SIMBOLISMO: ALPHONSUS DE GUIMARAENS

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   Alphonsus Guimaraens, pseudônimo de Afonso Henrique da Costa Guimarães (Mariana, 24 de julho de 1870 — Mariana, 15 de julho de 1921) foi um escritor brasileiro.
 A poesia de Alphonsus de Guimaraens é marcadamente mística e envolvida com religiosidade católica. Seus sonetos apresentam uma estrutura clássica, e são profundamente religiosos e sensíveis na medida em que ele explora o sentido da morte, do amor impossível, da solidão e da inaptação ao mundo.
   Contudo, o tom místico imprime em sua obra um sentimento de aceitação e resignação diante da própria vida, dos sofrimentos e dores. Outra característica marcante de sua obra é a utilização da espiritualidade em relação à figura feminina que é considerada um anjo, ou um ser celestial, por isso, Alphonsus de Guimaraens é neo-romântico e simbolista ao mesmo tempo, já que essas duas escolas possuem características semelhantes.
   Sua obra, predominantemente poética, consagrou-o como um dos principais autores simbolistas do Brasil. Em referência à cidade em que passou parte de sua vida, é também chamado de "o solitário de Mariana", a sua "torre de marfim do Simbolismo".
Sua poesia é quase toda voltada para o tema da Morte da Mulher amada. Embora preferisse o verso decassílabo, chegou a explorar outras métricas, particularmente a redondilha maior (terminado em sete sílabas métricas).
Biografia
   Filho de Albino da Costa Guimarães, comerciante português, e de Francisca de Paula Guimarães Alvim, sobrinho do poeta Bernardo de Guimarães.
Guimaraens Matriculou-se em 1887 no curso de engenharia. Um fato marcante em sua vida foi a perda prematura da prima e noiva Constança, e a morte da moça abalou-o moralmente e fisicamente.
   Foi, em 1894, para São Paulo, onde matricula-se no curso de Direito da Faculdade do Largo São Francisco, voltou a Minas Gerais e formou-se em direito em 1894, na recém inaugurada Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais, que na época funcionava em Ouro Preto. Em São Paulo, colaborou na imprensa e freqüentou a Vila Kyrial, de José de Freitas Vale, onde se reuniam os jovens simbolistas. Em 1895, no Rio de Janeiro, conheceu Cruz e Souza, poeta do qual já admirava e tornou-se amigo pessoal. Também foi juiz substituto e promotor em Conceição do Serro (MG). No ano de 1897, casa-se com Zenaide de Oliveira. Posteriormente, no ano de 1899, estreou na literatura com dois volumes de versos: Septenário das dores de Nossa Senhora e Câmara Ardente, e Dona Mística; ambos de nítida inspiração simbolista.
   Em 1900 passou a exercer a função de jornalista colaborando em "A Gazeta", de São Paulo. Em 1902 publicou Kyriale, sob o pseudônimo de Alphonsus de Guimaraens; esta obra o projetou no universo literário, obtendo assim um reconhecimento, ainda que restrito de alguns raros críticos e amigos mais próximos. Em 1903, os cargos de juízes-substitutos foram suprimidos pelo governo do estado, consequentemente Alphonsus perdeu também seu cargo de Juiz, fato que o levou a graves dificuldades financeiras.
   Após recusar um posto de destaque no jornal A Gazeta, Alphonsus foi nomeado para a direção do jornal político Conceição do Serro, onde também colaboraria seu irmão o poeta Archangelus de Guimaraens , Cruz e Souza e José Severino de Resende. Em 1906, tornou-se Juiz Municipal de Mariana-MG, para onde se transferiu com sua esposa Zenaide de Oliveira, com quem teve 15 filhos, dois dos quais também escritores: João Alphonsus (1901-1944)e Alphonsus de Guimaraens Filho (1918-2008).
   Devido ao período que viveu em Mariana, ficou conhecido como "O Solitário de Mariana", apesar de ter vivido lá com a mulher e com seus 15 filhos. O apelido foi dado a ele devido ao estado de isolamento completo em que viveu. Sua vida, nessa época, passou a ser dedicada basicamente às atividades de juiz e à elaboração de sua obra poética.
Principais Obras de Alphonsus de Guimaraens:
Setenário das Dores de Nossa Senhora, Câmara Ardente, Dona Mística, Kyriale, Mendigos, Ismália".
Póstumas: Pastoral aos crentes Escada de Jacó Pulvis Salmos Poesias Jesus Alponsos

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TRÊS POEMAS DE ALPHONSUS DE GUIMARAENS
     O Brasil ao longo de sua história literária contou com vários poetas de destaque que fizeram parte dos diversos estilos de época que estiveram em voga no país. Dentre os mais marcantes, sem dúvidas, podemos citar o nome de Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), poeta de Minas Gerais, que ficou conhecido por sua poesia simbolista, onde o tema do amor e da morte estão intrinsecamente ligados
   A crítica do século XIX não deu valor nenhum a obra do escritor. Os críticos do século posterior demoraram para reconhecer a importância do movimento Simbolista, e em consequência disso o prestígio do poeta mineiro. Provavelmente a falta de reconhecimento do autor de Kiriale, se deve ao fato de que com o Parnasianismo sendo adotado como forma oficial de expressão literária da jovem república, os autores simbolistas acabaram, por sua vez, sendo deixados de lado. Ademais, os críticos diziam que Cruz e Souza — outro grande nome do simbolismo brasileiro — e Alphonsus de Guimaraens eram apenas um pastiche de Baudelaire e Verlaine, respectivamente. Porém, a partir de 1935, graças a organização das obras do poeta mineiro que foi realizada por  Manuel Bandeira e João Alphonsus, os críticos lançaram olhares mais justos acerca dos poemas do simbolista das Minas Gerais, dando-lhe dessa maneira o devido reconhecimento.
   Pode-se dizer que os temas da poesia de Alphonsus de Guimaraens estejam intimamente ligados a um fato marcante em sua vida: o falecimento de sua noiva Constança, que se deu em decorrência da tuberculose. Todavia, outros aspectos tais como a natureza, a arte e a crença religiosa também possuem relevância nos versos do mineiro. Muitos caem no erro de taxar a poesia desse poeta simbolista de monótona, devido ao tema mórbido que é constantemente abordado em sua obra; como bem como ressalta Aflredo Bosi em História Concisa da literatura brasileira, “[...] não devemos cair na tentação de chamá-lo de poeta monótomo, a não ser que se dê à monotonia o valor positivo que ela assume em poetas maiores, um Petrarca ou um Leopardi, que souberam aprofundar até às raízes o seu motivo inspirador, permanecendo-lhe sempre fiéis.”.
Selecionamos três poemas do simbolista, todos fazem parte da primeira obra de Alphonsus, intitulada de Kiriale. Nessa estão reunidos poemas que foram escritos nos períodos de 1891 a 1895.

