O REALISMO: REFLEXÕES SOBRE MACHADO DE ASSIS E SUA OBRA

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AS METÁFORAS DA CASA E DO MAR EM DOM CASMURRO
Luiz Gonzaga Marchezan

RESUMO: Este trabalho estuda, em Dom Casmurro, a estratégia da narrativa de Machado de Assis em aproximar metaforicamente Bento Santiago de uma casa e Capitu do mar. Com a primeira metáfora, o autor trama um paralelo entre a alma dividida de Bento e os compartimentos de uma casa; com a segunda, aproxima os mistérios do mar aos da intimidade de Capitu.
PALAVRAS CHAVE: Realismo, Impressionismo, Ponto de vista, Metáfora.

     Tristão de Ataíde (1962, p.784) observa-nos que o autor de Dom Casmurro, dado “o seu temperamento de tímido e as exigências da sua concepção da Crítica”, abandonou a crítica literária sistemática, porém: “Fundiu o crítico no romancista. E deu-nos, num só planalto, a soma das duas vertentes”.
    Voltemos nossa atenção exatamente para Dom Casmurro. Bento Santiago representa-nos um embate entre leitor, narrador e autor: é leitor de Michel de Montaigne, de quem se aproxima, a fim de aquilatar, para suas memórias, a dicção do ponto de vista dos Ensaios. Bento Santiago, com esse propósito, faz-se protagonista e narrador de situações vividas e evocadas pelo presente da narração de Dom Casmurro. Há uma distância temporal entre o memorável e sua narração pelo romance, que o narrador quer mediar conforme a disposição abaixo:
     Eu confessarei tudo o que importar à minha história. Montaigne escreveu de si: “ce ne sont pas mes gestes que j’escris: c’est moi, c’est mon essence  [...] Tal faço eu, à medida que me vai lembrando e convindo à construção ou reconstrução de mim mesmo.” (ASSIS, 1971, p. 266).
      As três últimas linhas da citação acima glosam o pensamento de Michel de Montaigne, ao que nos parece, com sua atenção voltada para a prudência do ensaísta desenvolvida nas três linhas que sucederam, em Ensaios, o 58 Luiz Gonzaga Marchezantrecho acolhido por Machado de Assis: “Devemos ser prudentes quando nos observarmos e com a mesma consciência nos apreciar quanto ao bem e quanto ao mal”. (MONTAIGNE, 1972, p. 183).
    Bento Santiago, narrador textual, ficcional, construído para representar, como o narrador autor de Ensaios, têm o hábito de traçar observações para os seus leitores. Michel de Montaigne (1972, p.11), na introdução dos seus Ensaios, intitulada Do autor ao leitor, pondera: “Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria deste livro...”. Ensaios manifesta, no seu texto caudaloso, o modo como uma consciência, na sua maneira assistemática de relacionar situações do domínio da subjetividade, questiona as atitudes do sujeito diante do mundo. Bento Santiago, convenhamos, não tem um comportamento tão diferente; como escritor, leitor de Montaigne e de suas memórias, escolhe e lapida metáforas; para isso, não apresenta nada eficiente, eficaz, soberano, apenas sua experiência de existir, sua educação sentimental e, assim, temos também um homem em ato, sua constituição
como sujeito, sempre inconclusa.
     Machado de Assis é um ficcionista, crítico e leitor que procura, de forma visível, ao menos, desde Memórias póstumas de Brás Cubas, a partir de uma intencionalidade representada no seu prefácio, um novo leitor e uma nova recepção para a literatura brasileira; quis, ao aventar por aquele novo leitor, como crítico e autor, tencionar a produção literária no tempo, tudo, num
mesmo texto.
     O crítico e ficcionista Machado de Assis (1962c, p. 789), já em 1858, em um ensaio intitulado “O passado, o presente e o futuro da literatura”,fez um balanço da literatura brasileira e observou que carecia à ficção nacional uma “existência animada, a existência que vive, a existência que se desenvolve fecunda e progressiva”, momento em que propôs aos ficcionistas atuantes, “um golpe de estado literário”. Voltou à carga, em 1865, com o artigo “O ideal crítico”, com o sabor da ficção e a “convicção nos lábios”, momento em que apregoou como ideário para a análise da ficção: “Saber
a matéria em que fala, procurar o espírito de um livro, encarná-lo, aprofundá-lo, até encontrar-lhe a alma [...]” (ASSIS, 1962a, p. 800). Em 1873, de forma menos apaixonada, escreveu no New World o seu mais incisivo ensaio: “Notícia da atual literatura brasileira – instinto de nacionalidade”, em que verificou, no cenário da literatura brasileira, a ausência de um juízo crítico, sistemático, capaz de julgar a produção literária no tempo, suas formas e o gosto do seu leitor.As metáforas da casa e do mar em Dom Casmurro.
    Machado de Assis, dessa maneira, ao que nos parece, tem no seu ideário estético, para o horizonte do leitor da época, uma narrativa nova, plural, heterogênea; quer lhe oferecer um texto com situações vitais – conflitos, carências – dispostas em idéias que se fazem, desfazem-se, refazem-se, desdobrando-se em configurações variadas, que avançam, recuam, simulam e dissimulam. Romper com modelos tradicionais, para o crítico e ficcionista, significa trabalhar com novos procedimentos literários; dispor do material verbal, das imagens, de uma maneira tal em que transpareça uma percepção nova do objeto: uma impressão, uma sensação, no caso de Machado de Assis, e, nunca, um reconhecimento. As personagens de Machado de Assis dialogam constantemente com o presente e com o passado e a sua recordação dos fatos nunca significa a compreensão deles.
     Os acontecimentos de Dom Casmurro perpassam pela mente de Bento Santiago e refletem, com conveniência, situações de lembranças, simultaneamente, da sua adolescência, juventude e maturidade. Bento, desse modo, recorda-nos como foi afetado no transcurso da sua educação sentimental e, depois, durante o seu casamento, por dúvidas e inseguranças, passadas então em revista mediante observações de seqüências infindáveis de olhares de outrem, múltiplos e entrecruzados, que tramam o romance. A história composta para esta narrativa virá com a História dos Subúrbios, proposta pelo escritor Bento Santiago no final de Dom Casmurro; este, constitui-se na trama definitiva e título provisório daquele romance inédito. 
           Assim, as confissões que Bento Santiago importará para dentro de suas memórias
narradas serão as convenientes e essenciais à reconstrução da sua identidade, conforme a paráfrase que ele, com mediações, faz do trecho de Montaigne. Mesmo porque, a sua memória mostrar-se-á limitada: “a minha memória não é boa. Ao contrário, é comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem nomes, e somente raras circunstâncias” (ASSIS, 1971, p. 254).        
     Além disso, já dissera: “aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira” (ASSIS, 1971, p. 179).
      A opção de Bento, como vemos, para os relatos do seu passado, faz-se por “deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi” (ASSIS, 1971, p. 179).  Bento escolhe por dar vida ao vivido, a narrar dele o que lhe foi significativo e, para isso, passa a dramatizar as sensações do que viveu a partir do que estas sensações revelam-lhe, a  Luiz Gonzaga Marchezanpartir de uma tarde, esta sim inesquecível, do mês de novembro, do ano de 1857: data das descobertas do amor e do seu amor por Capitu,  suscitadas por José Dias.
    Lembremo-nos, reportando-nos, mais uma vez, ao trecho em que Michel de Montaigne é citado, que confessar o que importa é reavaliar o que a situação recordada trouxe de importante, novo e reconhecê-la como nova, desconhecida. Ocorre que, sempre enciumado, Bento reconhece, na verdade, que não consegue “recompor o que foi nem o que fui [...] mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo” (ASSIS, 1971, p. 178). Isto porque o ciúme tem um motivo, uma trajetória, uma evolução, um final; o da alma de Bento Santiago não finda. O ciúme isolou Bento de Capitu, separou-os e, após a morte da amada, o estado do ciúme ainda vivido por Bento isolou-o do mundo; conferiu ao seu comportamento um traço de dor, de despeito, de receio, que o transformou num casmurro, ensimesmado, solitário, acompanhado apenas da sua imaginação, boa imaginação. É ele quem anuncia:
     “A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo” (ASSIS, 1971, p. 231).
     Bento Santiago, dominado pelo comportamento do ciúme, tende a exagerar tudo o que cogita. Nos momentos em que alia o seu comportamento enciumado à imaginação, exacerba-a e compromete suas campanhas, o conjunto de suas ações. Bento, casmurro, procura conscientizar-se de tudo o que ocorreu na sua vida diante de Capitu. Da meninice ao namoro, do namoro ao casamento, do casamento à separação. O narrador de Dom Casmurro, depois de 40 anos, rememora a sua vida e procura sua consciência; procura a identificação de determinados acontecimentos com determinados comportamentos, a fim de delimitar, isso sim, no bojo dessa questão, a sua individualidade e, daí, estabelecer um conceito de si mesmo. Bento Santiago questiona a sua identidade. A identidade é pensante, aberta. Desse modo, o Bento adulto, sofrido, consciente do seu sofrimento, corroído pelo ciúme, identificado com a dor, questiona o Bentinho sem identidade, criado entre três viúvos e um assexuado. Entre o menino e o adulto, uma
história suburbana, e uma trama, esta, por meio das observações de um casmurro confesso.
    O romancista da História dos subúrbios, de forma excessiva, açula a memória dos acontecimentos, fragmenta-a no tempo e no espaço e, de uma maneira a menos realista possível, opta por uma narrativa em primeira As metáforas da casa e do mar em Dom Casmurro pessoa, tensa, que, inegavelmente, recai numa individualidade, no caso, na figura do narrador autodiegético. Quem sou eu, questiona-se, a todo momento, Bento Santiago, sempre envolvido com a questão da sua identidade.
      Bento quer avaliar a sua identidade para avaliar a sua vida. O valor é a medida do mundo. Machado de Assis, por sua vez, não libera verdades, valores aparentes; ele gosta de metáforas, de paralelos; prefere a plurissignificação. 
      O foco narrativo é uma perspectiva da enunciação, o modo como a enunciação constrói sua estratégia de representação, a configuração discursiva da história. O foco narrativo trabalha com a quantidade e qualidade de informações veiculadas dentro de uma narrativa. A enunciação, por meio do foco narrativo, delega a um narrador, voz para a narração. Nessa voz ouvimos a atitude valorativa do narrador: emoções, reações que (objetiva ou subjetivamente), ficam cristalizadas em imagens. O foco narrativo operacionaliza, para a enunciação, o que ela quer fazer ver e como ela quer fazer ver.  Um ponto de vista combina e dá seguimento para uma história, ao mesmo tempo em que a configura. Combinações e seqüências constroem e movimentam, tramam uma história.
       José Dias foi quem despertou a imaginação de Bento Santiago e, enquanto viveu, foi o seu confidente. Bento, o casmurro, chorou no dia da sua morte. José Dias, em vida, sempre foi atrevido, porém, suas ousadias nunca incorreram quer em riscos, quer em desacertos, medidas procuradas constantemente pelo seu aprendiz. Ao lado disso, e isso é tudo, o preceptor de Bento Santiago, como dissemos, despertou-lhe para o amor e para o único grande amor da vida de Dom Casmurro, ensinando-lhe, ao lado desta revelação, a observar, de forma imaginosa, olhares. O bom aluno de José Dias é quem, certa feita, pensou: “A recordação de uns simples olhos basta para fixar outros que o recordem e se deleitem com a imaginação deles”. (ASSIS, 1971, p. 307).
    Dom Casmurro tornou-se um observador obsessivo de olhares. Desta maneira, para o romance que pretende escrever, o olhar arquiteta conflitos, ao mesmo tempo em que passa a ser uma forma de fixação do narrador e observador Bento Santiago, que, ao espreitar o observado, transforma-o em objeto da sua compulsão.
      O olhar, em  Dom Casmurro, representa as sensações do observador Bento Santiago; consiste num processo, numa marcha, na própria busca, por meio de sensações, da identificação do protagonista consigo e com os outros. Os circuitos do olhar exprimem, no romance, uma atitude cognitiva; manifestam o saber atribuído aos seus sujeitos instalados no discurso. Tais 62 Luiz Gonzaga Marchezansaberes constituem-se em estados, sensações, revelados pelos olhos “dorminhocos” (passivos) de Tio Cosme; “redondos” (práticos), de Pedro de Albuquerque, pai de Bento; “aéreos” (fúteis), de Pádua, pai de Capitu, ou, por meio dos olhos “curiosos” de prima Justina; “claros e inquietos” de Ezequiel; “quentes e intimativos” de Sancha; por intermédio dos olhos de José Dias, “esbugalhados, escancarados” (observadores de tudo e de todos, portanto), ou, ainda, através das ações dos olhos de Escobar, “claros, fugitivos, enfiados em si”, cogitando; “refletidos”, segundo a observação de Tio Cosme; “policiais”, na observação de prima Justina.
      Os olhares, em Dom Casmurro, a partir da sua observação pelo narrador, dão-nos o modo da ação da narrativa; eles exercem a sobredeterminação da narrativa, envolvendo-a em saberes contidos em sensações que, uma vez por eles atravessadas, cintilam. Temos, assim, uma narrativa motivada por estados, atmosferas e sem rupturas, sem a quebra de continuidade, o que nos leva a deduzir que não há o interesse por parte do enunciador em construir um ponto de vista de certeza; há interesse sim na construção de uma dúvida. Os olhares, em Dom Casmurro, têm um saber que, de forma subliminar, expressam o modo do querer das personagens; constituem o percurso figurativo do seu querer; representam o sentido da busca da narrativa de Bento Santiago, confiada aos seus desejos e saberes. Estes olhares são simulacros, imagens de recordações, recordações respeitadas. Respeitar, do ponto de vista etimológico, significa olhar muitas vezes para trás. Bento Santiago respeita as sensações que repassam pela sua memória, expandidas em olhares diversos, apreendidos pelos seus olhares “constantes, longos”, que observam olhos e olhares de todos. Bento aprendeu com os olhos “curiosos” de prima Justina, “escancarados” de José Dias; assustou-se, atrapalhou-se e depois delirou diante dos olhos “inquietos” de Ezequiel; incomodou-se com os olhos “quentes e intimativos” de Sancha; atrapalhou-se com os olhos dos quais não escapa nada, “policiais”, de Escobar; perdeu-se e foi tragado pelos de Capitu.
