Adolfo Ferreira Caminha (Aracati, 29 de maio de 1867 — Rio de Janeiro, 1 de janeiro de 1897) foi um escritor brasileiro, um dos principais autores do Naturalismo no Brasil.
Era filho de
Raymundo Ferreira dos Santos e Maria Firmina Caminha. Mudou-se para o Rio de
Janeiro, ainda na infância. Em 1883, Adolfo entra para a Marinha de Guerra,
chegando ao posto de segundo-tenente. Cinco anos mais tarde, transfere-se para
Fortaleza (1888). Apaixona-se por Isabel de Paula Barros, a esposa de um
alferes, que abandona o marido para viver com Caminha. O casal teve duas
filhas: Belkiss e Aglaís. Na sequência do escândalo, vê-se obrigado a deixar a
Marinha e passa a trabalhar como funcionário público.
Obras
A sua primeira obra publicada foi Voos Incertos (1886), um livro de
poesia. Em 1893, Adolfo publica A
Normalista, romance em que traça um quadro pessimista da vida urbana. Usa
as suas experiências e observações de uma viagem que havia feito aos Estados
Unidos em 1886, para escrever No País dos
Ianques (1894). No ano seguinte provoca escândalo, mas firma sua reputação
literária ao escrever Bom Crioulo,
abordando a questão da homossexualidade. Colabora também com a imprensa
carioca, em jornais como Gazeta de Notícias e Jornal do Commercio, e funda o
semanário, Nova Revista. Já tuberculoso, lança o último romance, Tentação, em 1896. Morre prematuramente
no Rio de Janeiro, no dia 1º de janeiro de 1897, aos 29 anos.
Sua obra densa, trágica e pouco apreciada na
época, é repleta de descrições de perversões e crimes.
Lista de obras
Voos Incertos
(1886), poesia
Judite (1887),
contos
Lágrimas de um Crente (1887), contos
A Normalista
(1893), romance,[1]
No País dos Ianques (1894), romance (eBook)
Bom Crioulo
(1895), romance
Cartas Literárias (1895), romance
Tentação (1896),[2]
Ângelo,
romance inacabado
O Emigrado,
romance inacabado
Adolfo
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A NORMALISTA
A Normalista, de Adolfo Caminha, foi publicado há mais de 110
anos, em 1893. É um dos romances mais naturalistas da nossa literatura e aborda
questões polêmicas consideradas interditas pela ordem social e política
reinante: o incesto e o adultério, sexo, traição, família, libido e desnuda
seus personagens de toda e qualquer roupagem de pudor ou outra virtude que
mereça algum louvor.
Na obra existe o regionalismo. O local em
que se desenrola o romance é Fortaleza, no Ceará. A maioria das ações acontecem
em ambiente fechado, caracterizado sempre como um lugar simples, sem luxo e
povoado de sentimentos pequenos.
Segundo o professor e pesquisador literário,
M. Cavalcanti Proença, Adolfo Caminha teve a preocupação de se não tornar
pomposo ou oratório, o que abriu lugar para muito material de linguagem
regional de estilização do coloquial. Assim, recolhemos os exemplos “bichinha”,
“rapariga de família”, “o peru era uma excelente bebida”, e mesmo ditos
populares como: “pela cara se conhece quem tem lombrigas”, “sem tugir nem
mugir”, e muitos outros. Na verdade, Adolfo Caminha não insiste em demasiado
nas palavras de cunho regional, o que fazem outros escritores, para dar uma
“cor local” a histórias ambientadas em lugares de fala bem característica. Há,
em contraste, utilização de palavras eruditas, pouco usadas na comunicação
quotidiana das conversas, do jornal, da televisão. Por exemplo: “seródia”,
“rótula”, “tabernáculo”, “estiolando”, “almiscarado”.
Adolfo Caminha descreve com minúcia realista
a atmosfera regional do passado. Josué Montello, em seu ensaio A ficção
naturalista, afirma que A normalista “sobressaía pela transplantação fiel e
natural da vida da província e vigor na fixação dos temperamentos e dos
caracteres”.
O autor de assume uma postura inovadora visto
que entende o processo da leitura como forma de conhecimento que prepara o
leitor para a vida e é também fonte de prazer. Ele tem uma perspectiva de
ruptura em relação ao seu tempo. Essa natureza emancipatória se revela
principalmente em relação à mulher. Lídia, sendo instruída e tendo livros em
casa, conseguiu um lugar social. Por outro lado, Maria do Carmo, criada por um
professor que não possuía livros em casa, educada num colégio religioso foi
seduzida pelo padrinho. Entretanto, o autor subverte a lógica patriarcal da
sociedade novecentista cearense e resgata sua personagem no desenlace da
narrativa.
Maria do Carmo, leitora experimentada tanto
de obras religiosas quanto de obras consideradas perniciosas, saberá como
professora, avaliar melhor a questão da leitura na escola. Sua experiência no
passado, servirá de embasamento empírico para seu posicionamento na sua futura
profissão. Não foram as leituras proibidas, lidas pela personagem, que a
levaram ao “desvio de conduta”, e sim a credulidade naquele que considerava
como pai.
A Normalista, considerada obra "libidinosa", quando de
seu lançamento, ajusta-se perfeitamente às propostas do Determinismo. João da
Mata desfruta sexualmente de sua afilhada. Maria da Mata, moça ingênua, de uma
excepcional brandura de caráter, educada em uma casa de caridade e depois
normalista. Pressionada pelo instinto sexual e por circunstâncias superiores à
sua vontade, Maria do Carmo entrega-se ao padrinho, submetendo-se totalmente à
lascivia de João da Mata.
Neste romance, a normalista Maria do Carmo é
o pretexto para Adolfo Caminha apresentar aos leitores sua visão da Fortaleza
de final do século XIX. De um lado, o povo miúdo: o pequeno funcionário
público, a mulher que vendia rendas, o barbeiro, o guarda-livros, o lenhador e
o alferes. Na outra banda, o governador da província, o coronel Souza Nunes,
seu filho Zuza - estudante de direito - o jornalista José Pereira, o diretor e
os professores da escola normal. A fraqueza do nexo lógico sentimental ou de
qualquer natureza entre as várias peripécias da vida de Maria do Carmo sugere
que Adolfo Caminha não conta simplesmente a história dela para distrair seus
leitores: é a propósito da vida da normalista que ele vai delineando quadros da
vida da capital cearense: uma aula na escola normal, o footing no passeio
público, uma festa de casamento, um serão familiar etc.
Nesta espécie de painel de costumes, o autor
parece querer demonstrar ao leitor toda a mesquinha sordidez da vida social na
Fortaleza de seu tempo.
O mau humor para com a cidade é
transparente, e costuma ser apontado pelos críticos e biógrafos de Adolfo
Caminha como uma espécie de vingança: o autor jamais teria perdoado seus
conterrâneos por estes lhe terem criticado os amores adúlteros e escancarados
com a mulher de um colega.
PERSONAGENS PRINCIPAIS
Maria do Carmo
- protagonista, é aquela que seria a detentora de todas as virtudes físicas,
psicológicas e espirituais. No Naturalismo entretanto, encontraremos uma
heroína "desfigurada". Pode ser uma mulher bonita, mas não tem
qualquer firmeza de caráter. E assim é a protagonista do romance de Adolfo
Caminha: um ser belo mas de inteligência inferior, movido pelos instintos e
incapaz de modificar a própria existência, deixando-se levar pelos
acontecimentos.
Zuza - é o
personagem de quem a escola romântica esperaria rompantes apaixonados,
sacrifícios em favor da amada, a luta contra todos os obstáculos para viver seu
grande amor, não é senão um rapazola entediado com a vida daquela província
"atrasadinha". Apesar de inicialmente reconhecer que nutre algum
sentimento pela normalista, não vê nesse fato razão suficiente para contrariar
os desejos de seu pai, nem os próprios projetos de ascensão social. Lamenta
apenas não ter 'usufruído" todas as delícias que poderia haver conquistado
em seus namoricos com Maria do Carmo.
João da Mata
- personagem que não merece que se lhe atribua qualquer adjetivo de valor
positivo, nem mesmo tem a coragem que demonstravam os vilões românticos para
suas atitudes vis, pois age sempre dissimuladamente. Horrendo fisicamente,
asqueroso, é um perfeito canalha, sem escrúpulos, sem dignidade, sem qualquer
característica que o absolva. Sedutor de menores, caluniador, manipulador na
política, usurpador dos bens públicos, reúne em si todos os dotes necessários
para protagonizar a história naturalista que se desenrola a nossos olhos.
ENREDO
A normalista conta a história de João da
Mata, um amanuense de Fortaleza que recebe a incumbência de criar a sua
afilhada, Maria do Carmo.
Maria do Carmo é uma menina do interior que
foge da seca com sua família e, por conta da morte da mãe e da migração do pai,
passa a viver na casa de seu padrinho, o Sr. João da Mata, amigado com Dona
Terezinha. educada em colégio de orientação religiosa até tornar-se aluna da
Escola Normal, ocasião em que se revela, aos olhos sedentos do padrinho, uma
mulher já madura em seus atributos de feminilidade e extremamente atraente.