SETE DAMAS
Sete Damas por mim passaram.
E todas sete me beijaram.
E quer eu queira quer não queira.
Elas vêm cada sexta-feira.
Sei que plantaram sete ciprestes.
Nas remotas solidões agrestes.
Deixaram-me como um mendigo…
Se elas vão acabar comigo!
Todas, rezando os Ste Salmos.
No chão cavaram sete palmos.

À MEIA-NOITE
A Aug. de Viana do Castelo
Cheguei à meia-noite em ponto.
O caso deu-se como eu conto.
Cheio de lúgubre mistério…
Pois ela disse: “Ao cemitério
Vamos à meia-noite em ponto.”
E eu respondi-lhe: “Conto, conto
Contigo à meia-noite em ponto.”
Como eu sabia, ela outro amante
Tivera em tempo não distante.
Era já morto: eu uma esposa
Tinha também sob uma lousa.
E ela sabia desse amante.
Jaziam um do outro distante
O amante dela e a minha amante.
Bem não chegamos, os ciprestes
Agitaram as verdes vestes
Como arrojando-se de bruços…
Que ais de tristeza e que soluços
Gemeram tão verdes ciprestes.
Gemia o vento pelas vestes.
Verdes dos vírides ciprestes.
Paramos de repente à porta:
Eu era um morta, ela uma morta.
Tal foi a cena branca e nua
Que nós, clareados pela lua,
Olhamos bem ao pé da porta.
Eu era um morto, ela uma morta,
Sem movimento junto à porta.
Diante de nós, em frente, diante,
O amante dela e minha amante,
Espectros vis num mesmo quadro,
Vinham vagar, hirtos, pelo adro,
Diante de nós, em frente, diante…
O amante dela e a minha amante.
Riram, passando para diante.

OCASO
(Impressões de véspera de finados)
Perdido como estou nesta grande charneca,
Cheio de sede, cheio de fome,
Disse-se Deus: “Sê bom!” E o Diabo diz-me: “Peca!”
E os anjos e demônios repetem o meu nome.
O cemitério está, nas glórias deste ocaso,
Cheio de leitos como um hospital.
Eu sonho que estou morto e sonho que me caso…
Vou vestido de noivo e coberto de cal.
Eis o que vejo além nas glórias deste ocaso:
Mulheres velhas e mulheres novas,
Homens e crianças vão levando flores.
Não há coroas para tantas covas,
E nem pranto para tantas dores.
Se este padre vai para o meu enterro,
Deixai-o caminhar bem devagar.
O cemitério está no alto daquele cerro…
Que ele não possa, ó Deus, nunca mais lá chegar!
Se este carpinteiro que me segue,
Apronta as tábuas do meu caixão,
Fazei, Senhor me Deus, como que ele cegue
Antes de aprontar meu caixão.
Se estes senhores de tão negras calças
E de sobrecasacas tão modernas,
Querem pegar, tristíssimos, nas alças
(Pois se olham de tal modo quando eu passo),
Fazei, Senhor Meu Deus, como que suas pernas
Não possam dar mais passo.
(Alguém agita sudários no poente.)
Se este coveiro agora mesmo
Cavava minha cova inexistente,
Cantando e soluçando,
Fazei, Senhor meu Deus, com que ele agora mesmo
Caia na cova que está cavando.
Se a costureira que ali trabalha,
Em vez de camisa de noivado,
Vem oferecer-me esta mortalha,
Que ela não tenha, ó Deus, no leito em que repousa,
Nem a camisa branca do noivado,
Nem um noivo que a queira por esposa.
Se estes sinos vão dobrar por mim,
Se este é o momento do meu enterro,
Fiquem os sinos a esperar por mim…
Que eu nunca alcance, ó Deus, o alto daquele cerro!

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ALGUNS POEMAS DE ALPHONSUS DE GUIMARAENS

Ismália
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

Ossa Mea
II
Mãos de finada, aquelas mãos de neve,
De tons marfíneos, de ossatura rica,
Pairando no ar, num gesto brando e leve,
Que parece ordenar mas que suplica.

Erguem-se ao longe como se as eleve
Alguém que ante os altares sacrifica:
Mãos que consagram, mãos que partem breve,
Mas cuja sombra nos meus olhos fica...

Mãos de esperança para as almas loucas,
Brumosas mãos que vêm brancas, distantes,
Fechar ao mesmo tempo tantas bocas...

Sinto-as agora, ao luar, descendo juntas,
Grandes, magoadas, pálidas, tateantes,
Cerrando os olhos das visões defuntas...

Pulchra Ut Luna
II

Celeste... É assim, divina, que te chamas.
Belo nome tu tens, Dona Celeste...
Que outro terias entre humanas damas,
Tu que embora na terra do céu vieste?

Celeste... E como tu és do céu não amas:
Forma imortal que o espírito reveste
De luz, não temes sol, não temes chamas,
Porque és sol, porque és luar, sendo celeste.

Incoercível como a melancolia,
Andas em tudo: o sol no poente vasto
Pede-te a mágoa do findar do dia.

E a lua, em meio à noite constelada,
Pede-te o luar indefinido e casto
Da tua palidez de hóstia sagrada.

Árias e Canções
II
A suave castelã das horas mortas
Assoma à torre do castelo. As portas,

Que o rubro ocaso em onda ensangüentara,
Brilham do luar à luz celeste e clara.

Como em órbitas de fatias caveiras
Olhos que fossem de defuntas freiras,

Os astros morrem pelo céu pressago...
São como círios a tombar num lago.

E o céu, diante de mim, todo escurece...
E eu que nem sei de cor uma só prece!

Pobre alma, que me queres, que me queres?
São assim todas, todas as mulheres.

Terceira Dor
VI
É Sião que dorme ao luar. Vozes diletas
Modulam salmos de visões contritas...
E a sombra sacrossanta dos Profetas
Melancoliza o canto dos levitas.

As torres brancas, terminando em setas,
Onde velam, nas noites infinitas,
Mil guerreiros sombrios como ascetas,
Erguem ao Céu as cúpulas benditas.