    Os olhares de todos os notados espelham, enfim, um querer. Os do narrador, observadores, dão acabamento às sensações que o protagonista quer filtrar por intermédio dos olhares alheios. Bento Santiago procura, por meio dessas observações, uma percepção de todos, com marcas de verdades.
       Os olhares de Capitu, de acordo com o narrador, camuflam, dissimulam, porque querem dissimular o seu ser. É o que atormenta Bento, o que embaraça a sua atividade interpretativa. Os olhos de Capitu são olhos claros As metáforas da casa e do mar em Dom Casmurro e grandes, fitam-se e desfitam-se; crescem e diminuem; apertam-se, espreitam, voltam-se para dentro, arrastam. Dessa maneira, dentro do romance, os olhos de Bento simulam a prática do olhar de todos, com o propósito de elaborar para ele, o observador, o saber de todos; os de Capitu, dissimulam.
      Assim, o ser, o caráter dessa personagem, fica submerso num emaranhado de aparências, num jogo entre sensações. É importante observarmos como a ação do olhar de Capitu cria no narrador observador, sensações, quase percepções, porém, de forma segura, jamais reconhecimentos. Divide-o também. Bento Santiago encontra-se sempre dividido, compartimentado,diante do seu mundo sensível. Bento Santiago é quem reproduz no Engenho Novo a mesma casa da infância, a da Rua Matacavalos e reconhece que, com tal empreita, não conseguiu “recompor o quefoi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente” (ASSIS, 1971, p. 178). O mesmo Bento, dividido, repartido, que releva metáforas, comenta: “A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados [...]” (ASSIS, 1971, p. 251).
      O perfil do narrador, diviso, assemelha-se com a divisão interna de uma casa. A metáfora da casa lê a intimidade de Bento Santiago. O que move o julgamento de Bento Santiago, sempre pouco vigoroso, é querer constantemente saber se a Capitu (da casa) de Matacavalos é a Capitu (da casa) da praia da Glória. A passagem que nos exemplifica de forma cabal o Bento Santiago que descrevemos está no capítulo 133: “Uma idéia”. Bento Santiago, visivelmente transtornado, tem uma idéia para o término do seu sofrimento – suicídio por envenenamento. Nesse dia, a maneira como Machado de Assis aproxima seu protagonista da metáfora da casa é emblemática:
      Fui à casa de minha mãe, com o fim de despedir-me, a título de visita. Ou de verdade ou por ilusão, tudo ali me pareceu melhor nesse dia, minha mãe menos triste, tio Cosme esquecido do coração, prima Justina da língua. Passei uma hora em paz. Cheguei a abrir mão do projeto. Que era preciso para viver? Nunca mais deixar aquela casa, ou prender aquela hora a mim mesmo [...]. (ASSIS, 1971, p. 333-334).
    O mesmo Bento dividido, compartimentado, releva metáforas e é tragado pelos olhos de ressaca de Capitu; observando-os, faz um paralelo entre os mistérios presentes para ele nos olhos da amada com os ritmos da vaga 64 Luiz Gonzaga Marchezan(composição de elevações da superfície da água; elevações que se propagam umas às outras, produzidas, em geral, pela ação do vento), do mar em ressaca. Os olhos de Capitu, confessa Bento: “traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca” (ASSIS, 1971, p. 219). Capitu é misteriosa como o mar. Tem os mistérios do mar. Dissimula como a vaga do mar. O mar, com seus mistérios, é símbolo da dinâmica da vida. Bento não é dinâmico, é estático, “homem de terra” (ASSIS, 1971, p. 332), conforme sua auto-análise. As metáforas – mar e terra – representam o conflito entre os amantes.
       O enredo de Dom Casmurro é difuso, motivado por recordações intrincadas que aproximam o homem do menino, sem que o Bento adulto tenha uma idéia acabada acerca do que narra a partir da sua meninice. Machado de Assis, assim, afasta-se do romance de tese, realista, naturalista; voltase para a realidade humana, considerada em Dom Casmurro por um viés impressionista. Machado de Assis trabalha este romance com impressões, atmosferas compartilhadas entre as personagens que participam de uma mesma trama; ocupa-se, precisamente, com sensações. A fim de confrontar individualidades, identidades, ele aproxima Capitu do mar e Bento da casa e, na ausência de verdades aparentes, de argumentos, as impressões, as sensações é que estabelecem um juízo de valor. O procedimento da metáfora, como sabemos, é o de eliminar diferenças entre as diferentes realidades conotadas, aproximando-as. Machado de Assis joga com metáforas: Bento
Santiago é tão compartimentado como uma casa e, mais, aos compartimentos de sua casa materna; Capitu dissimula como a vaga do mar.
     O papel do narrador e protagonista Bento Santiago, assim, faz-se o de, ao querer refletir sobre o que viu, construir, indiretamente, imagens por meio de olhares, pautando-se pelas da casa e do mar, as mais sensíveis e transfiguradoras metáforas do romance. As sensações narradas sempre compõem estranhamentos e perfazem uma distância larga entre o vivido, estranho, sua absorção e a atmosfera surgida no âmbito da sua retenção.
         Machado de Assis (1962e, p. 908), como dissemos, afasta-se da narrativa realista, de tese. Na análise que fez, em 1878, d’O primo Basílio, de Eça de Queiroz, tal posicionamento tornou-se evidente: “o perigo do movimento realista é haver quem suponha que o traço grosso é o traço exato”. O diagnóstico cabal que Machado de Assis (1962e, p. 913), faz do Realismo, cremos, está no trecho abaixo, do mesmo artigo acima citado: “esse messianismo literário não tem a força da universalidade nem da vitalidade; traz consigo a decrepitude [...] Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o Realismo, assim não sacrificaremos a verdade estética”.
     O autor de Dom Casmurro retrata sensações, atmosferas, resultantes, no âmbito da narrativa, do vivido, absorvido e que motivam as sensações deflagradas pelas personagens mediante o que viveram e experimentaram.
      O criador de Bento Santiago é impressionista, queremos enfatizar. Impressionismo é a expressão indireta de um significado. A impressão é decorrente de um conjunto de fatores ligado ao acontecimento narrado e, por isso, deflagra sensações. As sensações nos dão as disposições, as condições que se associam ao acontecimento narrado e trabalham os efeitos de sentido
dessas qualidades sobre nós.
      Bento Santiago procurou livrar-se de suas ruínas interiores demolindo a casa materna; ao reconstruí-la, no Engenho Novo, nos moldes da primeira, não conseguiu livrar-se dos seus escombros. Em uma caminhada com José Dias, pelo Passeio Público, Bentinho é despertado para a profundidade contida nos olhos de Capitu. Durante o passeio, no percurso do portão central até o terraço, José Dias, pela primeira e fatídica vez, qualifica os olhos de Capitu: oblíquos, dissimulados, de cigana. Bentinho ficará com o traço da dissimulação notado por José Dias; acrescentará, porém, ao seu modo de caracterizar os olhos da amada, os traços da ressaca do mar. O terraço do Passeio Público, no tempo da produção de Dom Casmurro, fazia divisa com o mar; posteriormente, a baia
foi aterrada e o terraço distanciou-se do mar. O juízo de José Dias sobre os olhos de Capitu deu-se diante do mar, sem incluí-lo na sua metáfora, enquanto conversava com o seu aprendiz. Em sua ponderação sobre os olhos de Capitu, noutro momento, distante da praia e do episódio, Bentinho somou à metáfora elaborada pelo agregado, então no Passeio, diante do mar, a dele, firmada a partir do mar. Machado de Assis, de fato, distanciava-se do Realismo; foi um sensacionista, impressionista, movido por impressões, construtor de impressões.
      Henry James (1995, p. 32), em A arte da ficção, ensaio de 1884, escreve que: “Um romance é uma coisa viva, e à medida que ele vive será visto, creio, que em cada uma de suas partes há alguma coisa das outras”. Eugênio Gomes (1962, p. 1098), quando escreve “O testamento estético de Machado de Assis”, observa, em Dom Casmurro, nos moldes da citação que fizemos do texto de James, que “o romancista conseguiu fazer desse romance o mais  Luiz Gonzaga Marchezan orgânico e vital de todos os que escreveu”. Ou, conforme o seu narrador: “o discurso humano é assim mesmo, um composto de partes excessivas e partes diminutas, que se compensam, ajustando-se” (ASSIS, 1971, p. 258).
    Em Dom Casmurro, concluímos nós, tanto as personagens, como nós, leitores, ficamos transitando entre as sensações, as aparências, conjugadas, sem rupturas, na narrativa, pelo jogo das modalidades ser e parecer.  Nele, o seu autor, Machado de Assis, cremos, sempre crítico, exercita a sua ficção depois de concluir as suas reflexões em torno de uma teoria da alma humana. Machado de Assis, com Dom Casmurro, está voltado para a história de um indivíduo que procura a sua identidade. Com esse romance, deixa as inquietudes universais para debater as individuais.
       Machado de Assis (1971, p. 179), em Dom Casmurro, está voltado para uma impressão da vida, a impressão de Bento Santiago sobre a sua vida: “comecemos a evocação por uma célebre tarde de novembro, que nunca me esqueceu. Tive muitas outras, melhores e piores, mas aquela nunca se me apagou do espírito”.
      Evocar é fazer aparecer, trazer à lembrança, no caso, algo do passado, “uma célebre tarde de novembro”. A evocação é um recurso retórico de atenuação, que nos coloca, diante da leitura do romance, entre o conteúdo da expressão que se pretendeu enunciar de forma dissimulada, metaforizada e o conteúdo da expressão que se pretendeu enunciar de forma simulada, evocada, deixando o texto envolto em aparências e nas malhas do imaginário do romance. Uma evocação dá plena vazão aos impressionismos e, com isso, Machado de Assis elabora umas das mais belas impressões literárias da vida depois do golpe literário que propôs em 1858. Quando pensou o homem em Memórias póstumas de Brás Cubas, definiu-o, inspirado em Blaise Pascal, como uma “errata pensante”. Naquele romance, Cubas, pensando por todos os homens, reflete que podemos: “restaurar o passado, para tocar a instabilidade de nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos” (ASSIS, 1962b, p. 547).
      Em Dom Casmurro, o autor trabalha com a intimidade de um homem, Bento Santiago, que revê, mas não consegue montar a edição definitiva da história dos seus afetos. Bento Santiago é afetado, frágil, dono de uma “incorrigível timidez” (ASSIS, 1971, p. 268). Bento Santiago é compartimentado e quanto mais procura definir no tempo a sua identidade, percebe que, para esta definição “mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo” (ASSIS, 1971, p. 178).
      As observações de Blaise Pascal (1973, p. 127) utilizadas por Machado As metáforas da casa e do mar em Dom Casmurro de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas constam do artigo VI, item
347, primeiro parágrafo dos seus Pensamentos: “O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante”. Constitui o mesmo item, no seu segundo parágrafo: “Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. Daí é que é preciso nos elevarmos, e não do espaço e da duração, que não poderíamos preencher. Trabalhemos, pois, para bem pensar; eis o princípio da moral”. No item seguinte, o 348, do mesmo artigo VI, mais especificamente, teremos: “Não é no espaço que devo buscar minha dignidade, mas na ordenação de meu pensamento”. Blaise Pascal
raciocina com emoção; o narrador e personagem de Machado de Assis de Dom Casmurro dosa a sua emoção para pensar e, assim, dá-nos um pensamento no limite da sua exposição. Blaise Pascal (1973, p. 540), é leitor de Michel Montaigne:
        Não é em Montaigne, mas em mim mesmo, que acho tudo o que nele vejo [...] É preciso conhecer-se a si mesmo; se isso não servisse para encontrar a verdade, serviria ao menos para regular a vida, e não há nada mais justo.
      Machado de Assis é leitor de Blaise Pascal e de Michel de Montaigne; como ficcionista, fez também seus leitores os seus narradores Cubas e Bento, por seu turno, dois escritores memorialistas. Ambos, como romancistas e, pela memória, em suas narrativas, procuram analisar, por princípios morais, o que não viveram. O primeiro, com a morte, libertou-se do embate justo com a verdade; a prudência limitou o senso da memória de Bento, que, com o pensamento temeroso, elaborado a partir de uma passagem que destacamos dos Ensaios, não ousou, como Pascal – a partir do pensamento ordenado no tempo e não da sua ordenação no espaço – a enfrentar os escritos de Montaigne, com coragem e discernimento.
      Bachelard (1978, p. 227) mostra-nos que o espaço é o lugar de defesa do sujeito, que nele explicita o que estranha do mundo, momento em que se
defende. Bento Santiago, certa feita, com um ímpeto de suicídio, encaminha-se para a casa materna:
       Fui à casa de minha mãe, com o fim de despedir-me, a título de visita. Ou de verdade ou por ilusão, tudo ali me pareceu melhor nesse dia, minha mãe menos triste, tio Cosme esquecido do coração, prima Justina da língua. Passei uma hora de paz. Cheguei a abrir mão do projeto. Que era Luiz Gonzaga Marchezanpreciso para viver? Nunca mais deixar aquela casa, ou prender aquela hora a mim mesmo [...] (ASSIS, 1971, p. 334).
       Bento Santiago, inegavelmente, sempre teve dificuldade para lidar com sua existência. A casa de Matacavalos, para ficarmos novamente com Bachelard (1978, p. 227), foi o seu reduto, lugar de resistência contra as mudanças provocadas pela vida, as controvérsias do tempo, o que tão bem lemos noutra situação, também adversa, quando o narrador e personagem visita o jardim daquela casa, após a morte da mãe:
       Hão de perguntar-me por que razão, tendo a própria casa velha, na mesma rua antiga, não impedi que a demolissem e vim reproduzi-la nesta. A pergunta devia ser feita a princípio, mas aqui vai a resposta. A razão é que, logo que minha mãe morreu, querendo ir para lá, fiz primeiro uma longa visita de inspeção por alguns dias, e toda a casa me desconheceu. No quintal, a aroeira e a pitangueira, o poço, a caçamba velha e o lavadouro, nada sabia de mim. A casuarina era a mesma que eu deixara ao fundo, mas o tronco, em vez de reto, como outrora, tinha agora um ar de ponto de interrogação; naturalmente pasmava intruso. Corri os olhos pelo ar, buscando algum pensamento que ali deixasse, e não achei nenhum. Ao contrário, a ramagem começou a sussurrar alguma coisa que não entendi logo, e parece que era a cantiga das manhãs novas. Ao pé dessamúsica sonora e jovial, ouvi também o grunhir dos porcos, espécie de troça concentrada e filosófica.Tudo me era estranho e adverso. Deixei que demolissem a casa, e, mais tarde, quando vim para o Engenho Novo, lembrou-me fazer esta reprodução por explicações que dei ao arquiteto, segundo contei em tempo. (ASSIS, 1971, p. 342).
