MODERNISMO - 1ª FASE: MÁRIO DE ANDRADE

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       Mário Raul de Morais Andrade (São Paulo, 9 de outubro de 1893 — São Paulo, 25 de fevereiro de 1945) foi um poeta, romancista, musicólogo, historiador, crítico de arte e fotógrafo brasileiro. Um dos fundadores do modernismo brasileiro, ele praticamente criou a poesia moderna brasileira com a publicação de seu livro Pauliceia Desvairada em 1922. Andrade exerceu uma influência enorme na literatura moderna brasileira e, como ensaísta e estudioso—foi um pioneiro do campo da etnomusicologia—sua influência transcendeu as fronteiras do Brasil.

    Andrade foi a figura central do movimento de vanguarda de São Paulo por vinte anos. Músico treinado e mais conhecido como poeta e romancista, Andrade esteve pessoalmente envolvido em praticamente todas as disciplinas que estiveram relacionadas com o modernismo em São Paulo, tornando-se o polímata nacional do Brasil. Suas fotografias e seus ensaios, que cobriam uma ampla variedade de assuntos, da história à literatura e à música, foram amplamente divulgados na imprensa da época. Andrade foi a força motriz por trás da Semana de Arte Moderna, evento ocorrido em 1922 que reformulou a literatura e as artes visuais no Brasil, tendo sido um dos integrantes do "Grupo dos Cinco". As idéias por trás da Semana seriam melhor delineadas no prefácio de seu livro de poesia Paulicéia Desvairada e nos próprios poemas.
Depois de trabalhar como professor de música e colunista de jornal ele publicou seu maior romance, Macunaíma, em 1928. Andrade continuou a publicar obras sobre música popular brasileira, poesia e outros temas de forma desigual, sendo interrompido várias vezes devido a seu relacionamento instável com o governo brasileiro. No fim de sua vida, se tornou o diretor-fundador do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo formalizando o papel que ele havia desempenhado durante muito tempo como catalisador da modernidade artística na cidade—e no país.
    Andrade nasceu em São Paulo, cidade onde morou durante quase toda a vida no número 320 da Rua Aurora profª Elaine, onde seus pais, Carlos Augusto de Andrade e Maria Luísa de Almeida Leite Moraes de Andrade também haviam morado. Durante sua infância foi considerado um pianista prodígio, tendo sido matriculado no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo em 1911. Recebeu educação formal apenas em música, mas foi autodidata em história, arte, e especialmente poesia. Dominava a língua francesa, tendo lido Rimbaud e os principais poetas simbolistas franceses durante a infância. Embora escrevesse poesia durante todo o período em que esteve no Conservatório, Andrade não pensava em fazê-lo profissionalmente até que a carreira de pianista profissional deixou de ser uma opção viável.
    Em 1913, seu irmão Renato, então com quatorze anos de idade, morreu de um golpe recebido enquanto jogava futebol, o que causou um profundo choque em Andrade. Ele abandonou o conservatório e se retirou com a família para uma fazenda que possuíam em Araraquara. Ao retornar, sua habilidade de tocar piano havia sido afetada por um tremor nas mãos. Embora ele houvesse se formado no Conservatório, ele não se apresentou mais e começou a estudar canto e teoria musical com a intenção de se tornar um professor de música. Ao mesmo tempo, começou a ter um interesse mais sério pela literatura. Em 1917, ano de sua formatura, publicou seu primeiro livro de poemas, Há uma Gota de Sangue em Cada Poema, sob o pseudônimo de Mário Sobral.O livro contém indícios de uma crescente percepção do autor em relação a uma identidade particularmente brasileira, mas, assim como a maior parte da poesia brasileira produzida na época, o faz num contexto fortemente ligado à literatura européia—especialmente francesa.
Seu primeiro livro parece não ter tido um impacto significativo, e Andrade decidiu ampliar o âmbito de sua escrita. Deixou São Paulo e viajou para o campo. Iniciou uma atividade que continuaria pelo resto da vida: o meticuloso trabalho de documentação sobre a história, o povo, a cultura e especialmente a música do interior do Brasil, tanto em São Paulo quanto no Nordeste[8] Andrade também publicou ensaios em jornais de São Paulo, algumas vezes ilustrados por suas próprias fotografias, e foi, acima de tudo, acumulando informações sobre a vida e o folclore brasileiro. Entre as viagens, Andrade lecionava piano no Conservatório, havendo sido também, conforme relato de Oneyda Alvarenga, aluno de estética do poeta Venceslau de Queirós, sucedendo-o como professor no Conservatório após sua morte em 1921.
    Mário de Andrade compôs uma única canção, intitulada "Viola Quebrada". A composição é uma parceria de Mário com Ary Kerner.

Semana de Arte Moderna
      Ao mesmo tempo que Andrade efetuava seu trabalho como pesquisador do folclore brasileiro, fez amizade com um grupo de jovens artistas e escritores de São Paulo que, como ele, estavam interessados no modernismo europeu. Alguns deles mais tarde integrariam o chamado "Grupo dos Cinco", composto por ele próprio, os poetas Oswald de Andrade (sem relação de parentesco com Mário de Andrade, apesar da coincidência de nomes) e Menotti del Picchia, além das pintoras Tarsila do Amaral e Anita Malfatti. Malfatti havia visitado a Europa nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial, e introduziu o expressionismo em São Paulo.
    Em 1922, ao mesmo tempo que preparava a publicação de Pauliceia desvairada, Andrade trabalhou com Malfatti e Oswald de Andrade na organização de um evento que se destinava a divulgar as obras deles a uma público mais vasta: a Semana de Arte Moderna, que ocorreu no Teatro Municipal de São Paulo entre os dias 11 e 18 de fevereiro. Além de uma exposição de pinturas de Malfatti e de outros artistas associados ao modernismo, durante esses dias foram realizadas leituras literárias e palestras sobre arte, música e literatura. Andrade foi o principal organizador e um dos mais ativos participantes do evento, que, apesar de ser recebido com ceticismo, atraiu uma grande audiência. Andrade, na ocasião, apresentou o esboço do ensaio que viria a publicar em 1925, a A Escrava que não é Isaura.
    Os membros do Grupo dos Cinco continuaram trabalhando juntos durante a década de 1920, período durante o qual a reputação deles cresceram e as hostilidade às suas inovações estéticas foram gradualmente diminuindo. Mário de Andrade trabalhou, por exemplo, na "Revista de Antropofagia", fundada por Oswald de Andrade, em 1928. Mario e Oswald de Andrade foram os principais impulsionadores do movimento modernista brasileiro. De acordo com Paulo Mendes de Almeida, que era um amigo de ambos.

Missão de pesquisas folclóricas
    Em 1935, durante uma era de instabilidade do governo Vargas, organizou, juntamente com o escritor e arqueólogo Paulo Duarte, um Departamento de Cultura para a unificação da cidade de São Paulo (Departamento de Cultura e Recreação da Prefeitura Municipal de São Paulo), onde Andrade se tornou diretor.[carece de fontes] Em 1938 Mário de Andrade reuniu uma equipe com o objetivo de catalogar músicas do Norte e Nordeste brasileiros.
    Tinha como objetivo declarado, de acordo com a ata da sua fundação, "conquistar e divulgar a todo país, a cultura brasileira".O âmbito de aplicação do recém-criado Departamento de Cultura foi bastante amplo: a investigação cultural e demográfica, como construção de parques e recriações, além de importantes publicações culturais.
     Exerceu seu cargo com a ambição que o caracterizava: ampliar seu trabalho sobre música e folclore popular, ao mesmo tempo organizar exposições e conferências. As missões resultaram um vasto acervo registrados em vídeo, áudio, imagens, anotações musicais, dos lugares percorridos pela Missão de Pesquisas Folclóricas, o que pode ser considerado como um dos primeiros projetos multimédia da cultura brasileira. O material foi dividido de acordo com o caráter funcional das manifestações: músicas de dançar, cantar, trabalhar e rezar. Trouxe sua coleção fonográfica-cultural para o Departamento, formando uma Discoteca Municipal, que era possivelmente as melhores e maiores reunidas no hemisfério.
      Num marco do Departamento de Cultura, Claude Lévi-Strauss, então professor visitante da Universidade de São Paulo, realizou pesquisas. Outro grande evento foi a Missão de Pesquisas Folclóricas, que 1938, visitou mais de trinta localidades em seis estados brasileiros à procura de material etnográfico, especialmente na música. A missão foi interrompida, no entanto, quando, em 1938, pouco depois de instaurado o Estado Novo (do qual era contrário),por Getúlio Vargas, Mário demitiu-se do departamento.
    Mário de Andrade também foi um dos mentores e fundadores do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, junto com o advogado Rodrigo Melo Franco . Limitações de ordem política e financeira impediram a realização desse projeto (que seria caracterizado por uma radical investida no inventário artístico e cultural de todo o país), restringindo as atribuições do instituto, fundado em 1937, à preservação de sítios e objetos históricos relacionados a fatos políticos históricos e ao legado religioso no país.
     Mudou-se para o Rio de Janeiro para tomar posse de um novo posto na UFRJ, onde dirigiu o Congresso da Língua Nacional Cantada, um importante evento folclórico e musical. Em 1941 voltou para São Paulo e ao antigo posto do Departamento de Cultura, apesar de não trabalhar com a mesma intensidade que antes.
   Andrade morreu em sua residência em São Paulo devido a um enfarte, em 25 de fevereiro de 1945, quando tinha 52 anos. Dadas as suas divergências com o regime, não houve qualquer reação oficial significativa antes de sua morte. Dez anos mais tarde, porém, quando foram publicadas em 1955, Poesias completas, quando já havia falecido o ditador Vargas, começou a consagração de Andrade como um dos principais valores culturais no Brasil. Em 1960 foi dado o seu nome à Biblioteca Municipal de São Paulo.

Obra
    Sua segunda obra, Pauliceia desvairada, o colocou entre os pioneiros do movimento modernista no Brasil, culminando, em 1922, como uma das figuras mais proeminentes da histórica Semana de Arte Moderna. Alguns dos seus livros de poesia mais conhecidos são: Losango cáqui, Clã do jabuti, Remate de males, Poesias e Lira paulistana.