As virgens de Israel as negras comas
Aromatizam com os ungüentos brancos
Dos nigromantes de mortais aromas...

Jerusalém, em meio às Doze Portas,
Dorme: e o luar que lhe vem beijar os flancos
Evoca ruínas de cidades mortas.

Cisnes Brancos
Ó cisnes brancos, cisnes brancos,
Porque viestes, se era tão tarde?
O sol não beija mais os flancos
Da Montanha onde mora a tarde.

Ó cisnes brancos, dolorida
Minh’alma sente dores novas.
Cheguei à terra prometida:
É um deserto cheio de covas.

Voai para outras risonhas plagas,
Cisnes brancos! Sede felizes...
Deixai-me só com as minhas chagas,
E só com as minhas cicatrizes.

Venham as aves agoireiras,
De risada que esfria os ossos...
Minh’alma, cheia de caveiras,
Está branca de padre-nossos.

Queimando a carne como brasas,
Venham as tentações daninhas,
Que eu lhes porei, bem sob asas,
A alma cheia de ladainhas.

Ó cisnes brancos, cisnes brancos,
Doce afago da alva plumagem!
Minh’alma morre aos solavancos
Nesta medonha carruagem...

Quando chegaste, os violoncelos
Que andam no ar cantaram no hinos.
Estrelaram-se todos os castelos,
E até nas nuvens repicaram sinos.

Foram-se as brancas horas sem rumo,
Tanto sonhadas! Ainda, ainda
Hoje os meus pobres versos perfumo
Com os beijos santos da tua vinda.

Quando te foste, estalaram cordas
Nos violoncelos e nas harpas...
E anjos disseram: — Não mais acordas,
Lírio nascido nas escarpas!

Sinos dobraram no céu e escuto
Dobres eternos na minha ermida.
E os pobres versos ainda hoje enluto
Com os beijos santos da despedida.

A Catedral
Entre brumas ao longe surge a aurora,
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu risonho
Toda branca de sol.

E o sino canta em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma aurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral eburnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tao cansados ponho,
Recebe a bencao de Jesus.

E o sino clama em lugebres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

Por entre lirios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Poe-se a luz a rezar.
A catedral eburnea do meu sonho
Aparece na paz do ceu tristonho
Toda branca de luar.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O céu e todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem acoitar o rosto meu.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

Como se Moço e Não Bem Velho Eu Fosse
Como se moço e não bem velho eu fosse,
Uma nova ilusão veio animar-me,
Na minh`alma floriu um novo carme,
O meu ser para o céu alcandorou-se.

Ouvi gritos em mim como um alarme.
E o meu olhar, outrora suave e doce,
Nas ânsias de escalar o azul, tornou-se
Todo em raios, que vinham desolar-me.

Vi-me no cimo eterno da montanha
Tentando unir ao peito a luz dos círios
Que brilhavam na paz da noite estranha.

Acordei do áureo sonho em sobressalto;
Do céu tombei ao caos dos meus martírios,
Sem saber para que subi tão alto...

Hão de Chorar por Ela os Cinamomos...
Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.

As estrelas dirão — "Ai! nada somos,
Pois ela se morreu silente e fria.. . "
E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.

A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.

Os meus sonhos de amor serão defuntos...
E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: — "Por que não vieram juntos?"

Soneto
Encontrei-te. Era o mês... Que importa o mês? Agosto,
Setembro, outubro, maio, abril, janeiro ou março,
Brilhasse o luar que importa? ou fosse o sol já posto,
No teu olhar todo o meu sonho andava esparso.

Que saudades de amor na aurora do teu rosto!
Que horizonte de fé, no olhar tranqüilo e garço!
Nunca mais me lembrei se era no mês de agosto,
Setembro, outubro, abril, maio, janeiro, ou março.

Encontrei-te. Depois... depois tudo se some
Desfaz-se o teu olhar em nuvens de ouro e poeira.
Era o dia... Que importa o dia, um simples nome?

Ou sábado sem luz, domingo sem conforto,
Segunda, terça ou quarta, ou quinta ou sexta-feira,
Brilhasse o sol que importa? ou fosse o luar já morto?

Cantem outros a clara cor virente
Cantem outros a clara cor virente
Do bosque em flor e a luz do dia eterno...
Envoltos nos clarões fulvos do oriente,
Cantem a primavera: eu canto o inverno.

Para muitos o imoto céu clemente
É um manto de carinho suave e terno:
Cantam a vida, e nenhum deles sente
Que decantando vai o próprio inferno.

Cantem esta mansão, onde entre prantos
Cada um espera o sepulcral punhado
De úmido pó que há de abafar-lhe os cantos...

Cada um de nós é a bússola sem norte.
Sempre o presente pior do que o passado.
Cantem outros a vida: eu canto a morte...

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A ÓTICA DO HUMOR E DA IRONIA EM ALGUMAS PRODUÇÕES LITERÁRIAS DO POETA SIMBOLISTA ALPHONSUS DE GUIMARAENS

Danielle Fardin Fernandes - Professora de Língua Portuguesa e bacharel em Estudos Literários pela Universidade Federal de Ouro Preto e mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa.

RESUMO: O trabalho em questão pretende mostrar que um dos maiores autores simbolistas do Brasil, Alphonsus de Guimaraens, legou-nos textos e poemas que continham humor e ironia, provocando-nos diversas situações de riso, e, por assim ser, merecem um estudo específico. Os poemas, no geral, são produções para os jornais da época em que o autor usa pseudônimos para se esconder, e os textos em prosa são contos e crônicas que se encontram num livro também muito pouco divulgado.
Palavras-chave: Alphonsus Guimaraens; Riso; Humor; Ironia.