     A morte de dona Glória sitiou o filho no espaço e no tempo. Na passagem acima lemos como, sem a mãe, a casa materna fixa-lhe as referências do tempo no espaço, as do reduto de Bento Santiago, que ora não percebe, com discernimento, que parte muito significativa da sua vida mudou, como para ele o seu quintal e, assim, sentindo-se quase humilhado com o grunhido dos porcos – uma troça filosófica – como nota, manda demolir a casa de Matacavalos.A inventiva de Bento em reconstruir, no Engenho Novo, a casa materna, compreende, como ele confessa, a “construção ou reconstrução de mim mesmo” (ASSIS, 1971, p. 266), uma empreitada decidida, que se concretiza apenas fisicamente. Mostra-nos o texto que, defronte do término da sua As metáforas da casa e do mar em Dom Casmurro evocação e ante à incapacidade de superar as dúvidas que lhe dilaceram a alma, a moradia da sua infância, na Matacavalos, transforma-se, no Engenho Novo, numa “caverna” (ASSIS, 1971, p. 177), outra, diríamos, troça filosófica. Bento Santiago, dessa maneira, direciona a sua alma para um abrigo subterrâneo, certificando-se, ao menos, como “homem de terra” (ASSIS, 1971, p. 332), de alma subterrânea e evita, em mais um reduto, que sua alma, irremediavelmente perdida, vague pelos cômodos já muito conhecidos da planta da sua casa materna. A metáfora da casa, na semelhança entre os seus compartimentos com os da alma humana, mais uma vez, traduziu para o protagonista sua incapacidade em lidar com o tempo vivido. O lugar da alma de Bento Santiago, uma alma arruinada, é numa ruína, uma caverna.
      No seu penúltimo livro, Relíquias da casa velha, de 1906, notamos Machado de Assis (1962d, p. 658), ainda visceralmente envolvido com a metáfora da casa. Logo na  Advertência lemos: Uma casa tem, muita vez, as suas relíquias, lembrança de um dia ou de outro, da tristeza que passou, da felicidade que se perdeu. Supõe que o dono pense em as arejar e expor para teu o meu desenfado [...] Chama-lhe à minha vida uma casa.
          À minha vida é um aposto de lhe, tem a mesma função dativa de lhe; quer dizer: chame a ela, minha vida, uma casa.A construção meticulosa da personagem Bento Santiago, certamente, está habilitada pelo arquiteto dessa advertência.

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AO ABRIGO DA DISSIMULAÇÃO: A CRÍTICA MACHADIANA E O  MUNDO DAS APARÊNCIAS   -  Giovana Caires Motta 
RESUMO
    A obra de Machado de Assis se apresenta de maneira singular, na medida em que lança ocultamente uma crítica à sociedade. Desse modo, por meio de uma estrutura de dissimulação, os contornos nítidos da poética de Machado se diluem. É preciso, portanto, adentrar em um  contexto mais profundo para compreender a essência de sua obra. Assim, no trânsito entre ausência e presença, dito e não dito, essência e aparência que as situações e os personagens configuram o cenário machadiano. 
Palavras-chave:  Poética Machadiana; Crítica; Estratégia de Dissimulação; Jogo das Aparências
I – INTRODUÇÃO: UM JOGO DE CAMUFLAGENS 
    A análise das obras de Machado de Assis nos faz refletir acerca do modo peculiar com que ele organiza a sua crítica à sociedade brasileira do
século XIX. Utilizando-se de estratégias de camuflagem, as idéias não são apresentadas de maneira explícita, mas se encontram dissolvidas na estrutura  do texto. Diante desse sistema de incógnitas, é preciso ter um olhar apurado para desvelar as situações que se mostram encobertas.   É na ordem da dissimulação que a ficção machadiana se configura. Nada está dado de antemão, é a partir de um jogo de disfarces que os seus escritos se constituem. As idéias colocadas, algumas vezes, podem não significar o que aparentemente mostram ser. John Gledson  (1986) já nos alertava sobre o traço “enganoso” do realismo de Machado  e destacava a necessidade de se “ler nas entrelinhas”. Com isso, observamos  que não se pode buscar na superfície e na horizontalidade das linhas, a essência da obra machadiana. É necessário imergir em um contexto mais profundo para poder
compreendê-la.  
     De forma sutil, mas não menos corrosiva, Machado de Assis empreendia sua crítica às atitudes, aos comportamentos, aos costumes e as estruturas sociais. Através da sátira, da ironia e da carnavalização, ele construía o seu enredo e revelava sua concepção do mundo. Assumindo, muitas  vezes, a postura ou o lugar de um “outro”, Machado se apresentava ocultamente, sob o signo dos pseudônimos.   É relevante notar que a poética de Machado se estrutura nos disfarces e na ausência, ou seja, o autor tem muito a nos dizer quando se cala ou quando deixa os fatos subtendidos. Em  Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador, o próprio Brás Cubas, chama-nos a atenção de que “há coisas que melhor se dizem calando” (s/d., p.196). Isso sintetiza bem, não só o pensamento de Machado, mas também a sua forma de dizer. Assim, entre o que é relatado e o que não é, encontra-se a sua visão crítica. 
     Diante dessas considerações, o termo ausente é ressignificado na obra de Machado, pois em sentido inverso, a ausência significa uma presença. É na sintonia e na configuração dos termos contrários, isto é, o dito e o não dito, a ausência e a presença, a aparência e a essência, que as situações e os personagens fazem parte da realidade machadiana. 
     No entanto, a característica de Machado de não optar por uma atitude escancarada ou panfletária, não significa que ele se caracteriza como um escritor omisso. O autor constrói sua crítica indireta por meio de estratégias ocultas e de jogos de dissimulação.  Na perspectiva das falsas aparências e dos disfarces, a análise  de alguns contos de Machado se mostra de grande valia. Teoria do Medalhão, O Espelho e Um Homem Célebre são obras que dialogam entre si; três instantes em que os personagens são regidos principalmente por sua “alma exterior”. 
   II – A LÓGICA DAS APARÊNCIAS
      No âmbito do parecer e não do ser, entra em cena a  Teoria do Medalhão. É no diálogo entre pai e filho que o conto se estrutura e nos permite observar, em suas respectivas atitudes, a necessidade de se adequar aos padrões vigentes da época e de se encobrir através de máscaras.
Janjão já se encontrava com vinte e um anos e, então, seu pai levantou algumas questões quejulgava ser relevantes. O desejo dele, independente da profissão que o filho escolhesse, era que Janjão se tornasse  ilustre ou no mínimo notável. Com isso, começamos a verificar a preocupação desse pai com a aparência ou com uma notável exterioridade.
     Desse modo, o pai alertava o seu o filho para um relevante ofício, ou seja, o de medalhão. Ao discorrer sobre as características dessa função, ele ressaltava a questão da publicidade e revelava que um verdadeiro medalhão fazia o seu nome ficar conhecido frente ao mundo. Essa idéia reitera o pensamento anterior de se valorizar a construção de uma figura notável. 
     Um outro detalhe importante que esse pai destacava era a postura que um medalhão devia assumir: “toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a qualquer partido,  liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma idéia especial a esses vocábulos”
     Nessas circunstâncias, percebemos que a lei é seguir as regras e os modelos de comportamento estabelecidos pela sociedade. Assim, a ordem é não se fixar  em uma única idéia, nem desenvolver um pensamento próprio, mas se adequar a um sistema vigente e se modelar conforme o sentido da via. 
    No mecanismo de seguir um padrão pré-determinado e constituir a teoria do medalhão, o pai ordenava ao filho: “proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc.”.
    Desse modo, observamos que a regra é escapar de tudo que se distancia do que já foi instituído. Ser um medalhão significa não ter idéias próprias, não desenvolver novas normas, nem transformá-las, mas se fazer conhecido na sociedade e ter o seu nome lembrado. 
     Nessa perspectiva, a figura desse pai traduz a lógica das aparências, na medida em que cultiva o oficio de medalhão. O princípio que rege esse sistema é o de aparentar ser; parecer ser sábio, parecer conhecer a “filosofia da história”, mas sem realmente ser e conhecer. Aparentar, apenas aparentar, eis então, o mecanismo de funcionamento das máscaras. 
     É importante destacar a maneira como a notoriedade é perseguida neste conto. Com isso, ser uma figura notável, ter o nome lembrado e conhecido por todos fazia parte do ideal e dos conselhos que esse pai transmitia ao seu filho. Nas lições e no alerta para o ofício do medalhão, uma exterioridade era referenciada. Portanto, podemos perceber o valor atribuído à concretização de uma imagem notória.
     Entre as conversas estabelecidas entre pai e filho, no enredo desse conto, Machado lança sua crítica à sociedade. Assim, ele se posiciona criticamente ao modo de pensar, ao tipo de comportamento padrão e às atitudes realizadas. As regras a serem seguidas para a manutenção do
conteúdo externo estão presentes no discurso desse pai. O que resta, por fim, a essa sociedade suscetível ao sistema das aparências é aceitar as regras do jogo.
III – ALMA INTERIOR X ALMA EXTERIOR
     Qual é a teoria da alma humana? A tentativa de responder a esse questionamento pode ser encontrada no conto O Espelho, através do narradorpersonagem Jacobina. Nessa obra, Machado se utiliza de dois narradores, o primeiro que aparece no início e no momento final do  conto e o segundo, Jacobina, que faz uso da palavra por quase toda a narrativa. A estratégia do autor de se servir de dois narradores revela a maneira com que este pretende atenuar as formas delineadas.
     O conto apresenta, inicialmente, “quatro ou cinco cavalheiros” que discutiam e investigavam questões metafísicas. O motivo da divergência quanto ao número de cavalheiros se deve ao fato de que apenas quatro falavam, um outro sempre permanecia calado, porém não por muito tempo.
Assim, Jacobina se utiliza da palavra e começa a sua narração. O rumo da conversa atinge o tema da natureza humana e o primeiro fato relatado é que não existe somente uma alma, cada pessoa possui duas: uma exterior e uma interior.
     Estas duas almas, portanto, seriam duas faces de um mesmo personagem. Contudo, uma dessas faces parece, às vezes, apresentar relevância sobre a outra. Tal fato se torna explícito na fala de Jacobina, pois “quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e
casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira”
     Se perder a alma exterior pode significar perder a própria existência,ntão essa exterioridade assume características preponderantes e pode ser considerada um fator essencial para a existência humana. 
     Assim, a aparência transita por mais uma obra de Machado e como um elemento primordial, ela é valorizada dentro da sociedade. Não podemos nos esquecer que a alma exterior é moldada conforme as regras vigentes e que ela “muda de natureza e estado”. De acordo com a sintonia do momento, a exterioridade se configura e toma conta da existência humana.  
     Neste sentido, o personagem Jacobina comentava sobre uma conhecida que mudava de alma exterior cinco ou seis vezes por ano, mas preferiu não se deter aos detalhes desse fato e se restringiu ao comentário de um episódio de sua vida. Assim, começou sua narração, contando quando tinha vinte e cinco anos, era pobre e foi nomeado alferes da Guarda Nacional. A partir desse fato, passou a ser chamado de seu alferes. Com a sua tia, D. Marcolina, não foi diferente “era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedialhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava  a cabeça, bradando que não, que era o ‘senhor alferes’”
     Mesmo a pedido de Jacobina, sua tia não o chamava pelo nome, mas sim pelo cargo o qual tinha sido nomeado. Com isso, verificamos que o mais importante é o que uma pessoa apresenta ser, a sua postura dentro da sociedade e não o que ela realmente é. Ser alferes prepondera sobre ser apenas um “Joãozinho”.
     O respeito e os privilégios que Jacobina adquiriu dentro da casa de sua tia se devem ao fato da sua nomeação. Um alferes precisava ter o melhor lugar na mesa e ser o primeiro servido. No entanto, um simples  Jacobina pobre, provavelmente, não receberia dedicações e cuidados exclusivos. Um alferes sim, merecia ter a melhor mobília da casa em seu quarto, neste caso, um
espelho. Assim, as transformações na natureza da alma exterior começam a se revelar:
        O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as  duas naturezas
equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficoume uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então  que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado
      Com este relato de Jacobina, notamos que tudo que é referenciado se trata da questão de alferes, ou seja, o fato mais importante é seu posto e não as suas características elementares. No duelo entre alma exterior e alma interior, a primeira vence e é valorizada, enquanto a  segunda se mostra enfraquecida e se dispersa. 
     Jacobina, isto é, o alferes, na falta de sua tia Marcolina devido a uma viagem às pressas, ficou responsável por cuidar da casa. A princípio, estavam ele e alguns escravos, os quais, durante a noite, decidiram fugir. Assim, Jacobina se encontrava totalmente só, comia mal e se dividia entre alma interior e alma exterior. A fuga dos escravos tornou a condição de Jacobina reduzida e desestabilizada. Quem antes era servido na mesa primeiro, agora se mostrava comendo “farinha, conservas e algumas raízes tostadas”.
     O temor de Jacobina quanto à imagem que encontraria refletida, não o permitia de se olhar no espelho. Um dia ao se deparar com esse objeto, viu a projeção de uma imagem sem contornos nítidos. Sem uma identidade própria, essa figura refletida apresentava sua alma exterior dissolvida em linhas tortuosas. Nessas circunstâncias, Jacobina ao tentar estabelecer a ordem e a nitidez de sua imagem, vestiu-se com sua farda de alferes. Com isso, “o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho”
      É preciso, portanto, utilizar-se da farda para encontrar uma maneira de se afirmar e de delinear a alma exterior. Assim, Jacobina, na ausência de uma identidade, buscava na qualidade de alferes a sua “figura integral”. A sua alma exterior, sustentada por sua tia e pelos escravos, apresentava-se dispersa e difusa, na medida em que essas figuras se encontravam ausentes. 
