos disseram que foram úteis. Ele orientou o maior
poeta da língua portuguesa no século 20, Drummond de Andrade. Não é pouco. O
crítico Mário percebeu, com mestria, que estava orientando um poeta maior, e
mesmo maior do que ele próprio, e, no lugar de se mostrar competitivo,
provou-se acessível, indicando, com sua pedagogia positiva, caminhos para que o
grande poeta se tornasse ainda maior. As cartas trocadas entre Mário e Drummond
são “crítica literária”, só aparentemente fortuita, e são quase literatura, tal
a qualidade dos textos. “Orgulho de Jamais Aconselhar — A Epistolografia de
Mário de Andrade” (Edusp/Fapesp, 245 páginas), do professor-doutor Marcos
Antonio de Moraes, é um livro esplêndido sobre as cartas de Mário a escritores
e jornalistas (leia uma carta de Mário de Andrade para Drummond). As cartas têm
sido muito estudadas, e merecidamente. Espera-se, porém que o exame das
missivas não impeça a análise de sua obra literária. Se depender da
professora-doutora Telê Ancona Lopez, isto não acontecerá. Telê tem sido para
os pesquisadores aquilo que Mário foi para os escritores: uma orientadora
brilhante e segura. Jason Tércio fará muito bem, se quer publicar uma biografia
séria, se colocar seu texto final sob o crivo da professora da Universidade de
São Paulo.
Jason
Tércio diz, em termos apropriados, que “a falta de uma biografia de Mário é uma
das maiores lacunas na memória cultural do país, porque, além de principal
líder do modernismo, ele foi um dos grandes pensadores da cultura brasileira”
(o Brasil é um país tendente a copiar modas: duas cantoras de qualidade
duvidosa, Amy Winehouse e Lady Gaga, ganharam biografias, absolutamente
desnecessárias). O biógrafo acerta quando sugere (o texto entre aspas é de Tom
Cardoso) “que a Semana de 22 só se confirmou como movimento transformador, com
todos os seus desdobramentos políticos e culturais, pela capacidade de
mobilização de Mário de Andrade. Para o escritor, a Semana corria o risco de
não passar de um evento cultural, importante sim, mas sem grandes
consequências, se não fosse pela militância que Mário e Oswald de Andrade
tiveram”.
Mostrando-se
atento à bibliografia séria, e pouco afeito aos poetas concretistas,
notadamente os irmãos Haroldo e Augusto de Campos — que apresentam Oswald como
suprassumo da modernismo —, Jason Tércio destaca que Oswald “era principalmente
um agitador, um catalisador, e Mário, ‘um pensador participante’”. Indicando
que conhece bem o trabalho de Telê Ancona Lopez, João Luiz Lafetá e outros,
Jason Tércio nota que foi Mário “quem deu sequência às ideias da Semana, quem
mais se empenhou para manter acesa a fogueira, participando dos debates
posteriores com artigos na imprensa e palestras, ajudando a fundar revistas,
escrevendo ensaios e pondo em prática, nos seus textos, todo o ideário
modernista”. Noutras palavras, Mário consolidou o modernismo brasileiro —
inclusive como orientador de uma geração excepcional (Drummond de Andrade e
João Cabral de Melo Neto, “rebentos” mais decisivos do que o “Caim” Oswald) —,
mas não transformou-o num movimento estanque, paralisante. Mário entendeu, ao
incentivar Drummond e João Cabral, entre outros, que o modernismo era uma
“revolução” estética em andamento, que começara com ele e Oswald, mas precisava
seguir adiante, com autores inclusive mais afortunados literariamente — como
são os casos de Drummond e João Cabral, espécies de cristalização do modernismo
patropi, ao lado do Guimarães Rosa de “Grande Sertão: Veredas”, o encontro da
literatura de Joyce com a mediação dos modernistas e regionalistas
tropiniquins. De algum modo, Guimarães Rosa fez sua “antropofagia” literária.
Jason
Tércio observa que Mário “inventou” o intelectual hiperativo. Foi poeta, romancista,
cronista, crítico de arte, musicólogo, etnógrafo, fotógrafo, professor,
colecionador de arte. Esquece de citar o contista e orientador cultural de uma
geração. Por que Jason Tércio evita comentar, em jornal, sobre a sexualidade
“complexa” de Mário? Talvez não tenha sido perguntado por Tom Cardoso.
Possivelmente, como o tema é espinhoso, o biógrafo não quis antecipar
possíveis iras familiares.
Sexo era
muito importante para Mário, como, aliás, para todas as pessoas. Moacir Werneck
de Castro, amigo de Mário e um de seus orientandos (Carlos Lacerda também foi
“orientado” pelo escritor), toca no assunto, com cuidado, às vezes citando,
como suporte, o livro “Figuração da Intimidade — Imagens na Poesia de Mário
de Andrade”, do professor e crítico literário João Luiz Lafetá. Mas, como
indica o título, trata mais de uma análise da poesia, não especificamente do
homem. Lafetá descobre que a obra (a poesia) ilumina o homem — talvez mais do
que as cartas. Moacir escreve: “Os
‘quatro amores eternos’ [mulheres], citados no ‘Girassol da madrugada’, tinham
sido na realidade efêmeros, decepcionantes, uns não passando de platônico.
Afora esses casos, tivera na mocidade experiências sexuais das quais alguma lhe
custou caro para tratamento de ‘doença feia’. E também ‘amores populares’,
referidos por seu amigo de juventude Rubens Borba de Moraes. Por exemplo, uma
‘mulatinha linda’, cobiçada pelos rapazes do grupo, e a quem um dia viram
passar de braço com o Mário, ‘muito apertadinho’. Não se conhecem em sua vida
grandes paixões, amores duradouros e absorventes”.
Numa
carta a Oneyda Alvarenga, Mário aprecia aquilo que Paulo Prado (o rico
financiador da Semana de Arte Moderna) chamou de “monstruosa” sensualidade.
Mário escreveu na mesma carta: “... não se trata absolutamente dessa
sensualidade mesquinhamente fixada na realização dos atos de amor sexual, mas
de uma faculdade que, embora sexual sempre e duma intensidade extraordinária, é
vaga, incapaz de se fixar numa determinada ordem de prazeres que nem mesmo são
de ordem física. Uma espécie de pansexualismo, muito mais elevada e afinal de
contas, casta, do que se poderia imaginar. O Manuel Bandeira que me conhece
muito intimamente, uma vez, me disse: ‘Você... você tem um amor que não é amor
do sexo, não é nem mesmo o amor dos homens, nem da humanidade... você tem o
amor do todo!’”.
João
Luiz Lafetá nota que o poema de Mário “Canto do mal de amor” é a expressão do
“desejo sexual que tem sua realização impedida”. Ao analisar os poemas do “Grã
cão do outubro”, Lafetá percebe, e estou citando Moacir Werneck, “o ‘complexo
de mutilação’ visível na ‘fragmentação do eu’ e um sem-número de imagens —
símbolos fálicos, sadismo oral etc., tudo máscaras do sexo misturadas a
preocupação com a realidade do país e do mundo”. Baseado em Lafetá, Moacir
Werneck conclui que é possível observar “um componente homossexual” em “sua
personalidade”. Ele sofria muito, afirma. “O seu sofrimento” resultava “de uma
sexualidade irrealizada, ou mal realizada, que ele ‘sequestrou’ e sublimou,
movido por um pudor extremo, ao qual os freios sociais da época davam maior
força repressiva”. O escritor não se considerava edipiano, mas adorava a mãe e
viveram na mesma casa até sua morte.
Mário
bebia muito — cerveja, uísque e até uma pinguinha. “Sabe, dei para beber. Tomo
bebedeiras. Caí na farra”, disse a Rubens Borba de Moraes. Ele conta que ficava
dias “de cama”. Também adorava drogas: “Experimentei de tudo”. Numa carta a
Oneyda Alvarenga “escreve que o apaixona extraordinariamente ‘experimentar um
tóxico que ainda não conheço’”. E revelou a Paulo Duarte: “Sofro a atração de
todos os vícios”. Certa vez, no carnaval de Recife, usou drogas durante cinco
dias. “Loucamente”, contou. Tomou éter, cocaína e sedol. O médico e
memorialista Pedro Nava “assegura”, nas palavras de Moacyr Werneck, “que Mário
jamais se viciou”. Sua morte, aos 51 anos, se deve, possivelmente, à vida
“desregrada”.
