PERO VAZ DE CAMINHA (1450 - 1500)
Quem foi
Pero Vaz de Caminha foi escritor de nacionalidade portuguesa e participou da esquadra, comandada por Pedro Álvares Cabrasl, que chegou ao Brasil em 1500. Sua função era de escrivão da esquadra.
Nascimento
Pero Vaz de Caminha nasceu na cidade do Porto (Portugal) em 1450 (dia e mês desconhecidos).
Quem foi
Pero Vaz de Caminha foi escritor de nacionalidade portuguesa e participou da esquadra, comandada por Pedro Álvares Cabrasl, que chegou ao Brasil em 1500. Sua função era de escrivão da esquadra.
Nascimento
Pero Vaz de Caminha nasceu na cidade do Porto (Portugal) em 1450 (dia e mês desconhecidos).
Morte
Pero Vaz de Caminha morreu na cidade em Calicute
(Índia) em 15 de dezembro de 1500.
Principais
realizações
- Participou da esquadra portuguesa que chegou ao
Brasil em 1500.
- Escreveu a carta que se tornou um importante
documento do início da História do Brasil.
Principal
obra
- A carta do descobrimento, também conhecida como
"Carta de Pero Vaz de Caminha", redigida por ele e enviada ao rei de
Portugal D. Manuel I. Nesta carta ele
relatou com detalhes a paisagem do liltoral do nordeste brasileiro em 1500, os
índios que habitavam e os primeiros contatos entre portugueses e indígenas. É
um das principais fontes históricas sobre o Descobrimento do Brasil. É praticamente a certidão de nascimento do Brasil.
Conheça o primeiro relato que descreve o Brasil e tenha uma aula de história com escritos do descobrimento.
A Carta, de Pero Vaz de Caminha, é um
documento que faz parte da história do Brasil e que traz o primeiro relato que
descreve as terras do nosso país sob o olhar dos europeus.
É uma ótima leitura para quem gosta de História,
quem está em época de vestibular e também para quem aprecia literatura em
geral.
Embora a carta não seja considerada como uma forma
de literatura propriamente dita, os escritos deixados pelo português Pero Vaz
de Caminha com o intuito de descrever a terra recém-descoberta ao rei de
Portugal trazem muito da chamada "literatura informativa", a qual
caracteriza os primeiros escritos produzidos no Brasil, quando ele sequer era
chamado assim.
A carta apresenta informações detalhadas sobre a
impressão que os portugueses tiveram ao chegar no Brasil, incluindo descrições
sobre os habitantes nativos, a natureza exuberante e revelando muito sobre os
interesses dos portugueses nessa terra.
Ideal para estudantes e interessados em história
brasileira.
Análise da obra
A carta que o
escrivão Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei d. Manuel é considerada o primeiro
documento da nossa história, e também como o primeiro texto literário do Brasil
e é o mais minucioso e importante documento relacionado à viagem da esquadra de
Cabral ao Brasil e foi publicada pela primeira vez apenas em 1817, mais de
trezentos anos após haver sido redigida, como parte do livro Corografia
Brasílica..., de autoria de Manuel Aires do Casal. Isto significa que, até
essa época, a história contada sobre a viagem de 1500 foi substancialmente
diferente da narrada depois.
O texto de Pero Vaz de Caminha tem a preocupação básica de informar, procurando transmitir o máximo possível de dados a respeito do que ocorria e do que o escrivão via, ouvia e sentia.
O fato de ser um texto informativo alia-se a outras importantes dimensões do documento, pois insere-se no esforço conjunto dos europeus, concretizado nos textos de viagem da época (especialmente nos escritos por integrantes das expedições), no sentido de construir alteridades, à medida mesmo que os navegantes entravam em contato com diversas terras e povos — alguns, como os índios e o futuro Brasil, totalmente desconhecidos deles —, com os quais seria preciso conviver dali em diante e, para conseguir dominar, sobretudo conhecer.
O escrivão português foi minucioso na elaboração do seu inventário de diferenças, incluindo não somente pessoas, mas animais, plantas, relevo, vegetação, clima, solo, produtos da terra, etc.
O texto do escrivão foi além. Reunindo o que viu às categorias que construiu, Caminha completou o ciclo: propôs ao rei, no final de seu texto, caminhos concretos para o aproveitamento do território e de seus habitantes, a saber: o desenvolvimento da agricultura e a cristianização dos índios. O escrivão viu o diferente, apreendeu-o segundo a sua própria mentalidade e, porque fez isso, foi capaz de dar o terceiro passo: sugerir ao monarca os caminhos do futuro, que eram os caminhos da desigualdade entre visitantes e habitantes, os caminhos da dominação portuguesa. Os acontecimentos descritos na carta — o tempo presente da chegada à terra — podiam incluir — como efetivamente incluíram — congraçamentos e danças coletivas entre navegadores portugueses e índios, além de atitudes legítimas de curiosidade, espanto e tolerância, profundamente humanas, por parte do escrivão ou de outros tripulantes, frente à terra bela e à sua gente agreste.
O texto de Pero Vaz de Caminha tem a preocupação básica de informar, procurando transmitir o máximo possível de dados a respeito do que ocorria e do que o escrivão via, ouvia e sentia.
O fato de ser um texto informativo alia-se a outras importantes dimensões do documento, pois insere-se no esforço conjunto dos europeus, concretizado nos textos de viagem da época (especialmente nos escritos por integrantes das expedições), no sentido de construir alteridades, à medida mesmo que os navegantes entravam em contato com diversas terras e povos — alguns, como os índios e o futuro Brasil, totalmente desconhecidos deles —, com os quais seria preciso conviver dali em diante e, para conseguir dominar, sobretudo conhecer.