     Essa idéia de ausência nos remete ao relato de Gomes (1994) acerca da construção textual de O Espelho. Assim, ela afirma que a narrativa se estrutura em elementos que se isentam, ou seja, na fuga dos escravos,  na falta de Marcolina e na retirada dos narradores. Essa visão é pertinente para se pensar não apenas essa obra, mas a própria poética machadiana. Ao tratar de questões na sua ausência, ao dissolver os contornos nítidos e explícitos, Machado manifesta a sua crítica.
      Por fim,  O Espelho reflete o modo de pensar da sociedade, o qual valoriza mais a aparência do que a essência. No esvaziamento da alma interior, o contorno exterior ganha espaço. Assim, análoga às máscaras sociais, a farda de alferes reproduz o sistema das aparências. 
IV – SER X QUERER SER: O TRÂNSITO ENTRE O ERUDITO E O POPULAR
      A dualidade entre popular e erudito percorre o conto Um Homem Célebre. Por estas duas instâncias transita o personagem Pestana, um compositor de polcas que reverenciava a música clássica. Era aclamado e celebrado como um músico popular, mas fracassava em suas predileções
eruditas. Dessa forma, sucesso e fracasso se coincidem e compõem  o personagem.
     Logo no início do conto, percebemos que Pestana parecia  não se apresentar satisfeito com o reconhecimento e com os pedidos  para que tocasse mais polcas. Ele as executava, mas sem muito entusiasmo.  Suas polcas faziam sucesso, de modo que até as mais recentes já eram conhecidas por toda a cidade.    
     Cada vez mais a imagem de Pestana enquanto um compositor de polcas se configurava de maneira notória. Entretanto, esse reconhecimento era ignorado pelo mesmo. Desse modo, é importante perceber que contrariamente a Teoria do Medalhão, a notoriedade concretizada em Um Homem Célebre era aparentemente recusada, pois Pestana não tinha pretensões de tornar o seu nome público e de ser referenciado entre as polcas; o seu ideal era a música clássica. Se Pestana fosse aclamado como um célebre músico de obras clássicas, talvez, essa notoriedade não seria refutada.    
     Distante do seu público, dos saraus, dos bailes e do seu mundo de polcas que Pestana podia penetrar em um contexto erudito. Entre os retratos presos na parede de sua casa se encontravam vários compositores clássicos, como por exemplo, Beethoven, Mozart, Bach, Schumann e outros. “O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven”
     Assim, é interessante observar a importância concedida aos clássicos e a forma como esse ambiente se ordena como sagrado. Todo esse  espaço agradava Pestana. Entre o piano e os retratos, Pestana tentava compor uma obra clássica, mas todo o esforço empreendido se mostrava em vão. Em contrapartida, sentava-se diante do piano e em instantes compunha uma polca. “Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene”
      A tentativa, sem êxito, de estruturar uma obra clássica seapresentava reconfigurada quando se tratava de polcas. Em  pouco tempo e em recorrer ou questionar algo, uma nova polca despontava. 
    Desse modo, percebemos que seus objetivos e suas ambições andam na contramão do resultado atingido, ou seja, Pestana almejava a música erudita, mas conseguia produzir apenas polcas. Obra clássica  e polca, eis, portanto, o dilema do Homem Célebre. 
       De acordo com Wisnik (2004), a polca foi introduzida no Brasil entre 1844 e 1846, dois anos após ter sido lançada em Paris. No entanto, esse gênero importado sofreu transformações e, na década 1870, ordenou-se como “maxixe”: uma fusão de dança de salão com música de escravos. O autor reitera que a polca de Pestana não deve ser pensada apenas como uma dança importada, mas também como um ritmo transformado. Essa idéia se torna válida, mediante ao fato da data em que Pestana compôs sua primeira polca, 1871, mesmo período em que o termo “maxixe” começou a ter significado musical.   
     A questão dos títulos das “polcas – maxixe” de Pestana merece nossa atenção. Este compositor queria nomear sua primeira polca como  Pingos de Sol, porém o editor recusou e afirmou que os títulos deviam ser “destinados à popularidade”. Assim, propôs dois nomes:  A Lei de 28 de Setembro ou Candongas Não Fazem Festa. Segundo Wisnik, a união entre esses dois títulos, “aparentemente discrepante em si, forma, no entanto, uma intrigante figura de contraponto: a emergência da polca amaxixada,  de cunho africanizante, combina-se com a lei de 28 de setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre” (2004, p. 70). 
       Frente aos títulos sugeridos pelo editor, Pestana, a princípio, recusou, mas guiado pela “comichão da publicidade” se rendeu e aceitou as nomeações mais adequadas. Vieram mais polcas e “em oito dias estava célebre”. Em suas primeiras composições, Pestana se encontrava envolvido com as polcas, mas rapidamente “voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma cousa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schuman”
      A ambição pela música erudita, fez Pestana se casar com a cantora Maria. Com este casamento, ele pretendia imergir na obra clássica. Tudo isso, entretanto, mostrou-se sem muito êxito; Maria morreu, Pestana tentou compor um Requiem que o executaria no primeiro aniversário da morte dela, mas não atingiu nenhum resultado.
      Nessas circunstâncias, o retorno às polcas foi inevitável. O editor propôs um contrato de vinte polcas em doze meses e Pestana aceitou. Devido à subida dos liberais ao poder, a primeira polca a ser composta já tinha um título pronto: Bravos à Eleição Direta. “Não é política; é um bom título de ocasião”. O editor, portanto, aproveitava-se dos fatos do momento e das questões da moda
para nomear as polcas de Pestana.
     As polcas foram aparecendo com regularidade, mas a informação da subida dos conservadores fez com que o editor viesse pedir uma polca de ocasião. Esse pedido coincidiu com a doença de Pestana, o qual pensando na probabilidade de sua morte declarou que iria fazer duas polcas; “a outra servirá ara quando subirem os liberais”. 
       Assim, Pestana morreu “bem com os homens e mal consigo mesmo”, pois o que ele era, um compositor de polcas, não condizia com o que ele queria ser, um compositor de música clássica. 
V – CONSIDERAÇÕES FINAIS: O INVÓLUCRO SOCIAL
      Transitar entre duas instâncias diferentes é um mecanismo  do qual fazem parte não só os personagens, mas a própria estratégia crítica de Machado de Assis. Enquanto Pestana, Jacobina, Janjão e seu pai, vivem um duelo entre a essência e a aparência, Machado se apresenta entre o dito e o não dito. É na dissimulação, na dualidade e nos disfarces que se insere a crítica machadiana.
      Os três contos apresentados dialogam entre si, pois são guiados pela lógica das aparências, apresentando uma “alma exterior” que muitas vezes não condiz com a realidade. A aparência pode ser enganosa, pois uma máscara encobre a sociedade. Assim, da mesma maneira que encontramos uma sintonia entre esses textos, algumas diferenças também espontam. Frente às peculiaridades de cada um, cabe ressaltar que enquanto a Teoria do Medalhãoe O Espelho alimentam e valorizam a exterioridade, tanto no que diz respeito ao ofício de medalhão, quanto ao ofício de alferes,  Um Homem Célebre se divide entre o seu sucesso e o seu fracasso. Como já fora apontado anteriormente, não podemos perder de vista que a  Teoria do Medalhão, diferentemente de Um Homem Célebre, exalta e persegue uma notoriedade.
      Em um jogo de elementos visíveis e invisíveis ao mesmo tempo,Machado consegue se proteger e diluir os contornos nítidos  da sua crítica. Lembremos do que ele próprio nos relata em uma de suas obras: “houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a
regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí á rua, eu o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito” (2007, p. 72). Nessa perspectiva, ser “o mais encolhido dos caramujos”, significa não só estar resguardado dos possíveis ataques, mas também traduz a forma dissimulada com que ele ataca a estrutura social. Nada está na superfície, nada está facilmente visível; um elemento sempre se esconde nas entrelinhas.  
      Machado se utiliza de um jogo de camuflagens para introduzir o seu pensamento crítico, ao passo que a sociedade faz uso de um  sistema de disfarces ou de máscaras para apenas aparentar algo que, muitas vezes, não se ajusta a realidade. Assim, dentro dessa sociedade, a “alma exterior”
prepondera e nos engana, pois ela nem sempre está em sintonia com a “alma interior”. 
     Portanto, é sob o signo da dissimulação que a poética machadiana se constrói e que a sociedade se reveste de máscaras. Nada mais importante a uma sociedade que segue regras e comportamentos pré-estabelecidos do que apenas aparentar. A essência e a aparência não conseguem encontrar um equilíbrio. Assim, é frente ao Espelho que a alma exterior pode se projetar, é na Teoria Medalhão que aparência pode se sustentar e é em um Homem Célebre
que a dicotomia ser e querer ser pode se relevar. Nesse contexto, por fim, é que Machado lança o seu olhar e configura a sua crítica a essa sociedade das aparências. 


MACHADO DE ASSIS
   Entre os críticos e o público, destacam-se Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. A crítica considera que suas melhores obras são as da Trilogia Realista.
   Sua extensa obra constitui-se de 9 romances e peças teatrais, 200 contos, 5 coletâneas de poemas e sonetos, e mais de 600 crônicas. Machado de Assis é considerado o introdutor do Realismo no Brasil, com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Este romance é posto ao lado de todas suas produções posteriores, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires, ortodoxamente conhecidas como pertencentes a sua segunda fase, em que se notam traços de pessimismo e ironia, embora não haja rompimento de resíduos românticos. Dessa fase, os críticos destacam que suas melhores obras são as da Trilogia Realista.
     Sua primeira fase literária é constituída de obras como Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia, onde notam-se características herdadas do Romantismo, ou "convencionalismo", como prefere a crítica moderna.
      Sua obra foi de fundamental importância para as escolas literárias brasileiras do século XIX e do século XX e surge nos dias de hoje como de grande interesse acadêmico e público. Influenciou grandes nomes das letras, como Olavo Bilac, Lima Barreto, Drummond de Andrade, John Barth, Donald Barthelme e outros. Em seu tempo de vida, alcançou relativa fama e prestígio pelo Brasil, contudo não desfrutou de popularidade exterior na época. Hoje em dia, por sua inovação e audácia em temas precoces, é frequentemente visto como o escritor brasileiro de produção sem precedentes, de modo que, recentemente, seu nome e sua obra têm alcançado diversos críticos, estudiosos e admiradores do mundo inteiro. Machado de Assis é considerado um dos grandes gênios da história da literatura, ao lado de autores como Dante, Shakespeare e Camões.
Crisálidas, teatros e política
     Aos 21 anos de idade Machado já era uma personalidade considerada entre as rodas intelectuais cariocas. A esta altura já era conhecido por Quintino Bocaiúva, que o convidou para o Diário do Rio de Janeiro, onde Machado trabalhou intensamente como repórter e jornalista de 1860 a 1867, com Saldanha Marinho supervisionando-o. Colaborou para o Jornal das Famílias sob pseudônimos: Job, Vitor de Paula, Lara, Max, e para a Semana Ilustrada, assinando seu nome ou pseudos, até 1857. Bocaiúva admirava o gosto de Machado pelo teatro, mas considerava suas obras destinadas à leitura e não à encenação. Com a morte do pai, Machado lhe dedica a coletânea de poesias “Crisálidas”: “À Memória de Francisco José de Assis e Maria Leopoldina Machado de Assis, meus Pais.”
   O jovem Machado aos 25 anos, 1864, gostava de teatro e lutava para subir socialmente.  Em 1865, Machado havia fundado uma sociedade artístico-literária chamada Arcádia Fluminense, onde tivera a oportunidade de promover saraus com leitura de suas poesias e estreitar contato com poetas e intelectuais da região. Com José Zapata y Amat, produziu o hino "Cantada da Arcádia" especialmente para a sociedade. Em 1866, escreveu no Diário do Rio de Janeiro: "A fundação da Arcádia Fluminense foi excelente num sentido: não cremos que ela se propusesse a dirigir o gosto, mas o seu fim decerto que foi estabelecer a convivência literária, como trabalho preliminar para obra de maior extensão. Neste ano, Machado escrevia crítica teatral e, segundo Almir Guilhermino, aprendeu a língua grega para se familiarizar cedo com Platão, Sócrates e o teatro grego. De acordo com Valdemar de Oliveira, Machado era "rato de coxia" e frequentador de rodas teatrais junto com José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, e outros.
       No ano seguinte, 1867, subiu a escala funcional como burocrata, e no mesmo ano foi nomeado diretor-assistente do Diário Oficial pelo D. Pedro II. Com a ascensão do Partido Liberal pelo país, Machado acreditava que seria lembrado por seus amigos e que receberia um cargo público que melhoraria sua qualidade de vida, contudo foi em vão. À época de seu serviço no Diário do Rio de Janeiro, teve seus ideais combativos com ideias progressivas; por conta disso seu nome foi anunciado como candidato a deputado pelo Partido Liberal do Império — candidatura que logo retirou por querer comprometer sua vida somente às letras.Para sua surpresa, a ajuda veio novamente de um ato de Pedro II, com a nomeação para o cargo de assistente do diretor, e que, mais tarde, em 1888, lhe condecoraria como oficial da Ordem Da Rosa.
       A esta altura já era amigo de José de Alencar, que lhe ensinou um pouco de língua inglesa. Ambos os autores, no mesmo ano, recepcionaram o ambicioso e famoso poeta Castro Alves, vindo da Bahia, na imprensa da Corte do Rio de Janeiro. Machado diria sobre o poeta baiano: "Achei uma vocação literária cheia de vida e robustez, deixando antever nas magnificências do presente as promessas do futuro." Os direitos autorais por suas publicações e crônicas em jornais e revistas, acrescido da promoção que recebera da Princesa Isabel em 7 de dezembro de 1876 como chefe de seção, rendeu-lhe 5.400$000 anuais. O menino nascido no morro havia subido de vida. Graças à sua nova posição, mudou do centro da cidade para o Bairro do Catete, na Rua do Catete nº 206, onde morou durante 6 anos, dos 37 até seus 43.
