3.FERNANDO SABINO
|
Aos 13 anos, começou a
escrever contos. Sua
primeira publicação, uma história policial, aconteceu na revista Argus, uma
publicação da polícia de MG. Durante a adolescência, enviava com
regularidade crônicas para a revista Carioca, que promovia um
concurso permanente, o qual Sabino vencia com frequência, tanto que chegava a
receber o dinheiro adiantado..
Esportista, nadador do Minas Tênis Clube, bateu
diversos recordes de nado de costas, sua especialidade, tornando-se campeão
sul-americano dessa modalidade em 1939. . No mesmo ano, ganhou o segundo
lugar na Maratona Nacional de Português e Gramática Histórica, empatado
com Hélio Pellegrino.
No início da década de 1940 começou a cursar
a Faculdade de Direito em
Minas Gerais e ingressou no jornalismo como redator da Folha de Minas, por
intermédio do escritor Murilo Rubião. O
primeiro livro de contos, Os grilos não cantam mais, foi
publicado em 1941, no Rio de Janeiro, quando o autor tinha apenas dezoito
anos, sendo que alguns contos do livro foram escritos quando Sabino tinha
apenas quatorze anos. Nesse período, conheceu e passou a conviver com Marques Rebêlo, Guilhermino César e João Etienne Filho. Formava,
com Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, um grupo
literário, apelidado por Etienne, de Grupo dos Vintanistas[6] devido
ao fato de todos estarem na casa dos vinte anos. Esse grupo discutia
literatura e fazia passeios boêmios pelas noites de Belo Horizonte. Suas
histórias serviram de inspiração para a premiada obra O Encontro Marcado. Nesse
período, Sabino publica contos e artigos pelas revistas Mensagem,
Alterosa e Belo Horizonte.
Por ocasião da publicação de Os
grilos não cantam mais, Sabino inicia, em 1942, correspondência com o
escritor paulista Mário de Andrade. A troca
de cartas dura até 1945, ano da morte de Mário, e pode ser lida no
livro Cartas a um jovem escritor e suas respostas.
Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1944.
Tornou-se colaborador regular do jornal Correio da Manhã, onde
conheceu Vinicius de Moraes, de quem
se tornou amigo. No mesmo ano, publicou sua segunda obra, a novela A
marca. Em 1945, conheceu a escritora Clarice Lispector, no Rio,
de quem tornou-se amigo e mais tarde, correspondente. Depois de se formar em
Direito na Faculdade Nacional de Direito, em 1946,
viajou com Vinicius de Moraes aos Estados Unidos. O
escritor morou por dois anos em Nova Iorque, onde
exercia função burocrática no consulado brasileiro, com sua primeira esposa
Helena Valladares Sabino e a primogênita Eliana Sabino. Nesse
período, conheceu o compositor Jayme Ovalle.
Colaborou com crônicas para o Diário Carioca e O Jornal. As
crônicas reunidas do período foram publicadas na obra A cidade vazia (1950).
No mesmo período, Sabino escreve Os movimentos simulados (2004;data
também de sua morte) e esboços das obras O encontro marcado (1956) e O grande mentecapto (1979).
O encontro marcado, uma de
suas obras mais conhecidas, foi lançada em 1956. Sabino decidiu, então
(1957), viver exclusivamente como escritor e jornalista. Iniciou uma produção
diária de crônicas para o Jornal do Brasil,
escrevendo mensalmente também para a revista Senhor. Em 1960,
Fernando Sabino publicou o livro O homem nu,
pela Editora do Autor, fundada
por ele, Rubem
Braga e Walter Acosta. Publicou, em 1962, A mulher do vizinho,
que recebeu o Prêmio Fernando Chinaglia, do Pen Club do
Brasil. Em 1964, muda-se para Londres, onde
passa a exercer função da adido cultural junta à embaixada brasileira.