Pauliceia desvairada
     O "prefácio interessantíssimo" é o prefácio de Mário de Andrade ao seu próprio livro Pauliceia Desvairada, considerado a base do modernismo brasileiro.[15] Abre com uma citação do escritor belga Émile Verhaeren, que é o autor de Villes Tentaculaires. O prefácio não fala do livro, mas sim de uma atitude geral perante a literatura. É uma espécie de manifesto poético, em versos livres.
    No início do Prefácio ele próprio denuncia a sua atitude. Depois de afirmar que "está fundado o Desvairismo", afirma que o seu texto é meio a sério meio a brincar. O que lhe dá um caráter inconfundível de, por um lado, programa poético e, por outro, paródia. Assim o sério e o divertimento se misturam num todo sem fronteiras definidas. Repare-se ainda que é um texto muito assertivo, provocativo e polêmico no que é característico o Modernismo.
    Num estilo rápido e solto, com ideias truncadas, e que atinge um efeito de grande dinamismo. Mário de Andrade luta por uma expressão nova, por uma expressão que não esteja agarrada a formas do passado: "escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto."
    Outra das ideias expressas por Mário de Andrade neste Prefácio/Manifesto é que a língua portuguesa é uma opressão para a livre expressão do escritor no Brasil. Assim ele afirma que "A língua brasileira é das mais ricas e sonoras". Para reforçar esta ideia do brasileiro como língua, grafa propositadamente a ortografia de modo a ficar com o sotaque brasileiro. Assim aparece muitas vezes neste manifesto "si" em vez de "se".         
     Neste ponto está a ser completamente contra os poetas parnasianos que defendiam uma ideia de que a língua portuguesa seria a língua dos bons e grandes escritores do passado. Neste ponto, Mário de Andrade é um nacionalista. Mas não admira Marinetti. É contra a rima. E contra todas as imposições externas. "A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de línguas organizadas". "Os portugueses dizem ir à cidade. Os brasileiros, na cidade. Eu sou brasileiro". (Citado por Celso Pedro Luft).
    A ideia, talvez, mais importante deste Prefácio é a de Polifonia e de Liberdade. "Arroubos… Lutas… Setas… Cantigas… povoar!" (trecho da poesia Tietê) Estas palavras não se ligam. Não formam enumeração. Cada uma é frase, período elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico".
Publicou, em 1928, Macunaíma o herói sem nenhum caráter e Ensaio sobre a Música Brasileira. Dois anos após, seus poemas "Mulher" e "Noturno de Belo Horizonte" são lidos, pelo professor da Cadeira de Estudos Brasileiros da Faculdade de Letras de Coimbra, Manoel de Souza Pinto, na conferência Poesia Moderníssima do Brasil.
    Em 1938 transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde exerceu o cargo de diretor do Instituto de Artes na antiga Universidade do Distrito Federal (hoje Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Regressando a São Paulo em 1942, regeu durante muitos anos a cadeira de História da Música no Conservatório Dramático e Musical.
    Possuidor de uma cultura ampla e profunda erudição, foi o fundador e primeiro diretor do Departamento de Cultura de São Paulo da Prefeitura Municipal de São Paulo, onde implantou a Sociedade de Etnologia e Folclore, o Coral Paulistano e a Discoteca Pública Municipal - a "Discoteca Oneyda Alvarenga".
Foi amigo e partilhou os ideais estéticos modernistas de Oswald de Andrade.
    O próximo livro de poemas por Andrade, Losango cáqui (publicado em 1926, mas escrito em 1922), continua na mesma linha do trabalho anterior. Em Clã do jabuti (1927) e Remate de males (1930), faz amplo uso da sua pesquisa etnográfica.
    Desde 1930, coincidindo com a Revolução de 1930, a sua poesia sofre mudanças. Parte do seu trabalho posterior, como Poesia (1942), é resvala para um tom mais íntimo e sereno, embora mantenha uma outra linha de acusação e de política social, com obras como O Carro da miséria e Lira paulistana(1946).
     A esse último trabalho pertence um longo poema intitulado "Meditação sôbre o Tietê", um livro denso e complexo, pelos críticos, foi descrito como seu primeiro trabalho "sem importância", apesar das animadoras críticas sobre o poema. A Meditação é um poema sobre a cidade e concentra-se no rio Tietê, que atravessa São Paulo. O poema é simultaneamente um resumo da trajetória poética de Andrade, em diálogo com seus poemas anteriores.
     Mário de Andrade foi também um excelente escritor. Escreveu vários contos publicados: Primeiro andar (1926) e Contos Novos (1946), bem como crônicas (Os Filhos da Candinha, 1945). Ele foi o autor de dois romances: Amar, verbo intransitivo (1927) e Macunaíma (1928). O primeiro causou um escândalo na época, uma vez que reconta a iniciação sexual de um adolescente com uma mulher madura, uma alemã contratada pelo pai do jovem.O segundo, desde sua primeira edição, é apresentado pelo autor como uma rapsódia, e não como romance, é considerado um dos romances capitais da literatura brasileira.
     A fonte principal para Macunaíma vem do trabalho etnográfico do alemão Koch-Grünberg, conforme relata o próprio autor. Koch-Grünberg, no livro Von Roraima zum Orinoco, recolheu lendas e histórias dos índios taulipangues e arecunás, da Venezuela e Amazônia brasileira. A partir desses materiais, Andrade criou o que ele chamou rapsódia, um termo ligado a tradição oral da literatura. O livro editado por Tele Ancona Lopes possui extenso material sobre o intertexto deste livro.
      O protagonista, Macunaíma, é chamado de "o herói sem nenhum caráter".

Obras publicadas
Há uma Gota de Sangue em Cada Poema, 1917
Pauliceia Desvairada, 1922
A Escrava que Não É Isaura, 1925
Losango Cáqui, 1926
Primeiro Andar, 1926
O clã do Jabuti, 1927
Amar, Verbo Intransitivo, 1927
Ensaios Sobra a Música Brasileira, 1928
Macunaíma, 1928
Compêndio Da História Da Música, 1929 (Reescrito como Pequena História da Música Brasileira, 1942)
Modinhas Imperiais, 1930
Remate de Males, 1930
Música, Doce Música, 1933
Belasarte, 1934
O Aleijadinho de Álvares De Azevedo, 1935
Lasar Segall, 1935
Música do Brasil, 1941
Poesias, 1941
O Movimento Modernista, 1942
O Baile das Quatro Artes, 1943
Os Filhos da Candinha, 1943
Aspectos da Literatura Brasileira 1943
O Empalhador de Passarinhos, 1944
Lira Paulistana, 1945
O Carro da Miséria, 1947
Contos Novos, 1947
O Banquete, 1978 (Editado por Jorge Coli)
Dicionário Musical Brasileiro, 1989 (editado por Flávia Toni)
Será o Benedito!, 1992
Introdução à estética musical, 1995 (editado por Flávia Toni)

Legado
    Andrade morreu em sua residência em São Paulo devido a um enfarte do miocárdio, em 25 de fevereiro de 1945, quando tinha 51 anos. Dadas as suas divergências com o regime, não houve qualquer reação oficial significativa antes de sua morte. Dez anos mais tarde, porém, quando foram publicados em 1955, Poesias completas, quando já havia falecido Vargas, começou a consagração de Andrade como um dos principais valores culturais no Brasil. Em 1960 foi dado o seu nome à Biblioteca Municipal de São Paulo.

Sexualidade
    Apenas 50 anos após a morte do escritor a questão da sexualidade de Mário de Andrade foi abordada em livro por Moacir Werneck de Castro, que referiu que na sua roda de amigos não se suspeitava que fosse homossexual, "supunhamos que fosse casto ou que tivesse amores secretos. Se era ou não, isso não afeta a sua obra, nem seu caráter". E só em 1990, o seu amigo António Cândido se referiu directamente ao assunto: "O Mário de Andrade era um caso muito complicado, era um bissexual, provavelmente". O episódio do rompimento de relações com Oswald de Andrade é hoje largamente citado: Oswald ironizou que Mário se "parecia com Oscar Wilde por detrás" e referia-se a ele como "Miss São Paulo". No entanto, persiste fortemente nos meios académicos um "silêncio" sobre o assunto.

Mário na cultura popular
    Mário de Andrade já foi retratado como personagem no cinema e na televisão, interpretado por Paulo Hesse no filme O Homem do Pau-Brasil (1982) e Pascoal da Conceição nas minisséries Um Só Coração (2004) e JK (2006).
pt.wikipedia.org/wiki/Mário_de_Andrade -

Homossexualidade “trava” biografia de Mário Andrade
Jornal Opção - Edição 1911 de 19 a 25 de fevereiro de 2012
Euler de França Belém