Homem
culto, quando apelava, Mário apelava feio. Quando tentaram reconciliá-lo com
Oswald de Andrade, que ele só chamava de “Osvaldo”, Mário atacou, numa carta ao
amigo e discípulo Murilo Miranda: “Ele que vá à reputa e a triputa que o
pariu”. Oswald “batia” em Mário, quase sempre abaixo da linha de cintura, e
depois enviava amigos comuns para tentar recompor a amizade. Ao saber que
Murilo havia comido carneiro com Oswald, Mário replicou: “Na verdade jantou
porco. (...) É uma espécie assim de ódio a posteriori. Se eu visse ele se
afogando, acho que o meu impulso natural seria pegar um pau e dar pra se
salvar. Mas logo, refletindo, eu percebia que devo odiar ele, e o pau me servia
pra empurrar ele mais fundo na água bendita”. Mário morreu sem aceitar a
reconciliação com o desrespeitoso autor de “Serafim Ponte Grande”. O que ele
disse acima mostra que era menos politicamente correto do que se pensa.
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Mário de
Andrade e a busca pela arte brasileira: a pesquisa estética, a inteligência
artística brasileira e a consciência criadora nacional
Raquel
Medeiros
A
atitude estética pregada por Mário de Andrade resume-se, por assim dizer, à
supressão do individualismo moderno, obedecendo às exigências técnicas do fazer
artístico. O fato de o artista compreender e dominar a técnica de sua arte o
colocava numa relação de respeito com sua obra, e não mais de possessão. O foco
seria a própria arte e não mais o artista.
O fazer
artístico, assim, tornava-se uma ação produtiva, que tinha como objetivo “a
fabricação de um produto”, sem atender a nenhum desejo do artista. O que se
deveria perseguir era a melhoria da técnica ou habilidade do artista e não mais
o próprio artista ou suas habilidades pessoais (MORAES, 1999, p. 71).
Mário de
Andrade mencionou Maritain e sua teoria da arte, além de outros escolásticos,
como pressuposto teórico à sua tese sobre a atitude estética. Essa teoria
“define o agir e o fazer como os dois domínios que constituem a ordem da
inteligência prática, distinta da ordem da inteligência especulativa” (MORAES,
1999, p. 70). O objetivo do escritor ao utilizar esse referencial era,
sobretudo, distanciar o fazer artístico do individualismo típico da Modernidade
definindo a obra como critério do que seja artístico, e não mais o artista,
como se vinha fazendo pela maioria dos modernos.
Outro
ponto de concordância do escritor com Maritain era a indistinção entre arte e
artesanato, atribuindo a ambos uma origem comum. Para o escolástico, era
necessário ir além do reconhecimento de arte e técnica típicas de determinado
período histórico e ir ao campo conceitual, alcançando a identidade do fazer
artístico.
Esse
ponto foi essencial para o interesse de Mário pelo escolástico. O caminho para
a superação do individualismo típico da modernidade seria submeter a arte a um
contexto exterior, em que até a origem do artista seria desconhecida.
Concomitantemente, havia a referência à dimensão interna do fazer artístico na
medida em que se trabalhava a técnica e a produção artesanal. “Tudo dependia,
agora, de fazer o artista retornar à sua vocação artesanal original” (MORAES,
1999, p. 72).
No
entanto, Mário de Andrade dava um enfoque maior à matéria como determinante da
obra de arte ou artesanato. Assim, arte e artesanato não seriam distintos pelo
fato de que seriam fazeres submetidos ao material e suas determinações.
Ao
contrário de Maritain, o escritor via que a dimensão técnica do fazer artístico
era o que lhe dava uma força moralizadora. Sua tese era de que a aproximação
entre arte e artesanato era o que conseguiria superar o desvio moral advindo do
individualismo moderno. Essa postura o colocou em contato com as propostas dos
arquitetos modernos, que, na época, procuravam adequar suas técnicas aos novos
recursos, obtidos pela onda crescente de industrialização. A arquitetura era
considerada uma arte submetida à natureza estética e não aos “caprichos” do
arquiteto.
A
arquitetura é considerada uma forma de arte que deve fiar-se menos na invenção
do artista que nas exigências do engenheiro. Ainda que guarde um critério de
natureza estética, ela depende basicamente de pressupostos de natureza técnica,
dedutiva, e não da invenção do artista. Por isso, a arquitetura ocupa um lugar
à parte entre as belas-artes, sendo possível mesmo argumentar a favor da sua
exclusão do seu meio. (MORAES, 1999, p. 77)
Primeiro,
a arquitetura era dependente da natureza técnica e do material e se definia
pela finalidade a que se destinava, superando, assim, o individualismo. Em O
artista e o Artesão, Mário indicou uma série de argumentos que colocavam em
xeque a questão da autoria, relativizando a importância de técnicas
individuais, partindo justamente do exemplo da arquitetura em que o fim
justifica os meios - a obra como principal - o caráter social da arte.
Nesse
mesmo argumento - o caráter social da arte - Mário incluiu o folclore, em que a
presença humana se dava de forma não individualista, com dimensão funcional. O
folclore foi de extrema importância na constituição do ideário de cultura
nacional proposto pelo escritor e pelo próprio Movimento Modernista.
O
retrato-do-Brasil que Mário de Andrade propôs-se traçar nesse momento terminava
por identificar o ser nacional à ‘coisa folclórica’. No folclore estariam enraizados
os traços de nacionalidade. Ora, a manifestação folclórica é coletiva, social,
não há como definir a autoria individual de um produto já seu. Já este fato
aponta para a inexistência nela de qualquer traço de individualismo. A ‘coisa
folclórica’ tampouco está sujeita a qualquer desvio formalista, sendo sua
principal característica a economia de recursos inventivos. (MORAES, 1999, p.
80, grifos meus)
Nota-se
que a dimensão de arte proposta era o distanciamento do formalismo, atribuindo
à arte uma dimensão utilitária, própria da vida coletiva. A serventia do objeto
artístico era o que determinava sua forma - uma perspectiva pragmática do fazer
artístico (MORAES, 1999). Essa perspectiva foi ao encontro dos pressupostos do
movimento, pois se abrigou na cotidianidade do povo brasileiro; a presença do
artista/artesão de modo não destacado, dando ao usuário do objeto artístico uma
forma de comunicação com sua realidade social.
A
atitude estética proposta pelo escritor revelou uma arte inserida no cotidiano,
servindo ao usuário, que, por sua vez, poderia se identificar com a utilidade
do instrumento, com sua aparência não destacada no cotidiano da vida coletiva.
De modo
geral, Mário de Andrade propunha certo resgate da vida cotidiana coletiva em
contraste com os “males” da modernidade - experimentalismo acentuado,
formalismo demasiado e hermetismo prejudicial à arte social. A solução à
acentuada visão do papel do gênio seria dar prioridade ao material no processo
de criação, regenerando e moralizando o artista. Sublinhando “a função da arte
na vida das coletividades”, o escritor tinha como objetivo a oposição ao
individualismo e ao formalismo, focando no papel social da arte em si e do
próprio fazer artístico (MORAES, 1999, p. 88).
Em O
Artista e O Artesão, aula inaugural de Mário de Andrade para o curso de
Filosofia e História da Arte da Universidade do Distrito Federal, foram
abordados quatro elementos que constituem a base de toda obra de arte: a
sublimação e a comunhão social, ligadas ao psíquico, e a técnica e a forma,
ligadas ao material. Destacou, ainda, o desequilíbrio entre esses elementos ao
longo da história, em que prevaleceu o sentimento em detrimento dos aspectos
expressivos - individualismo x social: “se o espírito não tem limites na
criação, a matéria o limita na criatura” (ANDRADE, 1975, p. 25)
Pode-se
tirar dessa força moral que o fazer artístico tem o fato de que, ao transferir
todo o conhecimento para a obra de arte, o artista/artesão não mede nem filtra
os efeitos que ela terá nos grupos sociais ou indivíduos, retomando o caráter
social do fazer artístico, numa perspectiva interacionista - a arte como
comunicação, comunhão e expressão, desinteressada de objetivos individualistas
e ideológicos.