Torna-se correspondente do Jornal do Brasil. Colabora
na BBC e
com as revistas Manchete e Claudia.[7][8]
Funda, em 1960, a Editora do Autor, em
parceria com Rubem Braga, na qual publica nomes importantes da literatura
brasileira e latino-americana. Deixa a editora em 1966, e funda a Editora Sabiá. Em 1973
funda a Bem-te-vi Filmes, com David Neves, por meio
da qual produz uma série de curtas-metragens com escritores brasileiros.
Realiza, na década de 1970, uma série de viagens ao
exterior documentando eventos.
Publicou O grande mentecapto em
1979, iniciado mais de trinta anos antes. A obra, que lhe rendeu o Prêmio Jabuti, e
acabaria sendo adaptada para o cinema[9],
com direção de Oswaldo Caldeira, em 1989,
e também para o teatro. Publicou em 1982, O menino no espelho. Em
1985, A faca de dois gumes. E em 1989, O tabuleiro de
damas, uma obra autobiográfica. Publicou com regularidade na década de
90. Em 1991, publica Zélia, uma paixão. Em 1996, foi publicada em
três volumes sua Obra Reunida pela editora Nova Aguilar. Em julho de 1999,
recebeu da Academia Brasileira de Letras o prêmio Machado de Assis pelo
conjunto de sua obra. Em 2001, publicou Livro aberto e Cartas perto do
coração. Em 2002, publicou Cartas sobre a mesa e, em 2004,
publicou Os movimentos simulados.
Fernando Sabino faleceu em sua casa
em Ipanema (zona sul no Rio de
Janeiro), vítima de câncer no fígado, às
vésperas do 81º aniversário[10][11]. Foi
sepultado no Rio, no Cemitério São João Batista.
Seu epitáfio, escrito
a seu pedido, é o seguinte: "Aqui jaz Fernando Sabino, que
nasceu homem e morreu menino!"
Características
. Uso do
conflito de situações, do desencontro dos mundos;
.
Situações divididas em dois planos (mostra do ridículo das coisas vistas sob
certos ângulos);
. Tom
informal, linguagem bem trabalhada, palavras escolhidas, maior precisão e
expressividade, cuidado na caracterização das personagens.
Obras
· Os grilos não cantam mais - A
marca - A cidade vazia - A vida real - Lugares comuns - O encontro marcado - O homem nu - A mulher do vizinho - A
companheira de viagem - A inglesa deslumbrada - Deixa
o Alfredo falar! - O Encontro das Águas –O grande mentecapto - A
falta que ela me faz - O menino no espelho - O Gato
Sou Eu - Macacos me mordam -A vitória da infância -A
faca de dois Gumes - O Pintor que pintou o sete -Martini
Seco - O tabuleiro das damas - De cabeça para
baixo - A volta por cima - Zélia, uma paixão - O bom ladrão - Aqui
estamos todos nus -Os restos mortais - A nudez da verdade -
Com a graça de Deus - O outro gume da faca - Um
corpo de mulher - O homem feito novela - Amor de
Capitu - No fim dá certo - A chave do enigma -O
galo músico - Cara ou coroa? - Duas novelas de amor -
Livro aberto - Páginas soltas ao longo do tempo - crônicas, entrevistas,
fragmentos, etc. - Os caçadores de mentira -Os movimentos
simulados - Bolofofos e finifinos - O melhor amigo –
· Correspondência
publicada
· Cartas a um jovem escritor e
suas respostas - correspondência com Mário de Andrade.
|
CRÔNICAS
DE FERNANDO SABINO
1 - O Homem Nu
Ao
acordar, disse para a mulher:
— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a
prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece
que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.
— Não
gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as
minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não
faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar —
amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama,
dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá
dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu
a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou
com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos
até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era
muito cedo, não poderia aparecer ninguém.
Mal
seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo,
impulsionada pelo vento. Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois
de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o
ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na
certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos
dedos:
—
Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.
