A obra de Machado continua a
impressionar, 100 anos depois de sua morte, por traçar um retrato crítico da
sociedade brasileira de seu tempo e antecipar questões que parecem escritas
para o leitor de hoje.
O centenário da morte de Machado
de Assis, em 2008, foi marcado por inúmeras homenagens a esse que é considerado
o maior escritor brasileiro. Sua obra continua a impressionar o leitor de hoje
porque, como dizem os críticos, parece ficar mais atual à medida que o tempo
passa. Os textos de Machado abordam, com visão aguda e de forma elaborada,
vários aspectos da vida humana.
É fácil perceber, em seus livros,
a fina ironia e o senso de humor que não são deixados de lado nem mesmo quando
se trata de assuntos graves. Essas características, que formam parte importante
do legado do escritor, estão presentes com grande força em suas obras mais
importantes, entre as quais os romances Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom
Casmurro.
Se atualmente a ficção de Machado
é cada vez mais estudada e admirada, isso não significa que ele não tenha
obtido também grande reconhecimento em vida. Seus contemporâneos admitiram o
talento do autor, que foi dos mais respeitados na sociedade brasileira letrada
do fim do século XIX e início do XX.
Sua própria trajetória de vida
surpreende. De origem humilde, escreveu uma obra sofisticada, na qual
transparece grande conhecimento acerca da literatura clássica e de alguns dos
mais importantes escritores de sua época. Tanto em sua biografia quanto em sua
obra, Machado de Assis parece desafiar os clichês e as frases feitas.
PRIMEIROS PASSOS
Joaquim Maria Machado de Assis
nasceu no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839, filho de Francisco José
Machado de Assis, pintor de paredes carioca, descendente de escravos mulatos
alforriados, e de sua mulher, Maria Leopoldina, lavadeira portuguesa da ilha de
São Miguel.
Teve uma infância difícil no morro do Livramento, onde foi criado. Perdeu a
mãe bem cedo e depois a irmã mais nova. Quase mais nada se sabe de sua infância
e adolescência, exceto que teria sido coroinha, auxiliando o padre nas missas
rezadas na igreja da Lampadosa. Sem ter recursos para freqüentar boas escolas,
dedicou-se a estudar como pôde. Era autodidata.
Ainda não havia completado 16 anos
quando publicou o primeiro trabalho literário, na revista Marmota Fluminense.
No número de 12 de janeiro de 1855, saiu seu poema Ela. Aprendeu os idiomas
francês e inglês. Ingressou na Imprensa Nacional em 1856, como aprendiz de tipógrafo,
e lá conheceu o escritor Manuel Antônio de Almeida. O autor de Memórias de um
Sargento de Milícias se tornaria seu protetor. Depois, trabalhou como revisor e
passou a escrever para vários órgãos de imprensa.
Em 1862 começou a colaborar em O
Futuro, órgão dirigido por Faustino Xavier de Novais, irmão de sua futura
mulher. Publicou o volume Teatro, que se compõe das comédias O Protocolo e O
Caminho da Porta, em 1863, e seu primeiro livro de poesias saiu um ano depois,
com o nome de Crisálidas.
Foi nomeado ajudante do diretor de
publicação do Diário Oficial em 1867. Em agosto de 1869, o chefe e amigo
Faustino Xavier de Novais morreu. Menos de três meses depois, em 12 de novembro
de 1869, Machado de Assis se casou com a irmã dele, a portuguesa Carolina
Augusta Xavier de Novais.
PUBLICAÇÃO EM JORNAIS E
REVISTAS
Incentivado pela mulher, lançou
seu primeiro romance, Ressurreição, em 1872. Pouco depois, obteve a nomeação
como primeiro oficial da Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio
e Obras Públicas. A carreira no serviço público foi, até o fim da vida, seu
principal meio de sobrevivência. Mas manteve sempre a atividade jornalística,
como redator de notícias e também como ficcionista. Boa parte de seus romances
e contos, antes de serem publicados em forma de livro, foi editada em jornais e
em revistas literárias em que Machado era colaborador.
Em 1881 saiu o livro que daria uma
nova direção a sua carreira literária: Memórias Póstumas de Brás Cubas, que
publicara em folhetins na Revista Brasileira, de 15 de março a 15 de dezembro
de 1880, considerado o marco de início do realismo no Brasil.
Do grupo de intelectuais que se
reuniam na redação da Revista Brasileira, surgiu a idéia de criação da Academia
Brasileira de Letras (ABL), que Machado de Assis apoiou desde o início. Ao ser
fundada a instituição, em 28 de janeiro de 1897, foi eleito seu presidente.
Dedicou-se à ABL até morrer.
A obra de Machado de Assis
impressiona por abranger praticamente todos os gêneros literários. Na poesia
iniciou com o romantismo de Crisálidas (1864) e Falenas (1870), passando pelo
indianismo em Americanas (1875) e pelo parnasianismo em Ocidentais (publicado
pela primeira vez no volume Poesias Completas, em 1901).
Ao mesmo tempo, lançou as coletâneas
Contos Fluminenses (1870) e Histórias da Meia-Noite (1873), entre outras, e os
romances Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e Iaiá
Garcia (1878), que foram considerados do seu período romântico.
Suas obras-primas vieram em
seguida: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom
Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). Em 1904 morreu
a fiel companheira e incentivadora Carolina Xavier de Novais, a quem ele
dedicou um de seus melhores poemas, Carolina. Doente, solitário e abatido com a
perda da mulher, Machado de Assis morreu em 29 de setembro de 1908, de câncer,
em sua velha casa no bairro carioca do Cosme Velho.
ROMANTISMO X REALISMO?
Machado de Assis ocupa lugar único
na literatura brasileira. Em sua época, foi algumas vezes criticado porque se
dizia que não abordava as grandes questões sociais e nacionais. Posteriormente,
novos estudos fizeram uma reavaliação de sua obra, que é vista agora como
extremamente crítica e expressiva de transformações profundas na sociedade
brasileira a partir do fim do século XIX.
É a sua genialidade que levou
muitos especialistas a dizer que Machado talvez seja mais compreendido pelo
leitor de hoje, 100 anos depois de sua morte, do que por seus contemporâneos.
O lugar diferenciado deve-se
também à impossibilidade de rotular Machado, de forma estrita, em uma corrente
literária. Como foi dito, seus primeiros romances são em geral identificados
com o romantismo. No entanto, essa classificação é problemática, porque passa
uma visão estreita a respeito de uma obra bastante complexa.
Lidos com atenção, há em seus
romances iniciais várias indicações de que se trata de um escritor com grande
consciência de um projeto literário mais amplo, que, já naquele momento,
ultrapassava o horizonte dos autores do romantismo. As histórias ditas
românticas esboçam várias das questões que Machado viria a desenvolver nas
obras chamadas de realistas. É o caso dos temas da ascensão social, do ciúme e
do papel subalterno que a sociedade patriarcal reservava à mulher.
Félix, personagem principal de
Ressurreição, primeiro romance do escritor, contém várias das características
do homem conservador e inseguro que se verá, de forma mais acabada, em Bento
Santiago, protagonista de Dom Casmurro. Ambos são figuras que expressam grande
temor diante de situações novas às quais estão confrontados, como a emergência
de mulheres independentes, que têm opinião própria e abalam seu velho mundo.
No próprio prefácio de Ressurreição,
Machado estabelece distância da narrativa romântica convencional ao escrever:
“Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação e o
contraste de dois caracteres; com esses simples elementos busquei o interesse
do livro”.
De maneira sutil, mas firme, o
escritor chama atenção aqui para o fato de que seu objetivo é aprofundar as
características dos personagens e das situações por que passam, e não
simplesmente entreter o leitor. De todo modo, as metas ambiciosas de Machado
não o levaram a se distanciar do público, que recebeu bem a obra desde o
lançamento. A crítica da época também fez elogios ao romance.
AMPLITUDE DE QUESTÕES
Os livros de sua fase madura, a
partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, antecipam procedimentos e temas que
só viriam a se desenvolver plenamente no modernismo. Neles, revela-se um autor
com pleno domínio de elementos narrativos, como o monólogo interior, além do
desenvolvimento de temáticas, como a situação do agregado e dos tipos que
compõem a classe dominante brasileira.
Um dos pontos altos de sua obra,
destacado por leitores comuns e críticos, é a análise que faz da alma humana.
Pode-se dizer que o Rio de Janeiro de Machado era diferente do de hoje, mas
aspectos da natureza do homem não mudaram: ele continua a ser egoísta, vaidoso,
indeciso e repleto de complexos. Por isso tudo, a classificação de Machado de
Assis como escritor realista tem uma função didática, porque o situa no período
histórico em que viveu e escreveu, mas não dá conta da amplitude de questões
abordadas em seus livros. Esse é, aliás, um bom exemplo de como não basta saber
a que escola literária determinado autor está vinculado para conhecer de fato
sua obra. Cada escritor tem sua especificidade e nada substitui a leitura
direta de seus textos. Isso é ainda mais válido no caso de um grande autor.
Machado de Assis é considerado um
dos grandes autores da literatura de língua portuguesa. Sua obra, que serve de
inspiração para muitos outros artistas, foi e continua sendo adaptada em trabalhos
para a TV, o teatro e o cinema.