Identifica-se,
assim, a atitude estética proposta por Mário de Andrade, “uma nova direção para
a técnica artística que, ao invés de se apresentar como veículo para a
expressão de uma personalidade, a técnica passaria a condicionar e limitar o
gesto do artista.” Na proposta, havia “um sentido inexorável de destruição do
eu” (SANDRINI, 2009, p. 464).
É
possível distinguir as três categorias daquilo que o escritor chamava de arte:
o artesanato, que seria a aprendizagem com o material; o virtuosismo, movimento
de pesquisa da tradição em determinado fazer artístico, e a solução pessoal,
que seria o diálogo entre o material, o artista e as exigências contemporâneas
(SANDRINI, 2009, p. 464). Neste sentido, a postura do artista/artesão seria a
de intensa pesquisa, um “engajamento constante, em todas as direções: a artista
não deve alienar-se, nem de si mesmo, nem de seu artesanato, nem da história”
(LAFETÀ, 1974, p. 161). Ou seja, afirmar o valor coletivo da arte.
Identifica-se, deste modo, o primeiro ponto do que denomina-se, aqui, de tríade
conceitual proposta por Mário de Andrade: o direito permanente à pesquisa
estética.
Quanto
ao direito de pesquisa estética e atualização universal da criação artística, é
incontestável que todos os movimentos históricos das nossas artes... sempre se
basearam no academismo. Com alguma exceção individual rara, sem a menor
repercussão coletiva, os artistas brasileiros jogaram sempre colonialmente no
certo. Repetindo e afeiçoando estéticas já consagradas, se eliminava assim o
direito de pesquisa, e consequentemente de atualidade. [...] Ora o nosso
individualismo entorpecente se esperdiçava no mais desprezível dos lemas
modernistas, ‘Não há escolas!’, e isso terá por certo prejudicado muito a
eficiência criadora do movimento. E si não prejudicou a sua ação espiritual
sobre o país, é porque o espírito paira sempre acima dos preceitos como das
próprias ideias... Já é tempo de observar, não o que um Augusto Meyer, um Tasso
da Silveira e um Carlos Drummond de Andrade têm de diferente, mas o que tem de
igual. (ANDRADE, 1942, p. 479)
Diante
desta atitude estética e a urgência da postura de pesquisador dos intelectuais
e do próprio artista, como consequência viria a atualização da inteligência
artística nacional, segundo ponto da tríade conceitual marioandradiana, fruto
da atitude estética que pregava a pesquisa constante, extrapolando o fator
meramente estético da arte e alcançando seu significado para a coletividade. A
inteligência artística nacional ainda se baseava no conceito de arte social e
na conquista do direito permanente à pesquisa estética:
Quanto à
conquista do direito permanente de pesquisa estética, creio não ser possível
qualquer contradição: é a vitória grande do movimento no campo da arte. E o
mais característico é que o antiacademismo das gerações posteriores à da Semana
de Arte Moderna, se fixou exatamente naquela lei estético-técnica de ‘fazer
milhor’, a que aludi, e não como um abusivo instinto de revolta, destruidor em
princípio, como foi o do movimento modernista. Talvez seja o atual, realmente,
o primeiro movimento de independência da Inteligência brasileira, que a gente
possa ter como legítimo e indiscutível. Já agora com todas as possibilidades de
permanência. (ANDRADE, 1942, p. 480 e 481)
Mário de
Andrade ainda completa:
Ora,
como atualização da inteligência artística é que o movimento modernista
representou papel contraditório e muitas vezes gravemente precário. Atuais,
atualíssimos, universais, originais mesmo por vezes em nossas pesquisas e
criações, nós, os participantes do período milhormente chamado ‘modernista’
fomos, com algumas exceções nada convincentes, vítimas do nosso prazer da vida
e da festança em que nos desvirilizamos. Si tudo mudávamos em nós, uma coisa
esquecemos de mudar a atitude interessada diante da vida contemporânea.
(ANDRADE, 1942, p. 482)
A arte
colocada como agente ideológico seria aquela que tinha como tarefa a
transmissão de mensagens. No entanto, se a mensagem estivesse acima de
interesses individuais, poderia exprimir um conteúdo libertário e novo. Nesse
sentido, seriam necessárias condições para a constituição da arte com caráter
social em um sentido singular, o que seria alcançado pelo desinteresse de
interferência excessiva do autor/artesão na obra.
Partindo
dessa premissa, surgiu a posição da arte sem interferências externas, dando aos
sujeitos mecanismos para a arte desinteressada, sem subordinação a mecanismos
ideológicos ou políticos, focada na vida coletiva.
Pode-se
notar que, nesse ponto, o pensamento do escritor se aproximou das áreas de
Sociologia e Antropologia, focando na questão da formação da cultura e
identidade nacionais, principalmente com a aproximação do escritor com a
doutrina de Durkheim. No estudo dos recursos imaginativos elaborados pelos
grupos sociais nas práticas religiosas feito pelo sociólogo, Mário de Andrade
aproveitou essa premissa para apontar que, tal qual a religião, a arte também
possui o poder de comunhão e afirmação de uma identidade coletiva - “a arte era
concebida como fundadora da nacionalidade” (MORAES, 1999, p. 107).
A arte
nacional, longe de exprimir um caráter político-ideológico, exprimiria os
aspectos culturais, frutos do afeto (sentimentos e emoções) dos grupos sociais,
situando a arte no bojo da vida social, fruto e reflexo da vida coletiva de
determinado grupo cultural.
Para
Mário de Andrade, a arte já estava presente no povo, e o artista, portanto,
deveria abordar, em suas obras, a arte popular, transpondo seus elementos. Para
ele, a nacionalidade estava contida no folclore.
Essa
visão de nacionalidade estava sustentada numa cadeia de reduções. A
nacionalidade seria a própria cultura popular que, por sua vez, ligar-se-ia ao
elemento folclórico. O folclore, assim, é tido como o primitivo, que definiu,
para o escritor, o genuíno elemento nacional, que levaria o país ao concerto das
nações cultas, definindo a cultura brasileira como singular. A arte não era
tida como nacionalista, tal qual na Rússia ou Alemanha, mas nacional, reflexo
das realidades sócio-culturais do país, longe dos traços externos e
superficiais, podendo, coincidir, assim, com o contexto universal (MORAES,
1999).
Assim,
a atualização da inteligência brasileira se daria com a arte em consonância com
a vida comum, como reflexo de uma cultura ou identidade nacional. É
extremamente importante destacar que essa tese proposta por Mário de Andrade
foi decisiva na formulação do conceito que transferiu a arte, como expressão
cultural, das mãos dos especialistas e técnicos para as mãos do povo, detentor
do verdadeiro elemento nacional.
É nas
viagens ao interior do país que se pode identificar de onde Mário tirou o
terceiro ponto de sua tríade conceitual: a consciência criadora nacional. É de
extrema importância seguir os passos do autor nessas viagens, para que se possa
entender sua trajetória posterior, como homem público e, principalmente, como
intérprete do Brasil.
O fruto
literário mais conhecido dessas viagens, o livro O turista aprendiz, pode ser
considerado uma literatura de registro, fonte de pesquisa nas áreas de ciências
sociais e literatura, por exemplo. Dorothea Passetti (2004) indica a
importância desse tipo de literatura pela mescla de observações, anotações
científicas e de cunho pessoal do pesquisador que escreveu o livro. Passetti
continua tecendo comentários sobre a literatura de registro: “Relatos de viagem
lançam o leitor para espaços desconhecidos. Mostram outras faces de lugares
familiares e promovem intimidades com o autor ao permitirem reconhecer, quando
ali está, tanto o que havia sido imaginado pela leitura quanto vestígios do
passado ou maneiras pelas quais foram sendo alteradas as descrições anteriores”
(2004, p. 35)
Sua
primeira viagem, entre 13 de maio e 15 de agosto de 1927, percorreu o rio
Amazonas até o Peru, o rio Madeira até a Bolívia e o rio Marajó, no intuito de
revelar o país e constituir uma representação da cultura nacional, fruto da
visão do escritor sobre o Norte e Nordeste como depositários da cultura
popular, do folclore, num trabalho identificado por Antonio Gilberto Ramos
Nogueira (2005) como etnográfico, pela rigidez metodológica na coleta de
documentação, utilizando instrumentos diversos.