      O Ezra Pound brasileiro era homossexual, usava cocaína e abusava de bebidas alcoólicas. Um vulcão de complicações, o autor de “Macunaína” vai ganhar uma biografia explosiva.
Álbum de família/1935
      Mário de Andrade, autor do romance “Macunaíma”: o poeta e prosador foi o intelectual que sedimentou as ideias revolucionárias da Semana de Arte Moderna de 1922 e contribuiu para mudar a linguagem da literatura brasileira
    Finalmente! O escritor Mário de Andrade, autor do romance “Macu­naí­ma” e do poema “Pauliceia Desvairada”, morto há 61 anos, em 25 de fevereiro de 1951, vai ganhar uma biografia, escrita pelo jornalista Jason Tércio. Na sexta-feira, 10, no suplemento de cultura do “Valor Econômico”, o ótimo “Eu&”, o jornalista e biógrafo Tom Cardoso revela, no texto “Enfim, uma biografia de Mário”, a história da biografia em andamento. É um fato a comemorar, pois, embora nascido há 118 anos (9 de outubro de 1893), o papa da Semana de Arte Moderna de 1922 e um dos principais inventores do modernismo no Brasil, o modernismo com cor local, jamais havia ganhado uma biografia — decente ou indecente. Qual o motivo do “esquecimento”, se Mário é um dos autores mais estudados do país? Simples: sua homossexualidade, quase sempre apresentada en passant, inclusive com sugestões de que tinha amantes mulheres — quatro ou cinco grandes amores femininos. A própria reportagem de Tom Cardoso — não é uma resenha, porque o “livro”, que deve ser publicado pela Editora Objetiva, teve apenas sua primeira versão concluída — passa ao largo. O autor, sabendo das dificuldades de lidar com um intelectual tão múltiplo (e defendido pelos acadêmicos) — “um vulcão de complicações”, como ele disse, numa carta a Sérgio Buarque de Holanda, em 1934 —, é cuidadoso. O texto do “Valor” tangencia a questão da homossexualidade e não menciona a paixão de Mário por drogas, inclusive cocaína, e bebida alcoólica. Como nem sempre tinha dinheiro para adquirir uísque e vinhos refinados, tomava porres homéricos de cerveja. Mas é preciso mesmo cuidado com o tema da homossexualidade, não por temor à família e aos tabus tropicais, e sim porque não define um escritor da qualidade e complexidade de Mário. Há sempre o risco de, ao se abusar do sensacionalismo, o biógrafo concentrar-se nos baixos instintos, no apelo ao popularesco. Ainda assim, como a homossexualidade não é crime e não é motivo para que alguém se envergonhe, merece ser referenciada num texto exaustivo, como uma biografia detida, sobre o autor de “Amar, Verbo In­tran­sitivo”. O jornalista, escritor e tradutor Moacir Werneck de Castro, no perspicaz “Mário de Andrade — Exílio no Rio” (Rocco, 237 páginas), escreve: “Deve-se notar que Mário de Andrade, ao estudar em profundidade a obra de um escritor e/ou artista, não deixava de assinalar aspectos que considerava importantes da vida sexual deles. Em Machado de Assis aponta a ‘forte sensualidade nitidamente sexual do artista’, o fato de ter casado e vivido com uma só mulher, com o que ‘simboliza o conceito do amor burguês’. Castro Alves era ‘uma sensualidade perfeitamente sexuada e radiosa’; poeta que ‘canta, e, sem querer, prega uma pansexualidade aceita’”.
     O escritor era mesmo homossexual? Ou era “pansexual” ou bissexual? Ou era assexuado? Há indícios de uma sexualidade viva em Mário, mas não a sexualidade tradicional, definida, fixada pelo comportamento moral e, às vezes, religioso. O cérebro do modernismo patropi teve relacionamentos com mulheres, como sua professora de alemão Kaethe Meichen-Blosen. O que não se sabe, e certamente não se saberá em profundidade — não há memórias e as cartas divulgadas até agora não são reveladoras, antes insinuantes, quando o são —, é como era mesmo o relacionamento. Mário era dado a amores platônicos com mulheres e mantinha relacionamento estreito com vários jovens — escritores e jornalistas. “Estreito” não significa, porém, “sexual”. A biografia que Jason Tércio está escrevendo não é autorizada. Entretanto, temendo alguma retaliação, o jornalista e escritor procurou a família de Mário. Um sobrinho, que fala em nome dos herdeiros, o tratou “com respeito e cordialidade”. Tom Carvalho diz que “ele não teria apresentando nenhum obstáculo legal ou moral — disse apenas que não via necessidade de uma biografia sobre seu tio”.     
       Na verdade, a biografia é necessária, desde que não se concentre no sensacionalismo. Mário é uma espécie de Ezra Pound brasileiro. Como se sabe, Pound copidescou o longo poema “A terra desolada”, do maior poeta do século 20, o norte-americano T. S. Eliot (ao lado de Fer­nando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade). Tornou-o mais preciso e o intransigente Eliot acatou as sugestões. James Joyce também aceitou algumas orientações de Pound ao compor “Ulysses”. Mário, na verdade, fez muito mais. Além de contribuir para que a literatura brasileira — e até o jornalismo (há, claro, quem escreva como se fosse um poeta parnasiano ou, até, romântico, mas é exceção) e mesmo a fala — perdesse a coloração empolada e pomposa, sendo decisivo para a modernização da língua, tornando-a mais universal, sem perder o ethos local, Mário escreveu centenas de cartas para escritores como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Fernando Sabino e, entre outros, Pedro Nava, sempre apontando qualidades, defeitos, reticências, preguiças nos seus textos. Tornou-se uma referência para poetas e prosadores. Mário fazia aquilo que é necessário: situava o autor no contexto da poesia (e da prosa) brasileira e internacional.,
      Às vezes, pensa-se que se está fazendo uma literatura avançada, modelar até para a literatura mundial, quando, na verdade, está-se a repetir o que já foi feito, e não raro com qualidade inferior. Mário tinha conhecimento técnico, uma formação excepcional, para dizer aos “moços” se estavam avançando, recuando ou apenas repetindo ou diluindo. O escritor-orientador não criava uma camisa-de-força; pelo contrário, apresentava o problema, sugeria mudança de foco, mas admitia que o caminho deveria ser trilhado pelo poeta, contista ou romancista. Os escritores ficavam esperando as cartas e praticamente todos disseram que foram úteis. Ele orientou o maior poeta da língua portuguesa no século 20, Drummond de Andrade. Não é pouco. O crítico Mário percebeu, com mestria, que estava orientando um poeta maior, e mesmo maior do que ele próprio, e, no lugar de se mostrar competitivo, provou-se acessível, indicando, com sua pedagogia positiva, caminhos para que o grande poeta se tornasse ainda maior. As cartas trocadas entre Mário e Drummond são “crítica literária”, só aparentemente fortuita, e são quase literatura, tal a qualidade dos textos. “Orgulho de Jamais Aconselhar — A Epistolografia de Mário de Andrade” (Edusp/Fapesp, 245 páginas), do professor-doutor Marcos Antonio de Moraes, é um livro esplêndido sobre as cartas de Mário a escritores e jornalistas (leia uma carta de Mário de Andrade para Drummond). As cartas têm sido muito estudadas, e merecidamente. Espera-se, porém que o exame das missivas não impeça a análise de sua obra literária. Se depender da professora-doutora Telê Ancona Lopez, isto não acontecerá. Telê tem sido para os pesquisadores aquilo que Mário foi para os escritores: uma orientadora brilhante e segura. Jason Tércio fará muito bem, se quer publicar uma biografia séria, se colocar seu texto final sob o crivo da professora da Univer­sidade de São Paulo.
     Jason Tércio diz, em termos apropriados, que “a falta de uma biografia de Mário é uma das maiores lacunas na memória cultural do país, porque, além de principal líder do modernismo, ele foi um dos grandes pensadores da cultura brasileira” (o Brasil é um país tendente a copiar modas: duas cantoras de qualidade duvidosa, Amy Winehouse e Lady Gaga, ganharam biografias, absolutamente desnecessárias). O biógrafo acerta quando sugere (o texto entre aspas é de Tom Cardoso) “que a Semana de 22 só se confirmou como movimento transformador, com todos os seus desdobramentos políticos e culturais, pela capacidade de mobilização de Mário de Andrade. Para o escritor, a Semana corria o risco de não passar de um evento cultural, importante sim, mas sem grandes consequências, se não fosse pela militância que Mário e Oswald de Andrade tiveram”.
      Mostrando-se atento à bibliografia séria, e pouco afeito aos poetas concretistas, notadamente os irmãos Haroldo e Augusto de Campos — que apresentam Oswald como suprassumo da modernismo —, Jason Tércio destaca que Oswald “era principalmente um agitador, um catalisador, e Mário, ‘um pensador participante’”. Indicando que conhece bem o trabalho de Telê Ancona Lopez, João Luiz Lafetá e outros, Jason Tércio nota que foi Mário “quem deu sequência às ideias da Semana, quem mais se empenhou para manter acesa a fogueira, participando dos debates posteriores com artigos na imprensa e palestras, ajudando a fundar revistas, escrevendo ensaios e pondo em prática, nos seus textos, todo o ideário modernista”. Noutras palavras, Mário consolidou o modernismo brasileiro — inclusive como orientador de uma geração excepcional (Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, “rebentos” mais decisivos do que o “Caim” Oswald) —, mas não transformou-o num movimento estanque, paralisante. Mário entendeu, ao incentivar Drummond e João Cabral, entre outros, que o modernismo era uma “revolução” estética em andamento, que começara com ele e Oswald, mas precisava seguir adiante, com autores inclusive mais afortunados literariamente — como são os casos de Drummond e João Cabral, espécies de cristalização do modernismo patropi, ao lado do Guimarães Rosa de “Grande Sertão: Veredas”, o encontro da literatura de Joyce com a mediação dos modernistas e regionalistas tropiniquins. De algum modo, Guimarães Rosa fez sua “antropofagia” literária.
      Jason Tércio observa que Mário “inventou” o intelectual hiperativo. Foi poeta, romancista, cronista, crítico de arte, musicólogo, etnógrafo, fotógrafo, professor, colecionador de arte. Esquece de citar o contista e orientador cultural de uma geração. Por que Jason Tércio evita comentar, em jornal, sobre a sexualidade “complexa” de Mário? Talvez não tenha sido perguntado por Tom Cardoso. Pos­sivelmente, como o tema é espinhoso, o biógrafo não quis antecipar possíveis iras familiares.
     Sexo era muito importante para Mário, como, aliás, para todas as pessoas. Moacir Werneck de Castro, amigo de Mário e um de seus orientandos (Carlos Lacerda também foi “orientado” pelo escritor), toca no assunto, com cuidado, às vezes citando, como suporte, o livro “Figuração da Intimidade — I­ma­gens na Poesia de Mário de An­drade”, do professor e crítico literário João Luiz Lafetá. Mas, como indica o título, trata mais de uma análise da poesia, não especificamente do homem. Lafetá descobre que a obra (a poesia) ilumina o homem — talvez mais do que  as cartas. Moacir escreve: “Os ‘quatro amores eternos’ [mulheres], citados no ‘Girassol da madrugada’, tinham sido na realidade efêmeros, decepcionantes, uns não passando de platônico. Afora esses casos, tivera na mocidade experiências sexuais das quais alguma lhe custou caro para tratamento de ‘doença feia’. E também ‘amores populares’, referidos por seu amigo de juventude Rubens Borba de Moraes. Por exemplo, uma ‘mulatinha linda’, cobiçada pelos rapazes do grupo, e a quem um dia viram passar de braço com o Mário, ‘muito apertadinho’. Não se conhecem em sua vida grandes paixões, amores duradouros e absorventes”.
     Numa carta a Oneyda Alvarenga, Mário aprecia aquilo que Paulo Prado (o rico financiador da Semana de Arte Moderna) chamou de “monstruosa” sensualidade. Mário escreveu na mesma carta: “... não se trata absolutamente dessa sensualidade mesquinhamente fixada na realização dos atos de amor sexual, mas de uma faculdade que, embora sexual sempre e duma intensidade extraordinária, é vaga, incapaz de se fixar numa determinada ordem de prazeres que nem mesmo são de ordem física. Uma espécie de pansexualismo, muito mais elevada e afinal de contas, casta, do que se poderia imaginar. O Manuel Bandeira que me conhece muito intimamente, uma vez, me disse: ‘Você... você tem um amor que não é amor do sexo, não é nem mesmo o amor dos homens, nem da humanidade... você tem o amor do todo!’”.
     João Luiz Lafetá nota que o poema de Mário “Canto do mal de amor” é a expressão do “desejo sexual que tem sua realização impedida”. Ao analisar os poemas do “Grã cão do outubro”, Lafetá percebe, e estou citando Moacir Werneck, “o ‘complexo de mutilação’ visível na ‘fragmentação do eu’ e um sem-número de imagens — símbolos fálicos, sadismo oral etc., tudo máscaras do sexo misturadas a preocupação com a realidade do país e do mundo”. Baseado em Lafetá, Moacir Werneck conclui que é possível observar “um componente homossexual” em “sua personalidade”. Ele sofria muito, afirma. “O seu sofrimento” resultava “de uma sexualidade irrealizada, ou mal realizada, que ele ‘sequestrou’ e sublimou, movido por um pudor extremo, ao qual os freios sociais da época davam maior força repressiva”. O escritor não se considerava edipiano, mas adorava a mãe e viveram na mesma casa até sua morte.
      Mário bebia muito — cerveja, uísque e até uma pinguinha. “Sabe, dei para beber. Tomo bebedeiras. Caí na farra”, disse a Rubens Borba de Moraes. Ele conta que ficava dias “de cama”. Também adorava drogas: “Experimentei de tudo”. Numa carta a Oneyda Alvarenga “escreve que o apaixona extraordinariamente ‘experimentar um tóxico que ainda não conheço’”. E revelou a Paulo Duarte: “Sofro a atração de todos os vícios”. Certa vez, no carnaval de Recife, usou drogas durante cinco dias. “Lou­camente”, contou. Tomou éter, cocaína e sedol. O médico e memorialista Pedro Nava “assegura”, nas palavras de Moacyr Werneck, “que Mário jamais se viciou”. Sua morte, aos 51 anos, se deve, possivelmente, à vida “desregrada”.
      Homem culto, quando apelava, Mário apelava feio. Quando tentaram reconciliá-lo com Oswald de Andrade, que ele só chamava de “Osvaldo”, Mário atacou, numa carta ao amigo e discípulo Murilo Miranda: “Ele que vá à reputa e a triputa que o pariu”. Oswald “batia” em Mário, quase sempre abaixo da linha de cintura, e depois enviava amigos comuns para tentar recompor a amizade. Ao saber que Murilo havia comido carneiro com Oswald, Mário replicou: “Na verdade jantou porco. (...) É uma espécie assim de ódio a posteriori. Se eu visse ele se afogando, acho que o meu impulso natural seria pegar um pau e dar pra se salvar. Mas logo, refletindo, eu percebia que devo odiar ele, e o pau me servia pra empurrar ele mais fundo na água bendita”. Mário morreu sem aceitar a reconciliação com o desrespeitoso autor de “Serafim Ponte Grande”. O que ele disse acima mostra que era menos politicamente correto do que se pensa.
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Mário de Andrade e a busca pela arte brasileira: a pesquisa estética, a inteligência artística brasileira e a consciência criadora nacional
Raquel Medeiros