Quanto
mais batia, mais silêncio fazia lá dentro. Enquanto isso, ouvia lá embaixo a
porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares...
Desta vez, era o homem da televisão! Não era.
Refugiado
no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou
para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho
de pão: — Maria, por favor! Sou eu!
Desta
vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares,
vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e
assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal
ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder.
Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar,
e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada.
Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.
Mas
eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer. — Ah, isso
é que não! — fez o homem nu, sobressaltado. E agora? Alguém lá embaixo abriria
a porta do elevador e daria com ele ali, em pelo, podia mesmo ser algum vizinho
conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais
longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka,
instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror! —
Isso é que não — repetiu, furioso. Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com
força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos,
para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o
botão do seu andar.
Lá
embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência:
parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a
parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador
subir. O elevador subiu.
—
Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma
cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado,
apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho
de pão.
Era a
velha do apartamento vizinho: — Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. —
Imagine que eu...
A
velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito: — Valha-me
Deus! O padeiro está nu!
E
correu ao telefone para chamar a radiopatrulha: — Tem um homem pelado aqui na
porta! Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
— É um tarado! — Olha, que horror! — Não olha
não! Já pra dentro, minha filha! Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a
porta para ver o que era.
Ele
entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do
banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
— Deve
ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir. Não era: era o cobrador
da televisão.
2 - A
última crônica
A
caminho de casa, entro num botequim Gávea para tomar um café junto ao balcão.
Na realidade estou adiando o momento de escrever.
A
perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais
um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu
pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano,
fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao
circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num
flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente
doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial.
Sem
mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do
poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou
poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem
os assuntos que merecem uma crônica.
Ao
fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas
de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na
contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma
negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre,
que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curta ou correr
os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em
torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo,
porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a
observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do
bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão
um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel,
vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado,
o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando
para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado
o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção
do bolo com a mão, larga-o no pratinho – um bolo simples, amarelo-escuro,
apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a
garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente.
Por que não começa a comer? Vejo os três, pai,
mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa
de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma
caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um
animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São
três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do
bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as
velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo e sopra com
força, apagando as chamas. I mediatamente põe-se a bater palmas, muito
compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos:
“parabéns pra você, parabéns pra você...” Depois a mãe recolhe as velas, torna
a guardá-las na bolsa.
A
negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo.
A mulher está olhando para ela com ternura – ajeita-lhe a fitinha no cabelo
crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo
botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração.
Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba,
constrangido – vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e
enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que
fosse pura como esse sorriso.
3 - Piscina
Era uma
esplêndida residência, na Lagoa Rodrigo de Freitas, cercada de jardins e, tendo
ao lado, uma bela piscina. Pena que a favela, com seus barracos grotescos se
alastrando pela encosta do morro, comprometesse tanto a paisagem.
Diariamente
desfilavam diante do portão aquelas mulheres silenciosas e magras, lata d’ água
na cabeça. De vez em quando surgia sobre a grade a carinha de uma criança,
olhos grandes e atentos, espiando o jardim. Outras vezes eram as próprias
mulheres que se detinham e ficavam olhando.
Naquela
manhã de sábado ele tomava se gim-tônico no terraço, e a mulher um banho de
sol, estirada de maiô à beira da piscina, quando perceberam que alguém os
observava pelo portão entreaberto.
Era um
ser encardido, cujos trapos em forma de saia não bastavam para defini-la como
mulher. Segurava uma lata na mão, e estava parada, à espreita, silenciosa como
um bicho. Por um instante as duas mulheres se olharam, separadas pela piscina.
De
súbito pareceu à dona de casa que a estranha criatura se esgueirava, portão
adentro, sem tirar dela os olhos. Ergue-se um pouco, apoiando-se no cotovelo, e
viu com terror que ela se aproximava lentamente: já atingia a piscina,
agachava-se junto à borda de azulejos, sempre a olhá-la, em desafio, e agora
colhia água com a lata. Depois, sem uma palavra, iniciou uma cautelosa
retirada, meio de lado, equilibrando a lata na cabeça – e em pouco sumia-se
pelo portão.