19/12/2008 . Machado de
Assis, um autor à frente de seu tempo -guiadoestudante.abril.com.br
O NARRADOR DE MACHADO DE
ASSIS E A DESCONSTRUÇÃO DO ROMANCE ROMÂNTICO
EM A MÃO E A LUVA
Alex Alves Fogal
RESUMO
Os romances iniciais de Machado de
Assis têm sido considerados por parte significativa da crítica como dotados de
uma poética romântica, os quais se distinguem dos romances maduros, compostos a
partir de uma poética realista. De acordo com essa visão, nesses últimos se
encontraria maior refinamento na composição de eventos e personagens e, ao
mesmo tempo, maior capacidade de reflexão sobre o método de composição. O
intuito é apresentar uma interpretação dos romances dessa fase inicial a partir
da análise do modo pelo qual o narrador do romance A mão e a luva (1874) o
estrutura como forma, ou seja, busca-se demonstrar uma tensão: se por um lado
se vê traços românticos na trama, no comportamento de alguns personagens e em
certas referências literárias, por outro se nota que são inseridas reflexões
que desarticulam tais características. A partir disso é possível observar um
movimento ambíguo promovido pelo narrador: ele dá forma a um enredo tipicamente
romântico, mas, ao mesmo tempo, desarticula essa forma por dentro, promovendo,
assim, a desconstrução do dispositivo romântico. Isso ocorre
porque a forma do romance acolhe dois princípios (a rigor) distintos, a
narração e a reflexão, e ambos são ativados pelo mesmo elemento: o narrador.
Pretendo construir uma linha de interpretação que destaca os aspectos
anti-românticos de um romance que foi canonizado como representativo daquela
escola. Acredito ser possível visualizar nos romances iniciais a “coluna
vertebral” dos romances finais do autor, mostrando que já se encontra neles um
olhar que rejeita o“olhar virginal” sobre a linguagem e o mundo.
Palavras Chave: Forma do romance, Machado de Assis,
romances iniciais, Romantismo,Realismo.
INTRODUÇÃO
Grande parte da crítica literária
brasileira que analisou a obra machadiana considera seus livros iniciais como
obras calcadas pela estética dos romances românticos. Tal afirmativa sempre se
fundamenta apenas na análise do enredo e no estilo de inguagem de tais
produções literárias.
A partir disso, se estabelece
tradicionalmente uma divisão de sua obra em duas fases, sendo que esta primeira
seria a chamada “fase romântica” do autor e a segunda é comumente conceituada
como “fase realista” ou “fase madura”. De acordo com essa visão, nesses últimos
se encontraria maior refinamento na composição dos elementos que estruturam a
obra, como os eventos e os personagens e, ao mesmo tempo, maior capacidade de
reflexão sobre o método de composição. Partindo desse ponto de vista, os
romances da dita “fase madura” seriam estruturados por uma forma crítica e
reflexiva, fundamentada pelos movimentos exegéticos do narrador, enquanto os
primeiros seriam produções literárias construídas a partir de uma estética
“água com açúcar”, semelhante ao que pode ser observado nos romances puramente
folhetinescos.
O intuito do presente trabalho é
apresentar uma interpretação crítica dessa chamada fase inicial, a partir da
análise do modo pelo qual o narrador do romance A mão e a luva (1874) o
estruturacomo forma, ou seja, analisar algumas estratégias e elementos formais
que dão fundamento ao movimento narrativo observado no texto. Tal trabalho
analítico será importante para que se alcance o objetivo central do trabalho,
que é demonstrar como é possível observar nessa obra uma tensão interior: se
por um lado são observáveis traços românticos na trama, no tema, no
comportamento de alguns personagens e em certas referências literárias, por
outro se nota que é inserida uma série de reflexões que desarticulam tais
características. Assim sendo, acredito que seja possível demonstrar um
movimento ambíguo promovido pelo narrador: ele dá forma a um enredo tipicamente
romântico, mas, ao mesmo tempo, desarticula essa forma por dentro, promovendo,
assim, a desconstrução do dispositivo romântico. Isso ocorre porque a forma do
romance acolhe dois princípios (a rigor) distintos, a narração e a reflexão, e
ambos são ativados pelo mesmo elemento: o narrador. Dessa maneira, pretendo construir
uma linha de interpretação diversa no caso em questão, destacando os aspectos
anti-românticos de um romance que foi canonizado pela crítica como obra
representativa daquela escola, uma vez que a análise cuidadosa do texto e o
amparo de alguns teóricos selecionados para o desenvolvimento do trabalho
proporcionam a fundamentação dessa perspectiva.
Para o alcance de tal objetivo
será necessário o desenvolvimento de uma outra questão, diretamente ligada ao
ponto central do trabalho, que é a possibilidade de constatar nesses romances
da chamada fase inicial de Machado de Assis, o “gérmen da forma” que, conforme
muitos acreditam, só aparecerá na sua produção literária posterior. Tal ponto é
importante para a discussão do tema, já que dessa maneira se solidifica a busca
por uma perspectiva que privilegia a continuidade e não a ruptura no que tange
a obra machadiana. É evidente que os romances posteriores do autor apresentam
também consideráveis distinções no que diz respeito à forma literária utilizada
no método de composição, porém, como já foi dito, o foco é a identificação de
uma “coluna vertebral” na produção romanesca de Machado a partir da análise de
elementos que possam ser agrupados dentro do que pode ser chamado de uma comum
ao narrador machadiano. Parte-se do pressuposto segundo o qual é possível
identificar no início de sua criação, um olhar contundente que rejeita o “olhar
virginal” e os “óculos cor - de- rosa” do mundo e da linguagem.
1. A TEORIA DO ROMANCE
MACHADIANA
Nessa parte do trabalho será
enfatizado o estudo de uma possível “coluna vertebral” na obra de Machado de
Assis, já que a abordagem de tal ponto é um elemento importante para a
estruturação do trabalho. Isso pode ser justificado pelo fato de que se
entendermos que há mais semelhanças do que diferenças em A Mão e a Luva em
relação ao todo da obra machadiana, a tradicional concepção de duas fases (uma
romântica e outra realista) na produção romanesca do autor pode ser
questionada.
Para início de questão é
necessário atentar para algo muito comum nos romances de Machado de Assis, que
são seus prefácios ou advertências.
Muitas vezes eles servem não apenas para
saciar questões relacionadas à edição do livro, mas sim funcionam como
verdadeiras chaves de compreensão para que se apreenda melhor o método de
composição que estrutura a obra. Tais prefácios demonstram a tendência do autor
em exibir uma configuração formal própria, uma vez que seus textos aparentam
propor uma teoria do romance proveniente de sua própria gênese.
O caso de A Mão e a Luva não é
diferente em relação à totalidade da obra machadiana. Caso sejam observadas as
duas advertências ao leitor que constam na obra, a de 1874 e ade 1907,
notaremos que tal prática sempre foi uma constante nas produções literárias do escritor,
e mais importante, será possível observar também como há um projeto estético na
chamada fase inicial de Machado que se mostra em consonância com o que pode ser
observado na sua produção romanesca posterior.
Na advertência de 1874, o autor
inicia seu texto fazendo algumas considerações sobre o romance e as condições
do momento de sua escrita, uma vez que justifica a forma da obra a partir do
fato desta estar sujeita às urgências da publicação diária, ou seja, foi
publicada inicialmente a partir do já conhecido modelo folhetinesco. Machado
afirma na advertência que a narração e o estilo da obra padeceram com o método
de composição empregado, fora de seus hábitos. Diz ainda que se a tivesse
escrito em outras condições, daria a esta um desenvolvimento maior, e algum
colorido mais aos caracteres que são esboçados (ASSIS, 1997). Porém, logo a
frente o autor se torna mais incisivo e faz apontamentos diretamente ligados à
estética do romance:
Convém dizer que o desenho de
tais caracteres – o de Guiomar,
sobretudo, - foi o meu objeto principal, se não exclusivo, servindo-me a ação
apenas de tela em que lancei os contornos dos perfis. Incompletos embora, terão
eles saídos naturais e verdadeiros? (ASSIS, 1997).
Nessas colocações do autor é
possível notar duas características que podem ser observadas na estrutura
narrativa de seus romances posteriores. Uma delas é a tendência de colocar as
ações em segundo plano na construção do romance e privilegiar o caráter dos
personagens ou sua psicologia. Nesse caso, é possível remeter ao projeto de
literatura do autor exibido em seu texto Instinto de Nacionalidade (1997) no
qual Machado defende a idéia de que um autor que pretende atingir uma forma
literária afim do espírito nacional, deve deixar de se preocupar com questões
meramente pictóricas para escrever como homem de sua terra e de seu tempo.
Aqui, já se observa também uma idéia de forma estética bastante diversa daquela
observável nos romances românticos.
Outro ponto em comum é o modo de
se construir os personagens, com seus perfis incompletos, contraditórios e
complexos, o que os diferencia do simples personagem títere ou autômato. Além
disso, tal particularidade pode ser enxergada como mais um elemento de
divergência em relação ao que se entende como padrão romântico na literatura
brasileira, uma vez que tal tipo de
criação literária focaliza o enredo e seus desenlaces ao invés de dar ênfase à
constituição psicológica dos personagens.
Na advertência de 1907 essa
idéia de continuidade aparece de modo ainda mais claro, já que pode ser
constatada não apenas pelas considerações que o autor realiza sobre a
construção do romance, mas sim, de modo mais direto, quando Machado de Assis
afirma que:
Os trinta e tantos anos
decorridos do aparecimento desta novela à reimpressão que ora se faz parece que
explicam as diferenças de composição e de maneira do autor. Se este não lhe
daria agora a mesma feição, é certo que lha deu outrora, e, ao cabo, tudo pode
servir a definir a mesma pessoa. (ASSIS, 1997)
Nessas palavras do escritor é
possível notar como há certa continuidade (apesar de Machado ter deixado claro,
e isso já foi dito aqui, que também existem muitas diferenças) no projeto
romanesco do autor, o que mais uma vez, torna inadequada a separação de sua
obra em duas fases. Contudo, tais semelhanças na narrativa do romancista podem
ser vistas não apenas nas advertências que fazem parte do romance, pois são
também identificáveis nas técnicas narrativas utilizadas no decorrer do
romance.