Inicia, contra a vontade de João da Mata que
se mortifica de ciúmes, um namoro com Zuza, jovem estudante de Direito, filho
de um dos coronéis da cidade. A relação, que a princípio tem a possibilidade de
levar a um compromisso mais sério, é comentada maliciosamente em toda a cidade,
e provoca a desaprovação do pai do rapaz, que exige o seu imediato retorno a
Recife para concluir seus estudos.
Enquanto isso, João da Mata, que planeja um
meio de conseguir seduzir a afilhada, rompe as relações com dona Terezinha,
pois esta desconfiava de suas intenções, e hostiliza cada vez mais o Zuza. Uma
noite, entra sorrateiramente no quarto de Maria do Carmo e, fazer do uso de
argumentos enganosos e valendo-se da situação propícia em que se encontravam,
consegue o que queria.
Maria engravida, e tem que se afastar da
cidade para evitar um escândalo maior, esperando o nascimento do bebê em uma
casa isolada de uns amigos de João da Mata. O seu filho, em decorrência de um
acidente durante o parto, morre. Apesar comentários de toda a sociedade de
Fortaleza, a normalista; retoma sua vida de sempre e é redimida pela mesma
sociedade ao preparar-se para o casamento com o alferes Coutinho.
A normalista, de
Adolfo Caminha - Passeiweb
www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/.../a/a_normalista
BOM-CRIOULO
Análise da obra
O romance Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha,
faz parte do Realismo e do Naturalismo. A história de paixão e tragédia não é
produto de fantasia romântica, mas baseada num fato real que escandalizou o Rio
de Janeiro no século XIX.
Caminha constrói a partir de um fato
verídico, uma ficção forte, ousada, muito atual até os dias de hoje. Fez isso
para chocar e se vingar da sociedade hipócrita que o rodeava.
Bom-Crioulo, publicado em 1895, é dividido em 12 capítulos, onde a
ação se passa na segunda metade do século XIX, no Rio de Janeiro. Destacam-se o
espaço aberto, normalmente dias claros e quentes, o mar aberto, e o espaço
fechado do quartinho de Amaro.
Boa parte da força e da eficácia de Bom-Crioulo está no manejo lúcido que o
autor faz desses conflitos, escolhendo o quê, quando e como contar deste
verdadeiro enredo de notícia de jornal sensacionalista. A narrativa é simples e
direta, mas tem as suas manhas: não entrega o jogo facilmente, cria suspenses,
vai e volta no tempo, de modo a dar a cada momento, a cada situação, a sua
atualidade e a sua história, o seu desenvolvimento próprio. Assim, o enredo
central se desdobra em alusões a muitas outras histórias; e o dia-a-dia do
século XIX brasileiro se insinua a cada passo, fazendo ecoar as falas e as
ações das personagens centrais.
A intenção do romance resume-se em
acompanhar as personagens em seu movimento, como se fosse o expectador que
registra a evolução do drama alheio sem interferir. Nele tudo caminha numa
ordem inalterável até o epílogo, com uma supervalorização do instinto sobre os
sentimentos, do animal sobre o racional.
Foco narrativo
Narrado em 3ª pessoa, por narrador
onisciente, percebe-se que as inúmeras descrições que aparecem no romance,
condizentes com a estética naturalista que privilegia a observação meticulosa
dos fatos, buscam não se confundir com a história, nem com as personagens.
Preso aos ideais do escritor naturalista —
exatidão na descrição, apelo à minúcia e culto ao fato — o narrador conta a
história de modo linear, gradativo, utilizando-se de uma linguagem clara,
direta, objetiva, com poucos objetivos. O que será importante são os fatos
narrados e não a opinião que se pode ter sobre eles. Não há, portanto, da parte
desse narrador, qualquer julgamento moral das personagens.
A história quase se narra por si, pela
exposição direta dos fatos, que vão montando a estrutura narrativa, ou seja, a
história das três personagens envolvidas num caso de amor: Amaro, Carolina e
Aleixo.
Temática
O tema principal é a dificuldade do amor
homossexual, centrado na relação entre o negro Amaro e o jovem e bonito Aleixo.
Faz presente também o tema da mulher madura que deseja um amante jovem. A originalidade
de Bom-Crioulo se manifesta no triângulo amoroso sobre o qual se sustenta.
Tradicionalmente, um triângulo amoroso é composto por dois homens em luta por
uma mulher, ou duas mulheres que disputam o mesmo homem. Em Bom-Crioulo, Amaro
e Aleixo são marinheiros e, acima de tudo, como tal se comportam, favorecendo a
anulação das diferenças étnicas, que se dá não pela ascensão do negro fugido,
mas pelo rebaixamento de ambos à condição de prisioneiros do mesmo sistema e do
“vício”. Por fim, o terceiro do triângulo é uma mulher que atua como homem,
pois conquista Aleixo em vez de ser conquistada. Adolfo Caminha colhe ao vivo,
de sua experiência como oficial da marinha, o material do romance.
Este tema do romance, o homossexualismo,
manifesto na construção do triângulo amoroso, é tratado com crueza e sem nenhum
indício de preconceito pelo escritor naturalista, que vê no vício um objeto de
estudo que deve ser esclarecido e compreendido.
O homossexualismo, encarado no romance como
vício ou perversão, é tratado, portanto, através de um olhar naturalista e,
conseqüentemente, limitado: não há o enfoque mais subjetivo dos sentimentos
despertados; não há autonomia do caráter: as personagens estão acorrentadas às
leis deterministas (não há drama de consciência ou mesmo drama moral). Há uma
resposta mecânica, instintiva aos fatos e, nesse sentido, o livro perde um lado
da questão, o que não esmaece sua força e valor literário.
Outro
tema é a problemática da vida dos marinheiros, que ficam a maior parte do tempo
longe da terra e de mulheres, o sofrimento dos castigos corporais impiedosos e
rigorosos. Este é a temática que se entrelaça com o tema central.
Tempo e espaço
O romance se passa em dois espaços: no mar,
a bordo de uma corveta, e na Rua da Misericórdia, localizada nos subúrbios do
Rio de Janeiro, nos fins do século XIX. Os dois lugares são descritos em seus
aspectos mais degradantes e negativos, ressaltando a miséria daqueles que aí
vivem.
A abertura do romance se faz com uma
detalhada descrição da corveta, local inicial da ação.
Por meio de uma descrição minuciosa e da
riqueza de detalhes que ajudam a compor o ambiente externo, percebe-se como o
autor naturalista se debruça sobre o meio que terá um papel decisivo no
comportamento das personagens.
O ambiente de bordo é marcado pelo trabalho
duro e por uma vida sem privacidade, o que possibilita a eclosão das mais
diversas perversões. O ajuntamento de homens favorecia a promiscuidade entre
seres que vivenciam a solidão da reclusão da vida no mar e que, sobretudo,
sentiam a falta de liberdade, vítimas de um sistema duro e cruel - a vida na
Marinha:
Mas, havia ordem para não desembarcar, e
Bom-Crioulo, como toda a guarnição, passou a tarde numa sensaboria, cabeceando
de fadiga e sono, ocupado em pequenos trabalhos de asseio e manobras
rudimentares. - Diabo de vida sem descanso! O tempo era pouco para um
desgraçado cumprir todas as ordens. E não as cumprisse! Golilha com ele, quando
não era logo metido em ferros... Ah! Vida, vida!... Escravo na fazenda, escravo
a bordo, escravo em toda parte... E chamava-se a isso servir á Pátria!
Por esse trecho, pode-se notar uma crítica
implícita a Abolição dos Escravos que parece não passar de uma ilusão, já que
os homens provenientes das camadas mais baixas da população continuam a ser
explorados.
Num segundo momento, a história se desloca
para a terra, mais precisamente para um quarto na Rua da Misericórdia, onde
Amaro e Aleixo, após terem se conhecido no navio, vivem o ápice e o declínio de
seu relacionamento.
Ao retratar o espaço urbano, Adolfo Caminha
fala a respeito de um tipo de moradia muito comum no Rio de Janeiro, durante o
final do século XIX: as habitações coletivas. Os habitantes dessas moradias
eram brancos, mulatos e mestiços, sempre pessoas exploradas. Ao redor dessas
habitações, há a presença de negociantes portugueses em ascensão, como o
açougueiro que sustenta D. Carolina, e que se aproveitam, de algum modo, da
miséria dessas pessoas.
Desse modo, o comportamento das personagens
está condicionado pela pobreza do ambiente que as circunda e que, por sua vez,
é decorrente do momento histórico por que passava o Brasil, durante o Segundo
Reinado.
PERSONAGENS
Em Bom-Crioulo, Caminha constrói com
segurança e coerência o personagem Amaro, mulato dominado pela paixão
homossexual, que o leva para caminhos sadomasoquistas à perversão e finalmente
ao crime. O autor soube manejar as cenas e personagens com naturalidade.
As personagens de um romance naturalista
raramente são dotadas de alguma profundidade psicológica. Muito próximas dos
tipos, também chamados de personagens planas, não evoluem no decorrer da
narrativa, de forma que suas ações apenas confirmam as poucas características
que as definem.