Noivado, cartas e relacionamento
      A jovem simpática e culta Carolina Augusta, c. 1890, conquistou o coração de Machado. No mesmo ano ao da reunião com o poeta, Machado teria um outro encontro que mudou de vez a sua vida. Um de seus amigos, Faustino Xavier de Novaes (1820-1869), poeta residente em Petrópolis, e jornalista da revista O Futuro,  estava mantendo sua irmã, a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais, desde 1866 em sua casa, quando ela chegou ao Rio de Janeiro do Porto. Segundo os biógrafos, veio a fim de cuidar de seu irmão que estava enfermo, enquanto outros dizem que foi para esquecer uma frustração amorosa. Carolina despertara a atenção de muitos cariocas; muitos homens que a conheciam achavam-na atraente, e extremamente simpática. Com o poeta, jornalista e dramaturgo Machado de Assis não fora diferente. Tão logo conhecera a irmã do amigo, logo apaixonou-se. Até essa data o único livro publicado de Machado era o poético Crisálidas (1864) e também havia escrito a peça Hoje Avental, Amanhã Luva (1860), ambos sem muita repercussão.    
      Carolina era cinco anos mais velha que ele; deveria ter uns trinta e dois anos na época do noivado. Os irmãos de Carolina, Miguel e Adelaide (Faustino já havia morrido devido a uma doença que o levou à insanidade), não concordaram que ela se envolvesse com um mulato. Contudo, Machado de Assis e Carolina Augusta se casaram no dia 12 de Novembro de 1869.
      Diz-se que Machado não era um homem bonito, mas era culto e elegante. Estava apaixonado por sua "Carola", apelido dado pelo marido. Entusiasmava a esposa com cartas românticas e que previam o destino dos dois; durante o noivado, em 2 de março de 1869, Machado havia escrito uma carta íntima que dizia: "...depois, querida, ganharemos o mundo, porque só é verdadeiramente senhor do mundo quem está acima das suas glórias fofas e das suas ambições estéreis." Suas cartas endereçadas a Carolina são todas assinadas como "Machadinho". Outra carta justifica uma certa complexidade no começo de seu relacionamento: "Sofreste tanto que até perdeste a consciência do teu império; estás pronta a obedecer; admiras-te de seres obedecida", o que é um mistério para os recentes estudiosos das correspondências do autor. A carta do primeiro trecho aqui transposto traz uma alusão às flores que a esposa lhe teria mandado e ele, agradecido, teria as beijado duas vezes como se beijasse a própria Carolina.
      Noutro parágrafo, diz: "Tu pertences ao pequeno número de mulheres que ainda sabem amar, sentir e pensar." De fato, Carolina era extremamente culta. Apresentou a Machado os grandes clássicos portugueses e diversos autores da língua inglesa. A sobrinha-bisneta de Carolina, Ruth Leitão de Carvalho Lima, sua única herdeira, revelou numa entrevista de 2008 que, frequentemente, a esposa retificava os textos do marido durante sua ausência. Conta-se que muito provavelmente tenha influenciado no modo de Machado escrever e, consecutivamente, tenha contribuído para a transição de sua narrativa convencional à realista. Não tiveram filhos. Tinham, no entanto, uma cadela tenerife (também conhecidos como Bichon Frisé) chamada Graziela e que certa vez se perdeu entre as ruas do bairro e, atônitos, foram achá-la dias depois na rua Bento Lisboa, no Catete.
Casamento, histórias e lendas
     Depois do Catete, foram morar na casa nº 18 da Rua Cosme Velho (a residência mais famosa do casal), onde ficariam até a morte. Do nome da rua surgira o apelido Bruxo do Cosme Velho, dado por conta de um episódio onde Machado queimava suas cartas em um caldeirão, no sobrado da casa, quando a vizinhança certa vez o viu e gritou: "Olha o Bruxo do Cosme Velho!" Essa história acrescida à da cachorra, para alguns biógrafos, não passa de lenda. Machado de Assis e Carolina Augusta teriam vivido uma "vida conjugal perfeita" por longos 35 anos. Quando os amigos certa vez desconfiaram de uma traição por parte de Machado, seguiram-no e acabaram por descobrir que ele ia todas as tardes avistar a moça do quadro de A Dama do Livro (1882), de Roberto Fontana. Ao saberem que Machado não podia comprá-lo, deram-lhe de presente, o que o deixou particularmente feliz e grato. No entanto, talvez a "única nuvem negra a toldar a sua paz doméstica" tenha sido um possível caso extraconjugal que tivera durante a circulação de Memórias Póstumas de Brás Cubas.
     Em 18 de novembro de 1902, reverte à atividade na Secretaria da Indústria do Ministério da Viação, Indústria e Obras Públicas, como diretor-geral de Contabilidade, por decisão do ministro da Viação, Lauro Severiano Müller.Em 20 de outubro de 1904, Carolina morre aos 70 anos de idade. Foi um baque na vida de Machado, que passou uma temporada em Nova Friburgo. Segundo o biógrafo Daniel Piza, Carolina comentava com amigas que Machado deveria morrer antes para não sofrer caso ela partisse cedo. Seu casamento com Carolina fez com que ela estimulasse seu lado intelectual deficiente pelos poucos estudos  que tinha realizado na juventude e trouxe-lhe a serenidade emocional que ele tanto precisava por ter saúde frágil. As três heroínas de Memorial de Ayres chamam-se Carmo, Rita e Fidélia, o que estudiosos crêem representar três aspectos da Carolina, a "mãe", "irmã" e "esposa". Machado também lhe dedicou seu último soneto, "A Carolina",  que Manuel Bandeira afirmaria, anos mais tarde,  é uma das peças mais comoventes da literatura brasileira.De acordo com alguns biógrafos o túmulo de Carolina era visitado todos os domingos por Machado.
Academia Brasileira de Letras
    Inspirados na Academia Francesa, Medeiros e Albuquerque, Lúcio de Mendonça, e o grupo de intelectuais da Revista Brasileira idearam e fundaram, em 1897, junto ao entusiasmado e apoiador Machado de Assis, a Academia Brasileira de Letras, com o objetivo de cultuar a cultura brasileira e, principalmente, a literatura nacional. Unanimemente, Machado de Assis foi eleito primeiro presidente da Academia logo que ela havia sido instalada, no dia 28 de janeiro do mesmo ano. Como escreve Gustavo Bernardo, "Quando se fala que Machado fundou a Academia, no fundo o que se quer dizer é que Machado pensava na Academia. Os escritores a fundaram e precisaram de um presidente em torno do qual não houvesse discussão." No discurso inaugural, Machado aconselhou aos presentes: "Passai aos vossos sucessores o pensamento e a vontade iniciais, para que eles os transmitam também aos seus, e a vossa obra seja contada entre as sólidas e brilhantes páginas da nossa vida brasileira."
       A Academia surgiu mais como um vínculo de ordem cordial entre amigos do que de ordem intelectual. No entanto, a ideia do instituto não foi bem aceita por alguns: Antônio Sales testemunhou numa página de reminiscência: "Lembro-me bem que José Veríssimo, pelo menos, não lhe fez bom acolhimento. Machado, creio, fez a princípio algumas objeções." Como presidente, Machado fazia sugestões, concordava com ideias, insinuava, mas nada impunha nem impedia aos companheiros. Era um acadêmico assíduo. Das 96 sessões que a Academia realizou durante a sua presidência, faltou somente a duas. Em 1901, criou a "Panelinha" para a realização de festivos ágapes e encontros de escritores e artistas. De fato, a expressão panelinha foi inventada destes encontros, onde os convidados eram servidos em uma panela de prata, motivo pelo qual o grupo passou a ser conhecido como Panelinha de Prata. Machado devotou-se ao cargo de presidente da Academia durante 10 anos, até a sua morte. Como homenagem informal, ela passou a chamar-se "Casa de Machado de Assis". Hoje em dia a Academia abriga coleções de Olavo Bilac e Manuel Bandeira, e uma sala chamada de Espaço Machado de Assis, em homenagem ao autor, que se dedica a estudar sua vida e obra e que guarda objetos pessoais seus; além disso, a Academia possui uma rara edição de 1572 de Os Lusíadas.
Últimos anos
    Com a morte da esposa, entrou em profunda depressão, notada pelos amigos que lhe visitavam, e, cada vez mais recluso, encaminhou-se também para sua morte. Numa carta endereçada ao amigo Joaquim Nabuco, Machado lamenta que "foi-se a melhor parte da minha vida, e aqui estou só no mundo [...]" Antes de sua morte, em 1908, e depois da morte da esposa, em 1904, Machado viu publicar suas últimas obras: Esaú e Jacó (1904), Memorial de Aires (1908), e Relíquias da Casa Velha (1906). No mesmo ano desta última obra, escreveu sua última peça teatral, Lição de Botânica. Em 1905, participou de uma sessão solene da Academia para a entrega de um ramo de carvalho de Tasso, remetido por Joaquim Nabuco. Com Relíquias, reuniu em livro mais algumas de suas produções, como também o soneto "A Carolina", "preito de saudade à esposa morta." Em 1907, dá início ao seu último romance, Memorial de Aires, que é um livro norteado por uma poesia leve e tranquila e tendente à saudade.
     Mesmo abalado, continuava lendo, trabalhando, estudando, frequentando algumas rodas de amigos. Em seus últimos anos, teria iniciado estudos da língua grega, embora outros autores apontam que tentava se familiarizar com ela desde cedo. No primeiro dia de julho de 1908, Machado de Assis entra em licença para tratamento de saúde, e nunca mais retorna ao Ministério da Viação. Personalidades ilustres, como o Barão do Rio Branco, e intelectuais ou colegas, vão visitá-lo. Em um documento manuscrito do mesmo ano, Mário de Alencar escreve, amargamente: "Venho da casa de Machado de Assis, por onde estive todo o sábado, ontem e hoje, e agora estou sem ânimo de continuar a ver-lhe o sofrimento; tenho receio de assistir ao fim que eu desejo não tarde. Eu, seu amigo e seu admirador grande, desejo que ele morra, mas não tenho coragem de o ver morrer."
     Em 1906, escreve seu último testamento. O primeiro, escrito em 30 de junho de 1898, deixava todos seus bens à esposa Carolina. Com a morte desta, pensou numa partilha amigável com a irmã de Carolina, Adelaide Xavier de Novais, e sobrinhos, efetuando este segundo e último testamento em 31 de maio de 1906, instituindo sua herdeira única "a menina Laura", filha de sua sobrinha Sara Gomes da Costa e de seu esposo major Bonifácio Gomes da Costa, nomeado primeiro testamenteiro. Em suas últimas semanas, Machado de Assis escreveu cartas a Salvador de Mendonça (7 de setembro de 1908), a José Veríssimo (1º de setembro de 1908), a Mário de Alencar (6 de agosto de 1908), a Joaquim Nabuco (1º de agosto de 1908), a Oliveira Lima (1º de agosto de 1908), entre outros, demonstrando ainda estar lúcido.
Morte
    Às 3h20m, de 29 de setembro de 1908, na casa de Cosme Velho, Machado de Assis morre, aos sessenta e nove anos de idade,com uma úlcera cancerosa na boca; sua certidão de óbito relata que morrera de arteriosclerose generalizada, incluindo esclerose cerebral, o que, para alguns, figura questionável pelo motivo de mostrar-se lúcido nas últimas cartas já relatadas. Ao geral, teve uma morte tranquila, cercado pelos companheiros mais íntimos que havia feito no Rio de Janeiro: Mário de Alencar, José Veríssimo, Coelho Neto, Raimundo Correia, Rodrigo Otávio, Euclides da Cunha, etc.  Este último relatou, no Jornal do Comércio, no mesmo ano do falecimento: "Na noite em que faleceu Machado de Assis, quem penetrasse na vivenda do poeta, em Laranjeiras, não acreditaria que estivesse tão próximo o desenlace de sua enfermidade." Euclides ainda escreveu: "Na sala de jantar, para onde dizia o quarto do querido mestre, um grupo de senhoras – ontem meninas que ele carregara no colo, hoje nobilíssimas mães de família – comentavam-lhe os lances encantadores da vida e reliam-lhe antigos versos, ainda inéditos, avaramente guardados em álbuns caprichosos."
      Em nome da Academia Brasileira de Letras, Rui Barbosa encarregou-se de fazer-lhe o elogio fúnebre. Em nome do governo, o então ministro do interior Tavares de Lyra discursou em pesar da morte do escritor. O velório ocorreu no Syllogeu Brasileiro da Academia; seu corpo no caixão, como relatara Nélida Piñon, "cercava-se de flores, círios de prata e lágrimas discretas." O rosto estava coberto por um lenço de cambraia e eram muitas pessoas presentes. Diversas pessoas, entre elas vizinhos, e companheiros de rodas intelectuais, ou amigos, ou colegas com que trabalhou, encheram o saguão. No mesmo discurso, Nélida comparou a despedida do autor como Paris que seguia o cortejo de Victor Hugo. De fato, uma multidão saía da Academia e sustentava o caixão do autor até o Cemitério São João Batista, enquanto outros acompanhavam de carro. Segundo sua vontade, foi enterrado na sepultura da esposa Carolina, jazigo perpétuo 1359. A Gazeta de Notícias e o Jornal do Brasil deram uma grande cobertura à morte, ao funeral e ao enterro de Machado. Em Lisboa, todos os jornais da cidade publicaram uma biografia de Machado de Assis, anunciando sua morte. Em 21 de abril de 1999, os restos mortais do casal foram transladados para o Mausoléu da Academia, no mesmo cemitério, onde também estão os restos de personalidades como João Cabral de Melo Neto, Darcy Ribeiro e Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.
Obra
     Em sua História da Literatura Brasileira, José Veríssimo dedica-se a um capítulo inteiro para tratar de Machado de Assis e lhe separa duas fases de sua obra: uma ligada à escola romântica (ou aos convencionalismos da época) e outra realista. Os romances da primeira fase seriam Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), enquanto que os da segunda seriam todos os outros restantes de sua carreira, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), pertencentes ao Realismo. Embora esta divisão seja ortodoxa entre os acadêmicos, o próprio Machado escrevera numa apresentação de uma reedição de Helena que este romance e os outros de sua fase "romanesca" possuíam um "eco de mocidade e fé ingênua."
       Contos Fluminenses (1872) e Histórias da Meia Noite (1873), consecutivamente, são posicionados em sua primeira fase, e Ocidentais (1882), ao lado de Histórias sem Data (1884), Várias Histórias (1896), Páginas Recolhidas (1899), e Relíquias da Casa Velha (1906), na segunda.       