Tal questão pode ser melhor
fundamentada com base em Ronaldes de Melo
e Souza (2006), que nos mostra como é possível dizer que a composição
dramática peculiar aos romances machadianos é um elemento que pode ser visto
não apenas no modo de compor o personagem, mas também no método narrativo das
obras. Para o crítico: A tese da
originalidade do romance machadiano se demonstra na elucidação hermenêutica da estrutura
conjuntiva e coesa da forma dramática e da mundividencia tragicômica. A
concepção do romance como drama de caracteres não se comprova apenas na
encenação do conflito do personagem consigo mesmo e com os outros, mas também
no comportamento dramático do narrador. O ponto de vista fixo do narrador
tradicional desaparece do universo ficcional de Machado de Assis. (SOUZA, 2006,
p.9).
A partir de tais considerações
pode-se dizer que a concepção monádica do sujeito metafísico é rompida, já que
esse não vai além da personalidade objetivada em determinado discurso. O
narrador machadiano apresenta um complexo multiperspectivismo que nos dá a
impressão de que este se reveste de várias máscaras, demonstrando uma grande
variabilidade de modos de abordar o objeto. Assim sendo, podem ser vistas em Machado três maneiras desse narrador se
metamorfosear para alcançar um método narrativo que não se utiliza de um ponto
de vista fixo e limitado, o que distingue a estética de seus romances em
relação ao que se observava na literatura
do período: a maneira diegética, a mimética e a exegética.
No caso da função diegética,
pode-se dizer com base na definição platônica, que ocorre quando o narrador
apenas se preocupa com o andamento direto do narrativo, ou seja, com seu
desenvolvimento. Quando tal função é o que fundamenta a narrativa, o narrador
não realiza movimentos de reflexão ou imitação, mas sim apenas exibe um tipo de
narrativa simples, não se metamorfoseia,
não se torna outro. No caso da postura mimética, é possível dizer que esta
ocorre quando o narrador realiza o movimento de outrar-se, aproximando seu estilo
o máximo possível ao da pessoa que fala, ou seja, baseia seu desempenho
narrativo em duas funções: a representação e a expressão. Tal concepção de
mimese é distinta daquela tradicionalmente concebida, para a qual o termo mais
próximo seria imitatio. Já a função exegética pode ser identificada ao momento
no qual o narrador realiza reflexões acerca da narrativa simultaneamente ao ato
de narrar, estabelecendo um tipo de auto-reflexão.
Todos esses três tipos de
comportamento narrativo podem ser observados no romance A Mão e a Luva, o que
também se estende aos demais romances do autor. O primeiro deles pode ser
notado logo no início da obra, numa cena na qual a “diegese pura” do narrador é
lançada para demonstrar o contraste entre os caracteres dos personagens Estevão
e Luís Alves. Ao invés desse narrador dramatizar as falas dos dois amigos num
tipo de mimese ou se utilizar de um movimento de reflexão sobre a composição
para estabelecer a contraposição entre os dois, pode ser constatada a opção pela
narrativa simples:
“O chá subiu daí a pouco. Estevão, a muito
rogo do hóspede, bebeu dousgoles; acendeu um cigarro e entrou a passear ao
longo do aposento, enquanto Luís Alves, preferindo um charuto e um sofá,
acendeu o primeiro e estirou-se no segundo, cruzando beatificamente as mãos sobre
ventre e contemplando o bico das chinelas, com aquela placidez de um homem a quem não se gorou nenhum namoro.
(ASSIS, 1997, p.2)
Nesse trecho pode ser observado
o modo pelo qual o narrador, sem mimetizar ou desnudar a estrutura da narrativa
revela a distinção dos perfis dos dois personagens, vide a postura inquieta e
pueril de um e a tranqüilidade e frieza de outro. Nessa cena, o primeiro,
romântico inveterado, passa por um momento de agonia por não ter seu amor correspondido
pela personagem Guiomar, enquanto o segundo faz pouca conta do comportamento
destemperado do primeiro. Nesse caso o narrador toma as rédeas da narração e
decide focalizar o andamento do que conta.
Já no caso da função mimética do
narrador, pode-se notar na obra uma passagem na qual o narrador lança mão de tal técnica de maneira bem
interessante, quando se utiliza da perspectiva e da fala de uma personagem para
elucidar o caráter de outra, como ocorre no seguinte trecho envolvendo a
governanta Mrs, Oswald e Guiomar:
- Enfim, concluiu a
inglesa, custa-me a crer que ela ame a alguém neste mundo. Por enquanto estou
que não gosta de ninguém, e a nossa vantagem não é outra senão essa. Sua
afilhada tem uma alma singular; passa facilmente do entusiasmo à frieza, e da
confiança ao retraimento. Há de vir a amar, mas não creio que tenha grandes
paixões, ao menos duradouras. (ASSIS, 1997, p.22.)
Nota-se nessa cena que envolve
as duas personagens, uma técnica narrativa parecida com aquilo que Erich
Auerbach chama de “dupla reflexão” na qual, segundo o crítico, a modelagem do
ato de narrar se passa totalmente na subjetividade da personagem (AUERBACH,
2009, p.23-25). No caso de A mão e a
Luva, isso ocorre quando Mrs. Oswald nos apresenta uma visão sobre a
personalidade de Guiomar que não pode ser constituída como realidade objetiva:
é como se a primeira lançasse um holofote sobre o caráter da segunda, assumindo
uma função parecida com a do narrador, que, ao invés de colocar seu discurso
diretamente no texto, opta por mimetizar a fala e o estilo de um personagem que
analisa a situação a partir da perspectiva que esse ocupa na economia do texto.
Observa-se que o narrador assume a
visão de um “outro”.
Distinta das duas anteriores, a
função exegética do narrador, pode ser reconhecida como o traço mais peculiar à
obra de Machado, o que, logicamente, está presente em A Mão e a Luva. Em
determinadas passagens do romance, o narrador realiza algumas reflexões sobre
seu método de composição, chamando inclusive, a atenção do leitor para que se
junte a ele no pensamento crítico em relação ao texto que compõe. No trecho
abaixo, o narrador pede para que o leitor fique atento ao comportamento de Estevão
e seus hábitos emoldurados pelos clichês românticos:
Um
leitor perspicaz, como eu suponho que há de ser o leitor desse livro, dispensa
que eu lhe conte os muitos planos que ele teceu, diversos e contraditórios,
como é de razão em análogas situações. Apenas direi por alto que ele pensou
três vezes em morrer, duas vezes em fugir à cidade, quatro em ir afogar a sua
dor mortal naquele ainda mais mortal pântano de corrupção em que apodrece e
morre tantas vezes a flor da mocidade. (ASSIS, 1997, p.60.)
A partir de um movimento de
auto-reflexão o narrador expõe a estrutura da obra para ironizar a postura do
bacharel, que é moldada por esses tipos de arroubos. Nota-se que o narrador
busca ressaltar firmemente o tom de senso comum do comportamento de Estevão ao
dizer que um leitor dotado de sagacidade “dispensa” que lhe seja dito o que se
passou na cabeça do personagem.
Esse tipo de narrador que
privilegia a reflexão sobre a estrutura que compõe a narrativa, será de grande
relevância para que seja dada a ênfase no desenho de caracteres, que é algo
proposto pelo autor na advertência do romance. Para que se constate isso, basta
observar o seguinte trecho da narrativa:
Sentou-se o bacharel em um banco que ali
achou, recebeu a xícara de café, que o escravo lhe trouxe daí a pouco, acendeu
um charuto e abriu o livro. O livro era uma
Prática Forense. Demos-lhe razão ao despeito com que o fechou e atirou
ao chão, contentando-se com o canto dos pássaros e o cheiro das flores, e a sua
imaginação também, que valia as flores e os pássaros. (ASSIS, 1997, p. 12.)
Aqui a função exegética nos
auxilia a enxergar a importância que o narrador relega a um esboço dos
caracteres de seus personagens que exiba consistência dentro do contexto
ficcional. Como já se sabe, Estevão aparece como um rapaz romântico e dado a frivolidades
desde o início do romance o que será uma constante durante toda a trama.
Portanto, nada mais lógico que
um personagem como esse se sentisse enfastiado ao folhear um livro acadêmico ao
invés de ouvir o canto dos pássaros ou observar as flores que o rodeiam. Nesse
ponto, o narrador dá razão ao rapaz pelo seu comportamento e quase chega a
agradecê-lo por se portar dessa maneira, o que facilita o alcance de sua proposta
na estética do romance.
Além disso, tal passagem realiza
uma crítica muito clara ao paradigma romântico observável na literatura
brasileira no que tange a esse apelo pelo pictórico, pela descrição da natureza
como fator fundamental para a formação de uma literatura nacional. Desse ponto
de vista, é possível enxergar aqui dois pontos importantes para o
desenvolvimento e fundamentação deste trabalho. Um deles é a visualização desse
projeto estético do romance que perpassa a obra de Machado de Assis, já que se
remetermos novamente a seus textos críticos, veremos que o escritor sempre teve
como base a premissa de que não é se servindo unicamente da natureza americana
e do manancial que a paisagem da terra oferece, que se fará literatura
brasileira, ou seja, não basta uma descrição objetiva do Brasil e seus aspectos
físicos, mas sim escrever como homem de seu tempo e de seu
país (ASSIS, 1997, p.801- 805). O outro ponto é a desconstrução do
dispositivo romântico no interior da narrativa, o que, de início, já nos leva
para uma via diferente da crítica que classifica A Mão e a Luva como romance
romântico.