 Introdução
    Alphonsus Henrique de Guimaraens nasceu na cidade de Ouro Preto, Minas Gerais. Ficou conhecido necessariamente por seus poemas simbolistas. Era um admirador de Charles Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Mallarmé, Tolstoi, Shakespeare etc. Escrevia poemas em francês e fez diversas traduções. Morou em São Paulo, Rio de Janeiro, Conceição do Serro (atual Conceição do Mato Dentro) e Mariana. Contribuiu para os jornais locais e das grandes metrópoles, além de gerenciar seus próprios jornais em algumas cidades. Este poeta era um artista extremamente erudito e leitor de grandes obras como D. Quixote, Hamlet, As flores do mal e também da Bíblia. Viveu entre o final do século XIX e início do século XX, momento de grandes mudanças, principalmente na sociedade européia. O Brasil sofria uma espécie de crise interna cultural devido aos reflexos das mudanças políticas, sociais, econômicas, artísticas, morais, tecnológicas etc. devido à inserção de novos valores mundiais, valores estes que estavam tomando todo o complexo artístico e que deram início à Belle Époque.
   Em relação à política no Brasil, então, estava decretado o fim da escravidão e logo se proclamava a República Federativa do Brasil, assim formava-se um novo tipo de brasileiro que passava a integrar o contexto das grandes cidades e que, de certa forma, tentava se desvincular do ambiente rural. Também foi época das Repúblicas Oligárquicas e da política Café-com-leite, cujos grandes líderes possuíam terras e sobreviviam do cultivo agrário, mas mantinham relações políticas e controlavam o sistema econômico brasileiro. As elites, então, passavam a se interrogar sobre essa nova identidade brasileira. Foi um período de extrema valorização das inovações tecnológicas e ao mesmo tempo uma descoberta do que seria esse “homem brasileiro”. Neste período, principalmente Paris vivia um grande momento cultural e surgiam as grandes invenções como o telefone, o cinema, o automóvel, o avião. Novas estéticas também surgiram como o Art Nouveau – um estilo de design e arquitetura que modificou as artes plásticas -, o impressionismo, como uma nova forma de capturar a realidade e modificações na vida cotidiana.
    Embora esses fatos acima nos pareçam distantes do poeta simbolista, tentaremos através desse primeiro estudo observar questões referentes ao humor e ironia, que, para nós, estão mais ligados à Belle Époque do que apenas situados nessas pequenas vertentes literárias que perpassavam a época, tais como realismo /naturalismo /parnasianismo /simbolismo /modernismo.
    Todos esses fatos históricos são de extrema importância e que futuramente nos ajudarão a localizar o escritor Alphonsus Guimaraens nesse ambiente de intensas transformações e a estabelecer uma relação entre essas produções atípicas – que são os contos, crônicas e poemas humorísticos – que não têm uma relação direta com o movimento simbolista, mas sim com outros tipos de estéticas literárias ou de apreciação popular. Embora nossas análises se resumam apenas às questões de humor e ironia, e neste trabalho não pretendamos nos aprofundar nessa questão histórica, são estas investigações primeiras que nos conduzirão posteriormente a uma maior compreensão da importância humorística nesse período e que ligações elas têm com o poeta simbolista Alphonsus.
    O poeta morre em 1921, logo em 1922 acontece a Semana de Arte Moderna, através dos grandes personagens revolucionários da literatura como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, da pintura, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, intelectuais como Graça Aranha, Di Cavalcanti.
    Embora Alphonsus não fizesse parte desse mundo que se encontrava no ápice da ideia de modernidade brasileira, e, embora ele não fosse um adepto das “circunstâncias” modernas, principalmente porque sua preocupação estética se colocava quase num mesmo porte rígido de valor parnasiano, pois valorizava a medida e se entendia como um erudito; ele não poderia deixarde ser também um integrante das experiências da Belle Époque, e consta-se como serámencionado posteriormente que produziu versos tidos como de “circunstância” (MASSAUD, 2001, p.284). Este poeta simbolista possuía um grande apreço pelas produções estrangeiras, mas nunca deixou de ser um brasileiro vivenciando suas situações econômicas, culturais, sociais e, principalmente, familiares. Nas cidades interioranas onde residiu fez parte do cotidiano e da vida dos moradores do local, e que, por sinal, também estavam inseridos na vida do poeta. Alphonsus perdeu sua noiva Constança muito cedo. Certos autores acreditam que esse acontecimento tenha marcado para sempre sua vida como poeta. Sua preocupação com o sobrenatural, com a morte, seus lamentos de dor, melancolia, tristeza, seus devaneios sobre a lua, sobre o mistério, além de características marcantes das produções simbolistas também são uma espécie de vício sobre a busca de resolver o problema, de alcançar a chave daquilo que realmente acontece com os seres humanos além da vida, e, no caso, talvez, sua ligação com Constança e a repentina morte na flor da idade desta que seria sua noiva, possa ter contribuído para despertar essa ânsia investigativa sobre uma possível existência além da vida. (RESENDE, 19?, p. 21) O interessante é que mesmo depois deste fato Alphonsus teve uma vida, e uma vida muito participativa socialmente, apesar de ser considerado o “solitário de Mariana”.
    O que é de extrema importância neste trabalho é encontrar essa outra face de Alphonsus, aquela em que o poeta dá espaço para as trivialidades do cotidiano e se dedica um pouco às coisas ridículas, engraçadas, mesquinhas, conflitantes, pilhéricas etc. Através de seus poemas humorísticos, que estão inseridos em sua Obra Completa, e no seu livro de contos e crônicas Mendigos, temos contato com diversos tipos de situações cômicas. Nos poemas, por exemplo, o poeta Alphonsus se torna um escritor descontraído e se permite caçoar de personagens típicos de uma cidade da época tais como vigário, padres, médicos, advogados, certas mulheres, patrões, políticos, eleitores e muitos outros. Já no livro Mendigos ainda que encontremos situações fúnebres também podemos nos deparar com momentos de humor negro e também humor puro, além de ironia, sarcasmo, chistes, e até mesmo ideias típicas de anedotas que são populares, por exemplo.
    A princípio Verena Alberti em seu instigante livro O riso e o risível nos dá uma noção das origens dos estudos acerca do riso. A partir dessas investigações filosóficas poderemos situar as composições humorísticas de Alphonsus Guimaraens. A autora faz um apanhado dos estudiosos que mais se aprofundaram no entendimento dessa matéria que é o riso. Platão, Aristóteles, Nietzsche, Freud, Ritter, Laurent Joubert, Thomas Hobbes, Spencer, Darwin, Bergson, entre outros, fazem parte de suas investigações. Aristóteles, por exemplo, nos dá uma interessante noção a princípio; faz isso através da diferenciação entre o homem e qualquer outro animal: “o homem é o único animal que ri”. A partir dessa definição podemos perceber que o riso é uma característica pertencente à categoria humana e é graças a esta faculdade que o homem se diferencia de qualquer outro tipo de animal. Embora o homem continue pertencendo a essa classe – a de animal – ele se torna diferente dos outros porque simplesmente ri. O riso, então, está diretamente conectado ao mundo dos ánthrópos, e por esta razão, deverá ser investigado sob esta perspectiva. Lourent Joubert, por exemplo, utilizando certas ideias de Aristóteles como fundamento, analisa a formação do riso através de um olhar fisiológico e descrevendo a mecânica das reações humanas provocadas pelo ato de rir. Já Henri Bergson procura resolver o problema da comicidade principalmente através da observação das ações. As ações do homem e no entorno para que se origine uma situação de comicidade. Mas também não deixa de observar a comicidade no plano da linguagem mostrando-nos o que deve ser uma repetição, inversão e transferência de séries. Enfim, esses estudos que almejam desvendar as origens, as composições do riso e aquilo mais que está interligado a este universo cômico serão base para as investigações do que ocorre em algumas criações literárias do poeta simbolista Alphonsus.
     Sobre a ironia Muecke também investiga as origens do conceito e irá encontrar as primeiras definições em Platão e Aristóteles que utilizam a palavra grega euroneia, que se origina da palavra eiron e que para Demóstenes era aquele que “fugia de suas responsabilidades de cidadão” (MUECKE, 1995, p 31). Aristóteles, então, define a ironia (euroneia) como sendo “dissimulação autodepreciativa”. Muecke também investiga Cícero e Quintiliano, e faz uma descrição anatômica da ironia. Para dar à ironia uma forma visível o autor se cerca de conceitos tais como Ironia Instrumental, Ironia Observável, Ironias Fechadas, Ironia Paradoxal, Ironia Verbal entre outras definições.
    O outro autor importante para as investigações que serão feitas por nós é Lélia Parreira Duarte. No seu livro Ironia e humor na literatura ela apresenta as formas do humor e da ironia encontradas em escritores tais como Almeida Garrette, Machado de Assis, Mário de Sá-Carneiro, Guimaraens Rosa etc. Lélia nos fornece um material importante para os estudos que envolvem a prosa, e por este motivo, será de exímia importância para o entendimento dos processos envolvidos no livro de contos e crônicas de Alphonsus, Mendigos; nele o humor se articula de maneira diferente daquele encontrado nos poemas. Os contos são densos e carregados da atmosfera simbolista; não deixam de mostrar os universos que mais encantavam Alphonsus: o da morte, o do oculto, o do transcendente, o da beleza mórbida etc. O interessante é que em certos momentos Alphonsus consegue emitir o cômico através da morte; muitas vezes, se cercando de ironia, muitas vezes demonstrando inconformismo e outras criando situações onde a própria morte passa a ser uma piada. Mas ele não se volta apenas para o humorismo que se apóia em temas funestos. As construções humorísticas cercam outros temas que serão demonstrados e analisados nestes primeiros estudos.
     Havia outra virtude em Alphonsus no que cabe ao campo do humor: sua formação profissional. Sua condição de jornalista, de juiz e promotor deram a ele a oportunidade de utilizar os jornais com o “simples ensejo de pilheriar” (ALPHONSUS, p. 728). Portanto, suas profissões o mantiveram em contato com os personagens políticos da cidade que muitas vezes eram seus parentes ou simplesmente amigos. O interessante é que para Alphonsus estas produções não tinham valor literário e eram publicadas nos jornais apenas para um divertimento coletivo ou, simplesmente, pessoal; hoje elas têm importância e são necessárias para que consigamos desvendar esse escritor que tem título de simbolista, mas não deixou de contribuir para os modismos de sua época.