Na
primeira viagem surgiu o projeto Na Pancada do Ganzá, obra não concluída pelo
falecimento de Mário em 1945. Posteriormente foi publicada por Oneyda Alvarenga
e Telê Ancona Lopez, entre outras importantes discípulas. Nessa viagem foi
acompanhado por Olívia Guedes Penteado, mecenas do Modernismo, Margarida Guedes
Nogueira e Dulce do Amaral Pinto, filha de Tarsila do Amaral.
Nessa
viagem vários elementos foram incorporados não só na redação do projeto, mas no
livro Macunaíma, em que, por carta, Mário havia pedido a Câmara Cascudo
manifestações folclóricas do Nordeste para serem incluídas em sua redação.
Cascudo inclusive havia sido convidado pelo escritor para acompanhá-lo na
viagem, mas não foi. Os contatos, porém, já eram mantidos desde um pouco antes.
Desde 1926 já confessava ao amigo sua “fome” de conhecimento da vida do povo
brasileiro:
Tem
momentos em que eu tenho fome, mas positivamente física, fome estomacal de
Brasil agora. Até que enfim sinto que é dele que me alimento! Ah! si eu pudesse
nem carecia você me convidar, já faz sentido que tinha ido por essas bandas do
norte visitar vocês e o norte. Por enquanto é uma pressa tal de sentimentos em
mim que não espero nem seleciono. Queria ver tudo, coisas e homens bons, ruins,
excepcionais e vulgares. Queria ver, sentir, cheirar. Amar já amo. (ANDRADE,
1991, p. 35)
A
segunda viagem ocorreu entre dezembro de 1928 e fevereiro de 1929, concentrada,
principalmente, em três estados nordestinos: Rio Grande do Norte, Paraíba e
Pernambuco. Durante o percurso das viagens, as impressões do autor foram
transformadas no livro O turista aprendiz. Os percursos tiveram um papel
extremamente importante na narrativa modernista nas diversas regiões após 1924
(NOGUEIRA, 2005, p. 104).
Viajando
pelo Nordeste, nosso cronista nos comunica que ainda há um Brasil por descobrir
e valorizar, para ser entendido enquanto vida e cultura do povo. Essa dimensão,
a da pesquisa etnográfica e a do enfoque sociológico revelará danças
dramáticas, o catimbó e procurará analisar as condições de vida da região, numa
perspectiva nova que deseja abandonar a caracterização do regional através do
exótico e do pitoresco, porque estará preocupada com as relações de produção e
com as classes sociais. (LOPEZ, 2002, p. 41)
Enquanto
na primeira viagem o pesquisador foi acompanhado por mecenas dos modernistas, a
segunda, como correspondente do Diário Nacional, deu a Mário a oportunidade de
aprofundar sua coleta de dados em música, arquitetura, imaginário religioso,
vida e trabalho do homem brasileiro, sintetizado na visão do nordestino.
Com sua
câmera, foi fotografando tudo à sua volta: amigos de viagem, pessoas,
paisagens, trabalhos, transporte e arquitetura. A fotografia foi decisiva na
sua opção metodológica, que revelou, de início, o espanto do homem cosmopolita
com o caboclo ou o nordestino e seus hábitos culturais. Importante frisar que
esses relatos não revelaram só uma realidade objetiva e impessoal, mas a
própria “memória subjetiva” do autor (NOGUEIRA, 2005, p. 111). “Aqui sente a
necessidade de colher e registrar, diretamente da fala do povo, os elementos
constitutivos da brasilidade procurada. Sua concepção de cultura indica que
acreditava na vitalidade e força criativa das tradições autóctones como
renovação permanente no processo criativo”. (NOGUEIRA, 2005, p. 113)
A
própria postura metodológica, de coleta e pesquisa, veio da Europa desde o
século XVIII ao início do século XX, fruto do interesse dos intelectuais em
definir a questão nacional. Assim, pela arte popular - a consciência criadora
nacional - poder-se-ia construir um conceito sólido de nacionalidade. No
Brasil, a oposição entre folclore e civilização preocupou os intelectuais,
principalmente Mário de Andrade, na preservação não só do material como,
também, das práticas culturais populares, protegendo-as da ideia de um
progresso prejudicial ao ócio vital à criação artística do povo (NOGUEIRA,
2005). A síntese do Brasil refletiu-se em Macunaíma, por exemplo:
Minha
intenção foi esta: Aproveitar no máximo possível lendas, tradições, costumes,
frases feitas, etc., brasileiros. E tudo debaixo dum carácter sempre lendário
porém como lenda de índio e de negro. [...] Um dos meus cuidados foi tirar a
geografia do livro. Misturei completamente o Brasil inteirinho como tem sido
minha preocupação desde que intentei me abrasileirar e trabalhar o material
brasileiro. Tenho muito medo de ficar regionalista e me exotisar pro resto do
Brasil. Assim lendas do norte, botei no sul, misturo palavras gaúchas com
modismos nordestinos ponho plantas do sul no norte e animais do norte no sul
etc. Enfim, é um livro tendenciosamente brasileiro. (ANDRADE, 1991, p. 75)
O diário
de viagens de Mário constituiu, assim, um elemento etnográfico: até mesmo a
cozinha nacional estava presente, apresentando-a não só do ponto de vista
culinário, mas, também, como expressão popular dos usos que o homem brasileiro
fazia de seu ambiente e sua capacidade inventiva.
As
descrições do escritor/pesquisador forneceram para sua época e para estudos
posteriores sobre identidade nacional, diversas categorias analíticas do ponto
de vista do nacional, étnico e do regional ou social, estabelecendo as
distinções entre os grupos humanos, esboçando “uma cartografia da diversidade
cultural”, indo direto ao objeto de estudo, o povo, para tornar a pesquisa
fidedigna, aliando os dados à bibliografia e suas próprias impressões pessoais
(NOGUEIRA, 2005, p. 126).
A
fotografia, como constituinte do acervo da cultura nacional, despertou a
importância da preservação do patrimônio cultural, na sua gestão no
Departamento de Cultura de São Paulo e, posteriormente, no cargo de assistente
técnico do Sphan, tendo a iconografia como forma de manter os elementos que
estivessem se degradando, como a arquitetura, desenhos rupestres ou construções
populares: “À medida que a memória visual vai compondo o retrato do Brasil, a
fotografia é apreendida como fonte histórica, documento, meio de conhecimento
com o mesmo reconhecimento que se deu ao signo escrito”. (NOGUEIRA, 2005, p.
135)
As
legendas das fotografias tiradas pelo escritor revelaram a amplitude de
abordagens, que refletia a preocupação em ter um retrato fiel do poder criativo
do povo brasileiro: legendas de teor literário, humorístico, referencial, de
exercício do moderno. Pedaços de um país desconhecido que tinha uma força
criadora que precisava ser preservada e refletir o homem brasileiro e sua arte.
Na
abordagem da vida do povo, a viagem a Natal, em 15 de dezembro de 1928, deu a
Mário de Andrade o conhecimento do Brasil pela ótica do folclore. Na análise da
vida do operário, seu vocabulário sugeria o contato com o marxismo.
Respeitando a linguagem popular, através do
estudo do cordel ou das músicas populares, o escritor preocupou-se em dar forma
às temáticas nacionais através dos processos de criação e técnicas do homem do
povo, “da versatilidade do poeta ao embolar, Mário entreviu a importância do
processo criativo na constituição de manifestações populares” (NOGUEIRA, 2005,
p. 166).
Inventariando
as festas populares, fez um traçado histórico em consonância com a mobilidade
da tradição, fundamentado na atualização, concebendo a nação como a reinvenção
da tradição, colocando-a como a base da identidade nacional, fundando e
reinventando tradições.
Continuando
com sua preocupação em relação aos diferentes modos de vida do homem brasileiro
e com o rigor científico da coleta de dados, Mário de Andrade ainda manteve
contato com Dina Dreyfus e Claude Lévi-Strauss. Essa relação se iniciou
aproximadamente em 1935, com a chegada do casal ao Brasil e a publicação do
artigo de Lévi-Strauss no jornal O Estado de São Paulo em que propunha à USP a
criação de um Instituto de Antropologia Física e Cultural.