Lá no
terraço o marido, fascinado, assistiu a toda acena. Não durou mais de um ou
dois minutos, mas lhe pareceu sinistra como os instantes tensos de silêncio e
de paz que antecedem um combate. Não teve dúvida: na semana seguinte vendeu a
casa.
. 4 - Notícia de jornal
Leio
no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca,
trinta anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em
pleno centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante setenta e duas
horas, para finalmente morrer de fome.
Morreu
de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do
Pronto Socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar
auxílio ao homem, que acabou morrendo de fome.
Um
homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso
(morrer de fome) era alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens
que morrem de fome. E o homem morreu de fome.
O
corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Médico Legal sem
ser identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome.
Um
homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído
na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária,
um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa – não é homem. E os outros
homens cumprem deu destino de passantes, que é o de passar. Durante setenta e
duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de
nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum, e o homem
continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem
socorro e sem perdão.
Não é
de alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria
de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de
fome.
E o
homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de
fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais
morrerão de fome, pedindo providências às autoridades. As autoridades nada mais
puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse,
para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que
morresse de fome.
E
ontem, depois de setenta e duas horas de inanição em plena rua, no centro mais
movimentado da cidade do Rio de Janeiro, um homem morreu de fome. Morreu de
fome.
5 - O diamante
Em 1933
Jovelino, garimpeiro no interior da Bahia, concluiu que ali não havia mais nada
a garimpar. Os filhos viviam da mão pra boca, Jovelino já não via jeito de
conseguir com que prover o sustento da família. E resolveu se mandar para
Goiás, onde Anápolis, a nova terra da promissão, atraía a cobiça dos
garimpeiros de tudo quanto era parte, com seus diamantes reluzindo à flor da
terra. Jovelino reuniu a filharada, e com a mulher, o genro, dois cunhados,
meteu o pé na estrada.
Longa
era a estrada que levava ao Eldorado de Jovelino: quase um ano consumiu ele em
andança com a sua tribo, pernoitando em paióis de fazendas, em ranchos de beira
caminho, em chiqueiros e currais, onde quer que lhe dessem pasto e pousada.
Vai daí
Jovelino chegou aos arredores de Anápolis depois de muitas luas e ali se
estabeleceu, firme no cabo da enxada, cavando a terra e encontrando pedras que
não eram diamantes. Daqui para ali, dali para lá, ano vai, ano vem, Jovelino
existia de nômade com seu povinho cada vez mais minguando de fome. Comia como
podia — e não podia. Vivia ao deus- dará — e Deus não dava. Quem me conta é o
filho do fazendeiro de quem Jovelino se tornou empregado:
— Ao
fim de dez anos ele concluiu que não encontraria diamante nenhum, e resolveu
voltar com sua família para a Bahia onde a vida, segundo diziam, agora era
melhorzinha. Não dava diamante não, mas o governo prometia emprego seguro a
quem quisesse trabalhar.
Jovelino
reuniu a família e botou pé na estrada, de volta à terra de nascença, onde
haveria de morrer. Mais um ano palmilhado palmo a palmo em terra batida,
vivendo de favor, Jovelino e sua obrigação, de vez em quando perdendo um, que
isso de filho é criação que morre muito. Foi nos idos de 43:
— Chegou lá e se instalou no mesmo lugar de
onde havia saído. Governo deu emprego não. Plantou sua rocinha e foi se
aguentando. Até que um dia...