2- A FORMA MINADA POR
DENTRO
Torna-se importante agora,
entender de que modo esse elemento romântico que de algum modo confundiu uma
parte da crítica aparece em A Mão e a Luva, uma vez que sua presença é inegável
no romance, mas é importante saber que lhe é dado um tratamento peculiar e nada
ingênuo.
Logo no início da obra podem ser
observados dois exemplos importantes para visualizar isso mais claramente. Os
dois exemplos, como não poderia deixar de ser, estão relacionados ao então
estudante de direito Estevão, que como se sabe, incorpora em seu comportamento
os principais traços do romantismo piegas. No primeiro trecho, Estevão acaba de
ter mais uma desilusão amorosa com Guiomar e estava a pedir os conselhos do racional
e frio Luís Alves, seu amigo e companheiro de faculdade. Após muitas lamentações
e pedidos de morte, o narrador ironicamente aborda os momentos de “convalescença
psicológica” de Estevão:
A
natureza tem suas leis imperiosas; e o homem, ser complexo, vive não só do que
ama, mas também (força é dizê-lo) do que come. Sirva isto de escusa ao nosso
estudante, que almoçou nesse dia, como nos anteriores, bastando dizer em seu
abono, que, se o não fez com lágrimas, também o não fez alegre. (ASSIS, 1997,
p.6)
Após observar tal ponto da
narrativa fica claro como o narrador enxerga esse sentimentalismo forçado da
postura do personagem, pois segundo se observa no texto, tal atitude não
reflete aquilo que se entende como essência do ser humano, que mesmo depois da
maior desilusão, é capaz de almoçar tranquilamente no dia seguinte. Além disso,
nota-se claramente a teoria de construção do personagem recorrente em Machado,
que consiste em representar os indivíduos como um plexo de pulsões.
Em outro trecho, o narrador
realiza um movimento narrativo parecido, no entanto, o que se observa é uma
reflexão sobre o método de composição da obra , que conforme se notará, foge
aos padrões dos romances românticos:
Duas vezes viu ele a formosa Guiomar,
antes de seguir para São Paulo. Da primeira sentiu-se ainda abalado, porque a
ferida não cicatrizara de todo; da segunda, pôde encará-la sem perturbação. Era
melhor, - mais romântico pelo menos, que
eu o pusesse a caminho da academia, com o desespero no coração, lavado em
lágrimas, ou a bebê-las em silêncio, como lhe pedia a sua dignidade de homem.
Mas o que lhe hei de eu fazer? Ele foi daqui com os olhos enxutos,
distraindo-se dos tédios da viagem com alguma pilhéria de rapaz, - rapaz outra vez, como dantes. (ASSIS, 1997,
p.7)
Aqui fica bem claro que o
narrador se interessa por narrar as coisas como elas aparentam ser e não como
poderiam ser vistas como mais românticas ou mais belas, realizando um tipo de
ironia formal. Notamos que a construção da narrativa não pretende instaurar uma
iluminação cor-de-rosa sobre o que se narra, uma vez que é nítida uma contraposição
entre a visão de mundo do narrador e do personagem Estevão. Um exemplo que
ilustra bem essa distinção de perspectiva é quando o narrador constrói a imagem
de Guiomar vista pelos olhos do personagem, para logo depois, abster-se da descrição:
Ele via-a ao pé de si, cingia-lhe o braço
em volta da cintura, enchia-lhe de beijos os cabelos, tudo isto em meio de uma
paisagem única na Terra, porque a abundância da natureza cresceria ao contato
daquele sentimento puro, casto e eterno. Não falo eu leitor, transcrevo apenas
e fielmente as imaginações do namorado; fixo nesta folha de papel os vôos que ele abria por esse
espaço fora, única ventura que lhes era permitida. (ASSIS, 1997, p.88.)
É possível dizer que a linguagem
utilizada em vários trechos da obra possui certo tom romântico, no entanto,
isso é feito pelo narrador de forma irônica, ou seja, o narrador não acredita
no próprio estilo que emprega, já que faz isso apenas por questões de estrutura
formal. Por exemplo, quando pesa a mão na pieguice ao narrar passagens que
envolvem o jovem estudante apaixonado:
“Estevão, apanhado em flagrante delito de admiração, não da flor, mas da
mão que a sustinha,- uma deliciosa mão, que devia ser por força a que se perdeu
da Vênus de Milo”. (ASSIS, 1997, p.17.)
Nessas duas passagens, observa-se que o narrador pretende
apenas manter a consistência da psicologia e do discurso de seus personagens.
Contudo, o que é mais
importante analisar a partir de exemplos como esses é de que modo o narrador importa elementos do figurino
romântico para que a forma seja minada a partir de seu interior, ou seja, como tais elementos são incorporados na narrativa
para que esses possam ser desconstruídos de maneira mais consistente e sutil (GUIMARÃES,
2004, p. 131).Conforme podemos ver no estudo de Hélio de Seixas Guimarães
(2004), “diante desse novo universo, a postura do narrador aparece bastante alterada.
Ele não se coloca mais em constante oposição ao seu interlocutor, mas passa a narrativa
buscando sua cumplicidade e tentando entabular acordos.” (GUIMARÃES, 2004, p.139.)
Com base nisso, se pode dizer que, na verdade, A Mão e a Luva estaria mais para
uma construção romanesca anti-romântica, pois os elementos provenientes de tal
forma
literária apenas aparecem para serem distorcidos ironicamente, tanto num
tipo de ironia verbal quanto formal.
Segundo o crítico, o narrador
entretece o leitor com afagos e elogios para aumentar sua confiabilidade e
afrouxar a capacidade crítica do leitor. Mas qual razão teria nisso? Para Hélio
de Seixas “no empenho de aproximar-se e estabelecer cumplicidade com o leitor,
o narrador a todo momento o induz a identificar-se com as personagens, positiva
e negativamente.” (GUIMARÃES, 2004, p.142.) Nota-se que a tendência dos leitores
menos atentos é se identificar com Estevão, o que segundo o crítico, seria um modo
de corrigir esse leitor romântico, corrigindo-o pelo riso, pelo constante
deboche que o narrador trata o personagem. Segundo essa idéia, o narrador
estaria realizando uma aproximação do leitor com os temas românticos para
atingi-los (tanto os temas quanto os leitores afeitos a esses tipos de
leituras) de modo mais efetivo, para rir melhor desse interlocutor ingênuo. Na
seguinte passagem pode-se notar isso de modo mais concreto:
Na noite do casamento, quem olhasse para
o lado do mar, veria pouco distante dos grupos de curiosos, atraídos pela festa
de uma casa grande e rica, um vulto de homem sentado sobre uma lájea que acaso
topara ali. Quem está afeito a ler romances, e leu esta narrativa desde o
começo, supõe logo que esse homem podia ser Estevão. Era ele. (ASSIS, 1997, p.105.)
Nesse trecho, temos a noite do casamento de Luís Alves, o antigo
companheiro de
Estevão e Guiomar, objeto das
paixões do romântico bacharel. Nota-se que o narrador, ao já esperar que o
leitor saiba que o vulto que se encontra desolado na cena é Estevão, faz inferênciasao
tipo de romances que esse seu interlocutor tem o hábito de ler. Dessa maneira,
o narrador do romance, ao invés de exibir uma postura franca e aberta em relação
a esse leitor de romances românticos, opta por realizar isso a partir do
interior, da forma da obra. No caso de A Mão e a Luva, o narrador empresta ao
leitor os óculos cor-derosa de Estevão para apontar as distorções do
romantismo, que aparece como sinônimo de afetação e frivolidade (GUIMARÃES, 2004, p.144). Desse
ponto de vista, é possível dizer que em seu segundo romance, Machado de Assis
adota uma forma um pouco diferente daquela que se observa em seu primeiro
romance, já que não busca mais interferir com tanta força e desenvoltura no
texto, deixando que o leitor de algum modo se sinta mais à vontade para vestir
a carapuça que o narrador arma.
CONCLUSÃO
A partir desses rápidos
apontamentos sobre o narrador de A Mão e
a Luva e a análise do modo pelo qual o
dispositivo romântico é configurado na forma do romance, é possível dizer que o
romance apresenta um método de composição que apresenta mais pontos em comuns
do que diferenças em relação ao projeto estético romanesco de Machado. Além
disso, é pertinente dizer também que o elemento romântico ou os temas do
romantismo aparecem na obra apenas para que sejam deformados dentro do plano ficcional.
Esses dois pontos aos quais foi
possível chegar demonstram que a divisão da obra do autor em uma fase romântica
e uma fase realista ou madura é um modo não muito eficiente para entender
a produção romanesca de Machado de
Assis, uma vez que o gérmen da forma que será desenvolvida ao longo de sua
criação (e que evidentemente escapa dos moldes dos romances românticos) já está
em seus primeiros romances. Além disso, foi possível notar que o dispositivo
romântico é utilizado nesses chamados romances iniciais apenas como ferramenta
para desconfigurar uma estética romanesca reconhecida como anacrônica na
literatura e na sociedade brasileira.
O NARRADOR DE MACHADO
DE ASSIS E A DESCONSTRUÇÃO ... - www.letras.ufmg.br
ENTRE A GRAVIDADE E O
RISO: ROMANTISMO E IRONIA NA CRÍTICA LITERÁRIA DE MACHADO DE ASSIS
Edilson dos Santos*
Resumo
O Romantismo
ocupa um lugar
importante na crítica
literária de Machado
de Assis. Esse Romantismo é tratado sob um duplo
enfoque: ora com seriedade, ora com ironia. Neste artigo, faremos um breve
estudo da crítica literária de Machado de Assis e da presença do Romantismo
no interior
dessa crítica. Tomamos por base excertos dos romances Memórias Póstumas de Brás
Cubas e Dom
Casmurro, excertos do poema “Pálida Elvira” e excertos do conto “A mulher
pálida”.