Com a
não aceitação da proposta do pesquisador pela Universidade, Mário, então
diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, publicou
novamente o artigo na Revista do Arquivo Municipal e convidou Dina para
ministrar um Curso de Etnografia junto ao Departamento. Do curso, foi criada a
Sociedade de Etnografia e Folclore, em 1937, vinculada ao Departamento de
Cultura e tinha como principal objeto a pesquisa etnográfica.
Também
foi o Departamento que financiou uma parte da primeira expedição do casal aos
Bororo e Kadiwéu, de 1935 a 1936, além de outras viagens a Pirapora do Bom
Jesus, a Mogi das Cruzes e outras pequenas cidades: “Nesse sentido, a
transformação do projeto do Instituto de Antropologia no Curso de Etnografia
agregou, à proposta defendida por Lévi-Strauss de fazer uma coleta rigorosa e
objetiva para o avanço da ciência antropológica, a concepção da etnografia como
prática que contribuiria para fortalecer a forma e o conteúdo do caráter
nacional, que seriam trabalhados na produção artística.” (VALENTINI, 2009, p.
3)
As
pesquisas realizadas na Sociedade de Etnografia e Folclore estavam inseridas em
um contexto de transformações pelas quais passavam as disciplinas de
Sociologia, Antropologia e Etnologia - nas discussões dos conceitos de raça e
cultura - e a política pública municipal, em São Paulo, e nacional: “A
etnografia brasileira vai mal. Faz-se necessário que ela tome imediatamente uma
orientação prática baseada em normas severamente científicas. Nós não
precisamos de teóricos, os teóricos virão a seu tempo. Nós precisamos de moços
pesquisadores, que vão à casa do povo recolher com seriedade e de maneira
completa o que esse povo guarda e rapidamente esquece, desnorteado pelo
progresso invasor.” (ANDRADE, 1936 apud NOGUEIRA, 2007, p. 263)
Essa
preocupação com as pesquisas científicas e com o registro e preservação do
objeto dessas pesquisas evidencia o caráter pedagógico que Mário deu ao
Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. O próprio Curso de
Etnografia e Folclore, com seu objetivo de formar para a pesquisa, é um reflexo
dessa preocupação com a área educativa. E o se caráter de difusão demonstra a
ideia de um projeto amplo, de formação do público em âmbito nacional: “Esta
variedade de formas de produzir conhecimento, que permitia a aproximação a
questões e problemas muito diversos por um mesmo pesquisador, se vê nas
pesquisas realizadas com recursos do Município e foi articulada em torno de uma
episteme difusionista cujo primeiro objetivo era a reconstrução histórica das
migrações e transformações culturais que teriam resultado nos e dos traços
culturais ou biológicos estudados.” (VALENTINI, 2009, p. 4)
Vários
projetos foram elaborados na gestão do escritor, para a Divisão de Bibliotecas,
a Divisão de Educação e Recreio e a Discoteca Pública, pautando-se nos
esportes, na criança, na higiene, nas artes e na preservação da cultura
popular, através da reinvenção de práticas da cultura do povo que estavam sendo
perdidas na cidade de São Paulo. Em relação à amplitude nacional, o
Departamento desenvolveu atividades como festas e brincadeiras tradicionais com
filhos de operários e outras crianças.
Tanto o
curso ou mesmo as atividades voltadas ao público se configuraram como
preparativos para a Missão de Pesquisas Folclóricas. Em meio ao recolhimento
dos primeiros registros sonoros dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Mato
Grosso e Bahia, junto a Oneyda Alvarenga, Mário enviou seus primeiros
“discípulos” a campo: Luis Saia - chefe da Missão e sócio-fundador da SEF -
Martin Braunwieser, músico; Benedito Pacheco, técnico de som e Antonio Ladeira,
auxiliar geral e assistente técnico de gravação.
O início
da Missão se deu em 6 de fevereiro de 1938. Depois de passar pelo Rio de
Janeiro, Vitória, Salvador e Maceió, aportou em Recife em 13 de fevereiro,
ficando até 23 de março. Lá, filmaram cocos, cantigas de roda, sertaneja,
pedintes, ex-votos, caboclinhos, maracatus, o toré dos índios pancarus e sua
festa do umbu.
Depois,
a Missão ficou em Paraíba até 30 de maio, realizando pesquisas pelo sertão.
Filmaram e fotografaram bumba-meu-boi, vaquejada, reis do congo, cantigas
infantis, sambas, canto de carregadores de pedra, reisados, desafios, repentes,
lundus, cabaçal, catimbó e realizaram vários registros da arquitetura popular,
tão importante na atitude estética de Mário.
Passando
pela substituição de Mário frente ao Departamento de Cultura e alguns problemas
políticos, a Missão teve sérias dificuldades no Maranhão, entre os dias 15 e 21
de junho. Mesmo assim, conseguiram registros do Tambor de criolo e Tambor de
mina, bumba-meu-boi e carimbo. Passaram também por Belém do Pará, ficando até 7
de julho, até serem obrigados a voltar para São Paulo.
O
material colhido foi organizado por Oneyda Alvarenga e catalogada na coleção
Arquivo Folclórico (1946 e 1948) e na coleção Registros sonoros do folclore
musical brasileiro - RSFMB (de 1948 a 1946). Mesmo com a prematura morte de
Mário, seu legado continuou, tanto na formação de pesquisadores quanto na
importância do registro da cultura popular nacional.
Os
diversos sentidos dados à palavra arte, a percepção da consciência criadora do
povo brasileiro e a própria preocupação com o rigor científico e a formação de
pesquisadores e do próprio povo deram às ações de Mário de Andrade enquanto
escritor e pesquisador o início de uma prática pautada na ideia de uma nova
visão de arte brasileira.
Do mesmo
modo, a “cordial mastigação”, própria da Antropofagia, deu-se no conhecimento
do outro enquanto formador da heterogeneidade da cultura nacional, apreendendo
e reinventando a memória coletiva e a própria cultura.
Do
direito à pesquisa estética, pautado em sua tese do artista pesquisador; da
atualização da inteligência artística, como reflexo da cultura e da vida
coletiva, e pela consciência criadora nacional, descoberta em suas viagens e na
sua prática enquanto funcionário público, Mário de Andrade construiu os
arcabouços teórico e simbólico do que seria a identidade nacional, originada de
uma visão inovadora do que seria a arte brasileira.
19&20
- Mário
de Andrade e a busca pela arte brasileira: a pesquisa ...
www.dezenovevinte.net/artistas/marioandrade.htm
AS CONTRIBUIÇÕES DO MODERNISMO PARA A
LITERATURA E A CRÍTICA BRASILEIRAS
Larissa
Agostini Cerqueira
Mestranda em
Literatura / UFMG
RESUMO
Este artigo pretende investigar de que forma o movimento modernista brasileiro contribuiu
para a formação ou a consolidação de uma
literatura brasileira moderna, por meio da renovação de padrões estéticos e
políticosociais, por um lado, e, por outro, que herança o movimento deixou para
a produção crítico-literária do país.