Amaro: protagonista, ex-escravo convocado para a
marinha.Trata-se de um homem muito forte, com trinta anos de idade e que não
conseguiu realizar-se sexualmente com as mulheres. Duas tentativas deram-lhe
grande decepção e o deixaram frustrado. Só conseguiu consumar o ato com o jovem
Aleixo. Apresenta certa profundidade psicológica, mas que é totalmente
envolvido por sentimentos e instintos que o dominam, impedindo-o de perceber
com clareza a situação conflituosa que vive. Algumas vezes, surgem percepções
esparsas, mas nada suficientemente forte para modificar o destino do negro,
movido pela paixão. Por um lado, Amaro é extremamente forte fisicamente. Sua
força provém do trabalho escravo e depois do trabalho na Armada, em que se
engajara após ter fugido da fazenda. Os castigos físicos que lhe foram
impingidos, tanto pelo feitor quanto a bordo, tornaram-lhe resistente e lhe
deram a energia de um animal brioso. A força do negro é realçada pelo narrador,
numa das cenas iniciais do romance, por meio da descrição de uma cena em que
Amaro está sendo punido com a chibata: — Uma! cantou a mesma voz. — Duas!..,
três!...
Aleixo:
grumete, belo rapaz de olhos azuis, que embarca no sul. Tem quinze anos e mexe
sexualmente com Amaro. Cede às investidas e caprichos do crioulo, mas quando
aparece ocasião troca-o por uma mulher. Isso o leva ser assassinado por Amaro,
por causa do ciúme. Aleixo surge desde o princípio como o oposto de Amaro:
branco, fisicamente fraco e pueril, subjugado pelas circunstâncias e por quem
lhe é mais forte — será assim com Amaro e com Carolina. O ar de submissão de
Aleixo vai transfigurando-se, ao longo da narrativa, numa espécie de esperteza
camaleônica. Nada sabemos sobre seu passado, a não ser que era filho de uma
pobre família de pescadores que o tinham feito entrar para a Marinha em Santa
Catarina. A ligação com Amaro oferece-lhe um novo mundo, bastante diferente
daquele de sua origem, e que lhe propicia, acima de tudo, favores e proteção.
D. Carolina:
amiga e rival de Amaro. É amiga de Amaro por tê-lo salvo em um assalto e
inimiga por depois conquistar o namorado do crioulo. D. Carolina era uma
portuguesa que alugava quartos na Rua da Misericórdia somente a pessoas de
“certa ordem”, gente que não se fizesse de muito honrada e de muito boa, isso
mesmo rapazes de confiança, bons inquilinos, patrícios, amigos velhos... Não
fazia questão de cor e tampouco se importava com a classe ou profissão do
sujeito, Marinheiro, soldado, embarcadiço, caixeiro de venda, tudo era a
mesmíssima cousa: o tratamento que lhe fosse possível dar a um inquilino,
dava-o do mesmo modo aos outros. D. Carolina revela-se, desde o inicio, uma
mulher de negócios, cuja mercadoria era seu próprio corpo. Teve seus revezes e
conseguiu se reerguer, observando como poderia lucrar com os outros, já que
também lucravam com ela. No entanto, vive só.
Herculano:
marinheiro dotado de certa melancolia. Relaxado, tinha as unhas sujas. Evitava
a companhia dos outros. Foi preso e castigado por ter sido apanhado se
masturbando.
Agostinho: o
guardião. Homem de grande estatura, reforçado, especialista em dar chibatadas.
Ama sua profissão, por isso permanecia a maior parte do tempo a bordo.
Santana:
marinheiro que sofreu castigo por ter brigado com Herculano. Era gago, chorava
com facilidade e era manhoso.
ENREDO
A obra BOM-CRIOULO não padece das
inverosimilhanças de A Normalista, do mesmo autor. Mais denso e enxuto,
apresenta um ótimo retrata da vida de marinheiros durante a 2ª metade do século
XIX, no Rio de Janeiro. A personagem principal, o mulato Amaro, é bastante
coerente em sua passionalidade. Vários episódios do romance também refletem a
própria vivência do autor a bordo de navios, registrando a aspereza da vida no
mar, da brutalidade dos castigos corporais, já denunciados por Caminha em seu
tempo de estudante.
O romance realça pela originalidade da
situação dramática: dois marinheiros - Amaro, apelidado o Bom-Crioulo, um
“latagão de negro, muito alto e corpulento, figura colossal de cafre... com um
formidável Sistema de músculos” e Aleixo “um belo marinheiro de olhos azuis” -
brutalizados e solitários pela vida a bordo de um navio, afeiçoam-se e entretêm
relações homossexuais. Ao desembarcarem na cidade do Rio de Janeiro, vão viver
em um cômodo alugado por uma portuguesa, ex-prostituta, D. Carolina. Mas o idílio
amoroso entre Amaro e Aleixo é interrompido pelo dever de voltar ao mar:
Decorreu
quase um ano sem que o fio tenaz dessa amizade misteriosa, cultivada no alto da
Rua da Misericórdia, sofresse o mais leve abalo. Os dois marinheiros viviam um
para o Outro: completavam-se /.../ Mas Bom-Crioulo um dia foi surpreendido com
a notícia de que estava nomeado para servir noutro navio.
Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha -
Passeiweb - www.passeiweb.com
ADOLFO CAMINHA E O NATURALISMO
Sânzio de Azevedo | UFC
Resumo: Este
artigo pretende demonstrar que, embora defendendofervorosamente o Naturalismo
de seus romances A normalista e Bomcrioulo, ao escrever Tentação, seu último
trabalho ficcional, AdolfoCaminha de certa forma cedeu à crítica e abandonou a
escola de Zola.
Palavras-chave: romance, Naturalismo, crítica.
Era tão grande o entusiasmo de Adolfo
Caminha (1867-1897) pelaobra de Émile Zola que o capítulo de suas Cartas
literárias (1895) dedicado ao mestre do Naturalismo francês abre com estas
palavras: Quanto mais o leio maior é a minha admiração, maior o meu entusiasmo por
essa obra colossal que vem, desde a Fortune des Rougon, estuando como um rio
caudaloso e límpido, até ao Docteur Pascal, até Lourdes…
E, referindo-se aos que por acaso quisessem
negar o valor do escritor:“eu, por mim, dar-lhe-ia um lugar distinto à mão
direita de Shakespeare e Balzac”.
Cada um dos três romances de Adolfo Caminha,
escritor nascido no Ceará e falecido no Rio de Janeiro antes de completar
trinta anos de idade, representa uma resposta: A normalista (1893), mostrando uma jovem seduzida pelo padrinho,atacava
a sociedade hipócrita da Fortaleza dos anos 80 de século XIX, que condenou a
união do escritor com uma mulher que, por ele, abandonara o marido; Bom crioulo (1895), falando do
relacionamento homossexual entre os marinheiros Amaro e Aleixo, expunha alguns
problemas da Marinha Imperial, da qual Caminha foi praticamente obrigado a se
demitir, em virtude do citado escândalo; e Tentação(1896),
relatando a decepção de um casal de provincianos em contacto com as falsidades
da vida na Corte, pinta, de maneira ácida, o ambiente vivido pela Capital no
declínio do Segundo Reinado. Adolfo Caminha nunca se adaptou ao Rio deJ aneiro,
vivendo sempre à margem dos grupos de intelectuais e tendo seus livros atacados
pela crítica dita oficial.
Abraçando o Naturalismo, encontrou o escritor
cearense a estética ideal para seu temperamento combativo. É, aliás, conhecido
o episódio no qual, ainda aluno da Escola de Marinha, em 1885, numa homenagem
póstuma a Victor Hugo, Caminha fez um discurso republicano na presença do
Imperador.
Se observarmos com isenção as críticas que,
em 1891, na sua Revista Moderna, ele fez em Fortaleza aos Versos diversos, de
Antônio Sales, e ao romance A fome, de Rodolfo Teófilo (críticas que incluiria
quatro anos depois no seu único livro no gênero), concluiremos que sua intenção
foi a de ser uma voz discordante em meio a um coro de elogios.
Imagine-se então um homem desses lendo
censuras a trabalhos seus. Num artigo que fez estampar na Gazeta de Notícias do
Rio, em novembro de 1893, assinando-se C. A. e se apresentando como leitor,
defendia o “Sr. Caminha” de ataques ao romance A normalista, por parte da
crítica. Parece- nos que, num meio que lhe parecia hostil, sem ninguém que
saísse em sua defesa, o escritor apelou para esse artifício, supondo que seria
suspeito para falar em causa própria.
Posteriormente, perfilharia o artigo, que
intitulou “Em defesa própria”, incluindo-o em suas Cartas literárias. Como a
crítica havia censurado em A normalista a presença de “cenas libidinosas”,
defendeu-se assim o escritor: Sou contra a libidinagem literária e não
perdoaria nunca o escritor que me viesse, por amor do escândalo, descrever
cenas imorais, episódios eróticos a título de naturalismo.
Quando publicou Bom-crioulo, a crítica foi
mais violenta (V. M., certamente Valentim Magalhães, em A notícia, insinuava
ter sido Caminha um embarcadiço como Aleixo), e por isso mais forte foi a
defesa que Adolfo Caminha fez de seu trabalho, desta vez na última revista que
dirigiu, em artigo intitulado “Um livro condenado”. Após afirmar que “não saiu dos prelos obra naturalista que não
fosse tachada de imoral”, e de explicar que seu romance focalizava nada
mais que “um caso de inversão sexual estudado em Krafft-Ebing, em Moll, em
Tardieu, e nos livros de medicina legal”, desabafa o ficcionista:
A
julgar como certos imbecis, – que os personagens de um romance devem refletir o
caráter do autor do romance, Flaubert, Zola e Eça de Queiroz praticaram
incestos e adultérios monstruosos.