      Seus dois primeiros livros de estreia, Crisálidas (1864) e Falenas (1870), são poéticos. Vinte e dois poemas, escritos entre 1858 e 64, compunham este primeiro livro. Há nestes poemas todos uma emoção "menos desbordante" que o comum lirismo da literatura brasileira. As Crisálidas eram inspiradas por intensas emoções amorosas ou pelo belo do feminino; os tercetos de "No Limiar" e os alexandrinos de "Aspiração" prefiguram os temas subjetivos e sentidamente idealizados de suas Ocidentais de 1882, embora não apresentassem excesso de sentimentalismo ou exagero de idealismo mas estremes da oratória. Os dois livros poéticos embebiam-se dos cânones românticos, mas não se filiavam à natureza tropical do país. Três anos antes destas duas publicações, Machado estreava como dramaturgo com a comédia Desencantos e a sátira Queda que as Mulheres Têm para os Tolos (tradução do livro de Victor Hénaux). Após 1866, a produção poética e teatral, outrora frequente, torna-se escassa.
    "Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferente páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua. E claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo." —Apresentação de Machado de Assis a uma reedição de Helena, em que fala sobre a mudança de seu estilo literário.
     Liberto da "Escola Romântica" ou do "convencionalismo", como prefere a crítica moderna, Machado assume uma posição mais madura de sua carreira e compõe sucessivamente o que seriam todas as suas principais obras. A brusca mutação do autor é estudada pelos biógrafos juntamente com sua suposta "crise espiritual dos 40 anos" e da estadia que tivera de fazer para Nova Friburgo, após a morte da esposa. Apesar dessa sua segunda fase ser chamada "realista", críticos modernos argumentam que, ao contrário dos realistas, "que eram muito dependentes de um certo esquematismo determinista, Machado não procura causas muito explícitas ou claras para a explicação das personagens e situações". Além disso, Machado criticava filosofias como o determinismo e o cientificismo da segunda metade do século XIX, fazendo com que suas obras não se encaixem perfeitamente nos pressupostos estéticos do Realismo.
       Após Memórias Póstumas de Brás Cubas, sucedem-se diversas escritas de contos cuja estética é vista como "mais madura" e cujos temas são mais ousados. "A Causa Secreta", "Capítulos dos Chapéus", "A Igreja do Diabo" e "Pai Contra Mãe" fazem parte desta fase.
      Iniciou sua carreira como contista em 1858, com "Três Tesouros Perdidos", e seguiu no ramo escrevendo contos em climas de tensões e de intensidade nos acontecimentos. Por vezes seus contos são anedóticos, como em "A Cartomante", onde existe um final surpreendente, ou moderno, com o simples flagrante de um cotidiano, como em "Conto de Escola", ou de caráter, como em "Um Homem Célebre" ou em "O Espelho", que busca traçar "tipos humanos determinados em ideias fixas".
        Escrevendo prolificamente conto e romance, surgiu o debate se Machado de Assis era mais genial em um ou em outro. Em 1882, publica O Alienista, que para alguns trata-se de conto, enquanto que para outros é uma novela. É eminente, contudo, diferenciar a forma dos dois gêneros em Machado: seu romance "procura representar o mundo como um todo: persegue a espinha dorsal e o conjunto da sociedade", enquanto que seu conto "é a representação de uma pequena parte desse conjunto, mas não de qualquer parte, e sim daquela especial de que se pode tirar algum sentido." Em sua produção final, publicou o "diplomático romance" Memorial de Aires e a peça teatral Lição de Botânica.
Estilo
   A obra de Machado de Assis assume uma originalidade despreocupada com as modas literárias dominantes de seu tempo. Os acadêmicos notam cinco fundamentais enquadramentos em seus textos: "elementos clássicos" (equilíbrio, concisão, contenção lírica e expressional), "resíduos românticos" (narrativas convencionais ao enredo), "aproximações realistas" (atitude crítica, objetividade, temas contemporâneos), "procedimentos impressionistas" (recriação do passado através da memória), e "antecipações modernas" (o elíptico e o alusivo engajados a um tema que permite diversas leituras e interpretações).
      Se, por um lado, os realistas que seguiam Flaubert esqueciam do narrador por detrás da objetividade narrativa, e os naturalistas, à exemplo de Zola, narravam todos os detalhes do enredo, Machado de Assis optou por abster-se de ambos os métodos para cultivar o fragmentário e interferir na narrativa com o objetivo de dialogar com o leitor, comentando seu próprio romance com filosofias, metalinguagens, intertextualidade. Em tom absolutamente não-enfático, neutro, sem retórica, as obras de ficção machadianas possuem na maior parte das vezes um humor reflexivo, ora amargo, ora divertido. De fato, uma de suas características mais apreciadas é a ironia, que os estudiosos consideram a "arma mais corrosiva da crítica machadiana". Num processo próximo ao do "impressionismo associativo", há de certo uma ruptura com a narrativa linear, de modo que as ações não seguem um fio lógico ou cronológico, mas que é relatado conforme surgem na memória das personagens ou do narrador. Sua mensagem artística se dá por meio de uma interrupção na narrativa para dialogar com o leitor sobre a própria escritura do romance, ou sobre o caráter de determinado personagem ou sobre qualquer outro tema universal, numa organização metalinguística que constituía seu principal interesse como autor.
     Machado de Assis, como exímio intelectual e leitor, atribui a sua obra caracteres de arquétipos. Os irmãos Pedro e Paulo, em Esaú e Jacó, por exemplo, remontam ao arquétipo bíblico da rivalidade entre Esaú e Jacó, mas dessa vez personificando a nova República e a já "despedaçada" Monarquia, enquanto a psicose do ciúme de Bentinho em Dom Casmurro aproxima-se do drama Otelo, de William Shakespeare. Os acadêmicos também notam a constante presença do pessimismo. Suas últimas obras de ficção assumem uma postura desencantada da vida, da sociedade, e do homem. Crê-se que não acreditava em nenhum valor de seu tempo e nem mesmo em algum outro valor e que o importante para ele seria desmascarar o cinismo e a hipocrisia política e social. O capítulo final de Memórias Póstumas de Brás Cubas é exemplo cabal do pessimismo que vigora na fase madura de Machado de Assis e do narrador morto:
      Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. — Memórias Póstumas de Brás Cubas, Capítulo CLX.
       Sua preocupação no psicologismo das personagens obrigavam-no a escrever numa narrativa lenta que não prejudicasse o menor detalhe para que este não comprometesse o quadro psicológico do enredo. Sua atenção desvia-se comumente do coletivo para ir à mente e à alma do ser humano — fator denominado "microrrealismo". Por conta destas características, Machado criou um estilo enxuto que os acadêmicos chamam de "quase britânico".  Sua economia vocabular é rara na literatura brasileira, ainda mais se procurada em autores como Castro Alves, José de Alencar ou Rui Barbosa, que tendem ao uso imoderado do adjetivo e do advérbio. Embora enxuta, não era adepto de uma linguagem mecânica ou simétrica, e sim medida por seu ritmo interior.
Temática
     A temática de Machado envolve desde o uso de citações referentes a eventos de sua época até os mais intricados conflitos da condição humana. É capaz de retratar desde relações implicitamente homossexuais e homoeróticas, como no conto "Pílades e Orestes", até temas mais complexos e explícitos como a escravidão sob o ponto de vista cínico do senhor de escravos, sempre criticando-o de forma oblíqua. Sobre a escravidão, Machado de Assis já havia tido uma experiência familiar, quer por seus avós paternos terem sido escravos, quer porque lia os jornais com anúncios de escravos fugitivos. Em seu tempo, a literatura que denunciava crenças etnocêntricas que posicionavam os negros no último grau da escala social era distorcida ou tolhida, de modo que este tema encontra uma grande expressividade na obra do autor. A começar, as Memórias Póstumas de Brás Cubas narra o que seria uma das páginas de ficção mais perturbadoras já escritas sobre a psicologia do escravismo: o negro liberto compra seu próprio escravo para tirar sua desforra.
    Outras obras notáveis, como Memorial de Aires, ou a crônica Bons Dias! de maio de 1888, ou o conto "Pai Contra Mãe" (1905), expõem explicitamente as críticas à escravidão. Esta última é uma obra pós-escravidão, como podemos notar na frase de início: A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos [...] Um destes ofícios e aparelhos a que Machado refere-se é o ferro que prendia o pescoço e os pés dos escravos e a máscara de folha-de-flandres. O conto é ainda uma análise de como o fim da escravidão levara estes aparelhos para a extinção, mas não levou a miséria e a pobreza. Roberto Schwarz escreve que "se grande parte do trabalho era exercido pelos escravos, restava aos homens livres trabalhos mal remunerados e instáveis." Schwarz nota que tal dificuldade dos homens livres, somada às relações dependentes que estes homens traçarão para sua sobrevivência, são grandes temas no romance machadiano. Para Machado, o trabalho acabaria com as diferenças impostas pela escravidão.
      Castro Alves escrevia sobre a violência explícita a que os escravos estavam expostos, enquanto Machado de Assis escrevia as violências implícitas, como a dissimulação e a falsa camaradagem na relação senhor e escravo. Este mesmo caráter dissimulativo também é encontrado em sua ótica acerca da República e da Monarquia. Um de seus últimos romances, Esaú e Jacó, é considerado uma alegoria sobre as duas formas de governo e, principalmente, sobre a substituição de um pelo outro em território nacional. Numa das linhas da obra, os irmãos Paulo, republicano, e Pedro, monarquista, discutiam a proclamação da República; o primeiro, que admirava Deodoro da Fonseca, afirmava que Podia ter sido mais turbulento. enquanto Pedro afirmava: Um crime e um disparate, além de ingratidão; o imperador devia ter pegado os principais cabeças e mandá-los executar. (...) Ambos avultam o fato de o regime ter sido mudado por um golpe de estado, sem barricadas nem participação popular.
       Outra temática notada pelos acadêmicos na obra machadiana é a filosofia que lhe é peculiar. Há em sua obra um constante questionamento sobre o homem na sociedade e sobre o homem diante de si próprio. O "Humanitismo", elaborado pelo filósofo Joaquim Borba dos Santos em Quincas Borba, constitui-se da ideia "do império da lei do mais forte, do mais rico e do mais esperto". Antonio Candido escreveu que a essência do pensamento machadiano é "a transformação do homem em objeto do homem, que é uma das maldições ligadas à falta de liberdade verdadeira, econômica e espiritual." Os críticos notam que o "Humanitismo" de Machado não passa de uma sátira ao positivismo de Auguste Comte e ao cientificismo do século XIX, bem como a teoria de Charles Darwin acerca da seleção natural. Seu Quincas Borba apresenta um conceito onde "a ascensão de um se faz a partir da anulação do outro" e que, em essência, constitui a vida inteira do personagem Rubião, que morre desagregado e crendo ser Napoleão. Desta forma, a teoria do "ao vencedor, as batatas" seria uma paródia à ciência da época de Machado; sua divulgação seria uma forma de desnudar ironicamente o caráter desumano e antiético do pensamento da "lei do mais forte".
     Aos moldes do Naturalismo, Machado de Assis também retratava a sociedade de forma coletiva. Roberto Schwarz propôs que A Mão e a Luva, Helena, Iaiá Garcia e Ressurreição são romances sobre tradições, casamento, família ligadas ao homem e à mulher. A mulher tem papel fundamental no texto machadiano. Tanto em sua fase romântica, com Ressurreição, onde ele descreve o "gracioso busto" da personagem Lívia, até sua fase realista, onde nota-se uma fixação pelo olhar dúbio de Capitu em Dom Casmurro. Suas mulheres são "capazes de conduzir a ação, apesar do predomínio da trama romanesca não ter se esvaziado."As personagens femininas de Machado de Assis, ao contrário das mulheres de outros românticos — que faziam a heroína dependente de outras figuras e indisposta à ação principal na narrativa — são extremamente objetivas e possuem força de caráter: a já citada Lívia de Ressurreição é quem culmina no rompimento de seu caso com o personagem Félix e é da Guiomar de A Mão e a Luva de quem parte a procura por Luiz Alves, que satisfará suas ambições, assim como a heroína de Helena deixa-se morrer para não se passar como aventureira e, por fim, a Estela de Iaiá Garcia, que conduz a ação e promove o destino dos demais personagens.
Crítica literária
   José de Alencar chamou Machado de Assis "o primeiro crítico brasileiro".De fato, o escritor foi um prolífico analisador da literatura de sua época antes mesmo de Sílvio Romero. Além de percorrer e analisar as obras publicadas em sua época, ele escrevia sobre a literatura vigente. Mário de Alencar escreve que Machado começou como crítico antes mesmo de ser romancista: pretérito a Ressurreição (1872), suas críticas iniciaram-se em 1858.[147] Estes textos circularam exclusivamente em jornais e revistas — A Marmota, A Semana Ilustrada, O Novo Mundo, Correio Mercantil, O Cruzeiro, Gazeta de Notícias, Revista Brasileira — até 1910, quando Alencar reuniu estes textos num volume. Segundo Machado de Assis, para o crítico efetuar o julgamento de uma obra, "cumpre-lhe meditar profundamente sobre ela, procurar-lhe o sentido íntimo, aplicar-lhe as leis poéticas, ver enfim até que ponto a imaginação e a verdade conferenciaram para aquela produção."
      Em críticas poéticas, preocupou-se, portanto, com a métrica, o verso e com a "sensibilidade" e o "sentimento" do poeta. Quanto à Lira dos Vinte Anos (1853) de Álvares de Azevedo, Machado destacou a imaginação vigorosa e o talento robusto do poeta que morreu muito jovem, mas que deixou uma obra de "seiva poderosa".Na prosa, destaca seu enredo e desenvolvimento. Elogiou as obras O Guarani (1857) e Iracema (1865) de José de Alencar, chamando-lhes de "poemas em prosa". Machado reprovava o recurso inverossímil ou fortuito na trama prosaica — e este foi um dos motivos de criticar severamente O Primo Basílio (1878) de Eça de Queirós, razão pela qual foi alvo de ataques de colegas e outros críticos brasileiros que haviam aceitado a obra. Por um outro lado, preconizava a simplicidade, e por isto elogiou as Cenas da Vida Amazônica (1899) do colega José Veríssimo. Embora desse valor a estas características, era explicitamente avesso à rotulação de teorias, escolas ou estilos artísticos; criticava a ligação de Eça com o Realismo, ao pedir: "Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o realismo; assim não sacrificaremos a verdade estética." Também reprovava em Eça a descrição naturalista das cenas de adultério, ao escrever: "essa pintura, esse aroma de alcova, essa descrição minuciosa, quase técnica, das relações adúlteras, eis o mal."