     A atitude estética pregada por Mário de Andrade resume-se, por assim dizer, à supressão do individualismo moderno, obedecendo às exigências técnicas do fazer artístico. O fato de o artista compreender e dominar a técnica de sua arte o colocava numa relação de respeito com sua obra, e não mais de possessão. O foco seria a própria arte e não mais o artista.
     O fazer artístico, assim, tornava-se uma ação produtiva, que tinha como objetivo “a fabricação de um produto”, sem atender a nenhum desejo do artista. O que se deveria perseguir era a melhoria da técnica ou habilidade do artista e não mais o próprio artista ou suas habilidades pessoais (MORAES, 1999, p. 71).
     Mário de Andrade mencionou Maritain e sua teoria da arte, além de outros escolásticos, como pressuposto teórico à sua tese sobre a atitude estética. Essa teoria “define o agir e o fazer como os dois domínios que constituem a ordem da inteligência prática, distinta da ordem da inteligência especulativa” (MORAES, 1999, p. 70). O objetivo do escritor ao utilizar esse referencial era, sobretudo, distanciar o fazer artístico do individualismo típico da Modernidade definindo a obra como critério do que seja artístico, e não mais o artista, como se vinha fazendo pela maioria dos modernos.
     Outro ponto de concordância do escritor com Maritain era a indistinção entre arte e artesanato, atribuindo a ambos uma origem comum. Para o escolástico, era necessário ir além do reconhecimento de arte e técnica típicas de determinado período histórico e ir ao campo conceitual, alcançando a identidade do fazer artístico.
     Esse ponto foi essencial para o interesse de Mário pelo escolástico. O caminho para a superação do individualismo típico da modernidade seria submeter a arte a um contexto exterior, em que até a origem do artista seria desconhecida. Concomitantemente, havia a referência à dimensão interna do fazer artístico na medida em que se trabalhava a técnica e a produção artesanal. “Tudo dependia, agora, de fazer o artista retornar à sua vocação artesanal original” (MORAES, 1999, p. 72).
     No entanto, Mário de Andrade dava um enfoque maior à matéria como determinante da obra de arte ou artesanato. Assim, arte e artesanato não seriam distintos pelo fato de que seriam fazeres submetidos ao material e suas determinações.
     Ao contrário de Maritain, o escritor via que a dimensão técnica do fazer artístico era o que lhe dava uma força moralizadora. Sua tese era de que a aproximação entre arte e artesanato era o que conseguiria superar o desvio moral advindo do individualismo moderno. Essa postura o colocou em contato com as propostas dos arquitetos modernos, que, na época, procuravam adequar suas técnicas aos novos recursos, obtidos pela onda crescente de industrialização. A arquitetura era considerada uma arte submetida à natureza estética e não aos “caprichos” do arquiteto.
     A arquitetura é considerada uma forma de arte que deve fiar-se menos na invenção do artista que nas exigências do engenheiro. Ainda que guarde um critério de natureza estética, ela depende basicamente de pressupostos de natureza técnica, dedutiva, e não da invenção do artista. Por isso, a arquitetura ocupa um lugar à parte entre as belas-artes, sendo possível mesmo argumentar a favor da sua exclusão do seu meio. (MORAES, 1999, p. 77)
     Primeiro, a arquitetura era dependente da natureza técnica e do material e se definia pela finalidade a que se destinava, superando, assim, o individualismo. Em O artista e o Artesão, Mário indicou uma série de argumentos que colocavam em xeque a questão da autoria, relativizando a importância de técnicas individuais, partindo justamente do exemplo da arquitetura em que o fim justifica os meios - a obra como principal - o caráter social da arte.
     Nesse mesmo argumento - o caráter social da arte - Mário incluiu o folclore, em que a presença humana se dava de forma não individualista, com dimensão funcional. O folclore foi de extrema importância na constituição do ideário de cultura nacional proposto pelo escritor e pelo próprio Movimento Modernista.
     O retrato-do-Brasil que Mário de Andrade propôs-se traçar nesse momento terminava por identificar o ser nacional à ‘coisa folclórica’. No folclore estariam enraizados os traços de nacionalidade. Ora, a manifestação folclórica é coletiva, social, não há como definir a autoria individual de um produto já seu. Já este fato aponta para a inexistência nela de qualquer traço de individualismo. A ‘coisa folclórica’ tampouco está sujeita a qualquer desvio formalista, sendo sua principal característica a economia de recursos inventivos. (MORAES, 1999, p. 80, grifos meus)
     Nota-se que a dimensão de arte proposta era o distanciamento do formalismo, atribuindo à arte uma dimensão utilitária, própria da vida coletiva. A serventia do objeto artístico era o que determinava sua forma - uma perspectiva pragmática do fazer artístico (MORAES, 1999). Essa perspectiva foi ao encontro dos pressupostos do movimento, pois se abrigou na cotidianidade do povo brasileiro; a presença do artista/artesão de modo não destacado, dando ao usuário do objeto artístico uma forma de comunicação com sua realidade social.
     A atitude estética proposta pelo escritor revelou uma arte inserida no cotidiano, servindo ao usuário, que, por sua vez, poderia se identificar com a utilidade do instrumento, com sua aparência não destacada no cotidiano da vida coletiva.
     De modo geral, Mário de Andrade propunha certo resgate da vida cotidiana coletiva em contraste com os “males” da modernidade - experimentalismo acentuado, formalismo demasiado e hermetismo prejudicial à arte social. A solução à acentuada visão do papel do gênio seria dar prioridade ao material no processo de criação, regenerando e moralizando o artista. Sublinhando “a função da arte na vida das coletividades”, o escritor tinha como objetivo a oposição ao individualismo e ao formalismo, focando no papel social da arte em si e do próprio fazer artístico (MORAES, 1999, p. 88).
      Em O Artista e O Artesão, aula inaugural de Mário de Andrade para o curso de Filosofia e História da Arte da Universidade do Distrito Federal, foram abordados quatro elementos que constituem a base de toda obra de arte: a sublimação e a comunhão social, ligadas ao psíquico, e a técnica e a forma, ligadas ao material. Destacou, ainda, o desequilíbrio entre esses elementos ao longo da história, em que prevaleceu o sentimento em detrimento dos aspectos expressivos - individualismo x social: “se o espírito não tem limites na criação, a matéria o limita na criatura” (ANDRADE, 1975, p. 25)
      Pode-se tirar dessa força moral que o fazer artístico tem o fato de que, ao transferir todo o conhecimento para a obra de arte, o artista/artesão não mede nem filtra os efeitos que ela terá nos grupos sociais ou indivíduos, retomando o caráter social do fazer artístico, numa perspectiva interacionista - a arte como comunicação, comunhão e expressão, desinteressada de objetivos individualistas e ideológicos.
      Identifica-se, assim, a atitude estética proposta por Mário de Andrade, “uma nova direção para a técnica artística que, ao invés de se apresentar como veículo para a expressão de uma personalidade, a técnica passaria a condicionar e limitar o gesto do artista.” Na proposta, havia “um sentido inexorável de destruição do eu” (SANDRINI, 2009, p. 464).
      É possível distinguir as três categorias daquilo que o escritor chamava de arte: o artesanato, que seria a aprendizagem com o material; o virtuosismo, movimento de pesquisa da tradição em determinado fazer artístico, e a solução pessoal, que seria o diálogo entre o material, o artista e as exigências contemporâneas (SANDRINI, 2009, p. 464). Neste sentido, a postura do artista/artesão seria a de intensa pesquisa, um “engajamento constante, em todas as direções: a artista não deve alienar-se, nem de si mesmo, nem de seu artesanato, nem da história” (LAFETÀ, 1974, p. 161). Ou seja, afirmar o valor coletivo da arte. Identifica-se, deste modo, o primeiro ponto do que denomina-se, aqui, de tríade conceitual proposta por Mário de Andrade: o direito permanente à pesquisa estética.
     Quanto ao direito de pesquisa estética e atualização universal da criação artística, é incontestável que todos os movimentos históricos das nossas artes... sempre se basearam no academismo. Com alguma exceção individual rara, sem a menor repercussão coletiva, os artistas brasileiros jogaram sempre colonialmente no certo. Repetindo e afeiçoando estéticas já consagradas, se eliminava assim o direito de pesquisa, e consequentemente de atualidade. [...] Ora o nosso individualismo entorpecente se esperdiçava no mais desprezível dos lemas modernistas, ‘Não há escolas!’, e isso terá por certo prejudicado muito a eficiência criadora do movimento. E si não prejudicou a sua ação espiritual sobre o país, é porque o espírito paira sempre acima dos preceitos como das próprias ideias... Já é tempo de observar, não o que um Augusto Meyer, um Tasso da Silveira e um Carlos Drummond de Andrade têm de diferente, mas o que tem de igual. (ANDRADE, 1942, p. 479)
      Diante desta atitude estética e a urgência da postura de pesquisador dos intelectuais e do próprio artista, como consequência viria a atualização da inteligência artística nacional, segundo ponto da tríade conceitual marioandradiana, fruto da atitude estética que pregava a pesquisa constante, extrapolando o fator meramente estético da arte e alcançando seu significado para a coletividade. A inteligência artística nacional ainda se baseava no conceito de arte social e na conquista do direito permanente à pesquisa estética:
     Quanto à conquista do direito permanente de pesquisa estética, creio não ser possível qualquer contradição: é a vitória grande do movimento no campo da arte. E o mais característico é que o antiacademismo das gerações posteriores à da Semana de Arte Moderna, se fixou exatamente naquela lei estético-técnica de ‘fazer milhor’, a que aludi, e não como um abusivo instinto de revolta, destruidor em princípio, como foi o do movimento modernista. Talvez seja o atual, realmente, o primeiro movimento de independência da Inteligência brasileira, que a gente possa ter como legítimo e indiscutível. Já agora com todas as possibilidades de permanência. (ANDRADE, 1942, p. 480 e 481)
     Mário de Andrade ainda completa:
     Ora, como atualização da inteligência artística é que o movimento modernista representou papel contraditório e muitas vezes gravemente precário. Atuais, atualíssimos, universais, originais mesmo por vezes em nossas pesquisas e criações, nós, os participantes do período milhormente chamado ‘modernista’ fomos, com algumas exceções nada convincentes, vítimas do nosso prazer da vida e da festança em que nos desvirilizamos. Si tudo mudávamos em nós, uma coisa esquecemos de mudar a atitude interessada diante da vida contemporânea. (ANDRADE, 1942, p. 482)
     A arte colocada como agente ideológico seria aquela que tinha como tarefa a transmissão de mensagens. No entanto, se a mensagem estivesse acima de interesses individuais, poderia exprimir um conteúdo libertário e novo. Nesse sentido, seriam necessárias condições para a constituição da arte com caráter social em um sentido singular, o que seria alcançado pelo desinteresse de interferência excessiva do autor/artesão na obra.
     Partindo dessa premissa, surgiu a posição da arte sem interferências externas, dando aos sujeitos mecanismos para a arte desinteressada, sem subordinação a mecanismos ideológicos ou políticos, focada na vida coletiva.
     Pode-se notar que, nesse ponto, o pensamento do escritor se aproximou das áreas de Sociologia e Antropologia, focando na questão da formação da cultura e identidade nacionais, principalmente com a aproximação do escritor com a doutrina de Durkheim. No estudo dos recursos imaginativos elaborados pelos grupos sociais nas práticas religiosas feito pelo sociólogo, Mário de Andrade aproveitou essa premissa para apontar que, tal qual a religião, a arte também possui o poder de comunhão e afirmação de uma identidade coletiva - “a arte era concebida como fundadora da nacionalidade” (MORAES, 1999, p. 107).
     A arte nacional, longe de exprimir um caráter político-ideológico, exprimiria os aspectos culturais, frutos do afeto (sentimentos e emoções) dos grupos sociais, situando a arte no bojo da vida social, fruto e reflexo da vida coletiva de determinado grupo cultural.
     Para Mário de Andrade, a arte já estava presente no povo, e o artista, portanto, deveria abordar, em suas obras, a arte popular, transpondo seus elementos. Para ele, a nacionalidade estava contida no folclore.
      Essa visão de nacionalidade estava sustentada numa cadeia de reduções. A nacionalidade seria a própria cultura popular que, por sua vez, ligar-se-ia ao elemento folclórico. O folclore, assim, é tido como o primitivo, que definiu, para o escritor, o genuíno elemento nacional, que levaria o país ao concerto das nações cultas, definindo a cultura brasileira como singular. A arte não era tida como nacionalista, tal qual na Rússia ou Alemanha, mas nacional, reflexo das realidades sócio-culturais do país, longe dos traços externos e superficiais, podendo, coincidir, assim, com o contexto universal (MORAES, 1999).
      Assim, a atualização da inteligência brasileira se daria com a arte em consonância com a vida comum, como reflexo de uma cultura ou identidade nacional. É extremamente importante destacar que essa tese proposta por Mário de Andrade foi decisiva na formulação do conceito que transferiu a arte, como expressão cultural, das mãos dos especialistas e técnicos para as mãos do povo, detentor do verdadeiro elemento nacional.
     É nas viagens ao interior do país que se pode identificar de onde Mário tirou o terceiro ponto de sua tríade conceitual: a consciência criadora nacional. É de extrema importância seguir os passos do autor nessas viagens, para que se possa entender sua trajetória posterior, como homem público e, principalmente, como intérprete do Brasil.
     O fruto literário mais conhecido dessas viagens, o livro O turista aprendiz, pode ser considerado uma literatura de registro, fonte de pesquisa nas áreas de ciências sociais e literatura, por exemplo. Dorothea Passetti (2004) indica a importância desse tipo de literatura pela mescla de observações, anotações científicas e de cunho pessoal do pesquisador que escreveu o livro. Passetti continua tecendo comentários sobre a literatura de registro: “Relatos de viagem lançam o leitor para espaços desconhecidos. Mostram outras faces de lugares familiares e promovem intimidades com o autor ao permitirem reconhecer, quando ali está, tanto o que havia sido imaginado pela leitura quanto vestígios do passado ou maneiras pelas quais foram sendo alteradas as descrições anteriores” (2004, p. 35)
     Sua primeira viagem, entre 13 de maio e 15 de agosto de 1927, percorreu o rio Amazonas até o Peru, o rio Madeira até a Bolívia e o rio Marajó, no intuito de revelar o país e constituir uma representação da cultura nacional, fruto da visão do escritor sobre o Norte e Nordeste como depositários da cultura popular, do folclore, num trabalho identificado por Antonio Gilberto Ramos Nogueira (2005) como etnográfico, pela rigidez metodológica na coleta de documentação, utilizando instrumentos diversos.
  Na primeira viagem surgiu o projeto Na Pancada do Ganzá, obra não concluída pelo falecimento de Mário em 1945. Posteriormente foi publicada por Oneyda Alvarenga e Telê Ancona Lopez, entre outras importantes discípulas. Nessa viagem foi acompanhado por Olívia Guedes Penteado, mecenas do Modernismo, Margarida Guedes Nogueira e Dulce do Amaral Pinto, filha de Tarsila do Amaral.
     Nessa viagem vários elementos foram incorporados não só na redação do projeto, mas no livro Macunaíma, em que, por carta, Mário havia pedido a Câmara Cascudo manifestações folclóricas do Nordeste para serem incluídas em sua redação. Cascudo inclusive havia sido convidado pelo escritor para acompanhá-lo na viagem, mas não foi. Os contatos, porém, já eram mantidos desde um pouco antes. Desde 1926 já confessava ao amigo sua “fome” de conhecimento da vida do povo brasileiro:
     Tem momentos em que eu tenho fome, mas positivamente física, fome estomacal de Brasil agora. Até que enfim sinto que é dele que me alimento! Ah! si eu pudesse nem carecia você me convidar, já faz sentido que tinha ido por essas bandas do norte visitar vocês e o norte. Por enquanto é uma pressa tal de sentimentos em mim que não espero nem seleciono. Queria ver tudo, coisas e homens bons, ruins, excepcionais e vulgares. Queria ver, sentir, cheirar. Amar já amo. (ANDRADE, 1991, p. 35)
     A segunda viagem ocorreu entre dezembro de 1928 e fevereiro de 1929, concentrada, principalmente, em três estados nordestinos: Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Durante o percurso das viagens, as impressões do autor foram transformadas no livro O turista aprendiz. Os percursos tiveram um papel extremamente importante na narrativa modernista nas diversas regiões após 1924 (NOGUEIRA, 2005, p. 104).
     Viajando pelo Nordeste, nosso cronista nos comunica que ainda há um Brasil por descobrir e valorizar, para ser entendido enquanto vida e cultura do povo. Essa dimensão, a da pesquisa etnográfica e a do enfoque sociológico revelará danças dramáticas, o catimbó e procurará analisar as condições de vida da região, numa perspectiva nova que deseja abandonar a caracterização do regional através do exótico e do pitoresco, porque estará preocupada com as relações de produção e com as classes sociais. (LOPEZ, 2002, p. 41)
      Enquanto na primeira viagem o pesquisador foi acompanhado por mecenas dos modernistas, a segunda, como correspondente do Diário Nacional, deu a Mário a oportunidade de aprofundar sua coleta de dados em música, arquitetura, imaginário religioso, vida e trabalho do homem brasileiro, sintetizado na visão do nordestino.
      Com sua câmera, foi fotografando tudo à sua volta: amigos de viagem, pessoas, paisagens, trabalhos, transporte e arquitetura. A fotografia foi decisiva na sua opção metodológica, que revelou, de início, o espanto do homem cosmopolita com o caboclo ou o nordestino e seus hábitos culturais. Importante frisar que esses relatos não revelaram só uma realidade objetiva e impessoal, mas a própria “memória subjetiva” do autor (NOGUEIRA, 2005, p. 111). “Aqui sente a necessidade de colher e registrar, diretamente da fala do povo, os elementos constitutivos da brasilidade procurada. Sua concepção de cultura indica que acreditava na vitalidade e força criativa das tradições autóctones como renovação permanente no processo criativo”. (NOGUEIRA, 2005, p. 113)
     A própria postura metodológica, de coleta e pesquisa, veio da Europa desde o século XVIII ao início do século XX, fruto do interesse dos intelectuais em definir a questão nacional. Assim, pela arte popular - a consciência criadora nacional - poder-se-ia construir um conceito sólido de nacionalidade. No Brasil, a oposição entre folclore e civilização preocupou os intelectuais, principalmente Mário de Andrade, na preservação não só do material como, também, das práticas culturais populares, protegendo-as da ideia de um progresso prejudicial ao ócio vital à criação artística do povo (NOGUEIRA, 2005). A síntese do Brasil refletiu-se em Macunaíma, por exemplo:
     Minha intenção foi esta: Aproveitar no máximo possível lendas, tradições, costumes, frases feitas, etc., brasileiros. E tudo debaixo dum carácter sempre lendário porém como lenda de índio e de negro. [...] Um dos meus cuidados foi tirar a geografia do livro. Misturei completamente o Brasil inteirinho como tem sido minha preocupação desde que intentei me abrasileirar e trabalhar o material brasileiro. Tenho muito medo de ficar regionalista e me exotisar pro resto do Brasil. Assim lendas do norte, botei no sul, misturo palavras gaúchas com modismos nordestinos ponho plantas do sul no norte e animais do norte no sul etc. Enfim, é um livro tendenciosamente brasileiro. (ANDRADE, 1991, p. 75)
      O diário de viagens de Mário constituiu, assim, um elemento etnográfico: até mesmo a cozinha nacional estava presente, apresentando-a não só do ponto de vista culinário, mas, também, como expressão popular dos usos que o homem brasileiro fazia de seu ambiente e sua capacidade inventiva.
     As descrições do escritor/pesquisador forneceram para sua época e para estudos posteriores sobre identidade nacional, diversas categorias analíticas do ponto de vista do nacional, étnico e do regional ou social, estabelecendo as distinções entre os grupos humanos, esboçando “uma cartografia da diversidade cultural”, indo direto ao objeto de estudo, o povo, para tornar a pesquisa fidedigna, aliando os dados à bibliografia e suas próprias impressões pessoais (NOGUEIRA, 2005, p. 126).
     A fotografia, como constituinte do acervo da cultura nacional, despertou a importância da preservação do patrimônio cultural, na sua gestão no Departamento de Cultura de São Paulo e, posteriormente, no cargo de assistente técnico do Sphan, tendo a iconografia como forma de manter os elementos que estivessem se degradando, como a arquitetura, desenhos rupestres ou construções populares: “À medida que a memória visual vai compondo o retrato do Brasil, a fotografia é apreendida como fonte histórica, documento, meio de conhecimento com o mesmo reconhecimento que se deu ao signo escrito”. (NOGUEIRA, 2005, p. 135)
    As legendas das fotografias tiradas pelo escritor revelaram a amplitude de abordagens, que refletia a preocupação em ter um retrato fiel do poder criativo do povo brasileiro: legendas de teor literário, humorístico, referencial, de exercício do moderno. Pedaços de um país desconhecido que tinha uma força criadora que precisava ser preservada e refletir o homem brasileiro e sua arte.
     Na abordagem da vida do povo, a viagem a Natal, em 15 de dezembro de 1928, deu a Mário de Andrade o conhecimento do Brasil pela ótica do folclore. Na análise da vida do operário, seu vocabulário sugeria o contato com o marxismo.
     Respeitando a linguagem popular, através do estudo do cordel ou das músicas populares, o escritor preocupou-se em dar forma às temáticas nacionais através dos processos de criação e técnicas do homem do povo, “da versatilidade do poeta ao embolar, Mário entreviu a importância do processo criativo na constituição de manifestações populares” (NOGUEIRA, 2005, p. 166).
     Inventariando as festas populares, fez um traçado histórico em consonância com a mobilidade da tradição, fundamentado na atualização, concebendo a nação como a reinvenção da tradição, colocando-a como a base da identidade nacional, fundando e reinventando tradições.
    Continuando com sua preocupação em relação aos diferentes modos de vida do homem brasileiro e com o rigor científico da coleta de dados, Mário de Andrade ainda manteve contato com Dina Dreyfus e Claude Lévi-Strauss. Essa relação se iniciou aproximadamente em 1935, com a chegada do casal ao Brasil e a publicação do artigo de Lévi-Strauss no jornal O Estado de São Paulo em que propunha à USP a criação de um Instituto de Antropologia Física e Cultural.
     Com a não aceitação da proposta do pesquisador pela Universidade, Mário, então diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, publicou novamente o artigo na Revista do Arquivo Municipal e convidou Dina para ministrar um Curso de Etnografia junto ao Departamento. Do curso, foi criada a Sociedade de Etnografia e Folclore, em 1937, vinculada ao Departamento de Cultura e tinha como principal objeto a pesquisa etnográfica.
     Também foi o Departamento que financiou uma parte da primeira expedição do casal aos Bororo e Kadiwéu, de 1935 a 1936, além de outras viagens a Pirapora do Bom Jesus, a Mogi das Cruzes e outras pequenas cidades: “Nesse sentido, a transformação do projeto do Instituto de Antropologia no Curso de Etnografia agregou, à proposta defendida por Lévi-Strauss de fazer uma coleta rigorosa e objetiva para o avanço da ciência antropológica, a concepção da etnografia como prática que contribuiria para fortalecer a forma e o conteúdo do caráter nacional, que seriam trabalhados na produção artística.” (VALENTINI, 2009, p. 3)
     As pesquisas realizadas na Sociedade de Etnografia e Folclore estavam inseridas em um contexto de transformações pelas quais passavam as disciplinas de Sociologia, Antropologia e Etnologia - nas discussões dos conceitos de raça e cultura - e a política pública municipal, em São Paulo, e nacional: “A etnografia brasileira vai mal. Faz-se necessário que ela tome imediatamente uma orientação prática baseada em normas severamente científicas. Nós não precisamos de teóricos, os teóricos virão a seu tempo. Nós precisamos de moços pesquisadores, que vão à casa do povo recolher com seriedade e de maneira completa o que esse povo guarda e rapidamente esquece, desnorteado pelo progresso invasor.” (ANDRADE, 1936 apud NOGUEIRA, 2007, p. 263)
     Essa preocupação com as pesquisas científicas e com o registro e preservação do objeto dessas pesquisas evidencia o caráter pedagógico que Mário deu ao Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. O próprio Curso de Etnografia e Folclore, com seu objetivo de formar para a pesquisa, é um reflexo dessa preocupação com a área educativa. E o se caráter de difusão demonstra a ideia de um projeto amplo, de formação do público em âmbito nacional: “Esta variedade de formas de produzir conhecimento, que permitia a aproximação a questões e problemas muito diversos por um mesmo pesquisador, se vê nas pesquisas realizadas com recursos do Município e foi articulada em torno de uma episteme difusionista cujo primeiro objetivo era a reconstrução histórica das migrações e transformações culturais que teriam resultado nos e dos traços culturais ou biológicos estudados.” (VALENTINI, 2009, p. 4)
     Vários projetos foram elaborados na gestão do escritor, para a Divisão de Bibliotecas, a Divisão de Educação e Recreio e a Discoteca Pública, pautando-se nos esportes, na criança, na higiene, nas artes e na preservação da cultura popular, através da reinvenção de práticas da cultura do povo que estavam sendo perdidas na cidade de São Paulo. Em relação à amplitude nacional, o Departamento desenvolveu atividades como festas e brincadeiras tradicionais com filhos de operários e outras crianças.
    Tanto o curso ou mesmo as atividades voltadas ao público se configuraram como preparativos para a Missão de Pesquisas Folclóricas. Em meio ao recolhimento dos primeiros registros sonoros dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Bahia, junto a Oneyda Alvarenga, Mário enviou seus primeiros “discípulos” a campo: Luis Saia - chefe da Missão e sócio-fundador da SEF - Martin Braunwieser, músico; Benedito Pacheco, técnico de som e Antonio Ladeira, auxiliar geral e assistente técnico de gravação.
    O início da Missão se deu em 6 de fevereiro de 1938. Depois de passar pelo Rio de Janeiro, Vitória, Salvador e Maceió, aportou em Recife em 13 de fevereiro, ficando até 23 de março. Lá, filmaram cocos, cantigas de roda, sertaneja, pedintes, ex-votos, caboclinhos, maracatus, o toré dos índios pancarus e sua festa do umbu.
     Depois, a Missão ficou em Paraíba até 30 de maio, realizando pesquisas pelo sertão. Filmaram e fotografaram bumba-meu-boi, vaquejada, reis do congo, cantigas infantis, sambas, canto de carregadores de pedra, reisados, desafios, repentes, lundus, cabaçal, catimbó e realizaram vários registros da arquitetura popular, tão importante na atitude estética de Mário.
     Passando pela substituição de Mário frente ao Departamento de Cultura e alguns problemas políticos, a Missão teve sérias dificuldades no Maranhão, entre os dias 15 e 21 de junho. Mesmo assim, conseguiram registros do Tambor de criolo e Tambor de mina, bumba-meu-boi e carimbo. Passaram também por Belém do Pará, ficando até 7 de julho, até serem obrigados a voltar para São Paulo.
     O material colhido foi organizado por Oneyda Alvarenga e catalogada na coleção Arquivo Folclórico (1946 e 1948) e na coleção Registros sonoros do folclore musical brasileiro - RSFMB (de 1948 a 1946). Mesmo com a prematura morte de Mário, seu legado continuou, tanto na formação de pesquisadores quanto na importância do registro da cultura popular nacional.
     Os diversos sentidos dados à palavra arte, a percepção da consciência criadora do povo brasileiro e a própria preocupação com o rigor científico e a formação de pesquisadores e do próprio povo deram às ações de Mário de Andrade enquanto escritor e pesquisador o início de uma prática pautada na ideia de uma nova visão de arte brasileira.
     Do mesmo modo, a “cordial mastigação”, própria da Antropofagia, deu-se no conhecimento do outro enquanto formador da heterogeneidade da cultura nacional, apreendendo e reinventando a memória coletiva e a própria cultura.
     Do direito à pesquisa estética, pautado em sua tese do artista pesquisador; da atualização da inteligência artística, como reflexo da cultura e da vida coletiva, e pela consciência criadora nacional, descoberta em suas viagens e na sua prática enquanto funcionário público, Mário de Andrade construiu os arcabouços teórico e simbólico do que seria a identidade nacional, originada de uma visão inovadora do que seria a arte brasileira.