1. O humor e a ironia em alguns contos e crônicas do livro Mendigos
    Mendigos é o único livro de prosa publicado por Alphonsus Guimaraens; e segundo carta endereçada a Mário Alencar na data de 17 de maio de 1908 não se considerava um bom prosador e ainda comenta: “a linguagem não metrificada dá-me um trabalho duplo” (SILVA, 1971, p. 322). Apesar dessas considerações sabemos que suas criações prosaicas possuíam certos elementos que se enquadravam nos gostos populares da época. Elas eram publicadas com frequência, e muitas delas não podem ser encontradas neste seu único livro de prosa.
    A coordenadora do Museu Casa Alphonsus Guimaraens Ana Cláudia Rolla Santos iniciou uma organização desses contos e crônicas publicados no Diário de Minas. Por exemplo,“Um aviador bemaviado” ou “Os feios em New York e em Londres” são crônicas engraçadas e merecem uma atenção especial justamente porque estão fora da seleção de Mendigos e fora da Obra Completa de Alphonsus. Infelizmente não nos atearemos aqui a estas produções encontradas apenas nos jornais, mas nos cercaremos necessariamente dos contos ou crônicas do livro Mendigos.
     No conto “Elias”, o primeiro do livro, narra-se uma história de horror vivida por um cego e um leproso. Mesmo que ainda não seja possível estudarmos formas mais concretas de humor ou ironia nesse conto encontramos elementos que podem ser inseridos em algumas definições de Bergson, e que iniciam o entendimento sobre essas produções fora dos moldes simbolistas.
     Encontramos neste autor estudos no plano da linguagem. Para ele existem três tipos de “transformações cômicas das frases” uma a inversão, outra a interferência e a transposição. (BERGSON, 2004, p.88). A inversão consiste numa troca de ideias inseridas num diálogo ou numa frase. Ele mesmo cita um exemplo extraído da comédia de Labiche: “(...) porque o senhor joga a sujeira do seu cachimbo no meu terraço? (...) a voz do inquilino responde: “Porque o senhor põe o seu terraço debaixo do meu cachimbo” (BERGSON, 2004, p. 90). A interferência está diretamente ligada à palavra de origem latina quid pro quo „uma coisa pela outra. que conhecemos como quiprocó. Este efeito cômico não tem uma definição fixa porque sua própria condição surge dessas variedades que a própria forma lhe compete. E a transposição pode ser entendida, em partes, através do solene e do familiar. Como quando passamos do erudito para o popular, por exemplo. O exagero é outra espécie de transposição porque é a posição inversa da degradação. A degradação vem dessa noção da Antiguidade de que o riso advém da imitação de seres inferiores.
     No conto em questão o lazarento Elias encontra um cego e o propõe viverem juntos. O cego é noticiado posteriormente de que o seu amigo Elias era leproso. Depois da descoberta o cego morre e o lazarento se joga de uma cachoeira. O conto atinge o grau de horror, mas não perde em determinados momentos situações que possam ser encaradas como possibilidades humorísticas que irão se tornar muito mais nítidas em outras produções.
    Enfim, no caso de “Elias” o que seria interessante observar é que não ocorrem inversões no plano da linguagem, mas certas inversões no plano narrativo como, por exemplo, o fato de Elias ser leproso e conquistar um amigo cego. A condição desagradável e temida naquele que possui lepra é a sua aparência, portanto o cego não possui a menor condição de avaliar se este seria um “bom” ou um “mal” amigo. A inversão se encontra no fato da aparência ser a possibilidade de defesa do cego, mas por seu contrário – que é o fato dele não poder ver que Elias é leproso – acaba se tornando aquilo que irá matá-lo. Embora o conto não possua comicidade, que a descrição seja essencialmente produzida através do requisito da adjetivação, ainda que essa atmosfera seja essencialmente fúnebre e os acontecimentos trágicos, a situação causada pela esperteza do lazarento desestabiliza a estrutura da narrativa. Elias precisava das esmolas que eram adquiridas pelo cego, e por isso, conquistou sua amizade e causou-lhe um mal inesperado. O que era bom – a amizade – passou a ser visto como uma forma de levar vantagem sobre a deficiência do personagem cego. Ocorre claramente aí uma inversão, mas não no plano da linguagem. Bergson nos ajuda a entender: “obteremos uma cena cômica fazendo com que a situação volte para trás e com que os papéis se invertam (...) Teremos quase sempre diante de nós um personagem que prepara a trama na qual ele mesmo acabará por enredar-se” (BERGSON, 2004, p. 90). No caso, o lazarento engana o cego, mas acaba por encará-lo como um amigo verdadeiro e se sente triste ao imaginar que o cego possa ter morrido depois de descobrir que havia sido enganado. Na verdade o cego morre do susto da descoberta, mas Elias não sabe exatamente o que aconteceu. No conto não fica claro se Elias se suicida pela perda do amigo, se por imaginar que ele sabia da traição ou se simplesmente, porque já estivesse condenado à morte pela condição da lepra. O conto não pode ser classificado como cômico porque as situações cômicas são mascaradas pelo clima de morbidez.
   No livro Ironia e humor na literatura, Lélia Parreira Duarte dedica um pequeno capítulo que relaciona o humor à morte intitulado “A criatividade que liberta: riso, humor e morte”. A partir dessas interpretações podemos entender um pouco no que ocorre no livro Mendigos; um livro que trabalha a morte não totalmente desligada do humor. Um outro conto muito importante para entendermos essa perspectiva é “Pergunta imprevista” onde o narrador sonhando descreve uma imagem sublime. Ele está diante de uma cova aberta e logo é interrogado por um sujeito que se aproxima querendo saber se aquela cova era para ele. Depois disso o sujeito começa a contar uma história que contêm elementos trágicos e cômicos. Nesse conto a comicidade está diretamente ligada à linguagem podendo ser presenciada em sua forma exata.
    Diferente do primeiro conto “Pergunta imprevista” expressa o humor de forma clara e objetiva, mas ainda assim não se desvincula do sóbrio, do fúnebre, da inconformidade diante da morte. Sobre o humor e a morte Lélia diz:
   “Dada a relação entre o riso e a morte, o autor literário cômico será portanto um autor funéreo. Tendo sempre em mente a morte, embora usando a técnica do distanciamento, que apresenta a morte como se vista pela primeira vez, esse autor revela-se capaz de provocar sorrisos, geralmente inquietos. O sorriso ambíguo e irônico, indicador de ceticismo, que resulta dessa antevisão da morte, coloca-a em dúvida e permite afastar a indesejada para um momento improvável e perdido num futuro incerto, ou então coloca no seu raio de atuação apenas o outro e não o eu.” (DUARTE, 2006, p. 54)
     Nessa perspectiva de distanciamento da morte Alphonsus se cerca de um humor que avalia situações desrespeitosas diante da morte. Desrespeitar o morto com comentários engraçados diminui a tensão do momento e alivia a dor dessa vivência trágica. Vejamos, então, as situações que nos apresenta o conto: Numa primeira instância o homem que se aproxima do narrador e lhe pergunta se a cova era para ele narra uma história justificando seu interesse pelo dono da cova. É nesta narrativa que encontramos os comentários que criam situações engraçadas diante da morte. O homem que se aproxima do narrador é um coveiro e a história que conta é a respeito de um morto hidrópico que havia chegado do interior. Ele estava sendo trazido por alguns homens do campo e durante a trajetória eles conversam sobre o morto. No trecho em questão o coveiro alega serem esses homens do campo broncos e “gente sem o mínimo respeito pelos mortos” eles seguem cantando, rindo e dizendo “pilherias medonhas”. Assim, então eles comentam: “O pobre Manuel vai minando a cachaça que bebeu em vida”, “a salmoura não vaza toda para que o diabo do homem fique mais leve!” ou “(...) e tomavam mais um gole, por causa da „infecção daquele trem.”. O coveiro ainda conta demonstrando certa repreensão que “todos achavam muita graça nas pilhérias” o que demonstra certo desagrado em relação a galhofas diante da morte, principalmente quando diz:
     “Ninguém pensava na viúva” e “(...) os parentes (...) conversando coisas alheias àquela morte, indiferentes alguns, aflitos quase todos por verem pelas costas aquele enterro fastidioso, que não prometia acabar tão cedo” (GUIMARAENS, 1960, p. 408); estas, então, são as situações narradas pelo coveiro ao personagem narrador. O humor é discreto em relação a toda narrativa, mas é evidente quando o tratamos como um momento vivido por aqueles que carregam o morto, pois estas experiências são engraçadas, embora desrespeitosas – quando vistas sob o olhar do narrador coveiro.
     De acordo com Muecke, já em Homero temos as primeiras amostras da ironia. Embora o conceito ainda não houvesse sido formulado nesta época o autor das epopeias tem dimensão e faz uso deste efeito. Na Odisseia a cena que se passa entre Odisseu travestido de velho e os pretendentes revela uma situação onde a ironia é condição do diálogo entre eles. Contudo a ironiamaior vem do fato dos pretendentes acreditarem que Odisseu não retornaria; ele retorna e dizima a todos que consumiam seus bens. (MUECKE, 1995, p 30