     Seus escritos críticos culminaram numa análise comparativa entre literatura e política. Em geral, por exemplo, na resenha "Garrett" (1899), celebrou o escritor que havia em Almeida Garrett, mas desprezou a política que havia nele. Do mesmo modo, na resenha de 1901 sobre Pensées détaches et souvenirs, Machado comemorou o fato de a política não ter ofuscado a obra do colega Joaquim Nabuco. E, no entanto, Machado de Assis aderiu à questão da nacionalidade que a geração de 1870 questionava fortemente. Escreveu o artigo "Literatura brasileira: instinto de nacionalidade" (1873). O artigo analisa praticamente todos os gêneros a que a literatura nacional aderiu durante os séculos. Concluiu que o teatro é praticamente ausente, falta uma crítica literária elevada, a poesia se orienta pela "cor local" mas ainda é débil, a língua é por demais influenciada pelo francês, mas o romance, por sua vez, "já deu frutos excelentes e os há de dar em muito maior escala."Machado acreditava que o escritor brasileiro precisaria unir o universalismo com os problemas e os eventos do país, num sistema que Schwarz definiu como "dialética do local e do universal". Entre as críticas já detalhadas, também analisou Junqueira Freire, Fagundes Varela, entre outros.
   Tem surgido a questão entre os estudiosos de Machado se ele não começou a escrever romances por conta da crítica. O estudioso Luis Costa Lima aventa a hipótese de que se Machado houvesse insistido no exercício da crítica teria tido dificuldades de circulação e produção literárias naquele ambiente sócio-cultural. Mário de Alencar, contudo, não sentia-se por inteiro satisfeito com o crítico literário Machado de Assis: "Suscetível, suspicaz, delicado em extremo, receava magoar ainda que dizendo a verdade; e quando sentiu os riscos da profissão, já meio dissuadido da utilidade do trabalho pela escassez da matéria, deixou a crítica individualizada dos autores pela crítica geral dos homens e das coisas, mais serena, mais eficaz, e ao gosto do seu espírito." Sobre a literatura de seu tempo, Machado afirmava que as obras de Basílio da Gama e de Santa Rita Durão "quiserem antes ostentar certa cor local do que tornar independente a literatura brasileira, literatura que não existe ainda, que mal poderá ir alvorecendo agora."
Especulações sobre Machado
Política
“Que é a política senão obra de homens?”—Machado de Assis.
    Machado de Assis pôde assistir, ao longo do século XIX e no começo do século XX, a alterações vastas e decisivas no cenário internacional e nacional, nos costumes, nas ciências da natureza e da sociedade, nas técnicas e em tudo o que entende com o progresso material. Alguns estudiosos supõem, no entanto, que as crenças atribuídas a Machado de Assis como um escritor engajado são falsas e que ele não esperava nada ou quase nada da história e da política. Por exemplo: quanto às guerras e os conflitos políticos de sua época, dá de ombros, ao escrever:
    "Guerras africanas, rebeliões asiáticas, queda do gabinete francês, agitação política, a proposta de supressão do senado, a caixa do Egito, o socialismo, a anarquia, a crise europeia, que faz estremecer o solo, e só não explode porque a natureza, minha amiga, aborrece este verbo, mas há de estourar, com certeza, antes do fim do século, que me importa tudo isso? Que me importa que, na ilha de Creta, cristãos e muçulmanos se matem uns aos outros, segundo dizem telegramas de 25? E o acordo, que anteontem estava feito entre chilenos e argentinos, e já ontem deixou de estar feito, que tenho eu com esse sangue e com o que há de correr?"
    Por outro lado, Machado foi um grande comentador dos casos que ocorriam com os políticos do país. Suas crônicas estão repletas destes comentários. Em 1868, por exemplo, D. Pedro II demitiu o gabinete liberal de Zacarias de Góis e substitui-o pelo gabinete conservador de Itaboraí. Grêmios e jornais liberais acusaram a atitude do imperador de bonapartista.  Machado testemunhou o ato com simpatia aos liberais; de fato, era essa a sua "cor ideológica" ao longo dos anos 60. Em 1895, ao noticiar a morte de Joaquim Saldanha Marinho, liberal, maçom e republicano, Machado escreveu: "Os liberais voltaram mais tarde, tornaram a sair e a voltar, até que se foram de vez, como os conservadores, e com uns e outros o Império." Sabe-se, também, que Machado era fervorosamente contra a escravidão. Em 1888, com a abolição da escravatura, sai às ruas em carruagem aberta, como escreveu numa crônica de A Semana:
   "Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente [ Princesa Isabel ] sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta (...) Verdadeiramente, foi o único dia de delírio que me lembra ter visto."
     Em crônica de 22 de julho de 1894, intitulada "Canção de Piratas", também refere-se à Guerra de Canudos (1896-1897), apoiando Antonio Conselheiro de Canudos por seus legionários se indignarem com a realidade clichê e tediante da época, e escreve: "Jornais e telegramas dizem dos clavinoteiros e dos sequazes do Conselheiro que são criminosos; nem outra palavra pode sair de cérebros alinhados, registrados, qualificados, cérebros eleitores e contribuintes. Para nós, artistas, é a renascença, é um raio de sol que, através da chuva miúda e aborrecida, vem dourar-nos a janela e a alma. É a poesia que nos levanta do meio da prosa chilra e dura deste fim de século."
     Ele fundou em 1860 com seu cunhado Josefino Vieira o periódico O Jequitinhonha, por meio do qual teria difundido o ideal republicano. No entanto, a República trouxe muitos desagrados a ele. Com o fim do Império, o jornalismo começou a dar mais atenção à companhias, aos bancos e à Bolsa do que à arena parlamentar. Neste breve período, o capitalismo brasileiro, mediado pelo Estado, "ensaiava temerariamente os primeiros passos no regime nascente", como escreveu Raimundo Faoro. Sabe-se que Machado detestava o "vale-tudo do dinheiro pelo dinheiro". Em crônica de 18, escreveu: "Prisões, que tenho eu com elas? Processos, que tenho eu com eles? Não dirijo companhia alguma, nem anônima, nem pseudônima; não fundei bancos, nem me disponho a fundá-los; e, de todas as coisas deste mundo e do outro, a que menos entendo, é o câmbio. (...) Finanças, finanças, são tudo finanças."
     Machado acreditava que o sonho poético de outrora estava se desfazendo com a modernização política. E, de certa forma, ele mesmo se desfazia: em 1900, envia uma carta a um colega discutindo se o que aparecia naquele determinado momento eram os "pés" do século XIX ou se já era a "cabeça" do século XX e ele afirma: "eu sou pela cabeça", ou seja, "meu século já acabou". Alfredo Bosi escreveu que o autor não via maus ou bons resultados na mudança do "despotismo milenar" ao "liberalismo dos reformadores turcos", mas que a "beleza da tradição" [ monárquica ] sucumbia à "força das mudanças ideológicas". Para Machado de Assis, enfim, tudo tinha sua mudança. Em crônica do dia 16 de junho de 1878, escreveu: "Os dias passam, e os meses, e os anos, e as situações políticas, e as gerações, e os sentimentos, e as ideias."
Religião
      Tem-se intensificado a tentativa de descobrir a religião de Machado de Assis. Sabe-se que na infância ajudava uma igreja local e que fora parcialmente educado em idiomas por um padre, o já citado Silveira Sarmento. Analisando sua obra, muitos críticos o colocaram ao lado de Otávio Brandão, crendo que ele era adepto absoluto do niilismo.Outros o enxergavam como um perfeito ateu, no entanto recebeu profunda influência de textos católicos (ver seção Leituras). De fato, a religião de Machado de Assis tornou-se tão obscura que talvez não haja outro método senão procurá-la em sua obra.
Visão
"Vi de um lado o Calvário, e do outro lado
O Capitólio, o templo-cidadela.
E torvo mar entre ambos agitado,
Como se agita o mar numa procela. [...]"
     Como poeta, escreveu três poemas correlacionados no que se refere à orações e ao antagonismo entre a Roma antiga, o Paganismo e a Cristandade: "Fé", "O Dilúvio" e "Visão",as duas primeiras publicadas em Crisálidas (1864) e a última em Falenas (1870). Alguns especialistas notam nestes três poemas que Machado vangloriava a fé e a grandeza de Deus, mas num sentido mais poético e renascentista que doutrinário ou moralista. Autores como Hugo Bressane de Araújo analisaram sua obra sob aspecto exclusivamente religioso, citando muito embora os dizeres de Machado ser "anti-clerical"; contudo, a mentalidade de Araújo limita-se a um pensamento religioso e não crítico literário, por ter sido bispo diocesano. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, há uma passagem em que Quincas Borba diz: "O Humanitismo há de ser também uma religião, a do futuro, a única verdadeira. O cristianismo é bom para as mulheres e os mendigos, e as outras religiões não valem mais do que essa: orçam todas pela mesma vulgaridade ou fraqueza. O paraíso cristão é um digno êmulo do paraíso muçulmano; e quanto ao nirvana de Buda não passa de uma concepção de paralíticos. Verás o que é a religião humanística. A absorção final, a fase contrativa, é a reconstituição da substância, não o seu aniquilamento, etc."
     Entretanto, tal trecho não passa de a fala de uma personagem fictícia. Para isso, os críticos analisam suas crônicas publicadas nos jornais para entender seu real pensamento. Em "Canção de Piratas", publicada na Gazeta de Notícias em 22 de julho de 1894, apoia Antonio Conselheiro de Canudos por seus legionários se indignarem com a realidade clichê e tediante da época, e critica os métodos da Igreja: "O próprio amor é regulado por lei; os consórcios celebram-se por um regulamento em casa do pretor, e por um ritual na casa de Deus, tudo com a etiqueta dos carros e casacas, palavras simbólicas, gestos de convenção." No Rio de Janeiro de sua época, também sabe-se que o Espiritismo crescia expressivamente. Numa suposta visita à Federação Espírita Brasileira, escrevera numa crônica na Gazeta de Notícias do dia 5 de outubro de 1885 onde relata uma suposta viagem astral que tivera. Embora tenham surgido análises afirmando que Memórias Póstumas de Brás Cubas fosse um livro cujo estilo era influenciado pelo conceito de "psicografia", críticos modernos acreditam que Machado encarava a religião espírita como todo movimento novo que possui a pretensão de se apresentar como solução dos males "não resolvidos" pelos seres humanos.
Saúde
    Para biógrafos ortodoxos, Machado de Assis possuía uma saúde muito frágil; acredita-se que tenha nascido com epilepsia e gagueira,[36] e que desenvolveu ao longo de sua vida problemas nervosos, cegueira, depressão, e que teriam se agravado de após o falecimento da esposa. As crises epilépticas teriam se iniciado na infância, tendo remissão na adolescência e recidivaram na terceira década, tornando-se mais frequentes nos últimos anos. Na imagem abaixo, vê-se Machado sendo acudido próximo ao Cais Pharoux, em 1º de setembro de 1907, fotografia tirada por Augusto Malta,embora haja dúvidas de que seja realmente o escritor.
    Disfarçando a gagueira, conta-se que certa vez lhe notaram a dificuldade com que se expressava por conta das mordeduras na língua, ao que o escritor retrucou: "estas aftas, estas aftas..." Quanto à epilepsia, crê-se que não a contou nem mesmo para Carolina antes do casamento até acometê-lo uma crise generalizada tônico-crônica que desde criança prefigurava como "umas coisas esquisitas" que não haviam se repetido até o casamento. Crê-se que o autor não tivesse tido até então uma crise típica. Mesmo antes da morte de Carolina, em 1880 parcialmente perdeu a visão, tendo que ouvir a esposa ler-lhe textos de jornais ou livros.
     Certos biógrafos dizem que ele não aludia sua enfermidade e nem lhe escrevia o nome, como em sua correspondência com o amigo Mário de Alencar: "O muito trabalhar destes últimos dias tem-me trazido alguns fenômenos nervosos..." Para alguns, a censura da palavra "epilepsia" lhe fez excluí-la das edições ulteriores de Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas que deixaria escapar na edição primeira ao descrever o padecimento da personagem Virgília diante da morte do amante: Não digo que se carpisse; não digo que se deixasse rolar pelo chão, epiléptica..., que fora substituída por: Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa...
     Praticamente todos seus biógrafos fizeram o diagnóstico de epilepsia: Lopes (1981) sugeriu a ocorrência, muito comum pelo menos na última fase da vida, de crises psicomotoras, provavelmente decorrentes de foco temporal e da ínsula, enquanto Guerreiro (1992), utilizando conceitos da epileptologia atual, assinalou que sofria alterações da consciência, automatismos e confusão pós-crítica. Ambos autores chegaram à conclusão que as crises eram provenientes do lobo temporal direito. Alguns indicam que um complexo de inferioridade acrescido de um grande introvertimento contribuíram para sua personalidade epileptóide. Segundo A. Botelho, "o epiléptico nem sempre está irritado, porém se mostra com frequência apático, deprimido e triste, com plena consciência de sua inferioridade social." A epilepsia seria, definitivamente, um fardo para Machado. Carlos de Laet presenciou o que seria uma de suas crises públicas e descreveu-a assim:
  "Estava eu a conversar com alguém na Rua Gonçalves Dias, quando de nós se acercou o Machado e dirigiu-me palavras em que não percebi nexo. Encarei-o surpreso e achei-lhe desmudada a fisionomia. Sabendo que de tempos em tempos o salteavam incômodos nervosos, despedi-me do outro cavalheiro, dei o braço ao amigo enfermo, fi-lo tomar um cordial na mais próxima farmácia e só o deixei no bonde das Laranjeiras, quando o vi de todo restabelecido, a proibir-me que o acompanhasse até casa." — Carlos de Laet.