Até que
um dia de noite Jovelino teve um sonho. Sonhou que amanhava a terra e de
repente, numa enxadada certeira, a terra escorreu... A terra escorreu e aos
seus olhos brilhou, reluziu, faiscou, resplandeceu um diamante soberbo,
deslumbrante como uma imensa estrela no céu — como uma estrela no céu? Como o
próprio olho de Deus! Jovelino olhou ao redor de seu sonho e viu que estava em
Anápolis, no mesmo sítio em que tinha desenterrado a sua desilusão.
E para
lá partiu, dia seguinte mesmo, arrastando sua cambada. Levou nisso um entreano,
repetindo pernoites revividos, tome estrada! Deu por si em terra de novo
goiana. Quem me conta é o filho do fazendeiro:
— Você precisava de ver o furor com que
Jovelino procurou o diamante de seu sonho. A terra de Goiás ficou para sempre
revolvida, graças à enxada dele. De vez em quando desmoronava, Jovelino ia ver,
não era um diamante, era um calhau. Até que um dia...
— Encontrou? — perguntei, já aflito.
— Encontrou nada! Empregou-se na fazenda de
meu pai, o tempo passou, os filhos crescidos lhe deram netos, a mulher já morta
e enterrada, livre dos cunhados, os genros bem arranjados na vida. Um deles é
coletor em Goiânia.
O
próprio Jovelino, entrado em anos, era agora um velho sacudido e bem disposto,
que tinha mais o que fazer do que cuidar de garimpagens. Mas um dia não
resistiu: passou a mão na sua enxada, e sem avisar ninguém, o olhar reluzente
de esperança, partiu à procura do impossível, do irreal, do inexistente
diamante de seu sonho.
6 - O
melhor amigo
A mãe
estava na sala, costurando.
O
menino abriu a porta da rua, meio ressabiado, arriscou um passo para dentro e
mediu cautelosamente a distância.
Como a mãe não se voltasse para vê-lo, deu uma
corridinha na direção de seu quarto.
- Meu
filho? – gritou ela.
- O
que é? – respondeu, com ar mais natural que lhe foi possível.
- Que é que está carregando aí? Como podia ter
visto alguma coisa, se nem levantara a cabeça?
Sentindo-se
perdido, tentou ganhar tempo: - Eu? Nada...
- Está sim. Você entrou carregando uma coisa.
Pronto: estava descoberto. Não adiantava negar, o jeito era procurar comovê-la.
Veio
caminhando desconsolado até a sala, mostrou à mãe o que estava carregando:
-
Olha aí, mamãe: é um filhote... Seus olhos súplices aguardavam a decisão.
- Um filhote? Onde é que você arranjou isso? -
Achei na rua. Tão bonitinho, não é, mamãe?
Sabia
que não adiantava: ela já chamava o filhote de ISSO. Insistiu ainda: - Deve
estar com fome, olha a carinha que ele faz.
-
Trate de levar embora esse cachorro agora mesmo!
- Ah! Mamãe... – já compondo cara de choro.
- Tem
dez minutos para botar esse bicho na rua. Já disse que não quero animais aqui
em casa. Tanta coisa para cuidar, Deus me livre de ainda inventar uma amolação
dessas.
O
menino tentou enxugar uma lágrima, não havia lágrima. Voltou para o quarto emburrado:
a gente também não tem nenhum direito nessa casa – pensava. Um dia ainda faço
um estrago louco. Meu único amigo, enxotado dessa maneira!
- Que
diabo também, nessa casa tudo é proibido! – gritou lá do quarto, e ficou
esperando a reação da mãe.
- Dez
minutos! – repetiu ela, com firmeza.
- Todo mundo tem cachorro, só eu que não
tenho.
-
Você não é todo mundo. - Também, de hoje em diante eu não estudo mais, não vou
mais ao colégio, não faço mais nada.
- Veremos – limitou-se a mãe, de novo
distraída com a costura.
- A
senhora é ruim mesmo, não tem coração.
- Sua alma, sua palma. Conhecia bem a mãe,
sabia que não havia apelo: tinha dez minutos para brincar, com seu novo amigo,
e depois...