Pela veemência como o romancista se
defendia dos ataques recebidos, e pela convicção com que justificava os
processos narrativos empregados pelos seguidores do Naturalismo, dir-se-ia que
Adolfo Caminha seria sempre um adepto da escola de Zola, e era de se esperar
até que, devido a sua índole combativa, carregasse cada vez mais nas tintas com
que fosse pintar as mazelas da sociedade de seu tempo.
Entretanto, mesmo com sua independência e
sua indignação diante das censuras que recebeu, principalmente de Valentim
Magalhães, a quem irá caricaturar um tanto impiedosamente, o escritor não
chegou a pôr nas páginas de Tentação, seu derradeiro romance, talvez um décimo
da crueza com que tingiu algumas cenas d’A normalista e do Bom-crioulo.
Sabóia Ribeiro já assinalou esse
abrandamento do estilo do autor, nesse livro que circulou após seu falecimento:
Cheia de
aspectos suaves a narrativa decorre até quase o fim, sem nada daquelas
costumeiras complicações psicológicas e dramas da patologia do sexo que são o
pábulo do Naturalismo original.
Com efeito, não há nesse romance tipos
repugnantes como o João da Mata, d’A normalista, ou aberrantes, do ponto de
vista da moral então vigente, como o Amaro, o Bom-crioulo, o que representa um
nítido desvio do modelo seguido por essas obras.
Um casal deixa sua casa em Coqueiros, na
Província, a fim de tentar a vida na Corte, ao tempo do Império. Evaristo de
Holanda, jovem bacharel em Direito, conta à sua esposa Adelaide haver recebido
telegrama de seu conterrâneo e amigo Luís Furtado, garantindo-lhe emprego no
Banco Industrial.
Furtado e sua esposa, D. Branca, são bem
relacionados com desembargadores, barões e viscondes, sendo portanto
monarquistas. Homem de meia-idade, robusto e com “olhos negros e
comunicativos”, o amigo de Evaristo é dado a conquistas amorosas, com o que não
parece se importar D. Branca, habituada à vida no Rio de Janeiro. Para ela, uma
senhora casada devia se esforçar para parecer honesta, apenas. Assim, os dois
se entendem. A verdade é que, enquanto
Furtado anda à
procura de divertimentos com outras, D. Branca é cortejada pelo Visconde de
Santa Quitéria, solteirão que faz sucesso com as mulheres.
Hospedados provisoriamente na casa de
Furtado e D. Branca, aos poucos Evaristo e Adelaide se vão enojando com a
falsidade da vida na Corte, e sobretudo com a bajulação que cerca o Imperador e
seu séquito. Furtado cada vez mais se encanta com a beleza simples de Adelaide
que, a contragosto, não é inteiramente indiferente aos olhares do conquistador,
daí o título do livro.
Há um trecho bem interessante do romance, em
que, numa conversa entre Adelaide, Furtado e Evaristo, este diz: “– Mas, então,
que querem vocês que eu diga?”. Comenta então o narrador onisciente, penetrando
no pensamento e no sentimento da mulher do bacharel:
Aquele –
que querem vocês que eu diga? – referia-se exclusivamente ao marido de D.
Branca e a Adelaide. Esta notou o carinhoso plural e como que sentiu no fundo
d’alma um prazerzinho em se achar na companhia de homem tão educado e nobre.
Tal como já fizera n’A normalista, o
escritor expõe ao ridículo pelo menos um desafeto: entre os personagens
secundários há um chamado Valdevino Manhães. Vê-se que a intenção do autor, com
esse falso nome, foi claramente fazer com que o leitor reconhecesse no
personagem a caricatura do escritor Valentim Magalhães. Além da semelhança dos
nomes, a figura presente na narrativa é:
O Valdevino Manhães,
diretor da Revista Literária e autor de
muitos livros, de muitíssimas obras, entre as quais o poema herói-cômico Juca Pirão,
paródia ao “I-Juca-Pirama”, de Gonçalves Dias.
Lembre-se que o escritor fluminense era
diretor da revista A Semana e autor de vasta bibliografia, incluindo romance,
crítica e poesia, e na qual figura A vida de seu Juca, poema escrito em
parceria com o irmão, Antônio Henrique Magalhães, e que é uma paródia d’A morte
de D. João, de Guerra Junqueiro.
No tocante à presença ou não de traços
naturalistas em Tentação, basta que se diga que, no capítulo I, o que há de
mais forte, e que certamente não apareceria numa narrativa romântica, é este
trecho:
Da
janela do quarto via-se luz no segundo andar, e não poucas vezes ecoava
embaixo, no fundo escuro da área, o som de uma cusparada.
A cena mais violenta, digna mesmo de um
romance naturalista, está no capítulo VIII. É quando D. Branca ouve gritos no
andar de cima e reconhece a voz de Adelaide:
O fâmulo do
secretário não esperou pela patroa: galgou os degraus dois a dois, três a três,
numa elasticidade felina de músculos, e, sem guardar conveniências, enveredou
pelos aposentos do bacharel. D. Branca foi encontrá-lo sobrepujando Adelaide
que se debatia no leito numa agitação de todo o corpo, os olhos desvairados, a
face muito pálida, em convulsões histéricas.
Uma cena como essa, que pode causar algum
impacto ao ser lida assim isolada, termina por quase se diluir no enredo do
romance, onde não há mais nenhuma dessa natureza.
Durante uma das passagens mais bem
elaboradas do livro, a descrição de um piquenique no Jardim Botânico, Luís
Furtado, conseguindo ficar a sós com Adelaide, beija-lhe ousadamente a mão.
Depois, chega a pedir-lhe perdão, mas a esposa de Evaristo passa a sofrer com
mais força a tentação de ceder ao conquistador, o que não chega a acontecer.
Sabendo-se, como se sabe, que Furtado é
dado a conquistas amorosas, e que sua mulher, D. Branca, é cortejada pelo
Visconde de Santa Quitéria, era de se esperar que houvesse no romance cenas de
alcova, quase obrigatórias nas obras naturalistas. Entretanto, tal não ocorre.
Baste-nos informar que o momento mais
marcante no que toca a episódios amorosos está no já citado capítulo VIII: indo
o Visconde à casa de D. Branca, constata ele que Furtado está ausente, o que
leva o narrador a afirmar que ele “não
podia encontrar melhor ocasião para um rendez-vous amoroso”.
Esse rendez-vous, porém, tem seu clímax
apenas subentendido; ao se referirem os dois ao seu último encontro, há este
trecho:
Ela achava
“um bocadinho” prosaico o escritório da Rua da Alfândega, “um bocadinho
exposto”.
Já se tratavam por você.
– Você não imagina – dizia ela – o sacrifício que me
custou!… E os homens ainda falam mal das mulheres…
Ele, então,
fazia-se meigo, derreava a cabeça, sem prejudicar a linha correta do porte, dando palmadinhas na mão
dela, numa intimidade de casal. Tirou da botoeira a rosa que trazia e
ofereceu-lha com uma graça muitíssimo gentil.
Não cremos seja exagerada a afirmação de
que essa cena poderia perfeitamente figurar nas páginas de um romance
romântico, tão distante está dos trechos apimentados presentes n’A normalista e
principalmente no Bom-crioulo.
Interessante é o contraste entre a opinião
de Lúcia Miguel-Pereira, que considera Tentação um romance “fraquíssimo […],
mera ilustração do ódio do autor, republicano, pela gente do Império”,
e a de Sabóia
Ribeiro, para quem o livro é “uma obra-prima, que se alça num plano do mais
alto nível”.
Não
evidentemente por ser a situação mais cômoda, mas por nos parecer a mais justa,
preferimos ficar no meio-termo: se comparado a Bom-crioulo, ou mesmo a A
normalista, o último romance de Caminha não faz grande figura; visto porém como
livro autônomo, é obra que não desmerece o nome do autor, sobretudo por algumas
descrições e pela verdade com que são pintados alguns caracteres e alguns
fatos.
Concordamos com Lúcia Miguel-Pereira quanto
ao caráter antimonarquista do livro. Já Sabóia Ribeiro, baseado não sabemos em
que trecho do romance, vai ao ponto de ver simpatia do ficcionista com relação
ao Imperador:
Dir-se-ia
que o ex-aluno da Escola de Marinha que, anos antes, se portara com
irreverência, numa festa, procurava agora se retratar num arrependimento tardio
embora justo.
Nem é preciso relembrar a biografia de
Adolfo Caminha para ver que ele se identifica muito mais com Evaristo do que
com Furtado e seus amigos.
Além disso, é clara a ironia presente nos
trechos do livro em que o narrador alude à preocupação dos monarquistas com a
doença do Imperador. Leia-se, por exemplo, este diálogo do capítulo III, que
nos parece de um ridículo atroz:
– E ninguém sabe, afinal, qual é a doença do
Imperador! – disse o velho Lousada.