    No que diz respeito às produções estudadas aqui, Mendigos e os poemas humorísticos, a ironia é utilizada em diversos planos. Muecke no capítulo “Anatomia da ironia” diz que “.O traço básico de toda a Ironia é um contraste entre uma realidade e uma aparência.”2. Na verdade este autor trabalha com sentidos irônicos utilizados em língua inglesa – o que se torna um problema para as nossas comparações. Vamos utilizar somente aqueles que podem ser aproveitados no sentido básico e que são bem claros para nós brasileiros.
     A Ironia Situacional e a Ironia Verbal possuem sentidos mais amplos e foram formulados pelo próprio autor. A Ironia Situacional é o fenômeno, a ação, é aquela que vivenciamos antes mesmo de entendermos o conceito. A outra, Verbal, é o próprio sentido, é a ironia e suas manifestações conceituais. A Ironia Instrumental tem definição específica e se enquadra numa situação particular, como quando alguém não sabe estar sendo vítima da ironia. Mais importante, então, é a Ironia Observável que tem sentido mais atual, por se tratar daquele que tem consciência do conceito de Ironia. Como na antiguidade não se usava a palavra ironia com a mesma noção que temos hoje, não havia, portanto, tal consciência, e por assim ser, hoje ela carrega em si as possibilidades múltiplas de uso. Passa, então, a ser “encarada como obrigatória, dinâmica e dialética”. (MUECKE, 1995, p. 35). Assim, essas são algumas ideias acerca da ironia que serão usadas nos contos “Elias”, “Pergunta imprevista” e “Jacinto”. Do conto “Elias” é interessante observar o momento em que o leproso encontra o cego. A esse respeito temos a seguinte narrativa:
    “Um cego! O consolo de uma ideia feliz fulgurou nos olhos rubros do leproso. Daí em diante teria um companheiro certo, que o não veria, e por conseguinte não correria cheio de nojo à aproximação de suas chagas. Enganá-lo-ia, dar-se-ia por um estropeado que trabalhava outrora e que passara para a comunhão dos mendigos por ter perdido uma das mãos, ficando-lhe a outra para esmolar. E então propror-lhe-ia viverem juntos os restos mesquinhos dos seus dias.” (ALPHONSUS, 1960, p. 396)
     A ironia se processa a partir da frase “ideia feliz”. É ela que desestabiliza todo o restante do texto. Primeiro que a ideia feliz seria enganar o cego e segundo viverem juntos os restos mesquinhos dos seus dias: um cego e um leproso. Então a sugestão de “ideia feliz” é contrária à realidade que será vivida pelo cego, o enganado. Mas a ironia vai além da simples trapaça executada pelo lazarento. Podemos dividir essa situação em dois planos: o plano dos personagens e seus atos e o do narrador e suas falas e observações que faz a cerca dos personagens. Segundo Muecke a Ironia Instrumental é aquela vivida por alguém ou “alguém sendo irônico”, já a Observável são “coisas vistas ou apresentadas como irônicas” (MUECKE, 1995, p. 38). Aquele que vive a ironia é o leproso por se sentir feliz, contente, e ao mesmo tempo, por estar inserido em uma desgraça tamanha que nem mesmo o ato de enganar o cego pode realmente salvá-lo da podridão. Sua intenção ao enganar o cego era tirar proveito de suas esmolas e arrumar um amigo já que ninguém tinha coragem de se aproximar dele devido à doença contagiosa. O cego, porém, neste momento não sofre a ironia, pois ainda não havia sido proposto a ele semelhante “amizade”, que virá posteriormente no desenrolar do conto.
     A Ironia Verbal é aquela dita e não executada. Como percebemos o narrador diz e também observa a ironia e o lazarento a vive. O narrador quando conta representa a realidade vivida pelo seu personagem, assim percebemos que se trata de uma situação dita “feliz”, mas não deixa de demonstrar que vem de um ato desgraçado. O leproso não vive a ironia, nesse caso, através da palavra ou de um diálogo, mas nos pensamentos e nos sentimentos. Nos pensamentos, quando possui uma ideia que é boa para si mesmo e desgraçada para o outro, e nos sentimentos, quando se sente alegre, mas nada pode efetivamente arrancá-lo da desgraça de sua condição de leproso.Muecke nos fala sobre a Ironia de Eventos que não deixa de ser uma Ironia Instrumental, onde as ações no tempo fazem com que se viva a ironia. Por exemplo, em Rei Henrique V, de Shakespeare, ocorre uma inversão de um ato, pois o casamento com a princesa francesa, que aparentemente garantiria a estabilidade do reinado acaba se tornando a desgraça desse mesmo reinado. No caso o que ocorre com o leproso não se trata de uma Ironia de Eventos, mesmo porque teríamos que pensar no plano completo da narrativa e estamos analisando apenas traços irônicos; também nesse caso se trata de um conto, e não de uma obra complexa como Rei Henrique V; embora a atitude do leproso, aparentemente, leve tanto a si mesmo quanto o cego ao suicídio não é possível pensar com certeza numa Ironia de Eventos. Os personagens vivem uma desgraça completa, fazem-nos pensar que o suicídio poderia ser uma condição provável e não devido a certa atitude ou atos dos personagens. Uma ironia muito importante é a Ironia Cósmica ou Ironia Geral tida como quando o “universo tem como vítima o homem ou o indivíduo”. Entendemos o homem ou o indivíduo como seres que buscam as formas infinitas, mas são finitos e limitados. O mundo é contraditório na sua naturalidade, e a condição da vida humana insere o ser em situações que embora, muitas vezes, a moral o condicione a certas atitudes a necessidade o conduz a outras, oposta a estes mesmos preceitos morais. O universo, então, é caótico e o homem é a maior ironia do universo, por tentar organizá-lo, entendê-lo, controlá-lo. Assim, o leproso é vítima também do universo e sua condição como tal o obriga a agir fora da moral, pois esse mesmo universo caçoa e brinca com sua humanidade, essa forma contraditória.
    No outro conto “Pergunta imprevista” temos uma pequena frase que nos remete à ironia “a salmoura não vaza toda para que o diabo do homem fique mais leve”. O defunto, cuja morte havia sido por hidropisia (derramamento de líquido seroso em tecidos ou em cavidades do corpo) estava inchado e pesava devido a quantidade de líquido retido no seu corpo. Nesse caso trata-se de uma Ironia Verbal ditada pelo próprio personagem; é um deles que fala e não é exclusiva do narrador. A brincadeira com o morto é feita entre os personagens do campo; uma conversa informal onde as piadas e ironias fazem a graça diante da morte. Como já foi discutido anteriormente.
     “Jacinto” é extremamente carregado de humor e ironia, mas ainda é um conto associado ao ambiente fúnebre. Não pretendemos estudar nesse trabalho as produções que consideramos “verdadeiramente” humorísticas, aquelas em que o tema da morte não se encontra presente, pois o humor que consideramos “completo” deve ser estudado de outra forma.
    Em “Jacinto” vários personagens estão reunidos à noite pilheriando e bebendo kümmel e Guy d’Alvim resolve contar a história de Jacinto. Nesse caso a história inteira narrada passa a ser irônica. A ironia não está num traço, ou em um trecho. A forma de contar de Guy d.Alvim é por si mesma irônica, pois o objetivo é mostrar a contradição religiosa. Por um lado a imagem de bondade que é expressa pelo sacristão José Maria e por outro a face maldosa e nada caridosa deste mesmo personagem. A falta de compaixão é o tema tratado no conto. Jacinto é um mendigo que vive bêbado e jogado nas ruas. O único interesse que o sacristão tem nele é o de receber uma parte das esmolas que ele arrecada, mas ainda assim isso não é o suficiente para tratá-lo bem. O sacristão preferiria vê-lo morto e assim tenta executar tal ação. Quando os amigos de Jacinto o encontram desmaiado na sarjeta aproveitam a oportunidade para enterrá-lo. O conto vai se tornando extremamente engraçado e irônico devido à forma de narrar de Guy. Por exemplo, quando diz a respeito de Jacinto que estava sendo levado para o cemitério por seus “amigos” para ser enterrado “vivo”: “aquele era um morto esquisito” e “de vez em quando estremecia, roncava às vezes, fazendo o José Maria e os outros largarem-no assustados, para depois o carregarem de novo, tão quieto ficava”. A ironia vem da inocência construída pelo narrador sobre seus personagens, principalmente na fala “morto esquisito” – como se os personagens realmente não soubessem que Jacinto estivesse vivo e fingissem para si mesmos que são bons e não são maus; que estão praticando um ato de bondade ao ajudarem o sacristão José Maria a enterrar alguém que, de certa forma, já era um morto social. Verena Alberti cita Luiz Felipe Baêta Neves dizendo que ele “opõe o riso e o cômico à „ideologia da seriedade. e que “acredita no poder do heurístico do cômico, pleiteando que se considere a comicidade uma forma específica de conhecimento do social e de leitura crítica da opressão.” (ALBERTI, 1999, p. 31) No caso a ironia ou o humor não sãoexperiências vividas pelos personagens, mas um artifício usado pelo autor para desconstruir a imagem santa da igreja e da pureza dos homens. Esse tipo de construção crítica ocorre principalmente nos versos de circunstância que veremos agora.