Baseamo-nos nas teorias de Bakhtin e Lélia Parreira Duarte sobre a ironia.
Orientam-nos
os
seguintes objetivos: elencar e analisar razões para as críticas de Machado ao
Romantismo,
apontar e
discutir as razões que levam Machado a mover a sua crítica para o plano da
ficção.
Palavras-chave: Machado de Assis,
Crítica, Romantismo, Poesia Romântica, Ironia.
1 INTRODUÇÃO
Na obra de Machado de Assis, a presença de
uma crítica literária individualizada e de uma crítica
literária
indireta, exercida por meio da ironia, de algum modo nos permite afirmar que a
crítica
literária
machadiana se apresenta sob dupla face. Tal fenômeno, por um lado, coloca em
xeque a
afirmação
de Mário de Alencar (apud Assis, 1959, p. 9), para quem Machado abandonou a
crítica
literária,
e, por outro, corrobora a afirmação de Tristão de Ataíde (apud Assis, 1962, p.
784), segundo o qual Machado conduziu a crítica para o plano do romance. Nos
dois momentos dessa crítica, o Romantismo se fez presente. Isso está bem
exemplificado no conto “A mulher pálida”, no poema “Pálida Elvira”, nos
romances Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas e nas várias análises
que Machado de Assis fez de livros de poetas românticos. Tais
críticas ao Romantismo, conquanto não
sejam recorrentes, são significativas para o
entendimento da obra crítica de Machado de Assis: primeiro, porque leva o
pesquisador a analisar a leitura que Machado fazia do Romantismo e como essa leitura
serviu para orientar o seu processo de criação; segundo, porque conduz o leitor
a uma leitura do contexto social em que se move essa crítica. Neste estudo,
fazemos uma leitura da crítica literária de Machado de Assis centrada no Romantismo.
Partindo de uma divisão dessa crítica literária em dois momentos – a crítica
séria e a oblíqua –, intentamos mostrar algumas das artimanhas de Machado de
Assis para levar adiante seu trabalho de crítico literário. Assim, procuramos
discorrer sobre três questões: a) as razões das
críticas
de Machado ao Romantismo; b) as razões que teriam levado o escritor a conduzir
para o
plano
da ficção as críticas ao Romantismo; e c) a condução da crítica indireta
(irônica) nos
excertos
das obras em questão.
2 CRÍTICA MACHADIANA E AS RAZÕES
O Machado de Assis crítico de poeta
romântico pode ser visto em dois momentos de sua obra.
No
primeiro momento, ele analisa os versos de poetas como Álvares de Azevedo,
Fagundes Varela,
Junqueira
Freire e Castro Alves. Aí, estão estudos como “O ideal do crítico” (1865), “A
nova geração” (1879) e “Notícia da atual literatura brasileira – instinto de
nacionalidade” (1873), nos quais pode ser vista uma preocupação constante de
Machado de Assis: a construção de uma identidade literária. No que aqui entendemos
como segundo momento dessa crítica, o poeta romântico ainda merece a atenção de
Machado de Assis. No entanto, o crítico aí passa também a valorizar
o leitor. É o que se verifica nos romances Dom Casmurro e Memórias Póstumas de
Brás Cubas,
no conto “A mulher pálida” e no poema “Pálida Elvira”.
Do primeiro momento da crítica machadiana
para o segundo, percebemos uma mudança na postura
do crítico: se no começo ele exercia uma crítica, em que era visível a
seriedade com que se
dirige ao Romantismo, num segundo
momento o temos, ainda, atento aos
problemas do Romantismo, mas valendo-se
do recurso da ironia para enfocá-los. Tristão de Ataíde (1962), em seu artigo
“Machado de Assis, o crítico”, que integra o volume 3 da Obra Completa de
Machado de Assis, organizada por Afrânio Coutinho, afirma que Machado de Assis,
depois de um longo exercício da
crítica literária, exercida de modo individualizado, transferiu-a para o
romance. A leitura atenta da
crítica literária machadiana comprova isso, mas revela, por outro lado, uma
questão instigante: a presença
do Romantismo nos dois momentos dessa crítica. Diante disso, um primeiro
problema se impõe:
apontar razões para as críticas de Machado ao Romantismo.
Um modo de se iniciar essa escalada pelas
razões das críticas de Machado ao Romantismo é lembrando
que, durante o Romantismo e posteriormente, esteve em voga no Brasil, no campo Literário,
o projeto de criação de uma identidade nacional, que ganhou força, sobretudo
com a independência
do Brasil. Duas perguntas orientavam, de certo modo, as discussões literárias
da época:
o que é ser nacional? Como ser nacional?
Nesse contexto, ganham força as discussões em torno
da imitação e da originalidade, já que se discute a formação de uma literatura
que pudesse ser,
de fato, brasileira. Uma primeira constatação de alguns intelectuais é que o
brasileiro é um imitador
do estrangeiro. Ferdinand Denis (1978) já o notara. E também Machado de Assis e
Silvio Romero;
Romero que, em nome da valorização da cor local, questionará o estatuto de
escritor de Machado
de Assis, acusando-o de imitador da literatura inglesa. Parte dessa crítica
pode ser lida no trecho:...
uma pequena elite intelectual separou-se notavelmente do grosso da população,
e, ao passo
que esta permanece quase inteiramente inculta, aquela, sendo em especial dotada
da faculdade
de aprender e imitar, atirou-se a copiar na política e nas letras quanta coisa
foi encontrada
no Velho Mundo, e chegamos hoje ao ponto de termos uma literatura e uma política
exóticas, que vivem e procriam em uma estufa, sem relações com o ambiente e a
temperatura
exterior” (Romero, 1897, p. 121).
Antes, porém, de elencarmos
possíveis razões para
as críticas de
Machado de Assis
ao Romantismo,
deixemos claro que o escritor, ao longo de sua obra, não critica o Romantismo
como um
todo, mas aqueles clichês da escola, os quais, infelizmente, não podiam formar
uma identidade literária.
Isso posto, parece plausível afirmar que
uma primeira razão das críticas de Machado de Assis ao Romantismo
está na onda de imitação servil que essa “escola”, feitas sempre as exceções,
deu curso
no Brasil, num tempo em que se buscava uma literatura que, de fato, pudesse se
traduzir numa
identidade brasileira. A simples imitação das obras literárias produzidas na
Europa traía o projeto
de construção de uma identidade nacional. E isso Machado de Assis, logo no
começo de sua
atividade de crítico, compreendeu e combateu. Na crônica intitulada
“Folhetinista”, de 1859, ataca
ferinamente o afrancesamento do Brasil e exalta a necessidade de valorizar a
cor local:
Em geral o folhetinista aqui é todo
parisiense; torce-se a um estilo estranho, e esquece-se,nas suas divagações
sobre o boulevard e café Tortoni, de que está sobre um mac-adam lamacento e com
uma grossa tenda lírica no meio de um deserto, problema que seria resolvido se
tal folhetim tomasse mais cor local, mais feição americana. Faria assim menos
mal
à independência nacional do espírito nacional, tão preso a essas limitações, a
esses
arremedos,
a esse suicídio de originalidade e iniciativa (Assis, 1962, p. 960).
A
mesma visão de Machado de Assis sobre a imitação se verifica em outra passagem
em que ele critica a
imitação que certos
literatos brasileiros faziam
do poeta inglês
Lord Byron. Ofir Bergemann
de Aguiar (1999) afirma que Byron era um poeta muito lido no Brasil, tendo sido traduzido
por Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e pelo próprio Machado de Assis. No
entanto, poucas
vezes a influência de Byron se converte em criação original. Machado de Assis,
no estudo que
faz do livro Cantos e Fantasias, do poeta romântico Fagundes Varela, se refere
ao problema:
...
adoeceram, não da moléstia do cantor de Don Juan, mas de outra diversa, que não
procedia,
nem das disposições morais, nem das circunstâncias da vida. A consequência era natural;
esse desespero do poeta inglês (...) não existia realmente nos seus imitadores;
assim, enquanto
ele operava o milagre de fazer do cepticismo um elemento poético, os seus imitadores
apenas vazavam em formas elegantes um tema invariável. Tomaram-se de uns ares,
que nem
eram melancólicos, nem alegres, mas
que exprimiam certo
estado de imaginação,
nocivos aos interesses da própria originalidade (Assis, 1962, p. 858).
Se,
por um lado, há os que fazem simples imitação, por outro, temos os que, na
tentativa de
fazerem
literatura nacional, caem no “nacionalismo de vocabulário”, já que as suas
obras não têm aquela
“invenção” defendida por Machado. Tal visão, equivocada, sobre o nacionalismo é
criticada no
artigo “Notícia atual da literatura brasileira – instinto de nacionalidade”:
Há
também uma parte da poesia que, justamente preocupada com a cor local, cai
muitas
vezes
numa funesta ilusão. Um poeta não é nacional só porque insere nos seus versos
muitos
nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de
vocabulário e
nada
mais. (...) Aprecia-se a cor local, mas é preciso que a imaginação lhe dê os
seus toques, e
que esses sejam naturais, não de acarreto (Assis, 1962, p. 807).
O
mesmo equívoco cometiam outros que não valorizavam o passado literário de uma
literatura. No
artigo “O ideal do crítico”, percebemos que Machado não estende sua crítica a
todo o Romantismo,
mas a certos maneirismos românticos, que limitavam a criação de uma literatura nacional.