O escrivão português foi minucioso na elaboração do seu inventário de diferenças, incluindo não somente pessoas, mas animais, plantas, relevo, vegetação, clima, solo, produtos da terra, etc.
O texto do escrivão foi além. Reunindo o que viu às categorias que construiu, Caminha completou o ciclo: propôs ao rei, no final de seu texto, caminhos concretos para o aproveitamento do território e de seus habitantes, a saber: o desenvolvimento da agricultura e a cristianização dos índios. O escrivão viu o diferente, apreendeu-o segundo a sua própria mentalidade e, porque fez isso, foi capaz de dar o terceiro passo: sugerir ao monarca os caminhos do futuro, que eram os caminhos da desigualdade entre visitantes e habitantes, os caminhos da dominação portuguesa. Os acontecimentos descritos na carta — o tempo presente da chegada à terra — podiam incluir — como efetivamente incluíram — congraçamentos e danças coletivas entre navegadores portugueses e índios, além de atitudes legítimas de curiosidade, espanto e tolerância, profundamente humanas, por parte do escrivão ou de outros tripulantes, frente à terra bela e à sua gente agreste.
"De ponta a
ponta é toda praia... muito chã e muito fremosa. (...) Nela até agora não pudemos saber que haja
ouro nem prata... porém a terra em si é de muitos bons ares assim frios e
temperados como os de Entre-Doiro-e-Minho. Águas são muitas e infindas. E em
tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar~ dar-se-á nela tudo por bem
das águas que tem, porém o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que
será salvar esta gente e esta deve ser a principal semente que vossa alteza em
ela deve lançar"
Assim, o escrivão da
Armada de Cabral conclui sua carta-relatório ao Rei D. Manuel, informando sobre
o descobrimento do Brasil. Observe a convivência, no mesmo parágrafo, do
propósito mercantilista da viagem (a preocupação com o ouro e a prata) com o
espírito missionário (a salvação do índio), que oferecia uma justificativa para
a exploração econômica.
A Carta de Pero Vaz de Caminha marca, também, o início de uma longa tradição, o ufanismo ou nativismo, que consiste na exaltação (geralmente exagerada) das virtudes da terra e da gente, e que se irá desdobrar em todos os períodos subseqüentes.
A Carta de Pero Vaz de Caminha marca, também, o início de uma longa tradição, o ufanismo ou nativismo, que consiste na exaltação (geralmente exagerada) das virtudes da terra e da gente, e que se irá desdobrar em todos os períodos subseqüentes.
Com relação ao
índio, a atitude de Caminha foi de certa simpatia:
"Andam nus
sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma cousa de cobrir nem mostrar suas
vergonhas e estão acerca disso com tanta inocência como têm de mostrar no
rosto. (...) Eles porém contudo
andam muito bem curados e muito limpos e naquilo me parece ainda mais que são
como as aves ou alimárias monteses que lhes faz o ar melhor pena e melhor
cabelo que as mansas, porque os corpos seus são tão limpos e tão gordos e tão
fremosos que não pode mais ser."
Alude também,
maliciosamente, à nudez das índias:
"(...) Ali
andavam entre eles três ou quatro moças bem novinhas e gentis, com cabelo mui
pretos e compridos pelas costas e suas vergonhas tão altas e tão saradinhas e
tão limpas das cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma
vergonha."
A Carta de
Caminha é o relato mais rico e
confiável da primeira semana após o Descobrimento. É um diário atípico, ou uma
crônica de viagem, revestida das características estilísticas da literatura de
viagem do Quinhentismo: a linguagem clássica, simplificada pela necessidade de
tratamento objetivo da matéria; clareza; simplicidade; realismo nas
observações; crítica equilibrada e, dentro do espírito humanista, uma constante
curiosidade e uma persistente capacidade de maravilhar-se.
Como documento é muito mais revelador e muito mais bem escrito do que a carta de Américo Vespúcio, que logrou o tamanho sucesso na Europa renascentista, a ponto de fazer do nome de seu autor o nome do novo continente.
Como documento é muito mais revelador e muito mais bem escrito do que a carta de Américo Vespúcio, que logrou o tamanho sucesso na Europa renascentista, a ponto de fazer do nome de seu autor o nome do novo continente.
NOTA
INFORMATIVA:
Esta crônica do nascimento do Brasil, redigida em
forma de diário, vem motivando um volumoso número de estudos e edições, desde
quando o padre Manuel Aires de Casal a publicou pela primeira vez na Corografia
brazílica. O original desse precioso documento, em sete folhas de papel manuscritas,
cada uma em quatro páginas, num total de 27 páginas de texto e mais uma de
endereço, encontra-se guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em
Lisboa, (gaveta 8, maço 2, n.2).
A carta de Caminha caracteriza-se pela descrição da
tipicidade humana do indígena. Observou Carlos Malheiro Dias que "Caminha
não era um cosmógrafo. O que ele redigiu para recreio e esclarecimento do rei
foi uma narrativa impressionista em que revela aquela cultura literária tão
própria dos portugueses da sua grande época, e aquela capacidade de observação,
e aquela capacidade de compreender e descrever judiciosamente, que constituem o
mais esplêndido encanto dos cronistas". A preocupação em traduzir gestos,
a caracterização corporal, a sua alimentação e abrigo, enfim, o seu modo de
existir, demonstra o valor dessa carta narrativa como documento e obra
literária.
(MINISTÉRIO DA CULTURA - Fundação Biblioteca Nacional - Departamento Nacional do Livro)
A Carta de Caminha
Senhor,
Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim
os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa
terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso
minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem
contar e falar -- o saiba pior que todos fazer.
Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa
vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, não porei aqui
mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Da marinhagem e singraduras do caminho não darei
aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os pilotos devem ter
esse cuidado. Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e digo:
A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi
segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e nove horas,
nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã- Canária, e ali andamos todo
aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22
do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas de
Cabo Verde, ou melhor, da ilha de S. Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar,
piloto.
Na noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se
perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau, sem haver tempo forte nem contrário
para que tal acontecesse. Fez o capitão suas diligências para o achar, a uma e
outra parte, mas não apareceu mais!
E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de
longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril,
estando da dita Ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam,
topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas
compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o
nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que
chamam fura-buxos.
Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de
terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras
mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o
capitão pôs nome - o Monte Pascoal e à terra - a Terra da Vera Cruz.
Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco
braças; e ao sol posto, obra de seis léguas da terra, surgimos âncoras, em
dezenove braças -- ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E à
quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimosem direitos à terra, indo os
navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, treze, doze,
dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em frente
à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco mais ou
menos.
Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra
de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro.
Então lançamos fora os batéis e esquifes, e vieram
logo todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor, onde falaram entre
si. E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele
rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando
aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já
ali havia dezoito ou vinte homens.
Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes
cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos
rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E
eles os pousaram.
Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de
proveito, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e
uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles
deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas
vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal grande de
continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças
creio que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser
tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.
Na noite seguinte, ventou tanto sueste com
chuvaceiros que fez caçar as naus, e especialmente a capitânia. E sexta pela
manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o
Capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis
e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma
abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha. Não que
nos minguasse, mas por aqui nos acertarmos.
Quando fizemos vela, estariam já na praia
assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam
juntado ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o Capitão aos navios
pequenos que seguissem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para
as naus, que amainassem.
E, velejando nós pela costa, obra de dez léguas do
sítio donde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife
com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E
meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles; e um pouco antes
do sol posto amainaram também, obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze
braças.
E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um
daqueles navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro
para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois
daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia.
Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com
seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao
Capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.
A feição deles é serem pardos, maneira de
avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma
cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm
tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo
furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma
mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador.
Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço
e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os
molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.
Os cabelos seus são corredios. E andavam
tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados
até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a
fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria
do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e
as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda
como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui
basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em
uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés
uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho,
Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão,
pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de
cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no
colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o
colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal
de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se
lá também houvesse prata.
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz
consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os
havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma
galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram
como que espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido,
confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada
daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora. Trouxeram-lhes
vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais.
Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que
lavaram, e logo a lançaram fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas;
acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois
tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas
e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos.
Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o
queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as
contas a quem lhas dera.
Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir,
sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e
as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por
baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar.
E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram.
Ao sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e
fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de seis a sete braças.
Entraram todas as naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças - ancoragem
dentro tão grande, tão formosa e tão segura, que podem abrigar-se nela mais de
duzentos navios e naus. E tanto que as naus quedaram ancoradas, todos os
capitães vieram a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão a Nicolau
Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e
os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um sua
camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que
eles levaram nos braços, seus cascavéis e suas campainhas. E mandou com eles,
para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam
Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim
mandou que fosse com Nicolau Coelho.
Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali
acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos.
Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os arcos;
e eles os pousaram, mas não se afastaram muito. E mal pousaram os arcos, logo
saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não
pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais
corria. E passaram um rio que por ali corre, de água doce, de muita água que
lhes dava pela braga; e outros muitos com eles. E foram assim correndo, além do
rio, entre umas moitas de palmas onde estavam outros. Ali pararam. Entretanto
foi-se o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e o
levou até lá. Mas logo tornaram a nós; e com ele vieram os outros que nós
leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.
Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela
beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam cabaços de água,
e tomavam alguns barris que nós levávamos: enchiam-nos de água e traziam-nos
aos batéis. Não que eles de todos chegassem à borda do batel. Mas junto a ele,
lançavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes dessem alguma coisa.
Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros
uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão.
Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho ou por
qualquer coisa que homem lhes queria dar.
Dali se partiram os outros dois mancebos, que os
não vimos mais.
Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam
ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles,
tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam
espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos, a saber, um no meio e
os dois nos cabos. Aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade
deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de azulada; e outros
quartejados de escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças
e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas
vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as
muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.
Ali por então não houve mais fala ou entendimento
com eles, por a barbaria deles ser tamanha, que se não entendia nem ouvia
ninguém.
Acenamos-lhes que se fossem; assim o fizeram e
passaram-se além do rio. Saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e
encheram não sei quantos barris de água que nós levávamos e tornamo-nos às
naus. Mas quando assim vínhamos, acenaram-nos que tornássemos. Tornamos e eles
mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles. Este levava uma
bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o
lá houvesse. Não cuidaram de lhe tomar nada, antes o mandaram com tudo. Mas então
Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse aquilo. E ele
tornou e o deu , à vista de nós, àquele que da primeira vez agasalhara. Logo
voltou e nós trouxemo-lo.
Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por
louçainha todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado como
S. Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; outros, de vermelhas;
e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima
daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que
ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe
tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum deles era
fanado, mas, todos assim como nós. E com isto nos tornamos e eles foram-se. À
tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros e com os outros
capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, em frente da praia. Mas
ninguém saiu em terra, porque o Capitão o não quis, sem embargo de ninguém nela
estar. Somente saiu -- ele com todos nós -- em um ilhéu grande, que na baía
está e que na baixa-mar fica mui vazio. Porém é por toda a parte cercado de
água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado. Ali folgou
ele e todos nós outros, bem uma hora e meia. E alguns marinheiros, que ali
andavam com um chinchorro, pescaram peixe miúdo, não muito. Então volvemo-nos
às naus, já bem de noite.
Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o
Capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães
que se aprestassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou
naquele ilhéu armar um esperavel, e dentro dele um altar mui bem corregido. E
ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo padre frei
Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e
sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida
por todos com muito prazer e devoção.
Ali era com o Capitão a bandeira de Cristo, com que
saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do Evangelho.
Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma
cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e
proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa
vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja
obediência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita devoção. Enquanto
estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou
menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E
olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à
pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e começaram a
saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias -- duas ou três
que aí tinham -- as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três
traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam
não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé.
Acabada a pregação, voltou o Capitão, com todos
nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos todos em
direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo, na
dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de
uma almadia que lhes o mar levara, para lho dar; e nós todos, obra de tiro de
pedra, atrás dele.
Como viram o esquife de Bartolomeu Dias,
chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam.
Acenaram-lhes que pousassem os arcos; e muitos
deles os iam logo pôr em terra; e outros não.
Andava aí um que falava muito aos outros que se
afastassem, mas não que a mim me parecesse que lhe tinham acatamento ou medo.
Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas, e andava tinto de
tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até baixo, mas
os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era
assim vermelha que a água a não comia nem desfazia, antes, quando saía da água,
parecia mais vermelha.
Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e
andava entre eles, sem implicarem nada com ele para fazer-lhe mal. Antes lhe
davam cabaças de água, e acenavam aos do esquife que saíssem em terra.
Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão; e viemo-nos
às naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas, sem lhes dar mais opressão. E
eles tornaram-se a assentar na praia e assim por então ficaram.
Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, a
água espraia muito, deixando muita areia e muito cascalho a descoberto.
Enquanto aí estávamos, foram alguns buscar marisco e apenas acharam alguns
camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um tão grande e tão grosso,
como em nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e amêijoas,
mas não toparam com nenhuma peça inteira.
E tanto que comemos, vieram logo todos os capitães
a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se apartou, e eu na
companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento
desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor a mandar
descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber, por irmos de nossa
viagem.
E entre muitas falas que no caso se fizeram, foi
por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto concluíram. E
tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui
por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por
eles outros dois destes degredados.
Sobre isto acordaram que não era necessário tomar
por força homens, porque era geral costume dos que assim levavam por força para
alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e
muito melhor informação da terra dariam dois homens destes degredados que aqui
deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém
entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que
muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar. E que,
portanto, não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo,
para de todo mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois
degredados, quando daqui partíssemos.
E assim, por melhor a todos parecer, ficou
determinado. Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra e
ver-se-ia bem como era o rio, e também para folgarmos.
Fomos todos nos batéis em terra, armados e a
bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós
íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos
os arcos, e acenavam que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas
em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais largo que um
jogo de mancal. E mal desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e
meteram-se entre eles. Alguns aguardavam; outros afastavam-se. Era, porém, a
coisa de maneira que todos andavam misturados. Eles ofereciam desses arcos com
suas setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes
davam.
Passaram além tantos dos nossos, e andavam assim
misturados com eles, que eles se esquivavam e afastavam-se. E deles alguns
iam-se para cima onde outros estavam.
Então o Capitão fez que dois homens o tomassem ao
colo, passou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais
que a costumada. E tanto que o Capitão fez tornar a todos, vieram a ele alguns
daqueles, não porque o conhecessem por Senhor, pois me parece que não entendem,
nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passava já para aquém
do rio.
Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas
daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira que os
nossos trouxeram dali para as naus muitos arcos e setas e contas.
Então tornou-se o Capitão aquém do rio, e logo
acudiram muitos à beira dele. Ali veríeis galantes, pintados de preto e
vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo,
pareciam bem assim.
Também andavam, entre eles, quatro ou cinco
mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com
uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura
preta; e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com
as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e
com tanta inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma vergonha.
Também andava aí outra mulher moça com um menino ou
menina ao colo, atado com um pano (não sei de quê) aos peitos, de modo que
apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não traziam
pano algum.
Depois andou o Capitão para cima ao longo do rio,
que corre sempre chegado à praia. Ali esperou um velho, que trazia na mão uma
pá de almadia. Falava, enquanto o Capitão esteve com ele, perante nós todos,
sem nunca ninguém o entender, nem ele a nós quantas coisas que lhe demandávamos
acerca de ouro, que nós desejávamos saber se na terra havia.
Trazia este velho o beiço tão furado, que lhe
caberia pelo furo um grande dedo polegar, e metida nele uma pedra verde, ruim,
que cerrava por fora esse buraco. O Capitão lha fez tirar. E ele não sei que
diabo falava e ia com ela direito ao Capitão, para lha meter na boca. Estivemos
sobre isso rindo um pouco; e então enfadou-se o Capitão e deixou-o. E um dos
nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não por ela valer alguma coisa,
mas por amostra. Depois houve-a o Capitão, segundo creio, para, com as outras
coisas, a mandar a Vossa Alteza.
Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita
água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que há
muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos.
Então tornou-se o Capitão para baixo para a boca do
rio, onde havíamos desembarcado.
Além do rio, andavam muitos deles dançando e
folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem.
Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é
homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E
meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e
andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali,
andando no chão, muitas voltas ligeiras, e salto real, de que eles se
espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e
afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para
cima.
E então o Capitão passou o rio com todos nós
outros, e fomos pela praia de longo, indo os batéis, assim, rente da terra.
Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está junto com a praia, porque
toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares.
E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito
deles andar entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um
tubarão, que Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lançou na praia.
Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles
um pouco se amansassem, logo duma mão para outra se esquivavam, como pardais,
do cevadoiro. Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e
tudo se passa como eles querem, para os bem amansar.