  19&20 - Mário de Andrade e a busca pela arte brasileira: a pesquisa ...

www.dezenovevinte.net/artistas/marioandrade.htm

 AS CONTRIBUIÇÕES DO MODERNISMO PARA A LITERATURA E A  CRÍTICA BRASILEIRAS
Larissa Agostini Cerqueira
Mestranda em Literatura / UFMG
RESUMO
Este artigo pretende investigar de que forma  o movimento modernista brasileiro contribuiu para a formação  ou a consolidação de uma literatura brasileira moderna, por meio da renovação de padrões estéticos e políticosociais, por um lado, e, por outro, que herança o movimento deixou para a produção crítico-literária do país.
PALAVRAS-CHAVE: Modernismo, literatura brasileira, crítica literária brasileira
INTRODUÇÃO
        Pode-se afirmar, com base nos estudos sobre o modernismo,  que o movimento no Brasil – assim como as vanguardas na Europa – teve um caráter predominantemente destruidor, pelo menos em princípio. Isso ocorreu porque, para superar as barreiras do passadismo e do academismo era necessário um espírito revolucionário que rompesse com os padrões herdados e, a partir dessa ruptura, criasse uma literatura atual e nacional, isto é, moderna. Uma vez que o objetivo era construir uma nova literatura, é preciso ressaltar que o caráter destruidor da vanguarda brasileira pertence apenas à sua fase inicial, provocativa, que
foi seguida de uma fase mais estável e produtiva, dentro dos novos padrões estéticos.  O objetivo deste trabalho é verificar o impacto que a ruptura modernista causou na produção literária do país, isto é, que mudanças e contribuições o modernismo trouxe para a literatura nacional e, em segundo lugar, quais as consequências dessa transformação estética para a crítica literária produzida no país.  Não se pode esquecer que o modernismo – mesmo se considerarmos o movimento de forma restrita, isto é, restringi-lo temporalmente à década de 1920, como o faz o teórico Álvaro Lins– não foi de forma alguma homogêneo e seu impacto também foi diferenciado, como nos mostra por exemplo o estudo de  Maria Eugênia Boaventura sobre a revista modernista Movimento Brasileiro,dirigida por Graça Aranha e seu grupo. A autora ressalta como característica intrínseca ao modernismo a formação de grupos, o que o  diferencia de outros movimentos artísticos, que não tinham a mesma exigência, ou às vezes até valorizavam o indivíduo em detrimento do grupo. Esse fenômeno de formação de grupos diversos dentro do movimento trouxe como consequência várias vertentes que, se tinham um projeto em comum, tinham também visões diversas do que esse projeto significava na prática e de como implementá-lo. No trabalho ora citado de Boaventura são muito claras as divergências entre o grupo paulista e o carioca. Enquanto o primeiro, encabeçado por Mário e Oswald de Andrade, foi um grupo que implementou a inovação técnica e linguística em suas obras e tinha uma posição intelectual vanguardista, o segundo tinha caráter ufanista e politicamente reacionário,
e era esteticamente apegado aos valores passadistas combatidos no seu próprio discurso. 
       O foco do presente trabalho será a obra de Mário de Andrade, por três razões: primeiro, porque o escritor foi um dos artistas precursores e um  dos principais  teóricos da primeira fase do movimento, com os textos “Prefácio interessantíssimo” – integrante do livro apresentado na Semana de Arte Moderna,  Paulicéia desvairada – e  A escrava que não é Isaura; a segunda razão para a escolha do poeta, é que ele tem uma obra de crítica literária e artística vasta e rica, que o torna um dos representantes de vulto da atividade crítica no Brasil; e, em terceiro lugar, porque, tanto como escritor, quanto como crítico, sua obra pode ser considerada uma das mais bem-sucedidas do  movimento modernista, dentro do que ele propunha: uma ruptura estética e ideológica dos padrões sociais em voga no Brasil no início do século 20. Exemplos que comprovam essa visão são Macunaíma, considerada ainda uma das obras mais representativas do movimento, assim como  O empalhador de passarinho e Aspectos da literatura brasileira, dois livros que reúnem os principais ensaios críticos do autor. A característica principal que faz de sua obra uma das mais representativas da época é o aguçado senso crítico e a sensibilidade aos problemas de seu tempo, fossem eles de ordem estética ou social e política.
TEMPOS MODERNOS E MODERNISMO NO BRASIL
           O projeto de inovação da literatura no Brasil se deu por  meio da ruptura com os rígidos padrões parnasianos, com o objetivo de criar uma literatura genuinamente nacional e atual que correspondesse às exigências de seu tempo. A fim  de compreender o que essa ruptura significou para a literatura, é necessário analisá-la mais a fundo. Antes de mais nada, é preciso voltar à origem da ruptura, ou ainda, à origem do espírito revolucionário que a provocou para, em seguida, compreender as consequências geradas por ela. A necessidade desta análise se dá porque a inovação estética – pelo menos no caso do modernismo – pode
ser considerada uma espécie  de incorporação, no âmbito estético, de uma nova realidade.
    Neste caso, seria a incorporação de valores modernos à literatura e às artes em geral. As formas artísticas antigas deixaram de atender às novas exigências e aqueles que se apegam a elas não passam de imitadores de fórmulas não mais eficazes. Sendo assim, pode-se concluir que a ruptura de padrões estéticos que ocorreu no modernismo foi o reflexo das transformações vividas pela sociedade da época. Sua origem é, portanto, a própria imposição da realidade. 
     O crítico Álvaro Lins salienta que o movimento – no Brasil e em todos os países que participaram de alguma forma da Primeira Guerra Mundial – era um reflexo, na literatura, das mudanças de valores que estavam ocorrendo na sociedade: “Efetivamente, eis o que foi o modernismo: uma crise, uma fase de transição, uma imagem de instabilidade social.”
      É correto afirmar que a guerra  não foi o único fator determinante da modernidade nas sociedades, uma vez que países  que não participaram diretamente dela nem sofreram suas consequências mais graves também passaram por um processo de modernização. Esse tema é muito mais complexo e há várias outras variantes, como a industrialização das sociedades e as suas consequentes mudanças, como a aglomeração de populações em grandes centros urbanos, o surgimento de novas classes sociais (a burguesia urbana  e o proletariado), o desenvolvimento da indústria do entretenimento e dos meios de comunicação. Todas essas
mudanças causaram uma necessidade de transformação nas artes também, pois o que era produzido não condizia mais com as condições do homem moderno. 
     Porém, é importante salientar o caráter dialético da relação entre literatura e realidade. Como afirmado anteriormente, a origem de  sua transformação é a própria transformação social. Não se pode, no entanto, parar por aí. Uma vez incorporadas  como formas às novas exigências de um tempo, a literatura passa a repercutir sobre a sociedade, contribuindo para a transformação da consciência nacional e a solução de problemas. Álvaro Lins fala de um projeto de História Literária do Brasil, baseado no ímpeto de escritores de todos os tempos em influenciar a realidade do país, constituindo-se em homens públicos por meio de suas obras e assumindo, dessa forma, “um papel de vanguarda na investigação e apresentação dos grandes
problemas brasileiros”.
      Esse espírito de vanguarda  foi especialmente importante no modernismo, pois, como o próprio Mário de Andrade afirma, não foi um movimento estético, mas um espírito revolucionário acima de tudo, uma vez que o seu tempo era um tempo de politização do homem e que exigia, dessa forma, o engajamento da arte na vida:
      A transformação do mundo (...) bem como o desenvolvimento da consciência americana e brasileira, (...) impunham a criação de um espírito novo e exigiam a reverificação e mesmo a remodelação da Inteligência
nacional. Isso foi o movimento modernista (...).
MODERNISMO E LITERATURA MODERNA BRASILEIRA
       No Brasil, o modernismo teve uma conjuntura bastante singular, se comparado às vanguardas europeias, caracterizadas por artistas que, em sua maioria, viviam às margens da sociedade burguesa (mesmo que muitos tivessem origem em famílias burguesas) e se voltaram contra os valores dessa sociedade. Em São Paulo, os vanguardistas foram financiados pela burguesia agrária, que promovia os famosos  salões de arte e viagens à Europa, interessada não somente na estética modernizante, mas também e sobretudo no retorno às origens e tradições culturais do Brasil. Se nessas origens os modernistas buscavam a feição genuinamente brasileira da arte, a burguesia agrária buscava uma forma de se fortalecer e se impor na nova configuração econômica do país, que teve como consequência a ascensão de uma nova classe burguesa, urbana e industrial. Essa peculiaridade na conjuntura de surgimento do modernismo brasileiro tem, sem dúvida, implicações sobre o movimento – como, por exemplo, obras que não apresentam uma atitude politicamente crítica, como o próprio Mário de Andrade admitirá na década de 1940. No entanto,  mesmo que haja um
consenso de que num primeiro momento o modernismo teve como foco principal a questão puramente estética, a consciência política será uma das consequências dos avanços alcançados na inovação da linguagem artística, como veremos mais detalhadamente.
           Analisemos pois essas contribuições do movimento modernista à literatura e à sociedade brasileiras. Na conferência denominada “O Movimento Modernista”, Mário de Andrade enumera três princípios fundamentais, cuja fusão pelo modernismo caracterizou uma mudança drástica da realidade brasileira: a conquista da liberdade de pesquisa estética, a atualização da Inteligência artística nacional e a estabilização  de uma consciência criadora nacional. Segundo sua análise, a fusão desses três fatores foi responsável pela conquista da independência do Brasil  em termos artísticos e intelectuais, da liberdade criadora e da originalidade das produções artísticas, isto é, da conquista de uma literatura nacional e atual.
        Álvaro Lins ressalta que somente uma literatura feita com liberdade de pesquisa e que busca material na cultura local pode ser atual, pois é nacional e contemporânea e, portanto, apta a atingir o  status de universal. O autor afirma que  “não podemos aspirar a uma posição internacional enquanto  não tivermos levantado uma forte, nítida e bem caracterizada fisionomia nacional.”
      É importante lembrar que essas normas não são consideradas originais pelo próprio Mário de Andrade. Ele tem plena noção de que todas elas podem ser encontradas em outros movimentos artísticos brasileiros. A grande diferença instaurada pelo modernismo “foi a conjugação dessas três normas num todo  orgânico da consciência coletiva”.
      Esse “todo orgânico”, porém, não pode ser considerado harmônico de forma alguma. O próprio crítico
admite que essas conquistas tiveram pesos diferentes.  Com relação ao campo da literatura, pode-se dizer que o modernismo trouxe duas principais contribuições: uma nova consciência do ato da criação, que passaria a ser um ato independente de pesquisa estética e de libertação dos padrões e técnicas preestabelecidos; e a consciência de que a obra de arte é um fazer mais coletivo e funcional do que individual e psicológico, e o que mais importa nela é esse caráter coletivo. Isso significa que, pela primeira
vez na história da literatura brasileira, houve uma preocupação e uma efetiva fundação de um espírito coletivo criativo (a que Mário de Andrade chama de estabilização da consciência criadora nacional), uma noção de literatura nacional, produzida a partir da pesquisa estética e não por imitação de um determinado padrão estético em voga. Com relação a essa vitória, Jorge Schwartz lembra a importância do modernismo para a literatura brasileira, ressaltando a diferença fundamental entre a poética modernista e as que a antecederam:
         Nestas há leis de bom proceder, há “Don’t”, há manuais do bom conselheiro, há regras de preconceito artístico, teias concêntricas da Beleza imitativa (...).
         Na orientação modernizante seguem-se indicações largas dentro das quais se move com prazer a liberdade individual. Não se encontra nela regras de arame farpado que constrangem senão indicações que facilitam.
         Para Mário de Andrade, essa foi a grande conquista  do modernismo. Apesconsiderar insuficientes as tentativas de revisão da língua portuguesa, para adequá-la à nossa realidade e para que “nos expressássemos com identidade” (opinião que diverge de Álvaro Lins, que considera a nossa língua bastante diversa da “portuguesa” e considera exageradas e mesmo equivocadas as tentativas de Mário de Andrade e de outros modernistas de adaptá-la, trazendo a linguagem oral para a literatura), o escritor considera que a expressão nacional na literatura – assim como em outras artes – era  um avanço irrefutável. O autor analisa as produções das décadas de 1920  e 1940, e reitera que estava sendo produzida literatura moderna no Brasil.
      No entanto, no âmbito social (ou no que o autor chama de atualização da Inteligência artística, que engloba, além do caráter estético, o caráter social da arte), Mário de Andrade se ressente de ter permitido o “burguês gostoso” ter se sobreposto ao “intelectual consciente” e por não pegar “a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece”.
      Para o crítico, a geração de 1920 pecou por ausência de realidade e de virilidade, isto é, por falta de