Atento a seu projeto de crítica literária, que deveria ser um farol para os
verdadeiros talentos,
Machado olha com reserva a “ruptura” pregada pelos novos e os ensina a
valorizar o que há
de elevado na produção literária de qualquer época:
...
se as preferências do crítico são pela escola romântica, não cumpre condenar,
só por isso, as
obras-primas que a tradição clássica nos legou, nem as obras meditadas que a
musa moderna
inspira; do mesmo modo devem os clássicos fazer justiça às boas obras dos românticos
e dos realistas, tão inteira justiça,
como estes devem fazer às boas obras
daqueles.
Pode haver um homem de bem no corpo de um maometano, pode haver uma verdade
na obra de um realista. A minha admiração pelo Cid não fez obscurecer as
belezas
de
Ruy Blas (Assis, 1962, p. 800).
Uma
literatura é o constante diálogo com outras literaturas. Mas também o diálogo
com a tradição dessa
própria literatura para se chegar a um pecúlio comum. Visto por aí,
entenderemos que uma das
razões para a crítica de Machado de Assis ao Romantismo, pregado por alguns no
Brasil, se deve
justamente ao fato de nele não se valorizar a Língua Portuguesa como o
patrimônio de uma identidade
literária. A criação de uma identidade literária não se faz sem a valorização
do idioma.
Atento
a isso, Machado de Assis empreendeu uma crítica ao afrancesamento da Língua
Portuguesa. Do
mesmo modo, sem cair nos extremos do “isso é correto”, “isso é errado”, chamou
a atenção em
sua crítica para a necessidade de conhecer a Língua Portuguesa. No capítulo “A
língua”, do artigo
“Notícia atual da literatura brasileira – instinto de nacionalidade”, critica
mais uma vez oexcesso de liberdade no uso do idioma, ao mesmo tempo em que
exalta a necessidade de conhecer
o passado e o presente de uma língua, a mesma observação que faz sobre a
importância da
tradição como elemento estruturante do moderno:
Cada tempo
tem seu estilo. Mas
estudar-lhes as formas
mais apuradas de
linguagem, desentranhar
deles mil riquezas, que, à força de velhas se fazem novas – não me parece que se
deva desprezar. Nem tudo tinham os antigos, nem tudo tem os modernos; com os haveres
de uns e de outros é que se enriquece o pecúlio comum (Assis, 1962, p. 809).
“Cada
tempo tem seu estilo”, observa Machado de Assis, referindo-se à língua. Mas o
artista da palavra
também deve valorizar o tempo. Assim, sem perder de vista que a forma, a
exemplo da Língua Portuguesa, tem um
lugar especial na
crítica machadiana,
preferimos destacar, em consonância
com o seu ideal de arte, que o tempo para ele é o grande aliado do artista. Ao
tratar do Cantos e Fantasias de Fagundes Varela, já
aqui citado, elogia os belos versos do poeta, mas critica-lhe
a pressa, a desatenção ao tempo. E essa crítica age justamente contra a onda de improvisação,
de inspiração, que alguns poetas românticos desavisados, entre os quais o
próprio Varela,
levaram ao extremo. Nas críticas ao poeta romântico, está, sem dúvida, um dos
pilares da criação
literária machadiana: o tempo, o aliado daquele que busca construir obra
duradoura. Machado
recomenda ao poeta a necessidade de revisar e emendar alguns versos (Assis,
1962, p.
860).
A pressa, o improviso e o cultivo da inspiração não contribuem para a formação
de uma obra
que
possa ser, no futuro, a identidade do país. Essa mesma valorização do tempo,
interpretada
como
mero exercício parnasiano por alguns, continuará orientando, mais tarde, o
trabalho de
Machado
de Assis no que se refere ao leitor – e aqui está outro enfoque da crítica
machadiana –, que
também não deve ter pressa, deve ser ruminante, para que vá buscando nas
entrelinhas o que não
aparece no plano superficial.
3
UM CRÍTICO OCULTO
Falar
de um crítico oculto equivale a repetir que Machado de Assis, impedido de
exercer uma crítica
direta, buscará uma estratégia para manter essa crítica em sua obra: conduzi-la
para o plano da
ficção, espaço em que, sob o capote da ironia, e em companhia do leitor,
manterá as restrições a uma
produção literária orientada por um Romantismo marcado pela falta de invenção e
de sinceridade.
Isso posto, deve-se retomar um problema inicial: o que teria motivado essa
inflexão na crítica
literária machadiana? Uma possível razão para a mudança no modo de conduzir a
críticatalvez se explique pelo fato de o Romantismo continuar existindo no interior
de escolas como o Realismo,
o Naturalismo e o Parnasianismo, conforme assinala Machado de Assis no seu
artigo “Nova
geração” e no livro Memórias Póstumas de Brás Cubas.
No
entanto, além dessa crítica, em que Machado coloca em questão não apenas o Romantismo, mas também
as escolas que
o combatiam, é preciso
considerar também a
recepção pouco favorável
de sua crítica literária séria. Assim, parece plausível afirmar que a presença
de uma crítica literária
no plano da produção ficcional também se dá em função da recepção que a sua
crítica literária,
exercida de modo individualizado, vinha tendo. Reflexo dessa recepção pode ser
lido em carta,
de 1868, de Machado de Assis a José de Alencar. Nela, é flagrante a sensação de
fracasso de Machado,
que vê caindo por terra o seu projeto de crítico, pelo qual esperava contribuir
para a formação
de uma identidade literária brasileira:
Confesso
francamente, que, encetando os meus ensaios de crítica, fui movido pela ideia
de contribuir com
alguma coisa para
a reforma do
gosto que ia
se perdendo, e agora
definitivamente
se perde. Meus limitadíssimos esforços não podiam impedir o tremendo
desastre.
Como impedi-lo, se, por influência irresistível, o mal vinha de fora, e se
impunha no espírito
literário do país, ainda mal formado e quase sem consciência de si? Era difícil
plantar as
leis do gosto, onde se havia estabelecido uma sombra de literatura, sem alento
nem ideal, falseada
e frívola, mal imitada e mal copiada (Assis, 1962, p. 895).
Mário
de Alencar (1959), organizador da Crítica literária, de Machado de Assis, na
sua “Advertência da
edição de 1910”, argumenta que Machado de Assis, por não ter vocação para a
polêmica, abandona
a crítica individualizada e passa a exercer uma crítica geral dos homens. Essa
parece ser mais
uma razão que explica o trânsito, do sério para o riso, que se opera na crítica
literária machadiana.
E concordar com Mário de Alencar equivale a aludirmos aqui às polêmicas
literárias em
voga no século XIX. Na época, ficaram conhecidas as querelas literárias
envolvendo José de Alencar
e Gonçalves de Magalhães, Camilo Castelo Branco e Carlos de Laet; o próprio
Machado esteve
envolvido em discussões literárias com Eça de Queirós e Sílvio Romero. Sem
vocação para polêmicas,
é possível que tenha preferido conduzir para o plano ficcional a sua crítica
literária.
Entretanto,
se se admite que Machado de Assis evita polêmicas literárias e, ainda, se tal
projeto crítico,
de algum modo se vê minado, há que se considerar que o escritor buscará outra
estratégia, tal
como aqui estamos defendendo, para manter em curso a sua crítica literária.
Pensando-se nessa perspectiva,
é possível afirmar que Machado, impossibilitado de exercer a crítica de modo
direto,buscou outra via, baseada na ironia, no interior da qual o leitor se
revela como o grande aliado do escritor.
Por meio da ironia, sobretudo a romântica, Machado de Assis aponta e questiona
aqueles problemas
fomentados pelo Romantismo: o sentimentalismo, a valorização da morte, a
inspiração.
No
próprio corpo obra literária, o escritor desenvolve a sua crítica numa
constante reflexão,
valendo-se
da ironia romântica que, segundo Ferraz (1987), ...
abarca dois planos da manifestação literária oitocentista. Um envolvia a
reformulação do fazer
literário e o questionar desse fazer (...) o outro pressupõe a reformulação do
conceito de
“inspiração” tal como ele tinha atravessado o século (...) (Ferraz, 1987, p.
39).
Sem
se dissociar da ironia, outro recurso utilizado por Machado de Assis, na sua
crítica indireta, irônica,
são os personagens leitores, os quais Machado costuma dividir em dois grupos:
os frívolos (os
românticos) e os perspicazes (os não-românticos). Não obstante se refira a
esses dois nichos de
leitores, parece ser possível afirmar que a maioria dos leitores estava longe
de ter aquela perspicácia
esperada por Machado de Assis, já pelo ensino de má qualidade ministrado nas
escolas, já
pelo alto índice de analfabetismo presente na época. Mostrando o reflexo da
educação na capacidade
crítica dos leitores, Luiza Lobo (1987, p. 16), no estudo que faz das
aquisições da Biblioteca
Nacional do Rio no século XIX, afirma que os romances mais lidos eram
justamente os “mais
melosos”. Ainda segundo a autora, é possível traçar-se o perfil do intelectual
daquele século XIX,
muito mais dado a fazer citação de trechos do que ler a obra integralmente:
“Não é de se estranhar,
pois, ao ver o passado da cultura brasileira, que o intelectual aqui,
especialmente nas universidades,
viva mais de citações que de leituras” (p. 17). Antonio Candido (2000) também aborda
o problema. Num tempo em que o baixo número de leitores e as pequenas elites
são limitados
por um quadro de analfabetismo e “pobreza cultural”, não só o refinamento do
gosto sofre
limitações, mas também a produção de uma literatura que, pelo seu alto nível de
invenção, salvo
exceções, seria capaz de traduzir uma identidade brasileira (p. 77).