O Capitão ao velho, com quem falou, deu uma
carapuça vermelha. E com toda a fala que entre ambos se passou e com a carapuça
que lhe deu, tanto que se apartou e começou de passar o rio, foi-se logo
recatando e não quis mais tornar de lá para aquém.
Os outros dois, que o Capitão teve nas naus, a que
deu o que já disse, nunca mais aqui apareceram - do que tiro ser gente bestial,
de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém e com tudo isso andam muito bem
curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou
alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às
mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que
não pode mais ser.
Isto me faz presumir que não têm casas nem moradas
a que se acolham, e o ar, a que se criam, os faz tais. Nem nós ainda até agora
vimos nenhuma casa ou maneira delas.
Mandou o Capitão aquele degredado Afonso Ribeiro,
que se fosse outra vez com eles. Ele foi e andou lá um bom pedaço, mas à tarde
tornou-se, que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe
arcos e setas; e não lhe tomaram nenhuma coisa do seu. Antes - disse ele - que
um lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e fugia com elas, e ele se
queixou e os outros foram logo após, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e
então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas
de rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre Douro e Minho. E assim
nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir.
À segunda-feira, depois de comer, saímos todos em
terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras
vezes. Já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de
nós; e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E
alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e
por alguma carapucinha velha ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto se
passou, que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles, onde
outros muitos estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e
barretes de penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos quais, creio, o
Capitão há de mandar amostra a Vossa Alteza.
E, segundo diziam esses que lá foram, folgavam com
eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos
quase todos misturados. Ali, alguns andavam daquelas tinturas quartejados;
outros de metades; outros de tanta feição, como em panos de armar, e todos com
os beiços furados, e muitos com os ossos neles, e outros sem ossos.
Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que,
na cor, queriam parecer de castanheiros, embora mais pequenos. E eram cheios
duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagando-os entre os dedos, faziam tintura
muito vermelha, de que eles andavam tintos. E quanto mais se molhavam, tanto
mais vermelhos ficavam.
Todos andam rapados até cima das orelhas; e assim as
sobrancelhas e pestanas. Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas da
tintura preta, que parece uma fita preta, da largura de dois dedos.
E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro
e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre eles; e assim a Diogo
Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que
ficassem lá esta noite. Foram-se lá todos, e andaram entre eles. E, segundo
eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou
dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia. Eram
de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura;
todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e,
de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo,
para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas,
uma num cabo, e outra no outro.
Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou
quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela
vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra
há e eles comem. Mas, quando se fez tarde fizeram-nos logo tornar a todos e não
quiseram que lá ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir com eles.
Resgataram lá por cascavéis e por outras coisinhas
de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e
dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de
muitas cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza todas estas
coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse.
E com isto vieram; e nós tornámo-nos às naus.
À terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar
guarda de lenha e lavar roupa.
Estavam na praia, quando chegamos, obra de sessenta
ou setenta sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem
se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem
arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que alguns nos ajudavam a acarretar
lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos e tomavam muito prazer.
Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois
carpinteiros uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou.
Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros.
E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do
que por verem a Cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua
madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas
talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os
homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas viram lá.
Era já a conversação deles conosco tanta, que quase
nos estorvavam no que havíamos de fazer.
O Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias
que fossem lá à aldeia (e aoutras, se houvessem novas delas) e que, em toda a
maneira, não viessem dormir às naus, ainda que eles os mandassem. E assim se
foram.
Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha,
atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos,
grandes e pequenos, de maneira que me parece que haverá muitos nesta terra.
Porém eu não veria mais que até nove ou dez. Outras aves então não vimos,
somente algumas pombas-seixas, e pareceram-me bastante maiores que as de Portugal.
Alguns diziam que viram rolas; eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos são mui
muitos e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja
muitas aves!
Cerca da noite nos volvemos para as naus com nossa
lenha.
Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta aqui a
Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos,
as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa
Alteza verá por alguns que - eu creio -- o Capitão a Ela há de enviar.
À quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão
andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus
isso que cada uma podia levar. Eles acudiram à praia; muitos, segundo das naus
vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam obra de trezentos.
Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais
o Capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem, volveram-se, já de
noite, por eles não quererem que lá ficassem. Trouxeram papagaios verdes e
outras aves pretas, quase como pegas, a não ser que tinham o bico branco e os
rabos curtos.
Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau, queriam
vir com ele alguns, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos e homens de
prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e curar. Comeram toda a vianda que
lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. Dormiram e
folgaram aquela noite.
E assim não houve mais este dia que para escrever
seja.
À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo,
quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo o
Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por
ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e comeu.
Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que lhes deram
comeram mui bem, especialmente lacão cozido, frio, e arroz.
Não lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer que
o não bebiam bem.
Acabado o comer, metemo-nos todos no batel e eles
conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem
revolta. Tanto que a tomou, meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não queria
segurar, deram-lhe uma pequena de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço
detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima. E vinha
tão contente com ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em
terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí.
Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez
deles; e de aí a pouco começaram a vir mais. E parece-me que viriam, este dia,
à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta.
Traziam alguns deles arcos e setas, que todos
trocaram por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do
que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber. Mas
parece-me, que se lho avezarem, o beberão de boa vontade.
Andavam todos tão dispostos, tão bem-feitos e
galantes com suas tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha, quanta
podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis. Andavam já mais mansos e
seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles.
Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este
arvoredo até uma ribeira grande e de muita água que, a nosso parecer, era esta
mesma, que vem ter à praia, e em que nós tomamos água.
Ali ficamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo
dela, entre esse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto e de tantas
prumagens, que homens as não podem contar. Há entre ele muitas palmas, de que
colhemos muitos e bons palmitos.