PALAVRAS-CHAVE:
Modernismo, literatura brasileira, crítica literária brasileira
INTRODUÇÃO
Pode-se
afirmar, com base nos estudos sobre o modernismo, que o movimento no Brasil – assim como as
vanguardas na Europa – teve um caráter predominantemente destruidor, pelo menos
em princípio. Isso ocorreu porque, para superar as barreiras do passadismo e do
academismo era necessário um espírito revolucionário que rompesse com os padrões
herdados e, a partir dessa ruptura, criasse uma literatura atual e nacional,
isto é, moderna. Uma vez que o objetivo era construir uma nova literatura, é
preciso ressaltar que o caráter destruidor da vanguarda brasileira pertence
apenas à sua fase inicial, provocativa, que
foi seguida de uma fase mais estável e produtiva,
dentro dos novos padrões estéticos. O
objetivo deste trabalho é verificar o impacto que a ruptura modernista causou
na produção literária do país, isto é, que mudanças e contribuições o
modernismo trouxe para a literatura nacional e, em segundo lugar, quais as
consequências dessa transformação estética para a crítica literária produzida
no país. Não se pode esquecer que o
modernismo – mesmo se considerarmos o movimento de forma restrita, isto é,
restringi-lo temporalmente à década de 1920, como o faz o teórico Álvaro Lins–
não foi de forma alguma homogêneo e seu impacto também foi diferenciado, como
nos mostra por exemplo o estudo de Maria
Eugênia Boaventura sobre a revista modernista Movimento Brasileiro,dirigida por
Graça Aranha e seu grupo. A autora ressalta como característica intrínseca ao
modernismo a formação de grupos, o que o
diferencia de outros movimentos artísticos, que não tinham a mesma
exigência, ou às vezes até valorizavam o indivíduo em detrimento do grupo. Esse
fenômeno de formação de grupos diversos dentro do movimento trouxe como
consequência várias vertentes que, se tinham um projeto em comum, tinham também
visões diversas do que esse projeto significava na prática e de como implementá-lo.
No trabalho ora citado de Boaventura são muito claras as divergências entre o grupo
paulista e o carioca. Enquanto o primeiro, encabeçado por Mário e Oswald de
Andrade, foi um grupo que implementou a inovação técnica e linguística em suas
obras e tinha uma posição intelectual vanguardista, o segundo tinha caráter
ufanista e politicamente reacionário,
e era esteticamente apegado aos valores passadistas
combatidos no seu próprio discurso.
O foco
do presente trabalho será a obra de Mário de Andrade, por três razões: primeiro,
porque o escritor foi um dos artistas precursores e um dos principais teóricos da primeira fase do movimento, com
os textos “Prefácio interessantíssimo” – integrante do livro apresentado na
Semana de Arte Moderna, Paulicéia
desvairada – e A escrava que não é Isaura;
a segunda razão para a escolha do poeta, é que ele tem uma obra de crítica
literária e artística vasta e rica, que o torna um dos representantes de vulto
da atividade crítica no Brasil; e, em terceiro lugar, porque, tanto como
escritor, quanto como crítico, sua obra pode ser considerada uma das mais
bem-sucedidas do movimento modernista,
dentro do que ele propunha: uma ruptura estética e ideológica dos padrões sociais
em voga no Brasil no início do século 20. Exemplos que comprovam essa visão são
Macunaíma, considerada ainda uma das obras mais representativas do movimento,
assim como O empalhador de passarinho e Aspectos
da literatura brasileira, dois livros que reúnem os principais ensaios críticos
do autor. A característica principal que faz de sua obra uma das mais
representativas da época é o aguçado senso crítico e a sensibilidade aos
problemas de seu tempo, fossem eles de ordem estética ou social e política.
TEMPOS
MODERNOS E MODERNISMO NO BRASIL
O
projeto de inovação da literatura no Brasil se deu por meio da ruptura com os rígidos padrões
parnasianos, com o objetivo de criar uma literatura genuinamente nacional e atual
que correspondesse às exigências de seu tempo. A fim de compreender o que essa ruptura significou
para a literatura, é necessário analisá-la mais a fundo. Antes de mais nada, é preciso
voltar à origem da ruptura, ou ainda, à origem do espírito revolucionário que a
provocou para, em seguida, compreender as consequências geradas por ela. A
necessidade desta análise se dá porque a inovação estética – pelo menos no caso
do modernismo – pode
ser considerada uma espécie de incorporação, no âmbito estético, de uma
nova realidade.
Neste
caso, seria a incorporação de valores modernos à literatura e às artes em
geral. As formas artísticas antigas deixaram de atender às novas exigências e
aqueles que se apegam a elas não passam de imitadores de fórmulas não mais
eficazes. Sendo assim, pode-se concluir que a ruptura de padrões estéticos que
ocorreu no modernismo foi o reflexo das transformações vividas pela sociedade
da época. Sua origem é, portanto, a própria imposição da realidade.
O
crítico Álvaro Lins salienta que o movimento – no Brasil e em todos os países
que participaram de alguma forma da Primeira Guerra Mundial – era um reflexo,
na literatura, das mudanças de valores que estavam ocorrendo na sociedade:
“Efetivamente, eis o que foi o modernismo: uma crise, uma fase de transição,
uma imagem de instabilidade social.”
É correto
afirmar que a guerra não foi o único
fator determinante da modernidade nas sociedades, uma vez que países que não participaram diretamente dela nem
sofreram suas consequências mais graves também passaram por um processo de
modernização. Esse tema é muito mais complexo e há várias outras variantes,
como a industrialização das sociedades e as suas consequentes mudanças, como a
aglomeração de populações em grandes centros urbanos, o surgimento de novas
classes sociais (a burguesia urbana e o
proletariado), o desenvolvimento da indústria do entretenimento e dos meios de
comunicação. Todas essas
mudanças causaram uma necessidade de transformação
nas artes também, pois o que era produzido não condizia mais com as condições
do homem moderno.
Porém, é
importante salientar o caráter dialético da relação entre literatura e
realidade. Como afirmado anteriormente, a origem de sua transformação é a própria transformação social.
Não se pode, no entanto, parar por aí. Uma vez incorporadas como formas às novas exigências de um tempo,
a literatura passa a repercutir sobre a sociedade, contribuindo para a transformação
da consciência nacional e a solução de problemas. Álvaro Lins fala de um projeto
de História Literária do Brasil, baseado no ímpeto de escritores de todos os
tempos em influenciar a realidade do país, constituindo-se em homens públicos
por meio de suas obras e assumindo, dessa forma, “um papel de vanguarda na
investigação e apresentação dos grandes
problemas brasileiros”.
Esse
espírito de vanguarda foi especialmente
importante no modernismo, pois, como o próprio Mário de Andrade afirma, não foi
um movimento estético, mas um espírito revolucionário acima de tudo, uma vez
que o seu tempo era um tempo de politização do homem e que exigia, dessa forma,
o engajamento da arte na vida:
A
transformação do mundo (...) bem como o desenvolvimento da consciência
americana e brasileira, (...) impunham a criação de um espírito novo e exigiam
a reverificação e mesmo a remodelação da Inteligência
nacional. Isso foi o movimento modernista (...).
MODERNISMO E
LITERATURA MODERNA BRASILEIRA
No Brasil, o modernismo teve uma conjuntura
bastante singular, se comparado às vanguardas europeias, caracterizadas por
artistas que, em sua maioria, viviam às margens da sociedade burguesa (mesmo
que muitos tivessem origem em famílias burguesas) e se voltaram contra os
valores dessa sociedade. Em São Paulo, os vanguardistas foram financiados pela
burguesia agrária, que promovia os famosos
salões de arte e viagens à Europa, interessada não somente na estética
modernizante, mas também e sobretudo no retorno às origens e tradições
culturais do Brasil. Se nessas origens os modernistas buscavam a feição
genuinamente brasileira da arte, a burguesia agrária buscava uma forma de se fortalecer
e se impor na nova configuração econômica do país, que teve como consequência a
ascensão de uma nova classe burguesa, urbana e industrial. Essa peculiaridade
na conjuntura de surgimento do modernismo brasileiro tem, sem dúvida,
implicações sobre o movimento – como, por exemplo, obras que não apresentam uma
atitude politicamente crítica, como o próprio Mário de Andrade admitirá na
década de 1940. No entanto, mesmo que
haja um
consenso de que num primeiro momento o modernismo
teve como foco principal a questão puramente estética, a consciência política
será uma das consequências dos avanços alcançados na inovação da linguagem
artística, como veremos mais detalhadamente.
Analisemos pois essas contribuições do
movimento modernista à literatura e à sociedade brasileiras. Na conferência
denominada “O Movimento Modernista”, Mário de Andrade enumera três princípios
fundamentais, cuja fusão pelo modernismo caracterizou uma mudança drástica da
realidade brasileira: a conquista da liberdade de pesquisa estética, a atualização
da Inteligência artística nacional e a estabilização de uma consciência criadora nacional. Segundo
sua análise, a fusão desses três fatores foi responsável pela conquista da independência
do Brasil em termos artísticos e
intelectuais, da liberdade criadora e da originalidade das produções
artísticas, isto é, da conquista de uma literatura nacional e atual.