Ao
fim de dez minutos, a voz da mãe, inexorável: - Vamos, chega! Leva esse
cachorro embora.
- Ah, mamãe deixa! – choramingou ainda. - Meu
melhor amigo, não tenho mais ninguém nessa vida...
- E
eu? Que bobagem é essa, você não tem a sua mãe? - Mãe e cachorro não é a mesma
coisa. - Deixa de conversa: obedece a sua mãe.
Ele saiu, e seus olhos prometiam vingança. A
mãe chegou a se preocupar: meninos nessa idade, uma injustiça praticada e eles
perdem a cabeça, um recalque, complexos, essa coisa toda...
Meia
hora depois, o menino voltava da rua, radiante: - Pronto, mamãe! E lhe exibia
uma nota de vinte e uma de dez: havia vendido seu melhor amigo por trinta
dinheiros.
keylapinheiro.blogspot.com/2010/08/cronicas-de-fernando-sabino.html
A CRÔNICA DE FERNANDO SABINO: ANOTAÇÕES
INICIAIS
Talita Carlos Tristão1
Mestranda em Letras – UNINCOR/FAPEMIG
Esta comunicação objetiva apresentar algumas
reflexões iniciais sobre as crônicas de Fernando Sabino, importante cronista
mineiro. Nascido em 12 de outubro de 1923, em Belo Horizonte; na adolescência
ainda, Sabino escreveu seu primeiro trabalho literário – uma história policial
– que foi publicada na revista Argus, da polícia mineira. Foi locutor de
programa de rádio, redator do jornal Folha de Minas e colaborador do Correio da
manhã. Ao longo de sua vida, escreveu e publicou crônicas, contos, novelas,
romances, dicionário. Morou em Nova York e Londres e viajou várias vezes ao
exterior, visitando países da América, da Europa e do Oriente. Dedicou-se,
ainda, ao cinema realizando uma série de minidocumentários sobre Hollywood para
a TV Globo, produziu curtas-metragens e dirigiu documentários sobre escritores
brasileiros contemporâneos.
Sabino
foi um escritor de produção intensa. Em julho de 1999, recebeu da Academia
Brasileira de Letras o prêmio Machado de Assis – considerado o maior premio
literário do Brasil – pelo conjunto de sua obra. Estimado como um dos autores
fundamentais para a afirmação da crônica no Brasil em sua época devido às suas
contribuições ao gênero, Sabino se destaca por captar
simples flagrantes do
cotidiano. Alguns de rara ternura, outros irresistivelmente engraçado, todos
eles trazendo aquele toque mágico, que é a marca de seu autor, procurando
sempre recolher da vida diária „algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da
convivência, que a faz mais digna de ser vivida.
Podemos apontar muitas das características
particulares do gênero nas crônicas de Fernando Sabino. Para isto, faremos uso
dos trechos de algumas de suas crônicas compiladas na obra As melhores crônicas
de Fernando Sabino (1986), na qual a orelha já nos orienta quanto a seu
conteúdo e forma de suas crônicas:
[...]
crônica quando em tom reflexivo, pode-se dizer que na verdade se trata de um
gênero literário próprio, peculiar a Fernando Sabino: um relato curto de fatos
colhidos da realidade, com tratamento de ficção, em linguagem nítida, sem os
ornatos da retórica tradicional, mas de técnica apurada e respeito aos
requisitos da clareza, concisão e simplicidade. São episódios, incidentes,
reminiscências, reflexões, encontros e desencontros por ele vividos na sua “aventura
do cotidiano”, apresentados com rica inventiva, como se o próprio leitor
participasse – nisso residindo o seu maior fascínio. Sob a aparente singeleza, transparecem a sensibilidade, o
humor, a ironia, às vezes o espírito satírico – mas sobretudo a solidária
simpatia com que o autor surpreende o que há de belo, delicado ou hilariante na
natureza humana. (apud SABINO, 1986, s/p).