Quando saímos do batel, disse o Capitão que seria
bom irmos direitos à Cruz, que estava encostada a uma árvore, junto com o rio,
para se erguer amanhã, que é sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos
e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos.
A esses dez ou doze que aí estavam, acenaram-lhe que fizessem assim, e foram
logo todos beijá-la.
Parece-me gente de tal inocência que, se homem os
entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não
têm, nem entendem em nenhuma crença.
E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar
aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa
intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à
qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de
boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes
quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como
a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa.
Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar
a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá a Deus que com
pouco trabalho seja assim.
Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem
vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que
costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há
muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com
isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto, com quanto
trigo e legumes comemos.
Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e
bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que
são muito mais nossos amigos que nós seus.
Se lhes homem acenava se queriam vir às naus,
faziam-se logo prestes para isso, em tal maneira que, se a gente todos quisera
convidar, todos vieram. Porém não trouxemos esta noite às naus, senão quatro ou
cinco, a saber: o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um, que trazia já por pajem;
e Aires Gomes, outro, também por pajem.
Um dos que o Capitão trouxe era um dos hóspedes,
que lhe trouxeram da primeira vez, quando aqui chegamos, o qual veio hoje aqui,
vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem
agasalhados, assim de vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para os mais
amansar.
E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio,
pela manhã, saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do
rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a Cruz, para melhor
ser vista. Ali assinalou o Capitão o lugar, onde fizessem a cova para a
chantar.
Enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós
outros fomos pela Cruz abaixo do rio, onde ela estava. Dali a trouxemos com
esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de procissão.
Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou
oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela,
para nos ajudar. Passamos o rio, ao longo da praia e fomo-la pôr onde havia de
ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta. Andando-se ali nisto,
vieram bem cento e cinqüenta ou mais.
Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa
Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse
missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos.
Ali estiveram conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta deles, assentados
todos de joelhos, assim como nós.
E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos
em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos,
ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E
quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim
todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados,
que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção.
Estiveram assim conosco até acabada a comunhão,
depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns
de nós outros.
Alguns deles, por o sol ser grande, quando
estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles,
homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que
ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda
chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para
o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse alguma coisa
de bem; e nós assim o tomamos.
Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima
e ficou em alva; e assim se subiu junto com altar, em uma cadeira. Ali nos
pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo dia hoje é, tratando, ao fim da
pregação, deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentou a
devoção.
Esses, que à pregação sempre estiveram, quedaram-se
como nós olhando para ele. E aquele, que digo, chamava alguns que viessem para
ali. Alguns vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho
trouxesse muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da
outra vinda, houveram por bem que se lançasse a cada um a sua ao pescoço. Pelo
que o padre frei Henrique se assentou ao pé da Cruz e ali, a um por um, lançava
a sua atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as
mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta
ou cinqüenta.
Isto acabado - era já bem uma hora depois do
meio-dia - viemos às naus a comer, trazendo o Capitão consigo aquele mesmo que
fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o Céu e um seu irmão com
ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa
destoutras.
E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente
não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque
assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu
a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa
Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados
ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir
clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé,
pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais, ambos, hoje também
comungaram.
Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais
que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com
que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia
grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência
desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha.
Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive
se converterá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação.
Acabado isto, fomos assim perante eles beijar a
Cruz, despedimo-nos e viemos comer.
Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam
mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para
terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a
Deus, fazemos daqui nossa partida.
Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais
contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste
porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco
léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras,
delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de
grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma, muito chã e muito
formosa.
Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito
grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos,
que nos parecia muito longa.
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro,
nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em
si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e
Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.
Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é
graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que
tem.
Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me
parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que
Vossa Alteza em ela deve lançar.
E que aí não houvesse mais que ter aqui esta
pousada para esta navegação de Calecute, bastaria. Quando mais disposição para
se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber,
acrescentamento da nossa santa fé.
E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do
que nesta vossa terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o
desejo que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo.
E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo
que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza
há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular
mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro - o que d'Ela
receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz,
hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha
PERO DE MAGALHÃES GANDAVO (1540 - 1579)
Historiador, gramático e cronista português do século XVI nascido
em Braga, em data ignorada, autor do primeiro manual ortográfico da língua
portuguesa e da primeira história do Brasil: História da Província de Santa
Cruz que vulgarmente chamamos Brasil (1576), citando pela primeira
vez o termo Brasil com referência a nova terra. Filho de pais flamengos
oriundos da cidade de Gand, daí o seu apedido Gândavo, foi professor de
latim e de português, autor do primeiro manual ortográfico da língua portuguesa
e moço de câmara do rei D. Sebastião. Trabalhou na Torre do
Tombo, em Lisboa, na transcrição de documentos e nomeado provedor da Fazenda na
Bahia, ali permaneceu por cerca de cinco anos (1565-1570).
Percorreu outras
partes do Brasil e registrou seus artigos em manuscritos que se perderam, porém
cópias do Tratado da província do Brasil, encontram-se no Museu
Britânico, e do Tratado da terra do Brasil, um sumário da geografia
local, no acervo da Biblioteca Municipal do Porto, e da História da
província de Santa Cruz (1576), na Biblioteca do Escorial, editado em
Lisboa, por Antônio Gonçalves. Seu trabalho, escrito ainda no século da
conquista, com informações referentes as diversas tribos indígenas e ainda as
diversas capitanias em que se dividia o território brasileiro com as de
Itamaracá, Bahia, Ilhéus, Espírito Santo, Porto Seguro, Rio de Janeiro e São
Vicente. Era uma espécie de propaganda de incentivo a imigração, pois propagava
o clima, as riquezas da terra, os recursos naturais e sociais nela existentes e
as possibilidades dos portugueses mais pobres enriquecerem na terra recém
descoberta. Foi testemunha direta das novidades das novas terras e dos
acontecimentos e foi tido em alto valor e um verdadeiro registro da emigração
portuguesa para o novo mundo.