Álvaro
Lins ressalta que somente uma literatura feita com liberdade de pesquisa e que
busca material na cultura local pode ser atual, pois é nacional e contemporânea
e, portanto, apta a atingir o status de
universal. O autor afirma que “não
podemos aspirar a uma posição internacional enquanto não tivermos levantado uma forte, nítida e
bem caracterizada fisionomia nacional.”
É
importante lembrar que essas normas não são consideradas originais pelo próprio
Mário de Andrade. Ele tem plena noção de que todas elas podem ser encontradas
em outros movimentos artísticos brasileiros. A grande diferença instaurada pelo
modernismo “foi a conjugação dessas três normas num todo orgânico da consciência coletiva”.
Esse
“todo orgânico”, porém, não pode ser considerado harmônico de forma alguma. O
próprio crítico
admite que essas conquistas tiveram pesos diferentes. Com relação ao campo da literatura, pode-se
dizer que o modernismo trouxe duas principais contribuições: uma nova
consciência do ato da criação, que passaria a ser um ato independente de
pesquisa estética e de libertação dos padrões e técnicas preestabelecidos; e a consciência
de que a obra de arte é um fazer mais coletivo e funcional do que individual e psicológico,
e o que mais importa nela é esse caráter coletivo. Isso significa que, pela
primeira
vez na história da literatura brasileira, houve uma
preocupação e uma efetiva fundação de um espírito coletivo criativo (a que
Mário de Andrade chama de estabilização da consciência criadora nacional), uma
noção de literatura nacional, produzida a partir da pesquisa estética e não por
imitação de um determinado padrão estético em voga. Com relação a essa vitória,
Jorge Schwartz lembra a importância do modernismo para a literatura brasileira,
ressaltando a diferença fundamental entre a poética modernista e as que a
antecederam:
Nestas
há leis de bom proceder, há “Don’t”, há manuais do bom conselheiro, há regras
de preconceito artístico, teias concêntricas da Beleza imitativa (...).
Na
orientação modernizante seguem-se indicações largas dentro das quais se move
com prazer a liberdade individual. Não se encontra nela regras de arame farpado
que constrangem senão indicações que facilitam.
Para
Mário de Andrade, essa foi a grande conquista
do modernismo. Apesconsiderar insuficientes as tentativas de revisão da
língua portuguesa, para adequá-la à nossa realidade e para que “nos
expressássemos com identidade” (opinião que diverge de Álvaro Lins, que
considera a nossa língua bastante diversa da “portuguesa” e considera
exageradas e mesmo equivocadas as tentativas de Mário de Andrade e de outros
modernistas de adaptá-la, trazendo a linguagem oral para a literatura), o escritor
considera que a expressão nacional na literatura – assim como em outras artes –
era um avanço irrefutável. O autor
analisa as produções das décadas de 1920
e 1940, e reitera que estava sendo produzida literatura moderna no
Brasil.
No
entanto, no âmbito social (ou no que o autor chama de atualização da
Inteligência artística, que engloba, além do caráter estético, o caráter social
da arte), Mário de Andrade se ressente de ter permitido o “burguês gostoso” ter
se sobreposto ao “intelectual consciente” e por não pegar “a máscara do tempo e
esbofeteá-la como ela merece”.
Para o
crítico, a geração de 1920 pecou por ausência de realidade e de virilidade,
isto é, por falta de
engajamento real nos problemas de seu tempo,
problemas esses fundamentalmente sociais e políticos. Seu julgamento é sem
dúvida severo demais, uma das consequências de seu espírito crítico por
natureza. Como veremos a seguir, há estudos a respeito do movimento que conseguem,
com um distanciamento maior, apontar diferentes fases no modernismo e na própria
obra de Mário de Andrade, em que, ora o aspecto estético, ora o político-social
se sobressaem. A partir desses estudos, verificamos que as obras mais tardias
já incorporaram uma atitude estética inovadora e passam a trazer uma carga
muito maior de senso de realidade e de crítica social. Porém, o crítico é
implacável com o escritor:
E
apesar de nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade,
uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o
amilhoramento político-social do homem. E esta é a essência da nossa idade.
João
Luiz Lafetá considera que o movimento modmodernista foi em todos os momentos formado
pela interação de duas esferas: a ideológica e a estética. Para ele, a
necessidade de engajamento com os problemas de seu tempo era algo intrínseco ao
movimento e caracteriza seu âmbito ideológico.
Já a
ruptura da linguagem academista e a incorporação do popular e do primitivo
caracterizam seu âmbito estético. Esses
dois aspectos nunca se separam na literatura, mas vivem em constante
tensão.
Para o
autor, o modernismo teve duas fases caracterizadas pela predominância de cada um
desses aspectos, em detrimento do outro. Mas num certo momento, compreendido na
segunda fase, parece ter havido um equilíbrio de forças entre eles, que em
seguida se diluiu.
Na
primeira fase, que compreende as produções da década de 1920, chamada pelo
autor de “fase heroica”, teria havido uma predominância do caráter estético da
literatura: “A experimentação estética é revolucionária e caracteriza
fortemente os primeiros anos do movimento.”
Essa
avaliação está de acordo com a avaliação
de Mário de Andrade, se tomarmos suas considerações a respeito da grande
vitória do movimento, que teria sido nas suas conquistas estéticas. Quando
Andrade fala do movimento na conferência abordada neste trabalho, ele se refere
à geração de 1920, aos artistas da Semana de Arte Moderna, sempre em contraste
com a geração posterior, dos artistas da década de 1940. Lafetá chama a atenção
para o fato de que a ruptura da linguagem e o seu desnudamento no interior da
obra literária eram ações primordiais na “fase heroica” do modernismo. Somente
por meio dessas conquistas no campo estético, o modernismo seria capaz de
atingir seu objetivo: inovar a literatura nacional. Nesse momento, apesar de as
obras terem atitude crítica perante os conflitos da realidade, seu tom era mais
ameno.
Já numa segunda fase, que compreende para
Lafetá a década de 1930, as conquistas estéticas já estavam consolidadas e
amadurecidas, “superando os modismos e os cacoetes dos anos vinte, abandonando
o que era pura contingência ou necessidade do período de combatede destaque nas
obras. O engajamento nos problemas do seu tempo não era apenas tema na poesia
moderna. Deveria ser muito mais que isso: a irreverência e a inconformidade
perante os problemas era uma característica interna da literatura moderna, uma
exigência que se impunha aos artistas: “(...) inserindo-se dentro de um
processo de conhecimento e
interpretação da realidade nacional [o movimento]
não ficou apenas no desmascaramento da estética passadista, mas procurou abalar
toda uma visão do país que subjazia à produção anterior à sua atividade.”
MODERNISMO E
CRÍTICA LITERÁRIA
No
livro 1930: a crítica e o modernismo, João Luiz Lafetá faz uma análise da
crítica literária brasileira na década de 1930, a fim de avaliar o impacto do
modernismo na crítica.
Para
tanto, ele escolhe críticos que incorporaram mais ou menos em seu exercício as exigências
impostas pela nova literatura surgida a
partir da ruptura proporcionada pelo modernismo. O principal critério de
avaliação dessa nova crítica literária, segundo o autor, é a incorporação de
uma consciência aprofundada da linguagem, que vai muito além da tarefa rotineira
da crítica. Uma vez que o movimento modernista teve como consequência do desnudamento
dos procedimentos da linguagem na obra a consciência da própria linguagem, a
tarefa da crítica se tornou mais complexa. Se antes seu papel era essa
consciência, agora já praticada pela obra, dali em diante a crítica
precisaria aumentar ainda mais o processo de conscientização, verificando se a
literatura foi capaz de atingir seu novo propósito e até que ponto esse alcance
se deu.
Como dito anteriormente, Lafetá considera que
o modernismo tem intrínsecas duas esferas em constante tensão – a ideológica e
a estética –, ora tendendo ao equilíbrio, ora ao atrito. O autor ressalta a
importância da consciência dessa tensão permanente para a crítica.
Entre
os críticos por ele estudados, Mário de Andrade é o que apresenta a obra mais
rica, e o principal motivo é que o crítico está sempre em busca de um aspecto
fundamental do modernismo, ou seja, do equilíbrio entre o aspecto estético e o
ideológico da literatura.