Pela
leitura dos personagens leitores, presentes em alguns livros de Machado de
Assis, podemos fazer
uma leitura dos leitores presentes na sociedade da época, bem como uma leitura
de um problema
do mercado editorial: a pouca produção de livros. Em Dom Casmurro, temos
Bentinho sendo
influenciado pela leitura de obra romântica francesa, que entrou em sua casa,
assinala John Gledson
(1991), “sob a forma dos romances de Walter Scott” (p. 154). Em Iaiá Garcia,
Machado parece
sugerir como o empréstimo de livro poderia suprir as carências de um mercado
editorial, ao
mesmo tempo em que destaca o “leitor de boa casta”, Luís Garcia, homem de
escassa cultura,mas que tinha o dom da reflexão. A frivolidade do leitor
romântico é destacada no livro Memórias Póstumas
de Brás Cubas, em que o narrador critica a linearidade da narrativa romântica,
que se opõe
à narrativa ébria de Machado de Assis.
Tudo
na verdade se trata de uma reeducação por meio do riso, necessária num tempo em
que o leitor
vivia numa sociedade em que o ensino estava longe de contribuir para a formação
daquele leitor
perspicaz de Machado de Assis.
Nesse
breve olhar sobre a ironia e o leitor, presentes no novo enfoque da crítica
machadiana,
pudemos
mostrar que Machado de Assis, impedido de exercer a crítica direta, transfere a
sua
crítica
para o plano da ficção, no qual a explora sob o capote da ironia. Resta, ainda,
mostrar com o
narrador machadiano, em conversa com o leitor ou não, coloca sob suspeita os
clichês do Romantismo
e os de outras escolas ao mesmo tempo em que faz uma reflexão, em alguns casos, sobre
a própria criação literária.
3.1
A Desconstrução do Romantismo
Já
dissemos que Machado de Assis, de algum modo impossibilitado de exercer a
crítica de forma direta,
transferiu-a principalmente para o campo dos contos e dos romances. Dissemos
também que
o leitor passa a ser uma peça fundamental na construção do texto. Aqui,
apresentamos excertos
em que Machado de Assis critica ironicamente alguns clichês românticos, como a
morte e a
palidez, e excertos em que o autor, ainda sob o capote do riso, revela o drama
do poeta para compor
a obra. No primeiro caso, trabalhamos com o poema “Pálida Elvira” e com o conto
“A mulher
pálida”; no segundo, com os romances Dom
Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas.
No
poema “Pálida Elvira”, do livro Falenas, está uma resposta em verso ao mal do
Romantismo que dominava
o país. À medida que constrói o poema narrativo, Machado, por intermédio de um Narrador,
vai chamando a atenção do leitor para os clichês românticos. É flagrante a
ironia à musa romântica
neste trecho em que o narrador apresenta ao leitor o poeta Heitor:
Um
poeta! e de noite! e de capote!/ Que é isso, amigo autor? Leitor amigo,/
Imaginas que
estás
num camarote/ Vendo passar em cena um drama antigo./ Sem lança não conheço
DomQuixote,/ Sem espada é apócrifo um Rodrigo;/ Herói que às regras clássicas
escapa,/ Pode não
ser herói, mas tem a capa (Assis, 1962, p. 74).
O
cenário não podia ser melhor para o poeta romântico. Ele aparece à noite e usa
uma capa. Não tem
nada de clássico, mas encarna a imagem do riso, que é a de Dom Quixote. É
importante notar como o
narrador chama o
leitor para o
desenvolvimento do texto, apresentando-o como desconfiado:
“Que é isso, amigo autor?”, escada para o narrador encaixar sua zombaria:
“Herói que às
regras clássicas escapa”, “Pode não ser herói, mas tem a capa”, o que dá um
desfecho inesperado e
risível: o mais importante não é o poeta, mas a capa que ele carrega.
Por
meio do riso, é possível corrigir. É isso que Machado de Assis, dando à sua
crítica uma camada de
ironia, faz ao voltar-se para o poeta personagem. Bakhtin (1997) afirma que na
Idade Média, na “forma
do riso, resolvia-se muito daquilo que era inacessível na forma do sério” (p.
127). O mesmo se
pode falar de Machado de Assis em relação ao modismo romântico: pela ironia,
ele atacava dois pontos
de uma só vez – o leitor e o autor –, peças decisivas na formação de uma
consciência literária. Aqui, é importante notar que essa ironia de Machado de
Assis é a romântica. Na ironia romântica, explica Lélia Parreira Duarte (2006),
o narrador revela ao leitor a “tessitura do texto literário” que é, acima de
tudo, “arte, construção, linguagem”, arte que “(...) não se satisfaz com o sério
absoluto, pois não quer ser igual à realidade, por isso toma o dito e o
decompõe, fragmenta, desestrutura, discute, consciente da
necessidade de distanciamento do
real” (p. 212). Ainda segundo a
autora, “Um dos grandes recursos da literatura é a ironia. O seu princípio
básico é, aliás, o
mesmo da literatura: ambas se baseiam na antífrase e/ou na ambiguidade ou na
flutuação de sentidos” (p. 153).
No conto “A mulher pálida”, de Machado de
Assis, extraído do livro Contos
selecionados, não datado,
o personagem poeta Máximo é visto como uma mistura de poeta, estudante, louco e imitador:
... Ele era poeta; supunha-se grande
poeta; em todo caso recitava bem, com certas inflexões langorosas, umas quedas da voz e uns
olhos cheios de morte e de vida. Abotoou o paletó com
uma intenção chateaubriânica, mas o
paletó recusou a
intenções estrangeiras e Literárias. Era um paletó nacional, da
rua do Hospício, n... (Assis, s.d., p. 210).
Logo de saída, o narrador induz o leitor à
desconfiança e, portanto, à desconstrução do conto. Máximo quer ser poeta, mas
o que dele se aproveita, e parcialmente, é o recital, já que tem na vozas
“inflexões langorosas”. A ironia nos leva ao contexto da época. Antonio Candido
(2000) afirma que, na literatura do século XIX e início do XX, predominou a
tradição do auditório; os poemas, bons ou ruins, alcançavam o público por meio
dos recitativos e da musicalização, já que os livros eram poucos e elevado
o número de iletrados (p. 76).
Prosseguindo, o narrador revela um problema
do personagem Máximo: a imitação da França. Ele era um imitador de
Chateaubriand, uma das predileções dos leitores brasileiros, acostumado aos “folhetins
melosos” (Lobo, 1987, p. 16). O desajustamento entre o nacional e o estrangeiro
é evidente e é uma crítica direta à mania de cópia que dominava a sociedade
brasileira. Instaura-se uma tensão gerada pela loucura do personagem artista
presente no nome da rua – Hospício, piscadela de olho que o narrador dá para o
leitor, chamando a atenção para a demência do poeta Máximo. O passo seguinte
também é sugestivo, pois o narrador continua desconstruindo o personagem poeta
à medida que constrói o conto:
Depois do Suspiro ao luar, veio o Devaneio, obra nebulosa e deliciosa ao
mesmo tempo, e ainda o Colo de neve, até que Máximo anunciou uns versos
inéditos, compostos de fresco, poucos minutos antes de sair de casa. Imaginem!
Todos os ouvidos afiaram-se para tão gulosa especiaria literária. E quando se
anunciou que a poesia se intitulava Uma cabana e teu amor – houve um geral
murmúrio de admiração (Assis, s.d., p. 210).
O narrador sabe que se trata de versos
langorosos, trivialidades de Romantismo postiço. A lua, satélite
dos namorados, tábua de salvação dos poetas românticos, e o “suspiro”, o
“devaneio”, a “neve”, tudo isso cria aquela aura romântica, que ainda arrancava
aplausos das plateias. O narrador ri-se
dos versos e ri da recepção das obras ao mesmo tempo em que desconstrói também
a personagem Eulália, a mulher pálida. Afirma que essa palidez foi sendo
acentuada, artificialmente, depois
que Eulália tomou conhecimento da fortuna de Máximo. A palidez romântica é aqui
uma construção que traz no centro um interesse financeiro, o que revela, outra
vez, uma mistura risível: dinheiro,
criação literária, romantismo vazio. O narrador intervém, lembrando uma tara de
Máximo, a sua predileção por mulher pálida numa explícita alusão ao
ultrarromantismo de Máximo, vivido na teoria e na prática. O personagem era um
“(...) romântico acabado, do grupo
clorótico, amava as mulheres pela falta de sangue e de carnes” (Assis,
s.d., p. 214). A sua loucura se acentua no fim do conto, pois Máximo quer a
mulher mais pálida do mundo. Rejeita todas, inclusive Eulália, e termina louco,
exclamando “Pálida, pálida”, refrão que se ajusta perfeitamente a um dos
modismos do Romantismo, bem exemplificado numa quadra do “Soneto” do poeta
Álvares de Azevedo: “Pálida à luz da lâmpada sombria, / Sobre o leito de flores
reclinada, / Como a lua por noite embalsamada, /Entre as nuvens do amor ela
dormia!” (Azevedo, 1999, p. 72).