Descreveu plantas, especialmente a mandioca,
assinalando as suas utilidades, assim como as características de cada parte da
planta. Também descreveu uma série de aspectos locais como os animais, que eram
em boa parte desconhecidos dos europeus, como o papa-formigas e o tatu, e uma
série de aves, insetos e peixes exóticos.
Em Dos Bichos da Terra, um
capítulo do volume intitulado Tratado da Terra do Brasil (1576) ele
publicou, em linguagem atualizada: Também há muita infinidade de mosquitos,
principalmente ao longo de algum rio entre umas árvores que se chamam mangues,
não pode nenhuma pessoa esperá-los; e pelo mato quando não há viração são muito
sobejos e perseguem muito a gente ... .
Em outra passagem: ... chamam
peixes bois, os quais são tão grandes que os maiores pesam quarenta, cinqüenta
arrobas. Têm o focinho como o de boi e dois cotos com que nadam à maneira de
braços. As fêmeas têm duas tetas, com o leite das quais se criam os filhos. O
rabo é largo, rombudo, e não muito comprido, não têm feição alguma de nenhum peixe,
somente na pele quer se parecer com toninha.
Em História da Província Santa Cruz escreveu que depois que o
pau da tinta começou a chegar ao reino chamaram de Brasil à província de
Santa Cruz e que chamaram de Brasil por ser vermelho e ter semelhança de brasa e daqui ficou esta terra com
este nome. Morreu em Portugal, em local incerto.
Pero Magalhães de Gandavo
(Braga, ?1540 - Portugal, 1579)
Sabe-se pouco sobre Pero de Magalhães de
Gândavo. Nasceu em Braga, norte de Portugal, a cidade da antiquíssima Sé. Tem
este nome porque sua família veio de Gand, próspera cidade flamenga de Flandres
(hoje Bélgica). Foi amigo de Luís de Camões. Era latinista. Escreveu uma
gramática com regras da língua portuguesa.
Pero teria estado no Brasil na década de
1560. Em 1576 entregou a uma tipografia o que foi a terceira e definitiva
versão de "História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos
Brasil". Esta obra é considerada a primeira sobre a história do Brasil.
Nome que, aliás, detestava, por julgar sua referência à mera tintura.
Escreveu o Tratado da Província do Brasil e o
Tratado da Terra do Brasil com a finalidade de estimular a emigração
portuguesa. Os dois textos foram reunidos mais tarde na História da Província
de Santa Cruz.
Gândavo é o primeiro a falar em cabreúvas,
árvores perfumadas, e no caju, fruta de "muito sumo" e que se come
"pela calma (hora da sesta)". Descreve a banana trazida da ilha de
São Tomé, que tem a feição de pepinos e uma pele ainda mais dura do que a do
figo. É "mui saborosa" mas quem "se desmanda nela" está
sujeito a danos à saúde e febre. Evita gratuidades. De cada coisa que descreve
fala de sua utilidade.
Os bichos são curiosos e assustadores. Chama
onças pintadas de "tigres", espanta-se com tatus, tamanduás,
capivaras e macacos com barbas de homem. Os anapurus, papagaios multicoloridos
descritos também por outros viajantes, eram abundantes. Sumiram.
Gândavo consegue descrever a aparição de um
monstro sem resvalar na fatasmagoria dos bestiários da época. Monstros
pulalavam em relatos fantásticos. Gândavo descreve o dele, visto no litoral da
capitania de São Vicente, com detalhes. Conta que uma intrépida índia
enfrentou-o, rasgando-lhe o ventre com uma espada. Imagina-se hoje que o
monstro possa ter sido um leão marinho, já que tentava apoiar-se em duas patas
e rugia. No desenho que o reproduz é apenas um monstro. Não se parece com nenhum
outro ser vivo, apesar da sinistra e vaga aparência marinha.
O relato ganha polaridade quando descreve os
índios. Diz que são pacíficos e prestimosos, mas também cruéis, "animais
sem uso da razão", vingativos e canibais agressivos. "Vivem todos mui
descansados sem terem outros pensamentos senão comer, beber e matar
gente". E ainda por cima são "desonestos e dados a
sensualidade", mas vivem livres da cobiça e do "desejo desordenado de
riquezas".
Conta algumas histórias. Raptado, o índio de
tribo rival é entregue a mais bela moça da tribo. Cessam as ofensas a ele. A
índia trata de agradá-lo e engordá-lo por um ano. Só então ele é morto,
despedaçado e comido. Se a moça engravidou dele, a criança fruto dessa união é
morta e comida depois de criada, sem que "pessoa alguma se compadeça de
tão injusta morte". Algumas índias certas deste desfecho matam os filhos
ainda na barriga para evitar o sacrifício.
Atribuía aos aimorés uma ferocidade
terrorista, já que embrenhados nas matas eles se valiam de emboscadas contra
outros índios e contra os portugueses. Os tapuias não devoram inimigos. Comem
os parentes doentes, que matam quando percebem que a doença se assenhorou
deles, julgando que não há melhor agasalho para os entes queridos que suas
próprias entranhas.
Gândavo é favorável ao extermínio desses
"bárbaros" ou a sua completa escravização. Num mundo tão pequeno como
o do século XVI o etnocentrismo talvez fosse inexorável. O estranhamento entre
civilizações praticamente dizimou o lado mais fraco. Mas Gândavo fez da
história a "vida da memória" (toma emprestado a expressão de Cícero),
"e a memória (é) uma semelhança da imortalidade a que todos devemos
aspirar".