Principiaremos, assim, nossas análises e
apontamentos por um trecho de “A última crônica”, que providencialmente encerra
a obra citada acima:
A caminho de casa, entro num botequim da
Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento
de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar
com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de
cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso
conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida.
Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer
num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente
doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais
nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se
repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou
poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem
os assuntos que merecem uma crônica. Ao fundo do botequim, um casal de pretos
acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de
espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixase
acentuar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda
arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar
as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três
seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da
família, célula da sociedade. Vejo, porem, que se preparam para algo mais que
matar a fome. Passo a observá-los. (...) A negrinha, contida na sua
expectativa, olha a garrafa de cocacola e o pratinho que o garçom deixou à sua
frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha,
obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico
preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai mune de uma caixa de fósforos e
espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os
observa, além de mim. (...) Assim eu quereria minha última crônica: que fosse
pura como esse sorriso. (SABINO, 1986, p. 206-208).
O relato acontece a partir de um botequim,
onde o narrador observa à sua volta os fatos corriqueiros destacando um em
especial – que aparentemente não guarda nenhuma particularidade: a chegada de
uma pequena e modesta família negra – pai, mãe e filha – que se assentam numa
mesa ao fundo para comemorar o aniversário da menina. O pai conta discretamente
o dinheiro retirado do bolso e pede ao garçom uma fatia de bolo do balcão. O
narrador passa a observar essa família e a partir dos posicionamentos e
atitudes de cada personagem – que parecem obedecer a um “discreto ritual” –
constrói sua “última crônica” fazendo uso de uma linguagem simples e breve, que
conduz o leitor à visualização da cena descrita.
Num primeiro momento, notamos a presença de
um narrador-autor que está passeando e adiando o momento da escrita, pois
gostaria de terminar o ano com uma crônica especial, mas não se sente
inspirado. Este trecho inicial nos possibilita perceber um diálogo com o
leitor, onde o narrador-autor justifica sua pretensão e objetivo: “Eu pretendia
apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da
convivência, que a faz mais digna de ser vivida”; “Visava ao circunstancial, ao
episódico”. O trecho inicial se constrói, portanto, a partir da metalinguagem:
“Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas
palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador
e perco a noção do essencial”; “Lanço então um último olhar fora de mim, onde
vivem os assuntos que merecem uma crônica”. Esta última proposição nos remete à
ideia do circunstancial, do efêmero, do corriqueiro. Aqui, Sabino esboça seu
próprio conceito de crônica, uma vez que, para ele, são vários os assuntos que
mereceriam ser crônicas: “quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de
uma criança ou num acidente doméstico”, qualquer episódio que desperte a
atenção e possibilite ao narrador construir seu próprio relato. Pois uma
crônica nada mais é do que uma construção de elementos ficcionais a partir de
acontecimentos reais.
Em “A última crônica”, há um elemento
intertextual importante que já é anunciado no próprio título do texto de
Sabino. Os trechos “enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: „assim eu
quereria o meu último poema‟” e “Assim eu quereria minha última crônica: que
fosse pura como esse sorriso.” fazem uma clara alusão ao poema “O último poema”
de Manuel Bandeira:
Assim eu quereria meu
último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples
e menos intencionais
Que fosse ardente
como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza
das flores quase sem perfume
A pureza da chama em
que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas
que se matam sem explicação.
(BANDEIRA, 2006, p. 35).
Em seu poema, Bandeira relaciona fatos
simples e comuns da vida cotidiana (aparentemente não notados), assim como
Sabino em sua crônica que consegue captar um momento tão importante para a
família reunida no botequim através de uma forma simples. Ambos abordam
questões humanas e universais com uma singeleza muito particular fazendo com
que o leitor se sinta tocado e se identifique com o episódio narrado. O
processo de intertextualidade entre Sabino e Bandeira se reporta, assim, à
tematização do banal, do cotidiano entendido, por ambos, de maneira poética.