– Não é coração? – atalhou a dama de honor.
O visconde,
muito respeitosamente, pediu licença à nobre senhora para dizer que não, que o
Sr. D. Pedro II estava com uma glicosúria…
– Glicosúria? Que é glicosúria?
– Diabetes…
– Creia o senhor que ainda não compreendi…
–Diabetes… glicosúria… – fez o visconde atrapalhado,
esfregando-se os dedos.
–Enfraquecimento cerebral, minha mulher – explicou
Lousada convictamente.
Pior ainda nos parece uma passagem do
capítulo V, no qual se fala da viagem que o Imperador deverá fazer à Europa, em
busca de melhoras para sua saúde debilitada. É um longo trecho, mas apenas a
parte que se vai ler dará uma idéia do engano de Sabóia Ribeiro:
E reduzido
às míseras proporções de inválido, o segundo Alcântara,bisneto da Sra. D. Maria
I, universalmente conhecido pelos seus versos ao bom povo ituano e pelo seu
amor às letras, que na Europa dava-lhe foros de primeiro poeta do Brasil – o
celebrado amigo de V. Hugo e das canjas do Teatro Lírico ia sulcar o Atlântico
para bem do povo e felicidade da nação, desse povo que tanto o amava e dessa
nação que ele governava há meio século…
Não conseguimos ver nenhuma retratação,
nenhuma demonstração de simpatia ao Imperador. Por sinal, é justamente a crueldade
da sátira o lado frágil de Tentação, a nosso ver, ainda mais se lembrarmos que
ela vinha com atraso de uns pares de anos. Seja como for, o escritor, em seu
último romance, estava muito distante do Naturalismo dos outros dois.
Para se ter uma idéia da diferença entre A
normalista e Bom-crioulo, de um lado, e Tentação, de outro, temos ainda a
própria fabulação: no primeiro romance, João da Mata aproveita-se da condição
de padrinho de Maria do Carmo para deflorá-la e põe a culpa da sedução no
namorado da moça, que já a havia abandonado; nada sofre, e ela termina se
casando com um homem obscuro, como se nada houvesse acontecido. No Bom-crioulo,
Amaro e Aleixo mantêm um relacionamento homossexual até que o primeiro é
hospitalizado depois de receber um castigo após se envolver em uma briga;
Aleixo, sem o companheiro, aceita as investidas amorosas de uma portuguesa mais
velha que ele; Amaro, sabendo da traição, foge do hospital e termina
assassinando o ex-amante.
Já em Tentação, Furtado, apesar de amigo de
Evaristo, quer conquistar sua mulher, Adelaide. Quase ela cede, tentada pela
sua beleza, mas, enojada com as falsidades da vida na Corte e justamente
temerosa de não resistir, pede a Evaristo que a leve de volta à Província.
Interessante o fato de em momento algum o narrador dizer o nome dessa
Província, mas mais de um autor já imaginou ser a terra natal de Caminha, tão
atacada em seu primeiro romance…
Frota Pessoa, amigo do escritor, naquela que
talvez haja sido a primeira apreciação póstuma de seus romances, classifica
Tentação como “obra ligeira”, e acrescenta:
Este livro
revela uma reação do espírito do autor para o seu primitivo processo, sem
preocupação de escola. É ingênuo e cristalino na sua concepção e no seu estilo.
Como etapa literária, parece-me curioso, porque marca um novo modo de ser na
mentalidade do artista, que, por mais que ele julgasse transitório, deveria ser
definitivo.
O certo é que, apesar da caricatura de Valentim
Magalhães e das alfinetadas no Imperador e em seus áulicos, o romance é
infinitamente mais leve do que os dois anteriores, não merecendo portanto ser
classificado entre as obras do Naturalismo brasileiro, prova de que, mesmo
tendo reagido violentamente à crítica feita às suas obras, Adolfo Caminha
decidiu abandonar as tintas fortes que o haviam incluído na escola de Zola.
Adolfo Caminha e
o Naturalismo - www.letras.ufmg.br
SUBLITERATURA E VINGANÇA - Rodrigo Gurgel
Adolfo Caminha por Robson Vilalba
A obra do cearense Adolfo Caminha só
confirma minhas conclusões de que os frutos do naturalismo brasileiro — essa
“planta exótica”, segundo o sugestivo enunciado de Lúcia Miguel-Pereira — são,
em sua maior parte, excêntricos quanto aos temas e medíocres no que se refere à
forma. No caso específico de Caminha, contudo, há um desonroso complemento:
seus principais livros, A normalista e Bom Crioulo, nasceram, principalmente,
do rancor.
Órfão de mãe aos dez anos, Caminha, doente
depois de sofrer as agruras de uma terrível seca, é enviado a Fortaleza pelo
pai. Dali, parte para o Rio de Janeiro, onde um tio o inscreve na Escola Naval.
Republicano servindo na Marinha, a mais monarquista das instituições militares,
o escritor não se adapta à Corte e solicita o retorno ao Ceará. Aos 22 anos,
apaixona-se pela esposa de um alferes; esta, para escândalo dos fortalezenses,
abandona o marido e passa a viver com Caminha. As pressões obrigam-no a
abandonar sua carreira nas forças armadas e, apesar do novo emprego — de insignificante
escriturário na Tesouraria da Fazenda —, a se transferir, em 1893, para o Rio
de Janeiro, quando publica A normalista, livro no qual pretendeu ajustar contas
com a sociedade que praticamente o expulsara de Fortaleza. Dois anos mais
tarde, surge Bom Crioulo — e desta vez a vingança terá como alvo a Marinha.
Certos críticos modernos pretendem minimizar
essa característica — a do romance enquanto desforra — e, também, isentar
Caminha de suas responsabilidades, colocando nos ombros das “instituições conservadoras”
a culpa pelo destino do escritor. Esquecem-se, no entanto, de que, em 1884,
quando ele discursa na Escola Naval, diante do próprio imperador, e critica a
monarquia, isso não o impede de ser promovido a guarda-marinha (1885) e
segundo-tenente (1888). Na verdade, livrar Adolfo Caminha de culpa é uma
solução deveras fácil para quem preferiu agir como se atos não produzissem
conseqüências. O arroubo imaturo cobrou seu preço — e o autor, considerando-se
perseguido e injustiçado, decidiu revidar com a arma que tinha à mão.
Ressentimento
A escritora e editora Louise DeSalvo
estudou, em Concebido com maldade, alguns casos semelhantes ao de Caminha, de
autores que escreveram movidos pelo desejo de vingança. Ainda que suas
reflexões sejam superficiais e discutíveis, o livro permite a abertura de um
debate sobre os motivos éticos da produção literária. DeSalvo enaltece as obras
que nascem do ressentimento, legitimando seu raciocínio por meio de um
freudismo superficial, muito disseminado nos estudos acadêmicos, ou servindo-se
de citações genéricas, exemplos daquele beletrismo que serve para justificar
qualquer coisa. Por exemplo, a retórica da frase “Nenhuma motivação é demasiado
vil para a arte”, de John Gardner (a pesquisadora certamente se refere ao romancista
e crítico norte-americano e não ao escritor inglês), esconde um juízo que
pretende abarcar todos os comportamentos, inclusive os mais levianos. Ora, se
nada é “demasiado vil para a arte”, o homicídio praticado pelo escritor cujo
objetivo último é apenas descrever com perfeição um assassinato seria uma
motivação aceitável?
A escritora Anaïs Nin também se mostra
condescendente, o que, para quem conhece sua biografia, não é nenhuma surpresa:
O escritor é o duelista que jamais luta na
hora marcada, que guarda um insulto como qualquer outro objeto curioso, um item
de colecionador, despeja-o mais tarde sobre sua mesa e empenha-se verbalmente
num duelo com ele. Algumas pessoas chamam isso de fraqueza. Eu chamo de
adiamento… Pois ele preserva, coleciona o que depois vai explodir em sua obra.
De minha parte, não considero tal atitude
“fraqueza” ou “adiamento”, mas apenas covardia. E os gestos que nascem da
pusilanimidade, não só no que se refere à arte, costumam ser desprezíveis.
Se, como afirma
DeSalvo, “a obra de arte substitui uma inadequação” e é somente um “meio
infantil, regressivo e escapista de lidar com um fracasso”, então os gênios da
literatura são, necessariamente, monstros morais ou, numa hipótese mais amena,
adultos que não amadureceram. Tais generalizações servem ao intuito da autora,
com certeza, mas fecham os olhos à complexidade não só dos escritores, mas de
todos os seres humanos. Como classificar, por exemplo, Tolstói, a quem Isaiah
Berlin — em seu magnífico ensaio O porco-espinho e a raposa — se refere como “o
mais trágico entre os grandes escritores”, que se debateu, por toda a vida,
entre “o orgulho e o ódio por si mesmo, onisciente e duvidando de tudo, frio e
violentamente apaixonado, desdenhoso e pronto a se humilhar, atormentado e
desapegado, rodeado por uma família que o adorava, por seguidores dedicados,
pela admiração de todo o mundo civilizado e, ainda assim, quase totalmente
isolado”?