engajamento real nos problemas de seu tempo, problemas esses fundamentalmente sociais e políticos. Seu julgamento é sem dúvida severo demais, uma das consequências de seu espírito crítico por natureza. Como veremos a seguir, há estudos a respeito do movimento que conseguem, com um distanciamento maior, apontar diferentes fases no modernismo e na própria obra de Mário de Andrade, em que, ora o aspecto estético, ora o político-social se sobressaem. A partir desses estudos, verificamos que as obras mais tardias já incorporaram uma atitude estética inovadora e passam a trazer uma carga muito maior de senso de realidade e de crítica social. Porém, o crítico é implacável com o escritor:
      E apesar de nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade, uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o amilhoramento político-social do homem. E esta é a essência da nossa idade.
       João Luiz Lafetá considera que o movimento modmodernista foi em todos os momentos formado pela interação de duas esferas: a ideológica e a estética. Para ele, a necessidade de engajamento com os problemas de seu tempo era algo intrínseco ao movimento e caracteriza seu âmbito ideológico.
      Já a ruptura da linguagem academista e a incorporação do popular e do primitivo caracterizam seu âmbito  estético. Esses dois aspectos nunca se separam na literatura, mas vivem em constante tensão. 
      Para o autor, o modernismo teve duas fases caracterizadas pela predominância de cada um desses aspectos, em detrimento do outro. Mas num certo momento, compreendido na segunda fase, parece ter havido um equilíbrio de forças entre eles, que em seguida se diluiu.
      Na primeira fase, que compreende as produções da década de 1920, chamada pelo autor de “fase heroica”, teria havido uma predominância do caráter estético da literatura: “A experimentação estética é revolucionária e caracteriza fortemente os primeiros anos do movimento.”
        Essa avaliação está de acordo com a  avaliação de Mário de Andrade, se tomarmos suas considerações a respeito da grande vitória do movimento, que teria sido nas suas conquistas estéticas. Quando Andrade fala do movimento na conferência abordada neste trabalho, ele se refere à geração de 1920, aos artistas da Semana de Arte Moderna, sempre em contraste com a geração posterior, dos artistas da década de 1940. Lafetá chama a atenção para o fato de que a ruptura da linguagem e o seu desnudamento no interior da obra literária eram ações primordiais na “fase heroica” do modernismo. Somente por meio dessas conquistas no campo estético, o modernismo seria capaz de atingir seu objetivo: inovar a literatura nacional. Nesse momento, apesar de as obras terem atitude crítica perante os conflitos da realidade, seu tom era mais ameno.
       Já numa segunda fase, que compreende para Lafetá a década de 1930, as conquistas estéticas já estavam consolidadas e amadurecidas, “superando os modismos e os cacoetes dos anos vinte, abandonando o que era pura contingência ou necessidade do período de combatede destaque nas obras. O engajamento nos problemas do seu tempo não era apenas tema na poesia moderna. Deveria ser muito mais que isso: a irreverência e a inconformidade perante os problemas era uma característica interna da literatura moderna, uma exigência que se impunha aos artistas: “(...) inserindo-se dentro de um processo de conhecimento e
interpretação da realidade nacional [o movimento] não ficou apenas no desmascaramento da estética passadista, mas procurou abalar toda uma visão do país que subjazia à produção anterior à sua atividade.”
MODERNISMO E CRÍTICA LITERÁRIA
      No livro 1930: a crítica e o modernismo, João Luiz Lafetá faz uma análise da crítica literária brasileira na década de 1930, a fim de avaliar o impacto do modernismo na crítica.
      Para tanto, ele escolhe críticos que incorporaram mais ou menos em seu exercício as exigências impostas pela nova  literatura surgida a partir da ruptura proporcionada pelo modernismo. O principal critério de avaliação dessa nova crítica literária, segundo o autor, é a incorporação de uma consciência aprofundada da linguagem, que vai muito além da tarefa rotineira da crítica. Uma vez que o movimento modernista teve como consequência do desnudamento dos procedimentos da linguagem na obra a consciência da própria linguagem, a tarefa da crítica se tornou mais complexa. Se antes seu papel era essa consciência, agora já praticada pela obra, dali em diante a crítica precisaria aumentar ainda mais o processo de conscientização, verificando se a literatura foi capaz de atingir seu novo propósito e até que ponto esse alcance se deu.
       Como dito anteriormente, Lafetá considera que o modernismo tem intrínsecas duas esferas em constante tensão – a ideológica e a estética –, ora tendendo ao equilíbrio, ora ao atrito. O autor ressalta a importância da consciência dessa tensão permanente para a crítica.
      Entre os críticos por ele estudados, Mário de Andrade é o que apresenta a obra mais rica, e o principal motivo é que o crítico está sempre em busca de um aspecto fundamental do modernismo, ou seja, do equilíbrio entre o aspecto estético e o ideológico da literatura. 
       Em seu estudo sobre a crítica mariodeandradeana, Lafetá segue a trajetória do artista, do teórico e do crítico Mário de Andrade, acompanhando o desenvolvimento de seu pensamento e de sua prática artística, desde sua “fase heroica”, em que o escritor-teórico precisa defender uma nova forma de arte por meio de novos parâmetros estéticos, no “O carro da miséria” e o crítico escreve os ensaios que serão posteriormente editados nos livros “ O empalhador de passarinho e Aspectos da literatura brasileira. Mário de Andrade demonstra desde o início um esforço crítico e teórico grande, mostrando um conhecimento profundo das
tendências das vanguardas europeias. Se, na primeira fase,  ele parece favorecer o enfoque individual da obra de arte, o  lirismo, isso se dá graças à necessidade de que tratamos anteriormente de romper com uma concepção parnasiana de arte, em que o artista fica sujeito a regras rígidas de conduta, sob as quais muitas vezes sucumbe a liberdade produtiva. No entanto, ele jamais deixa de perceber a importância do caráter estético da obra de arte, a técnica, sempre buscando um ponto de equilíbrio entre esses dois enfoques e também, devido à sua condição de vanguardista, buscando novos parâmetros estéticos –  como a teoria do
“polifonismo” –, que fossem capazes de fundamentar sua arte. 
       Após encontrar um ponto de equilíbrio entre esses dois enfoques da arte – o que fica claro já em A escrava que não é Isaura, surge um novo impasse. O escritor precisa se ajustar novamente, agora a uma outra exigência: o caráter social, público, da obra de arte. A eficaz combinação entre a ruptura da linguagem e a crítica social terá sua síntese na obra publicada em 1930, “O carro da miséria”. Consciência que o crítico Mário de Andrade atingirá somente no final da década, com uma nova concepção de técnica e de arte. Para Lafetá, o crítico expõe pela primeira vez essa nova ideia na conferência “O artista e o artesão”, de 1938: “Aqui
       Mário de Andrade ampliou consideravelmente o seu conceito de ‘técnica’, tornando-se capaz de abranger tanto o lirismo individual como as condições sociais em que o artista produz sua obra”.
       Se fizermos uma comparação  entre o estudo de Lafetá e  a conferência de Mário de Andrade, torna-se visível que a avaliação deste crítico está de acordo com a do estudo posterior. Por ter uma visão temporalmente mais distanciada, Lafetá percebe o movimento em várias fases, percepção que diverge das de Mário de Andrade e Álvaro Lins, que na década de 1940 já consideram o modernismo como terminado e avaliam a literatura da época como uma consequência do movimento. Não é interesse para o presente trabalho entrar a fundo nessas classificações. Mas é válido ressaltar que as avaliações convergem ao constatar um predomínio do âmbito estético nas obras literárias produzidas na década de 1920; na segunda
fase, que Mário de Andrade  já não considera como parte do movimento, mas como consequência dele, é que foi possível um avanço maior no âmbito político-social, uma vez que a vanguarda já havia conquistado a liberdade de criação estética. Graças à estabilização dessa conquista, os artistas foram capazes de se debruçar sobre esse outro aspecto da arte. 
         É importante ressaltar que o crítico Mário de Andrade teve consciência dessa transformação, o que se demonstra com a leitura de seus ensaios críticos sobre as produções literárias da época. Seu embate com o constante conflito  estético-ideológico é tão intenso e sem trégua que às vezes seu trabalho crítico parece se contradizer, pois ora defende a literatura como estética pura, ora como engajamento social. No entanto, para Lafetá, essa aparente contradição é um exercício de consciência, uma tentativa de não se deixar levar pelas influências do momento. Seu esforço é de não perder de vista a tensão entre os dois polos da arte, tentando chamar a atenção para um aspecto, na medida em que percebe que numa dada obra ou num dado contexto está excessivamente prejudicado em relação ao outro.
CONCLUSÃO
      Conforme explicitado anteriormente, as contribuições do modernismo não foram homogêneas e atingiram níveis  diferentes de ruptura. Enquanto alguns artistas e alguns setores da sociedade conseguiram ir mais fundo e atingir transformações de maior vulto, outros permaneceram na superfície dessas transformações. Esse fenômeno é comum em movimentos artísticos. Da mesma forma, é natural que um movimento se dilua após um tempo de assimilação e dê a sensação de que as conquistas da fase mais radical tenham se perdido, ou mesmo retrocedido a uma fase anterior de estagnação. Isso de fato pode ocorrer,
mas somente de forma parcial. No momento de diluição de um movimento, a arte, a literatura, e a sociedade já adquiriram valores conquistados com a ruptura inicial, pelo menos aqueles valores que ela estava pronta para incorporar.
       Tendo esse ponto de vista como parâmetro para o presente trabalho, foi escolhido um representante da “ala” mais radical do modernismo. Sua radicalidade está no fato de ter conseguido atingir as mudanças mais representativas, tanto no âmbito estético, pois conseguiu de fato por em prática uma linguagem inovadora, quanto no âmbito político-social, pois não abriu mão da visão crítica, apartidária e autônoma sobre as questões do seu tempo.
       Para concluir, procuraremos entender o que fez com que essa vertente do modernismo se tornasse a mais efetiva e, consequentemente, a mais representativa do movimento. Para tanto, procuraremos avaliar melhor o que significa a atitude consciente do escritor e do crítico Mário de Andrade. O fato de ter conseguido atingir os maiores avanços estéticos e críticos pode se explicar em parte pela forma como ele viu a ruptura: seu senso apurado do espírito do seu tempo e do seu lugar na história o ajudou a ter uma atitude vanguardista, não de rebeldia contra o que oprimia sua arte e seu pensamento, mas de real autonomia, aceitando e incorporando o que a tradição e o centro tinham de produtivo e negando e transfigurando aquilo que não interessava. A consequência desse posicionamento autônomo foi que o autor não se deixou levar pelo ufanismo, nem pela repulsa cega dos padrões questionados, o que mostra uma atitude madura, apesar de revolucionária.
        Enquanto alguns vanguardistas insistiam numa atitude de pura revolta contra Portugal, por exemplo, Mário de Andrade em momento  algum – a não ser logo no início, talvez – pensou em construir uma literatura brasileira sem qualquer tipo de influência ou diálogo com o passado ou com a literatura universal. Eneida Maria de Souza lembra a atitude do autor diante da cultura da metrópole, aquela que será muito bem elaborada pela antropofagia:
     (...) o “esquecimento” da cultura imposta pela metrópole seria  o antídoto eficaz a ser utilizado na luta a favor da independência cultural, pela desobediência do colonizado frente à marca registrada das idéias e modelos do colonizador.  Esse esquecimento não implicaria, evidentemente, a destruição de uma memória acumulada, mas a prática de transgressão e releitura dos modelos.
      Dessa forma, por mais que o modernismo tenha chegado a um estágio de diluição dos padrões estéticos, como conclui melancolicamente Álvaro Lins na década de 1960, chegando ao “abandono do brasileirismo que vinha caracterizando a nossa literatura desde o advento do movimento modernista”,não se pode negar que muitos valores cultivados pelo movimento foram incorporados à literatura e à crítica brasileiras, ou pelo menos em uma parcela dessa produção. Vários de nossos autores foram capazes de criar uma literatura brasileira, no que tem de peculiar, de original, e ao mesmo tempo universal, pois não  ficou impregnada de clichês e maneirismos regionalistas. Podem ser citadas, como exemplo do que acabamos de afirmar, obras literárias como as de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Graciliano Ramos. Entre as produções críticas, também houve êxito na busca por uma consciência aprofundada da linguagem. Estudos como os de Antonio Candido e Álvaro Lins, por exemplo, conseguiram incorporar as exigências modernas da crítica literária e deixaram contribuições de vulto para a sistematização da literatura brasileira.

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