Em outra crônica, “O retrato”, vemos de
maneira ainda mais direta a conversa armada pelo narrador com seu possível
leitor:
A
esta altura paro, e o leitor comigo, para me perguntar: a que vem esta
conversa? Estamos habituados, um escrevendo e outro lendo, a casos pitorescos
ou triviais colhidos da vida cotidiana. Onde está o caso de hoje, a propósito
ou não de velhas fotografias? (SABINO, 1986, p.8).
As
indagações tão diretas e objetivas apontam que o leitor, mergulhado no contexto
da crônica, compreende a postura do narrador, perguntando-se ele também “a que
vem esta conversa”? Ou seja, através desta indagação o narrador abre espaço
para que o leitor interaja com o texto, participe da crônica ativamente, pois o
nomeia e identifica: “A esta altura paro, e o leitor comigo”. A indagação
promove, ainda, outra, bem mais interessante, já que se reporta ao entendimento
que o leitor tem do que seja, de fato, uma crônica: “Onde está o caso de
hoje?”. Para o leitor, a crônica está associada a um acontecimento, ao relato
de uma história retirada do cotidiano: “Estamos habituados, um escrevendo e
outro lendo, a casos pitorescos ou triviais colhidos da vida cotidiana”. Mais
uma vez temos a inserção da metalinguagem, que se mostra como elemento
constitutivo da crônica de Sabino. A ideia de crônica como relato de um caso
está bem expressa em “A última crônica”, na qual há uma composição narrativa
nítida: composição do espaço (botequim) e do tempo (final de ano); apresentação
dos personagens; focalização particular nas reações da menina diante da fatia
de bolo; etc.
Vejamos outra crônica, “Escritório”:
Fica sendo então escritório, tão-somente.
Nem mesmo de literatura: apenas um local onde possa acender diariamente o forno
(no sentido figurado, apresso-me a tranquilizar o condomínio) desta padaria
literária de cujo produto cotidiano, fresco ou requentado, vou vivendo (...)
Levo para meu novo covil uma mesa, uma cadeira, a máquina de escrever – e me
instalo, à espera de meus costumeiros clientes. Estranhos clientes estes, que
entram pela janela, pelas paredes, pelo teto, trazidos pelas vozes de
antigamente, vindos de uma página de jornal, ou num simples ruído familiar:
projeção de mim mesmo, ecos de pensamento, fantasmas que se movem apenas na
lembrança, figuras feitas de ar e imaginação. (SABINO, 1986, p.69).
Neste trecho, mais uma vez, percebemos a
presença do narrador-autor que aparenta conversar com o leitor através de uma
linguagem despretensiosa, construída, entretanto, por meio do processo
metafórico: “acender diariamente o forno (...) desta padaria literária de cujo
produto cotidiano, fresco ou requentado, vou vivendo”. O narrador compara seu
processo criativo a uma produção em massa, rotulando um aspecto específico da
crônica: a obrigatoriedade diária da escrita. O segundo parágrafo do trecho nos
permite identificar a descrição dos personagens e fatos que constituem a
crônica - ainda por meio do processo metafórico: “Estranhos clientes estes, que
entram pela janela, pelas paredes, pelo teto, trazidos pelas vozes de
antigamente, vindos de uma página de jornal, ou num simples ruído familiar”.
A partir da leitura destes três textos,
podemos destacar algumas características fundamentais da crônica de Sabino, a
saber: utilização de um narrador que assume o ato da escrita e que dialoga com
seu leitor; destreza na captura do cotidiano e do circunstancial com singeleza
poética; construções narrativas metafóricas, metalinguísticas e intertextuais;
ficcionalização textual. Como afirma o próprio Sabino, tudo o que retrata e
reflete em suas crônicas é o fato de “apenas recolher da vida diária algo de
seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser
vivida”.
periodicos.unincor.br/index.php/recorte/article/viewFile/291/pdf