Em
Dom Casmurro, aparece um refinamento dessa ironia ao poeta. Machado de
Assis faz uma reflexão sobre a criação literária, mostrando a trajetória do
artista (suas lutas e seus fracassos) na busca dessa arte. Se no começo de sua
crítica ele se voltava para o produto final, acabado, em Dom Casmurro, e em
outros contos, como “O Erradio” e “Cantiga dos esponsais”, veem-se as idas e vindas
do criador na construção de sua obra. Nesse romance, o personagem poeta aparece
logo no primeiro capítulo. Pede que Bentinho lhe ouça uns versos. Mais adiante,
é o Bentinho que se arrisca na senda da criação. Machado de Assis explorará,
aqui, o poeta na construção do poema. O título do capítulo é já por si
sugestivo: “Soneto”. Bentinho, logo no começo, alerta que é um soneto que não
foi concluído. O primeiro verso veio fácil, relata o personagem: “Oh! Flor do céu! Oh! flor cândida e pura”. A escolha da forma deu-se depois de alguma demora: Não escolhi logo, logo o soneto; a
princípio cuidei de outra forma, e tanto de rima quanto de verso solto, mas
afinal ative-me ao soneto. Era um poema breve e prestadio. Quanto à idéia, o
primeiro verso não era uma ideia, era uma exclamação; a ideia viria depois.
Assim na cama, envolvido no lençol, tratei de poetar (Assis, 1999, p. 61).
O aprendiz de poeta faz projetos, sonha
ser um grande poeta. Espera o verso, mas ele não vem. O conhecimento técnico da
forma se mostra. Ele se lembra de que os sonetos mais procurados são os
que têm a chave de ouro. Uma tensão se dá na cabeça do aluno de poesia e só
depois de muito suar,
e o verbo suar aqui tem uma conotação de luta, de desespero do artista, surge o
verso chave de
ouro: “Perde-se a vida, ganha-se a
batalha”. Julgando os dois versos, Bentinho antevia um soneto perfeito.
Provoca a inspiração, recordando-se de alguns sonetos, conclui que todos se
mostravam simples, mas o fracasso do artista já se percebe:
Então tornava ao meu soneto, e novamente repetia o primeiro verso e
esperava o segundo; o segundo não vinha; o segundo não vinha, nem o terceiro,
nem quarto; não vinha nenhum. Tive ímpetos de raiva, e mais de uma vez pensei
em sair da cama e ir ver tinta e papel; pode ser que escrevendo os versos
acudissem, mas... (Assis, 1999, p. 62).
O aprendiz de poeta inverte o verso já
escrito, na esperança de encontrar os outros: “Ganha-se a vida,
perde-se a batalha”, uma piscadela de olho do narrador para o fracasso poético
de Bentinho, já
que ele não conseguirá escrever o soneto:
Trabalhei em vão, busquei, catei, esperei, não vieram os versos (...)
Pois, senhores, nada me consola daquele soneto que não fiz. Mas,
como creio que os sonetos existem feitos, como as odes e os dramas e as demais
obras de arte, por uma razão de ordem metafísica, dou esses versos ao primeiro
desocupado que os quiser. Ao domingo, ou se estiver chovendo, ou na roça, em
qualquer ocasião de lazer, pode tentar ver se o soneto sai. Tudo é dar-lhe uma ideia
e encher o centro que falta (Assis, 1999, p. 62).
Revela-se o fracasso de um artista na
construção de sua obra. O trabalho árduo é em vão, porque o
esforço mental não premia o artista, antes o cansa, o entedia. Emparedado, o
pequeno poeta não vai
além dos dois versos, que deixa à disposição de quem possa “encher o centro que
falta”. É interessante perceber como o crítico literário, ao longo dos anos,
refina o seu modo de ver a arte.
Se
no começo volta-se para o artista, fazendo uma reflexão sobre a obra por ele produzida,
aqui esse
crítico se volta para o artista na construção dessa obra.
O fracasso de Bentinho na escrita do soneto
junta-se ao de vários personagens artistas de Machado de Assis. Pestana,
personagem da “Cantiga dos esponsais”, não conseguiu compor nada além das
polcas, embora tentasse escrever uma peça clássica. Elisiário, personagem do
conto “O erradio”, era um poeta talentoso, mas improvisador, errante, sem
querer dedicar-se à escrita de uma obra séria.
Em
Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador machadiano, sob o capote da
ironia, ataca novamente
o poeta romântico. Mas é interessante notar que aí o Romantismo e o Realismo
são negados conjuntamente, o que caracteriza um Machado de Assis contrário aos
modismos das escolas literárias. É o que podemos ver no trecho a seguir, em que
o personagem Brás Cubas se mostra como um arlequim, fantasiado de romântico, e
negando a postura realista do realismo:
Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de
botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um
corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o
romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com ele nas ruas do nosso
século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem,
onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e verme e, por compaixão, o
transportou para seus livros (Assis, 1997, p. 47).
Com a mesma força, o narrador coloca em
xeque o leitor romântico. No capítulo 71, “O senão do livro”,
Machado de Assis (1997, p. 134) afirma que a culpa da obra é o leitor que tem
“pressa de envelhecer”
e ama a narrativa “direita e nutrida”, ao passo que a narrativa machadiana se
orienta pela falta de direção, pois que o estilo é “ébrio”. Essas críticas, sem
dúvida, questionam o leitor romântico, que não se ajusta às complexidades
narrativas. A pressa do público corresponde à precipitação do poeta. Este quer
concluir logo a obra, sem preocupação com uma arte, no dizer de Machado de
Assis, duradoura; aquele quer concluir logo a leitura, para sorrir ou chorar.
Nesta ironia se encontram ecos da crítica séria de Machado de Assis, presente
no seu artigo “Notícia atual da literatura brasileira – instinto de
nacionalidade”. Lá, ele afirma que um dos grandes problemas dos poetas novos é
a pressa, que faz com que eles alcancem os aplausos, mas não uma obra
duradoura, cuja elaboração exige maior tempo (Assis, 1962, p. 809).
A preocupação de Machado de Assis com essa
atividade poética apressada está presente também no capítulo “A quarta edição”
do referido Memórias Póstumas de Brás
Cubas: “Pois sabei que, naquele tempo,
estava eu na quarta edição, revista e emendada, mas ainda inçada de descuidos e
barbarismos; defeito que, aliás,
achava alguma compensação
no tipo, que era
elegante, e na encadernação, que
era luxuosa” (Assis, 1997, p. 88).
O escritor invoca uma imagem da criação
literária para explicar os desconcertos do homem. Ele mesmo
chama a isso “Teoria das edições humanas”. Nessa teoria, como se vê, apesar das
emendas e
correções, o homem prossegue aparentando uma coisa e, por dentro, trazendo
outra. Não estaria Machado afirmando ironicamente que, se uma obra, apesar das
correções, não consegue atingir um
status de arte, deveria ir ignorada? Considerada, assim, como um
organismo, a obra literária pode ser sadia ou não; pode ser um corpo que,
independente das intervenções do criador, pode continuar problemática, sem as
condições que lhe possam assegurar um status de obra de arte.
4 CONCLUSÃO
Neste breve estudo, procuramos as razões
que levaram Machado de Assis a criticar o poeta romântico. Para isso, partimos
do fato de que a crítica machadiana apresenta dois momentos. No primeiro, está
o crítico sério que analisa as obras dos poetas a partir de orientações
baseadas na forma,
na correção gramatical, na clareza das ideias, no bom gosto e no aproveitamento
criativo das influências estrangeiras, evitando-se a simples cópia. No segundo,
está um Machado de Assis que, pela ironia, ora se ri do poeta, ora se volta
para a luta a que ele se entrega para produzir uma obra.
Percebemos que as críticas aos poetas
românticos se deram pelo fato de Machado de Assis defender a construção de uma
identidade literária, baseada no cuidado formal, na valorização da língua
portuguesa e no aproveitamento criativo das fontes estrangeiras. Essas críticas
não foram bem aceitas por alguns críticos e poetas, acostumados a uma crítica
baseada em elogios infundados.Foram também limitadas pela própria realidade
brasileira em que o leitor e o escritor tinham, com raras exceções, uma
educação mais crítica, a ponto de ser tornarem aqueles leitores sagazes e, por extensão,
aqueles escritores sagazes, que pudessem ir além dos modelos importados da
França.
Temendo ferir suscetibilidades, e,
principalmente, por causa da atitude de respeito e generosidade não desprovida
de rigor que exigia do crítico, Machado de Assis sentia-se mais livre para dar
vazão à sua ironia nas obras de ficção. Aí, continua a tratar do poeta, mas
reserva um espaço destacado para o leitor, a quem apresenta o artificialismo
dos modelos franceses cultivados no Brasil.
As críticas de Machado de Assis aos
poetas românticos se dão também pelo fato de que o Romantismo no Brasil, depois
de atingir uma produção literária de qualidade com Gonçalves Dias, Álvares
de Azevedo e Castro Alves, só para citar alguns exemplos, caminhou para um
declínio, resultando uma produção muito grande de versos de qualidade duvidosa,
a ponto de Machado de Assis afirmar que o trabalho mais proveitoso da crítica
literária seria no estudo da poesia.
Passando a explorar a crítica por meio da
ironia, Machado de Assis desloca o seu olhar. Se no princípio a sua crítica se
voltava para aquele que produz a obra, o autor, anos depois, passa a explorá-la
numa dimensão em que o leitor será peça fundamental. Num trabalho de construção
e desconstrução, o novo crítico não somente trata da poesia, mas também de uma
sociedade carnavalizada, em que poetas, poetastros, glosadores de motes,
pintores e outros tipos desfilam numa aparente serenidade. A sua crítica aos
poetas continua; no entanto, renova-se, porque ele passa a ver também os
acertos e desacertos do artista na construção de sua obra, o que pode ser visto
em vários momentos deste estudo, por intermédio dos personagens poetas.
ENTRE A GRAVIDADE E O RISO:
ROMANTISMO E IRONIA NA ... - www.ufsj.edu.br
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