2. Os poemas humorísticos
    Alphonsus gostava muito de criticar em seus poemas médicos, advogados, políticos e religiosos. Os médicos eram vistos por ele como exploradores da ignorância do povo. Para ele os doutores ao invés de atrasar a morte, curar o paciente, o que realmente faziam, na maioria das vezes, era contribuir para que o doente morresse com mais rapidez. Um de seus pseudônimos o Quatrigerebas diz o seguinte:
- Este DOUTOR tão feliz,
Que segue tão satisfeito,
Que vai fazer, não me diz?
- Dar cabo de algum sujeito. (ALPHONSUS, 1960, p.561)
      E outro pseudônimo, o Catimbau:
- Que CURAS, doutor sagrado?
- Toda doença velha e nova.
- E qual é o resultado?
 É todos irem pra a cova. (ALPHONSUS, 1960, p. 560)
     De acordo com Alberti existe uma história a respeito de Demócrito, conhecido como o filósofo que ri, encontrada em A Carta de Hipócrates a Damagetus que ilustra essa forma de riso proposta por Alphonsus. Demócrito investiga o humor da melancolia e através do diálogo que trava com Hipócrates, mostra que os humanos perdem muito tempo com coisas vazias como ouro e prata e agem como se as coisas fossem firmes e estáveis. Hipócrates, que é médico, não entende por que rir das doenças, da morte, das coisas sagradas, das crianças, mas Demócrito usa como justificativa a afirmação de que o homem é transitório, vulnerável. E ainda diz: “Quando você entender meu riso, eu sei que o estimará, tanto para você quanto para seu país, como melhor remédio e cura que há em sua legação, e disso poderá fazer sábio os outros” (ALBERTI, 1999, p. 77). O riso então passa a ser usado literalmente como uma possibilidade de cura. Assim, rir da desgraça e durante a desgraça é um ato de sabedoria. Alberti também nos mostra que Aristóteles em Problema XXX entende o homem de exceção – sábio, poeta - como melancólico e que na tradição médico-filosófica antiga, a bílis negra é o humor da melancolia.
     Alphonsus critica os médicos por desvalorizarem a vida. Na verdade, para gerar o humor, o poeta os acusa de responsáveis pela morte de seus pacientes, assim não são mais homens que carregam a aura do “sagrado” e a “cura” que é oferecida por eles passa a não ser mais a vida e sim a morte. A ironia extrema complementa a complexa criação dos poemas humorísticos de Alphonsus, mas ainda não sabemos se esse humor vem da bílis negra ou se trata apenas de um modismo de época.