Gândavo morreu em Portugal em 1579.
A "História da Província de Santa
Cruz" (Maria Clara Paixão de Sousa)
“A causa principal que me obrigou a lançar mão da presente história, e
sair com ela a luz, foi por não haver até agora pessoa que a empreendesse,
havendo já setenta e tantos anos que esta província é descoberta”...
Com essas palavras Pero Magalhães de Gândavo abre o Prólogo ao leitor
da sua História da Província de Santa Cruz, o primeiro livro
inteiramente dedicado ao Brasil escrito por um autor português.
Esta obra de Gândavo hoje ocupa um incontestável e merecido lugar de
destaque: considerada “a primeira história do Brasil”, leitura
obrigatória para os interessados no período colonial, foi recentemente objeto
de excelentes edições comentadas e diversos trabalhos acadêmicos. É difícil
imaginar, diante disso, que este relato pioneiro tenha permanecido escondido do
mundo durante os trezentos anos que se seguiram à sua primeira impressão em
1576.
Mas a verdade é que a atenção em torno da obra de Gândavo só teve início
no século XIX, depois da tradução francesa de Henri Ternaux em 1837 – até
então, o livro de Pero de Magalhães havia sido deixado em relativo esquecimento
pelos portugueses, como observa o tradutor em seu prefácio: “Desgraçadamente,
a indiferença dos portugueses e espanhóis, mesmo para os seus melhores autores,
impediu que esta obra fosse outra vez reimpressa. Tornou-se tão excessivamente
rara, que não se encontrariam agora senão três ou quatro exemplares; não se
acha em nenhuma Biblioteca Pública de Paris, e é raramente citada pelos autores
portugueses que têm tratado do Brasil”. De fato, os séculos XVII e XVIII só
viram surgir duas cópias manuscritas – anônimas – do livro impresso em 1576,
que circularam
Duas décadas depois da tradução de Ternaux, surgem duas novas edições
impressas portuguesas da “História”, as duas no ano de 1858: uma
oferecida pela Academia de Ciências, a outra pelo Instituto Histórico e
Geográfico – ambas agora disponíveis em versão digital na Brasiliana-USP.
O “esquecimento” secular da obra de Gândavo se insere no contexto geral
das discussões sobre o lugar reservado pelos portugueses às notícias, relatos
de viagens e descrições das suas possessões na América ao longo do século XVI.
Interpretado por alguns historiadores como simples desprezo, e por outros como
estratégia diplomática perspicaz, esse “esquecimento” – ou segredo ? –
resultou, de todo modo, na dificuldade que hoje encontramos na tarefa de
contextualizar algumas dessas obras e seus autores.
É esse certamente o caso da “História” de Gândavo: pouco se sabe
sobre o autor e o contexto da construção de seu relato, estando hoje em debate
até se Pero Magalhães algum dia chegou a colocar os pés nas terras que descreve
no livro. Alguns especialistas consideram mais provável que Gândavo tenha
reunido as informações apresentadas na “História” ao longo dos anos que antecedem
a publicação do texto, quando teria trabalhado nos arquivos da Torre do Tombo
justamente com a tarefa de reunir e traduzir papéis relativos à ocupação das
colônias. Outros, ainda, afirmam que Pero Magalhães teria estado na verdade na
Índia enquanto escrevia a primeira história do Brasil... Nas obras listadas
mais abaixo, o leitor poderá encontrar discussões extremamente interessantes em
torno deste tema.
No texto de Gândavo, por outro lado, o que o leitor vai encontrar são
momentos de grande prazer de leitura. A obra é apresentada por ninguém menos
que Luís de Camões, que ofereceu tercetos e sonetos inéditos para anteceder as
páginas em que Magalhães “tece sua breve história para ilustrar a terra
Santa Cruz pouco sabida”. Camões e Gândavo foram contemporâneos e
companheiros em diferentes contextos – entre os quais, o de compartilharem a
mesma oficina tipográfica, de Antonio Gonçalves. A obra de Gândavo é, na esfera
historiográfica, também companheira da obra de Camões, no seu desejo de elevar
e imortalizar os grandes feitos dos portugueses. Na sua “História”,
Gândavo relata as “cousas dignas de grande admiração” que há nesta
província, para “dá-las a perpétua memória, como costumavam os Antigos: aos
quais não escapava coisa alguma que por extenso não reduzissem a história, e
fizessem menção em suas escrituras de coisas menores que estas, as quais hoje
em dia vivem entre nós como sabemos, e viverão eternamente”
E por fim, tenha sido ou não o autor “testemunha de vista” (como
diz ter sido) dos acontecimentos e das cenas dignas de admiração que relata,
uma coisa é certa: o texto de Gândavo é tão vivo, corre com um estilo tão limpo
e fluente, que as imagens que ele desenha com as palavras se levantam vivas
diante dos olhos do leitor: imagens de rios caudalosos e seus peixes estranhos;
imagens de tatus, onças e antas; imagens de batalhas medonhas e terríveis
monstros marinhos... Quase nos sentimos “testemunhas de vista” nós, que
o lemos quase quinhentos anos depois.
www.suapesquisa.com/quemfoi/pero_vaz_caminha.htm - 14k
ww.uefs.br/nep/labirintos/edicoes/02_2010/04_dossie_francis
A "História da Província
de Santa Cruz" | Brasiliana USP
www.brasiliana.usp.br/node/450 - 28k
www.brasiliana.usp.br/node/450 - 28k
Pero Magalhães de Gandavo - :: Site Oficial do Instituto
Histórico e ...
www.ihgs.com.br/cadeiras/patronos/peromagalhaes.html - 12k
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