Outro exemplo de DeSalvo, Henry Miller dizia
que sua escrita talvez parecesse “monstruosa (para alguns) pois era uma
violação, porém eu me tornei um indivíduo mais humano depois dela. Eu retirava
o veneno do meu sistema sanguíneo”. Não sabemos o que significou para ele
tornar-se “mais humano” — e desconhecemos se sua afirmação é sincera —, mas
escrever movido por um desejo maléfico e distribuir o seu “veneno” a milhares
de leitores é, no mínimo, uma forma discutível de purificar a própria
consciência. De qualquer forma, se Caminha teve oportunidade semelhante, pôde
desfrutar dela por pouco tempo, pois morreu dois anos depois de publicar Bom
Crioulo. Suas tentativas patológicas de retaliação, contudo, ficaram. Em A
normalista, segundo Alfredo Bosi, “o ressentimento do autor, apoucado pela vida
de amanuense no meio hostil de Fortaleza, leva-o a nivelar todas as personagens
no sentido das pequenas vilezas que a hipocrisia do meio se esforça em vão por
encobrir”. Como veremos, não será diferente no caso de Bom Crioulo.
Linguagem
Se fosse possível sintetizar, numa única
expressão, esse livro que uma parcela da crítica endeusa pelo fato de ser o
primeiro “romance homossexual” da literatura brasileira, eu diria que se trata
de uma cascata de adjetivos e lugares-comuns. Há adjetivos às pencas. Nem José
de Alencar conseguiu usar tantos. O leitor abre o Capítulo I e lá encontra esta
fórmula de gosto duvidoso: “(…) o
silêncio infinito das esferas obumbradas pela chuva de ouro do dia”. O
protagonista, marujo a quem se apelidou de Bom Crioulo, é um latagão de negro, muito alto e corpulento,
figura colossal de cafre, desafiando, com um formidável sistema de músculos, a
morbidez patológica de toda uma geração decadente e enervada.
Tal maçante retórica irá perseguir o leitor
até a última linha desse conto à força estendido. E virá acompanhada de
“horizontes cor-de-rosa”, “coragem espartana”, o espírito que se debate “como
um pássaro agonizante”, o “azul inconsútil” do céu, a ventania que tem “a força
extraordinária de titãs”, “desejos de touro”, “frenesi de gozo”, o céu “alto e
imenso na eterna glória da luz”, o “silêncio infinito da noite clara”, o som da
viola que “embriaga a alma” e mais quantos lugares-comuns se possa desejar.
O exagero das descrições é evidente desde a
primeira linha. O ódio não permitiu ao escritor filtrar um pouco os seus
ímpetos qualificativos. A corveta que servirá de palco à cena inicial do livro
é “velha e gloriosa”, tem o “casco negro” e as “velas encardidas de mofo”,
assemelha-se à “sombra fantástica de um barco aventureiro”, mas não passa de
uma “velha carcaça flutuante”, “esquife agourento (…) quase lúgubre na sua
marcha vagarosa” — “um grande morcego apocalíptico de asas abertas sobre o
imenso mar”. E estes são apenas trechos selecionados dos três breves parágrafos
que abrem o Capítulo I… Logo, logo veremos o vento “açoitando os cabos,
fustigando a superfície da água” e, pasmem, “gemendo tristemente salmodias de
violoncelo fantástico”.
Apaixonado por Aleixo, um grumete de 15
anos, Bom Crioulo sofre o “forte desejo de macho torturado pela carnalidade
grega”, seja lá o que isso for. Sempre a acompanhar o casal de namorados, lá
está, “no alto do grande hemisfério que a luz do meio-dia incendiava”, nada
mais que “o azul, sempre o azul claro, o azul imaculado, o azul transparente e
doce, infinito e misterioso”. E à noite, é claro, não falta a lua, eterna protetora
dos apaixonados, que necessariamente surge, primeiro, “cor de fogo”, para
depois se tornar “fria e opalescente, misto de névoa e luz, alma da solidão”,
“derramando sobre o mar essa luz meiga, essa luz ideal que penetra o coração do
marinheiro” e atormenta os leitores que conservaram um mínimo de bom senso.
Bom Crioulo não se excita, apenas, mas sente
“uma febre extraordinária de erotismo, um delírio invencível de gozo pederasta”
— por um momento, o leitor tem a clara impressão de que ele se jogará pela
amurada. Já em terra, no aconchego de uma “triste e desolada baiúca da Rua da
Misericórdia”, o negro venera as “formas roliças de calipígio” do seu amante.
Os dois vivem numa suja água-furtada, “espécie de sótão roído pelo cupim e
tresandando a ácido fênico”, mas que apresenta “sombra voluptuosa”, “penumbra
acariciadora” e, graças aos rabiscos do escritor, se transforma num “ignorado e
impudico santuário de paixões inconfessáveis”. E se não estamos satisfeitos com
o palavrório, ainda podemos saber que Aleixo é um “belo modelo de efebo que a
Grécia de Vênus talvez imortalizasse em estrofes de ouro límpido e estátuas
duma escultura sensual e pujante”. Convenhamos, nem o pior dos românticos
produziria uma frase tão afetada.
Mas vamos em frente.
Bom Crioulo, levado ao hospital da Marinha depois de receber chibatadas —
punição habitual à época —, chega aos estertores da saudade:
Um
desespero surdo, um desespero incrível, aumentado por acidentes patológicos,
fomentado por uma espécie de lepra contagiosa que brotara, rápido, em seu
corpo, onde sangravam ainda, obstinadamente, lívidas marcas de castigo — um
desespero fantástico enchia o coração amargurado de Bom Crioulo.
Como vemos, o hiperbolismo causa efeito
oposto àquele que o autor busca. Depois de algumas páginas abarrotadas de
adjetivos que pretendem, repetidamente, construir a mesma ênfase expressiva, o
recurso começa a produzir incredibilidade e, logo depois, aversão. No caso
acima, não basta que o “desespero” seja “surdo” e “incrível” — ele também precisa
ser “fantástico”, além de vir acompanhado de indescritíveis “acidentes
patológicos” e de “uma espécie de lepra contagiosa”. Não é só a cena que
desmorona diante do olhar saturado do leitor, mas a própria verossimilhança da
história fica comprometida, principalmente quando sabemos que, poucos
parágrafos à frente, o personagem — que há dias sangra no seu leito — agirá
como um super-herói: saltará janela e muros, fugirá da ilha em que o hospital
está instalado e, chegando ao continente, caminhará longos quarteirões em busca
de sua paixão.
Ao dedicar-se com tal empenho à sua
vingança, Adolfo Caminha seguiu os passos de Aluísio Azevedo, e aprendeu com
seu mestre a importância de coalhar o texto de imagens mórbidas. Assim, lá
estão os “ímpetos vorazes de novilho solto” — ou, se preferirem, o “grande
ímpeto selvagem de novilho insaciável” —, as “incongruências de macho em cio”,
as “nostalgias de libertino fogoso”, a mulher masculinizada, de “pernas gordas
e penugentas”, que se transforma numa “vaca do campo extraordinariamente
excitada” e, “segurando os seios moles”, traz “um estranho fulgor no olhar de
basilisco”. Tudo se animaliza, tudo se degrada, a fim de corroborar, à força,
as teorias deterministas. Do “bodum africano”, passando pelo “hermafroditismo
agudo”, chega-se às “sucções violentas”. E quando Bom Crioulo, fugido do
hospital, percorre as ruas em busca de Aleixo, “pairava um cheiro forte de
urina, assim como uma emanação agressiva de mictório público, envenenando a
atmosfera, intoxicando a respiração”. É pena que, no final, quando o negro
salta de navalha em punho sobre o amante, apresente, além do ciúme, o raríssimo
sintoma de “estrabismo nervoso de alucinado”… Esse problema não poderia tê-lo
impedido de acertar o alvo?
Toda a conhecida ladainha biologista do
naturalismo polui a obra: como vimos, Bom Crioulo é o melhor contraponto à
suposta “morbidez patológica de toda uma geração decadente e enervada”; certo
personagem traz “no rosto imberbe de adolescente (…) uma precoce morbidez
sintomática”; o grumete tem uma “vontade ingênita de ceder aos caprichos do
negro”; a natureza não só “impõe castigos”, mas “pode mais que a vontade
humana”. Não estamos diante de afetos passíveis de serem controlados pela razão
ou, ao menos, capazes de provocar dúvidas de ordem existencial ou moral, mas de
uma “obsessão doentia” que “redobra com uma força prodigiosa”, “acorda zelos
que pareciam estagnados” e “comove fibras que já tinham perdido antigas
energias”. A luta de Bom Crioulo contra os seus instintos, anunciada com fanfarras
no Capítulo III, não dura poucos parágrafos, de maneira que a homossexualidade
se apresenta como um “ideal genésico” cuja força obriga o “selvagem de
Zanzibar” a “cair em êxtase (…) diante de um ídolo sagrado pelo fetichismo
africano”.
Composição
Mas os defeitos de Bom Crioulo não se
restringem à linguagem. O livro é composto sobre esquematismos e obviedades.