Conclusão
     Sendo Alphonsus um poeta simbolista e muito mais preocupado com a estética pertencente a este estilo, e se tratando de algo incomum o uso do humor para um escritor que foi consagrado justamente pelo oposto da comicidade, passa a ser necessário o início de um trabalho que busque enquadrar num contexto específico esses poemas e textos aparentemente rejeitados.
    Aqui o estudo de seus contos, crônicas, poemas humorísticos ou “versos de circunstância” nos servem de fonte para futuros trabalhos que têm como objetivo complementar sua obra a qual ainda não foi devidamente cercada. Esses estudos também podem revelar com mais profundidade essa outra face do poeta. O primeiro estudo que se consta a esse respeito é um trabalho de Vulmar Coelho publicado no ano de 1934. Desde então muitos autores comentaram sobre o assunto como Massaud Moisés, Carlos Drummond de Andrade, José Augusto Guerra com um pequeno artigo no suplemento literário, o próprio Guimaraens Filho etc; Porém nenhum desses autores buscou analisar através de uma metodologia os processos de construção dessas produções, principalmente no que cabe à ironia. Esses dados, então, servirão para fecharmos certas lacunas que ainda existem a respeito de um dos maiores poetas simbolistas do Brasil.
    Dados que também serão comparados com outras publicações típicas dos jornais da época e que
são importantes para observarmos a relação que possuíam com o tipo de gosto estético da Belle Époque, e principalmente, por que, embora rejeitados pelo poeta, tiveram sua utilidade.

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