Em seu estudo sobre a crítica
mariodeandradeana, Lafetá segue a trajetória do artista, do teórico e do
crítico Mário de Andrade, acompanhando o desenvolvimento de seu pensamento e de
sua prática artística, desde sua “fase heroica”, em que o escritor-teórico precisa
defender uma nova forma de arte por meio de novos parâmetros estéticos, no “O
carro da miséria” e o crítico escreve os ensaios que serão posteriormente
editados nos livros “ O empalhador de passarinho e Aspectos da literatura
brasileira. Mário de Andrade demonstra desde o início um esforço crítico e
teórico grande, mostrando um conhecimento profundo das
tendências das vanguardas europeias. Se, na
primeira fase, ele parece favorecer o
enfoque individual da obra de arte, o
lirismo, isso se dá graças à necessidade de que tratamos anteriormente
de romper com uma concepção parnasiana de arte, em que o artista fica sujeito a
regras rígidas de conduta, sob as quais muitas vezes sucumbe a liberdade
produtiva. No entanto, ele jamais deixa de perceber a importância do caráter
estético da obra de arte, a técnica, sempre buscando um ponto de equilíbrio
entre esses dois enfoques e também, devido à sua condição de vanguardista,
buscando novos parâmetros estéticos –
como a teoria do
“polifonismo” –, que fossem capazes de fundamentar
sua arte.
Após encontrar um ponto de equilíbrio entre
esses dois enfoques da arte – o que fica claro já em A escrava que não é
Isaura, surge um novo impasse. O escritor precisa se ajustar novamente, agora a
uma outra exigência: o caráter social, público, da obra de arte. A eficaz combinação
entre a ruptura da linguagem e a crítica social terá sua síntese na obra
publicada em 1930, “O carro da miséria”. Consciência que o crítico Mário de Andrade
atingirá somente no final da década, com uma nova concepção de técnica e de
arte. Para Lafetá, o crítico expõe pela primeira vez essa nova ideia na
conferência “O artista e o artesão”, de 1938: “Aqui
Mário
de Andrade ampliou consideravelmente o seu conceito de ‘técnica’, tornando-se
capaz de abranger tanto o lirismo individual como as condições sociais em que o
artista produz sua obra”.
Se fizermos uma comparação entre o estudo de Lafetá e a conferência de Mário de Andrade, torna-se
visível que a avaliação deste crítico está de acordo com a do estudo posterior.
Por ter uma visão temporalmente mais distanciada, Lafetá percebe o movimento em
várias fases, percepção que diverge das de Mário de Andrade e Álvaro Lins, que
na década de 1940 já consideram o modernismo como terminado e avaliam a
literatura da época como uma consequência do movimento. Não é interesse para o
presente trabalho entrar a fundo nessas classificações. Mas é válido ressaltar
que as avaliações convergem ao constatar um predomínio do âmbito estético nas
obras literárias produzidas na década de 1920; na segunda
fase, que Mário de Andrade já não considera como parte do movimento, mas
como consequência dele, é que foi possível um avanço maior no âmbito
político-social, uma vez que a vanguarda já havia conquistado a liberdade de
criação estética. Graças à estabilização dessa conquista, os artistas foram
capazes de se debruçar sobre esse outro aspecto da arte.
É importante ressaltar que o crítico Mário de
Andrade teve consciência dessa transformação, o que se demonstra com a leitura
de seus ensaios críticos sobre as produções literárias da época. Seu embate com
o constante conflito estético-ideológico
é tão intenso e sem trégua que às vezes seu trabalho crítico parece se
contradizer, pois ora defende a literatura como estética pura, ora como
engajamento social. No entanto, para Lafetá, essa aparente contradição é um exercício
de consciência, uma tentativa de não se deixar levar pelas influências do
momento. Seu esforço é de não perder de vista a tensão entre os dois polos da arte,
tentando chamar a atenção para um aspecto, na medida em que percebe que numa
dada obra ou num dado contexto está excessivamente prejudicado em relação ao
outro.
CONCLUSÃO
Conforme
explicitado anteriormente, as contribuições do modernismo não foram homogêneas
e atingiram níveis diferentes de
ruptura. Enquanto alguns artistas e alguns setores da sociedade conseguiram ir
mais fundo e atingir transformações de maior vulto, outros permaneceram na
superfície dessas transformações. Esse fenômeno é comum em movimentos
artísticos. Da mesma forma, é natural que um movimento se dilua após um tempo
de assimilação e dê a sensação de que as conquistas da fase mais radical tenham
se perdido, ou mesmo retrocedido a uma fase anterior de estagnação. Isso de
fato pode ocorrer,
mas somente de forma parcial. No momento de
diluição de um movimento, a arte, a literatura, e a sociedade já adquiriram
valores conquistados com a ruptura inicial, pelo menos aqueles valores que ela
estava pronta para incorporar.
Tendo
esse ponto de vista como parâmetro para o presente trabalho, foi escolhido um representante
da “ala” mais radical do modernismo. Sua radicalidade está no fato de ter conseguido
atingir as mudanças mais representativas, tanto no âmbito estético, pois
conseguiu de fato por em prática uma linguagem inovadora, quanto no âmbito
político-social, pois não abriu mão da visão crítica, apartidária e autônoma
sobre as questões do seu tempo.
Para concluir, procuraremos entender o que fez
com que essa vertente do modernismo se tornasse a mais efetiva e,
consequentemente, a mais representativa do movimento. Para tanto, procuraremos
avaliar melhor o que significa a atitude consciente do escritor e do crítico Mário
de Andrade. O fato de ter conseguido atingir os maiores avanços estéticos e
críticos pode se explicar em parte pela forma como ele viu a ruptura: seu senso
apurado do espírito do seu tempo e do seu lugar na história o ajudou a ter uma
atitude vanguardista, não de rebeldia contra o que oprimia sua arte e seu
pensamento, mas de real autonomia, aceitando e incorporando o que a tradição e
o centro tinham de produtivo e negando e transfigurando aquilo que não
interessava. A consequência desse posicionamento autônomo foi que o autor não
se deixou levar pelo ufanismo, nem pela repulsa cega dos padrões questionados,
o que mostra uma atitude madura, apesar de revolucionária.
Enquanto alguns vanguardistas insistiam numa
atitude de pura revolta contra Portugal, por exemplo, Mário de Andrade em
momento algum – a não ser logo no
início, talvez – pensou em construir uma literatura brasileira sem qualquer
tipo de influência ou diálogo com o passado ou com a literatura universal.
Eneida Maria de Souza lembra a atitude do autor diante da cultura da metrópole,
aquela que será muito bem elaborada pela antropofagia:
(...) o
“esquecimento” da cultura imposta pela metrópole seria o antídoto eficaz a ser utilizado na luta a
favor da independência cultural, pela desobediência do colonizado frente à
marca registrada das idéias e modelos do colonizador. Esse esquecimento não implicaria,
evidentemente, a destruição de uma memória acumulada, mas a prática de
transgressão e releitura dos modelos.
Dessa
forma, por mais que o modernismo tenha chegado a um estágio de diluição dos padrões
estéticos, como conclui melancolicamente Álvaro Lins na década de 1960, chegando
ao “abandono do brasileirismo que vinha caracterizando a nossa literatura desde
o advento do movimento modernista”,não se pode negar que muitos valores
cultivados pelo movimento foram incorporados à literatura e à crítica
brasileiras, ou pelo menos em uma parcela dessa produção. Vários de nossos
autores foram capazes de criar uma literatura brasileira, no que tem de
peculiar, de original, e ao mesmo tempo universal, pois não ficou impregnada de clichês e maneirismos
regionalistas. Podem ser citadas, como exemplo do que acabamos de afirmar,
obras literárias como as de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo
Neto e Graciliano Ramos. Entre as produções críticas, também houve êxito na
busca por uma consciência aprofundada da linguagem. Estudos como os de Antonio
Candido e Álvaro Lins, por exemplo, conseguiram incorporar as exigências
modernas da crítica literária e deixaram contribuições de vulto para a
sistematização da literatura brasileira.
www.letras.ufmg.br/.../TEXTO%202%20LARISS..
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