Logo no início, à calmaria enfrentada pela corveta corresponde, evidentemente,
a preguiça dos marujos. O oficial que preza a obediência da marujada precisa
ser um disciplinador arrogante. Agostinho, um guardião também responsável por
aplicar as chibatadas, não pode desaprovar o que é obrigado a fazer por ordens
superiores, mas deve, necessariamente, ter a personalidade de um sádico. O
feliz casal de homossexuais carece de um antagonista — e, claro, nada melhor do
que o elemento feminino, a portuguesa Carolina, para assumir o posto, formando
o trio de personagens a partir do qual se construirá a trama corriqueira:
encontro — sedução — posse do objeto amoroso — separação momentânea — sedução
do antagonista — ciúme descontrolado — tragédia/morte.
A história é tão previsível, que se
cortássemos, além dos trechos de retórica vazia, as digressões que só reiteram
as qualidades físicas dos marinheiros enamorados e seus repetitivos
sentimentos, recíprocos ou não, o livro poderia perder dois terços de gordura e
se transformar num conto de vinte ou trinta páginas.
Há também sérios problemas de passagem do
tempo. Em menos de um mês, enquanto Bom Crioulo se encontra no hospital, Aleixo
se torna “gordo, forte, sadio (…), músculos desenvolvidos como os de um
acrobata (…), expressão admirável de robustez física” — e a única razão
apresentada para essa mudança são os cuidados de Carolina. Antes, sem que se
cumpra sequer um ano de convivência, Bom Crioulo consegue ver “crescer a seu
lado Aleixo, assistindo-lhe o desenvolvimento prematuro de certos órgãos, o
desabrochar da segunda idade”. Próximo do fim do livro, passadas as poucas
semanas em que permaneceu no hospital, o protagonista já não sabe ao certo onde
é a residência de Carolina, lugar no qual vivia muito antes de conhecer Aleixo
— e age como se sua última noite ali tivesse ocorrido há décadas. Finalmente,
parado defronte à casa, conversa com o funcionário da padaria e este lhe diz
que o grumete e a portuguesa acordam tarde; o dia mal amanheceu, mas,
surpresa!, Aleixo sai para a rua.
A vertigem do Mal
Enquanto relia Bom Crioulo, lembrei-me do
ensaio — elogioso e demoníaco — de Georges Bataille sobre Jules Michelet e seu
La sorcière (A feiticeira). Do princípio ao fim, Caminha parece guiado pela
mesma paixão que, segundo Bataille, comandava Michelet: “a vertigem do Mal”.
Entregue ao seu desejo de vingança, enquanto escrevia Adolfo Caminha talvez
repetisse o gesto de Michelet: “No decurso do seu trabalho, acontecia
faltar-lhe a inspiração: descia então de sua casa, dirigia-se a um mictório
cujo cheiro era sufocante. Aspirava profundamente e, tendo-se assim
‘aproximado, o mais perto que podia, do objeto do seu horror’, voltava ao
trabalho”.
Encontrar quem elogie tal subliteratura é
uma evidência de quanto a nossa episteme se encontra deteriorada, submetida à
mais ordinária doxa. Realmente, uma parcela da crítica literária abdicou do seu
papel, preferindo destruir a autonomia da literatura e sujeitar a arte à
deplorável ditadura do politicamente correto. Harold Bloom está certo quando
diz que todos os padrões estéticos e a maioria dos padrões intelectuais estão
sendo abandonados em nome de uma falsa e forçada harmonia social. E, completo,
com um agravante: mente-se descaradamente aos jovens, levando-os a valorizar
uma ficção medíocre. Tal obsessão significa, na prática, a renúncia à autonomia
de pensamento — um desatino frente ao qual muitos se mostram indefesos.
RODRIGO GURGEL é escritor, editor e crítico
literário. Vive em São Paulo (SP).
Subliteratura e vingança | Jornal Rascunho - rascunho.gazetadopovo.com.br
HOMOSSEXUALISMO PRETO & BRANCO NO ROMANCE ‘BOM CRIOULO’, DE ADOLFO CAMINHA - Por Gilfrancisco Santos
Este artigo tem o objetivo de mostrar através do ideário Naturalista, na
literatura brasileira, as afirmações das idéias positivistas e cientificistas
em voga no fim do século XIX, no romance de Afonso Caminha, intitulado
"Bom-Crioulo" (1895). Baseando-se nestas teorias, o autor toma-lhe a
precisão e a objetividade descrevendo com impessoalidade, exatidão e minúcia as
referidas idéias através das relações processadas pelos personagens.
Essas implicam numa posição
de combate, de análise dos problemas evidenciados pela decadência social,
fazendo da obra de arte uma verdadeira tese com intenção realista de reformar a
sociedade. Justificando que o romance naturalista é marcado por forte análise
social a partir de grupos humanos marginalizados, valorizando o coletivo. O
Naturalismo apresenta romances, experimentais como "Bom-Crioulo",
segundo o qual o ser humano é um animal: antes de usar a razão deixa-se levar
pelos instintos naturais, não podendo ser reprimido em suas manifestações
instintivas - como sexo - pela moral da classe dominante.
"Bom-Crioulo", romance de tese, cujo enredo é construí do com
minúcias, onde o narrador (narração linear, gradativa) fornece um grande painel
informativo da paisagem muito comum ao Realismo-Naturalismo.
A intenção do romance
resume-se em acompanhar as personagens em seu movimento, como se fosse o
expectador que registra a evolução do drama alheio sem interferir. Nele tudo
caminha numa ordem inalterável até o epílogo, com uma supervalorização do
instinto sobre os sentimentos, do animal sobre o racional. Adolfo Caminha trata
nesse livro da historia de marinheiros homossexuais (talvez o primeiro da
literatura brasileira) e cujo personagem central, Amaro é um escravo foragido,
crioulo escolado, de bons sentimentos, como o título sugere, que mantém um
conturbado relacionamento com um rapaz branco, meio bisonho. O que é
interessante nesse romance, é que os estereótipos contra os negros não
desempenham papel algum enquanto a paixão domina o herói do romance. A volúpia
é tão forte que atira para o inconsciente, repelindo e como que fazendo
desaparecer, os estereótipos do início do livro.
O Naturalismo fin-de-siècle
No Brasil, o principal representante da
estética naturalista foi Aluísio Azevedo (1857-1913), que em 1881, com a
publicação de O Mulato tomou-se o introdutor do movimento entre nós. Pois as
novas idéias que circulavam na Europa chegaram também até aqui, dando abertura
a uma mudança de mentalidade, fervilhando idéias liberais, abolicionistas e
republicanas. Menores e mais representativos do ideário naturalista - e dos
excessos que o esgotam - foram Júlio Ribeiro, A Carne (1888); Inglês de Sousa,
O Missionário (1888); Adolfo Caminha, A Normalista (1893) e Bom-Crioulo (1895).
Se, de um modo geral, o
Naturalismo na literatura brasileira não passou de um momento episódico no
âmbito da afirmação das idéias positivistas e cientificistas em voga no fim do século
XIX, coube-lhe o papel de iniciar a tradição regionalista, que se prolongou até
a instauração do romance moderno.
Tanto o Naturalismo quanto o
Realismo igualmente, fixou temas urbanos e regionais. No primeiro caso,
interessaram-lhe, não só os casos típicos da burguesia, decadente por falta de
bases morais em que assenta todo um sistema social, como também os problemas
das classes mais humildes e marginais, precisamente aquelas que eram exploradas
pela ganância burguesa do lucro.
Em sua vertente regional, o
Naturalismo brasileiro encontrou, nos autores cearenses preocupações com o
declínio econômico do Nordeste (secas, migrações), têm representantes
importantes como Rodolfo Teófilo (1853-1932) A Fome (1890); Manuel de Oliveira
Paiva (1861-1892), D. Guidinha do Poço (1891); Domingos Oliveira (1850-1906),
Luiza- Homem (1901).
O Naturalismo amplia as
características do Realismo, acentuando-as e acrescentando-lhe certos elementos
que tornam inconfundível sua fisionomia. Mas sempre fácil de estabelecer, é
mais de grau, de por menos ou de medida. Ambos se fundamentavam nas mesmas
bases científicas e filosóficas.
Para os Naturalistas, o
determinismo do homem é apresentado como uma máquina guiada pela ação de leis
físicas e químicas, pela hereditariedade, pelo meio físico e social. Os seres
aparecem como produtos, como conseqüências de forças preexistentes que lhe
roubam o livre-arbítrio, que limitam sua responsabilidade e os tomam, em casos
extremos, verdadeiros joguetes nas mãos do destino.
A preferência por temas de
patologia social, baseando-se nos problemas da hereditariedade, os escritores
naturalistas nem hesitaram em ressaltar o efeito das taras, das doenças e dos
vícios na formação do caráter, justando-lhes ainda os efeitos complementares da
formação familiar, da educação e do nível cultural.
Das teorias científicas em
voga, amplamente divulgadas na época, o Naturalismo torna-lhe a precisão e a
objetividade, descrevendo com impessoalidade, exatidão e minúcia. A literatura
engajada no movimento implica uma posição de combate, de decadência social,
fazendo da obra de arte uma verdadeira tese com intenção realista de reformar a
sociedade.
Portanto, o romance
naturalista é marcado por forte análise social a partir de grupos humanos
marginalizados, valorizando o coletivo. O Naturalismo apresenta romances,
experimentais: a influência de Darwin se faz sentir na máxima naturalidade
segundo a qual o homem é um animal. Antes de usar a razão, deixa-se levar pelos
instintos naturais, não podendo ser reprimido em suas manifestações instintivas
– como sexo – pela moral da classe dominante.
A constante repressão leva
às taras patológicas, tão ao gosto naturalista. Em conseqüência, esses romances
de atos sexuais e tocantes, inclusive, em temas então proibidos, como o
incesto, o homossexualismo, tanto masculino, quanto feminino.
Homossexualismo
Considerado por alguns como um desvio do
desejo, que se orienta para o mesmo sexo, tanto nas fantasias como na relação
corporal, segundo a psicanálise e a psiquiatria, o homossexualismo “comum”,
admitido e assumido pelo indivíduo, afirma-se com a idade de 11 ou 12 anos de
idade. Pode ser exclusivo, e nesse caso o homem não se interessa pela mulher
sem que, no entanto, sejam alterados os contatos amigáveis com o sexo feminino.
Distingue-se o
homossexualismo culpabilizado e compulsivo, o dos indivíduos que repudiam
conscientemente este tipo de prática sexual, do homossexualismo misto, paralelo
a uma atividade heterossexual satisfatória.
Segundo Freud, o
homossexualismo é, antes, de mais nada, uma questão ligada à escolha do objeto,
sendo que este último está relacionado à fase narcisista da evolução da
criança. Na verdade, o homossexualismo é somente um sintoma e não uma causa. A
causa reside no aspecto bissexual fundamental de todo ser. No entanto Freud
recupera o homossexualismo e dele faz uma análise, sempre, considerando-o como
um resultado.
Este é o tema que envolve a
narrativa do Bom-Crioulo, do cearense Adolfo Caminha, cuja originalidade da
obra é evidente o impacto manifestado e sustentado pelo triângulo amoroso.
Bom-Crioulo
Autores "malditos"
não são privilégio do século XX. Há exatamente cento e quatro anos morria
Adolfo Caminha, um dos principais representantes da escola naturalista, talvez
o nosso maior "maldito", que ousou tratar de um tema proibido – o
homossexualismo na marinha - dentro de uma escola literária considerada menor,
talvez daí a conspiração de silêncio que o cerca e à sua obra.
Por sua importância, pode
ser colocada, ao lado do romancista Aluísio Azevedo, nosso "band
leader" do movimento naturalista. Iniciou-se na literatura como poeta, com
Vôos Incertos (1886). Seguiram-se os romances: Lágrimas de um crente; Judite,
ambos de (1887); A Normalista (1893); No País dos Ianques (1894); Bom-Crioulo
(1895) e Tentação (1896).
É verdade que, na literatura
apresenta vários perigos, para quem quer por meio dela, atingir os
estereótipos. Segundo Roger Bastide em seus estudos afrodescendentes, diz que a
poesia lírica só nos mostra uma alma que canta as experiências individuais,
enquanto a poesia satírica exagera caricatura e, por conseguinte, ultrapassa o
estereótipo banal. Mesmo limitando-nos aos romancistas seria necessário
distinguir os estereótipos do autor dos estereótipos de seus
personagens.(1)
Pode-se lhe censurar aquela
mencionada ausência de poesia, e ao seu tempo muitos exploraram ao autor a
exploração de tema tão escabroso. Ninguém lhe poderá negar, porém a admirável
unidade instrumental, como o autor não se poderá negar a coragem com que abordou
o problema e a mestria com que soube desenvolver a trama romanesca, a que seu
grande talento emprestava cores ainda mais sombrias.
Bom-Crioulo é um romance de
tese, cujo enredo construído com minúcias, onde o narrador (narração linear,
gradativa) fornece um grande painel informativo da paisagem, muito comum ao
Realismo-Naturalismo. A intenção do romance resume-se em acompanhar as
personagens em seu movimento, como se fosse o espectador que registrasse a
evolução do drama alheio sem interferir. Nele tudo caminha numa ordem
inalterável até o epílogo, com uma super valorização do instinto sobre os
sentimentos, do animal sobre o racional.
Escrito por Adolfo Caminha,
Bom-Crioulo é uma triste e sombria história de marinheiros, onde se conta um
caso de homossexualismo (talvez o primeiro da literatura brasileira), cujo
personagem central Amaro é um escravo foragido, crioulo escolado, de bons
sentimentos, como o título sugere “Bom-Crioulo”, que mantém um conturbado
relacionamento com Aleixo, rapaz branco, meio bisonho.
A interferência de uma
personagem feminina, em terra, atraindo à atuação do moço, faz com que o
crioulo o mate sob o acicate (estímulo) do ciúme. A ação progride com força e
tensa verossimilhança neste romance até o desfecho. O que é interessante neste
romance, é que os estereótipos contra os negros não desempenham papel algum,
enquanto a paixão domina o herói do romance. A volúpia é tão forte que atira
para o inconsciente, repelindo, e como que fazendo desaparecer, os estereótipos
do início do livro.
Bom-Crioulo prefigura, em
vários sentidos, problemas do mundo moderno - como o universo gay - que os
cânones literários recusam, já que se firmaram numa sociedade regida pelo
favor, de forte componente cultural escravista. Este é um romance de paixão e
morte, maldito e insuportável para seu tempo.
É no negro Amaro, antes
submisso e inerte, agora apaixonado pelo grumete louro, o frágil Aleixo, que
cresce o animal brutalizado pelo trabalho no eito da fazenda. É a paixão
homossexual que o transforma em brioso, arrogante, brutal e o conduz ao crime,
quando se vê traído (a reação do ciúme em tomo desse sentimento se faz o jogo
amoroso). O branco Aleixo, desprotegido, se esconde atrás do crioulo
homossexual; mais seguro, pensa arrumar um amante de mais poses; inexperiente,
apaixona-se por uma mulher - e nessa traição encontra a morte.
O romance nos leva a crer,
tratar-se de uma vingança contra a instituição militar, com sua disciplina
desmoralizante, deprimente e intimidadora, nos moldes do que Raul Pompéia
(1863-1895) teria feito em O Ateneu - crônica de saudades -, subtítulo do
romance que indica tratar-se de um livro de memórias, publicado em 1888. Com
este livro Adolfo Caminha cria uma tensão moderna entre as instituições carcomidas
e a vida privada; seja a sua vida sexual - pela qual optou, abandonando a
Marinha -, seja a de seu personagem Amaro, ambos evidenciando que a sociedade
saída da escravidão estava longe de perder a feição totalitária.
Os escritores naturalistas como
Adolfo Caminha, partem sempre das bases "científicas" para analisar
uma sociedade em flagrante dissolução, da sociedade burguesa romântica do
século XIX. Essas concepções roubam do homem todo o seu livre-arbítrio, toda a
responsabilidade pelos seus atos, que ficam sendo apenas o resultado
inescapável da força e das condições físicas além de seu controle. Ou seja, o
protagonista de um romance naturalista está sempre à mercê das circunstâncias e
não de si mesmo. Ele parece, muitas vezes, não ter entidade própria, agindo
como se fosse teleguiado ou manejado.
O enfoque do Naturalismo,
responde a uma tendência de época. O narrador em relação às suas personagens
responde à exigência do romancista como um observador dos acontecimentos, mero
captador da realidade circundante. E nesse sentido, o romance Bom-Crioulo,
demonstra que Adolfo Caminha soube interpretar perfeitamente o receituário
naturalista.
Filiado ao pensamento
filosófico de Hippolyte Adolphe Taine (1828-1893), que acreditava encontrar na
raça, no meio geográfico e social e no momento da evolução histórica os fatores
capazes de explicar a produção artística, o desenvolvimento das funções mentais
e os fatos históricos; e de Emile Zola (1840-1902), que desejou ver a
literatura adotar o rigor metodológico dos trabalhos científicos, a que
considerava verdadeiro mestre.
Adolfo Caminha foi um
crítico imparcial, de grande poder de análise e percepção dos valores
estéticos, que lhe permitiu reconhecer, a despeito das limitações da época, o
talento de Cruz e Souza (1861-1898). Reuniu suas críticas literárias em Cartas
Literárias, publicadas em 1895, recentemente reeditadas pelas Edições da
Universidade Federal do Ceará na coleção Nordestina, 1999.
Para escrever Bom-Crioulo,
Caminha utiliza-se de uma linguagem bastante acessível, e o seu modo de narrar
é extremamente peculiar, usando constantemente o diálogo indireto. Tendo como
temática predominante o homossexualismo (não aprova nem condena), não foi
colocado apenas em relação a Amaro e Aleixo, estende-se também a outros
personagens, os quais são aludidos como homossexuais.
Resistindo ao tempo, apesar
do esquecimento editorial, tão menosprezado pela crítica do tempo e, passados
mais de um século de sua primeira edição (Livraria Moderna, editor Domingos de
Magalhães, Rio 1895), reeditado 3ª edição Organizações Simões 1956, em 1991
pela Editora Ática, São Paulo, (indevidamente considerada 2ª edição), em 1997,
mais uma edição pela Editora Artium, Rio de Janeiro, e recentemente em 2002 pela
Martin Claret. O romance Bom-Crioulo é na verdade um dos mais robustos frutos
da literatura brasileira e o ponto mais alto do Naturalismo no Brasil.
www.cronopios.com.br
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