    Apesar dessas teses, críticos como Jean Michel Massa e Valentim Facioli afirmam que as enfermidades de Machado não passam de "mitos românticos". Para esse grupo, os biógrafos tendem a exagerar seus sofrimentos, o que seria fruto do "psicologismo que invadiu a crítica literária dos anos 30 e dos anos 40". Argumentam que na época muitos negros eram guindados ao Ministério e que o próprio Machado foi subindo socialmente, o que desvalidaria a tese de sentimento de inferioridade. Contudo, outros críticos conectam a saúde de Machado com sua obra. O conto "Verba Testamentária" de Papéis Avulsos descreve uma crise epiléptica ([...] tinha ocasiões de cambalear; outras de escorrer-lhe pelo canto da boca um fio quase imperceptível de espuma.), enquanto que em Quincas Borba um dos personagens percebe que andava à toa, vertiginoso (Deu por si na Praça da Constituição.) Memórias Póstumas de Brás Cubas conta em uma de suas linhas um problema nervoso em que o narrador vai andando conforme a perna lhe leva ([...] nenhum merecimento da ação me cabe, e sim às pernas que a fizeram), enquanto que no poema Suave Mari Magno há explicitamente o uso da palavra "convulsão": Arfava, espumava e ria,/ De um riso espúrio e bufão,/ Ventre e pernas sacudia,/ Na convulsão. Alguns notam que o Bentinho de Dom Casmurro, por ter se tornado uma pessoa fechada, taciturna, mal-humorada, podia sofrer de distimia, enquanto que seu companheiro Escobar sofria de transtorno obsessivo-compulsivo e de tiques motores, com possível controle sobre eles. Em 1991, O Alienista foi visto como a primeira contribuição brasileira à anti-psiquiatria e a escrita de Machado, que faz inúmeras referências à problemas mentais de saúde, vista como uma extensão de seu "sentimento de inferioridade por ser mulato, de origem pobre, órfão, e epiléptico".
Acredita-se que Machado de Assis tenha consultado um homem da região, Dr. Miguel Couto, e este lhe indicou brometo. Parece que a droga ingerida foi ineficaz e que, causando efeitos indesejáveis, obrigou Machado a seguir o conselho de um dos amigos para descontinuar o tratamento e optar pela homeopatia. Em seus últimos dias, morreu com uma úlcera cancerosa na boca, provavelmente derivada de seus diversos tiques nervosos, e que lhe impedia de ingerir qualquer alimento sólido.
Reputação crítica
"É grande, é imenso, o Machado. É o pico solitário das nossas letras. Os demais nem lhe dão pela cintura." Monteiro Lobato
Machado usufruiu de grande prestígio em vida, fato raro para um escritor na época.Desde cedo ganhou reconhecimento de Antônio de Almeida e José de Alencar, que liam-no através de suas crônicas e contos nas revistas e jornais cariocas. Em 1881, com a publicação de Memórias Póstumas..., Urbano Duarte escreveu que sua obra era "falsa, deficiente, sem nitidez, e sem colorido." Com o impacto inovador do volume, Capistrano de Abreu questionava se o livro era mesmo um romance, ao passo que um outro comentarista chamava-lhe "sem correspondência nas literaturas de ambos os países de língua portuguesa".
Em 1908, a publicação de História da Literatura Brasileira, de José Veríssimo, intensificou esta última perspectiva crítica posicionando Machado de Assis como o cume da literatura nacional.Veríssimo entrou em conflito intelectual com Sílvio Romero, que também atribuía a Machado o título de maior escritor brasileiro, embora não notasse em seu trabalho uma maior expressividade.O Brasil do fim do século XIX e o Brasil no início do século XX eram precários nos meios gráficos e de difusão, todavia seus livros alcançaram distantes regiões do país: na primeira metade do século XX, intelectuais e escritores do Mato Grosso já liam Machado e apoiavam-se em seu estilo como grande influência estética. Os modernistas de 22, contudo, consideravam-no "artificioso, sem vida e fora da realidade cotidiana".Mário de Andrade escreveu que, embora tenha produzido "apaixonante obra e do mais alto valor artístico", detestaria tê-lo por perto.Enquanto Astrojildo Pereira preconizava o "nacionalismo" em Machado, Octávio Brandão criticava a falta do socialismo científico em sua obra. Desta época, destaca-se também a crítica de Augusto Meyer, para quem o uso do homem subterrâneo na obra machadiana é um meio em que ele teria encontrado para relativizar todas as certezas.
A revolução modernista durante o começo e o meio do século vinte aproveitou a obra de Machado em objetivos da vanguarda. Ela foi alvo de feministas da década de 1970, como Helen Caldwell, que enxergou a personagem feminina Capitu de Dom Casmurro como vítima das palavras do narrador-homem, mudando completamente a perspectiva que se tinha até então deste romance. Antonio Candido escreveu que a erudição, a elegância e o estilo vazada numa linguagem castiça contribuíram para a popularidade de Machado de Assis. Com estudos da sexualidade e a psique humana, bem como com o surgimento do existencialismo, atribuiu-se um certo psicologismo às suas obras, especialmente "O Alienista", muitas vezes comparando-as com as de Freud e Sartre. A partir dos anos 80 e seguinte, a obra machadiana ficou amplamente aberta para movimentos como a psicanálise, filosofia, relativismo e teoria literária, comprovando que é aberta à diversas interpretações e que nos últimos tempos tem crescido um grande interesse em sua obra.
Nos últimos tempos, com recentes traduções para outras línguas, Machado de Assis tem sido considerado, por críticos e artistas do mundo inteiro, um "gênio injustamente relegado à negligência mundial". Harold Bloom o posicionou entre os 100 maiores gênios da literatura universal e "o maior literato negro surgido até o presente". Sua obra tem sido estudada hoje em dia por críticos do mundo inteiro, tais como Helen Caldwell (Estados Unidos), John Gledson (Inglaterra), Anatole France (França), David Jackson (Estados Unidos), Victor Orban (França), Samuel Putnam (Estados Unidos), Edith Fowke (Canadá), Susan Sontag (Estados Unidos) e outros, além de no Brasil serem conhecidos os nomes de Afrânio Coutinho, Alfredo Bosi, Lúcia Miguel Pereira, Roberto Schwarz, Raimundo Faoro, etc. A crítica moderna confere a Machado de Assis o título de melhor escritor brasileiro de todos os tempos, e sua obra é vista hoje em dia de fundamental importância para as universidades e a vida acadêmica em geral no país.
Leituras
Machado de Assis era um exímio leitor e, consecutivamente, sua obra foi influenciada pelas leituras que fazia. Após sua morte, seu patrimônio constituía, entre outras coisas, de aproximadamente 600 volumes encadernados, 400 em brochura e 400 folhetos e fascículos, no total de 1.400 peças. Sabe-se que era familiarizado com os textos clássicos e com a Bíblia.[233] Em O Analista, Machado faz ligação à sátira menipeia clássica ao retomar a ironia e a paródia em Horário e Sêneca. O Eclesiastes, por sua vez, legou a Machado uma peculiar visão de mundo e foi seu livro de cabeceira no fim da vida.
Dom Casmurro é provavelmente a obra que mais possui influência teológica. Há referências a São Tiago e São Pedro, principalmente pelo fato de o narrador Bentinho ter estudado em seminário. Além disso, no Capítulo XVII Machado faz alusão a um oráculo pagão do mito de Aquiles e a ao pensamento israelita. De fato, Machado dispunha de uma biblioteca abastecida com teologia: crítica histórica sobre religião, à vida de Jesus, ao desenvolvimento do cristianismo, à literatura hebraica, à história Muçulmana, aos sistemas religiosos e filosóficos da Índia. Jean-Michel Massa realizou um catálogo dos livros da biblioteca do autor, que foi revisto em 2000 pela pesquisadora Glória Vianna, que constatou que 42 dos volumes da lista original de Massa estavam extraviados.
Machado também lia seus contemporâneos; admirava o realismo "sadio" e "colorido" de Manuel Antônio de Almeida e a "vocação analítica" de José de Alencar. Ele também leu Octave Feuillet, Gustave Flaubert, Balzac e Zola, mas sua maior influência advém da literatura inglesa, sobretudo Sterne e Jonathan Swift. Adepto do romance da Era vitoriana, era oposto à libertinagem literária do século anterior e vinculado às litotes no vocabulário e no desenvolvimento narrativo. Sua obra também possui uma variedade de citações e correlações com quase todas de Shakespeare, notavelmente Otelo, Hamlet, Macbeth, Romeu e Julieta, O Estupro de Lucrécia e Como Gostais.[239] Os escritores Sterne, Xavier de Maistre e Garret constituem a gama de autores que mais influenciaram a obra madura de Machado, sobretudo os capítulos 55 e 139 pontilhados, ou os capítulos-relâmpago (como 102,107,132 ou 136) e o garrancho da assinatura de Virgília no capítulo 142 das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Suas maiores influências na sátira e na forma narrativa livre, contudo, não advém da Inglaterra — mas da França. A "maneira livre" que Machado se refere nas linhas iniciais deste romance é uma afirmação explícita de Maistre, que lhe legou uma "narrativa caprichosa, digressiva, que vai e vem, sai da estrada para tomar atalhos, cultiva o a- propósito, apaga a linha reta, suprime conexões". De fato, Viagem à Roda do Meu Quarto (1794) fez com que Machado optasse por capítulos mais curtos do que aqueles produzidos em seu primeiro ciclo literário.
Outros estudiosos também citam o nome de filósofos, como Montaigne, Pacal e Schopenhauer. Este primeiro, com seus Essais (1580), apresentou a Machado a concepção do "homem diante das coisas" e despertou a repulsa de Machado de Assis à increpação de materialismo. Pascal, por sua vez, era leitura necessária à Machado, como ele próprio escreveu numa de suas cartas ao colega Joaquim Nabuco. Sérgio Buarque de Hollanda escreveu uma comparação da obra dos dois autores na seguinte forma: "Comparado ao de Pascal, o mundo de Machado de Assis é um mundo sem Paraíso. De onde uma insensibilidade incurável a todas as explicações que baseiam no pecado e na queda a ordem em que foram postas as coisas no mundo. Seu amoralismo tem raízes nessa insensibilidade fundamental." E, por fim, Schopenhauer, onde, escrevem, Machado teria encontrado visões do pessimismo e ainda desdobrado sua escrita em mitos e metáforas acerca de uma "inexorabilidade do destino". Raimundo Faoro, sobre a obra do filósofo alemão na obra de Machado, argumentou que o autor brasileiro havia realizado uma "tradução machadiana da vontade de Schopenhauer" e que logrou conceber seu primeiro romance após "haver descoberto o fundamento metafísico do mundo, o demonismo da vontade que guia, sem meta nem destino, todas as coisas e os fantoches de carne e sangue." O mundo como vontade e representação (1819), para alguns, encontra seu cume alto em Machado de Assis com os desejos frustrados do personagem Brás Cubas.
Influência
Machado influenciou nomes como Olavo Bilac e Coelho Neto, Joaquim Francisco de Assis Brasil, Cyro dos Anjos, Lima Barreto (especialmente seu Triste Fim de Policarpo Quaresma), Moacir Scliar, Múcio Leão, Leo Vaz, Drummond de Andrade,Nélida Piñon, e sua obra permanece como uma das mais respeitadas e influentes da literatura brasileira. Rubem Fonseca escreveu os contos "Chegou o Outono", "Noturno de Bordo" e "Mistura" baseado na linguagem de Machado de Assis— "a frase curta, despojada de ornatos, na emoção disfarçada, na reticência que sugere." Os temas teológicos abordados em seus contos, como em "Missa do Galo", influenciaram o escritor e pensador cristão Gustavo Corção. Lygia Fagundes Telles também se diz influenciada por Machado, especialmente por sua "ambiguidade, o texto enxuto, a análise social e a ironia fina".Em 1967, Lygia realizou a adaptação cinematográfica do romance Dom Casmurro com Paulo Emílio Sales Gomes, intitulado Capitu, com direção de Paulo Cesar Saraceni. Em 2006, Yasmin Jamil Nadaf realizou uma pesquisa que se concretizou no livro Machado de Assis em Mato Grosso: textos críticos da primeira metade do século XX, onde reúne nove textos de mato grossenses que já na época de Machado sofriam sua influência estética, dois desses escritos por José de Mesquita.
Sua obra também atinge a literatura estrangeira. Autores como John Barth e Donald Barthelme anunciaram terem sido influenciados por ele.A Ópera Flutuante, escrito pelo primeiro dos dois, foi influenciado pela técnica de "jogar livremente com as ideias" de Tristram Shandy e de Memórias Póstumas de Brás Cubas.O mesmo romance de Barth foi comparado por David Morrell com Dom Casmurro, onde ambos os personagens principais dos dois livros são advogados, chegam a pensar em suicídio e a comparar a vida a uma ópera, e vivem transtornados num triângulo amoroso.Isaac Goldberg traduziu o poema "Viver" para o inglês e sofreu influência de Machado em sua obra; sua visão de mundo pode ser comparada com a mesma visão de que tinha Machado de Assis. Susan Sontag, por sua vez, recebeu direta influência machadiana logo em seu primeiro romance.
Alguns estudiosos contemporâneos, especialmente Roberto Schwarz, o posicionam como um pré-modernista que prefigurou muitos dos estilos que culminariam na Semana de Arte Moderna. Em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa retoma a "viagem de memória" presente em Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas, além de seus textos descreverem doenças mentais como os de Machado. A produção modernista do século passado encontrou afinidades com a sua obra e, portanto, lançou relações entre Machado de Assis e nomes como Antonio Candido e Haroldo de Campos. Jô Soares é um dos escritores de hoje em dia que se diz influenciado por Machado, principalmente em seu Assassinatos na Academia Brasileira de Letras (2005).Milton Hatoum, também, tem em Machado uma de suas maiores influências. Seu mais famoso romance, Dois Irmãos (2000), é considerado um "diálogo aberto" com Esaú e Jacó. Recentemente, contos como "A Cartomante" e "O Alienista" foram revertidos em formato de quadrinhos e romances como Helena em mangá, mostrando que a obra machadiana continua vigorosa em novas mídias.
Legado
Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães já escreviam contos em meados do século XIX, mas os críticos notam que é com Machado que o gênero atinge novas possibilidades. Uma dessas possibilidades seria a de inaugurar, em livros como Contos Fluminenses (1870), Histórias da Meia-Noite (1873) e Papéis Avulsos (1882), "uma nova perspectiva estilística e uma nova visão da realidade, mais complexa e matizada." Esses livros trazem contos como "O Alienista", "Teoria do Medalhão" , "O Espelho", etc., em que aborda o poder, as instituições e também a loucura e a homossexualidade, que seriam temas literários muito precoces para a época. No gênero romance, com Dom Casmurro (1899), por exemplo, traria à tona uma intertextualidade e uma metalinguagem inovadoras na literatura e também muito influentes no futuro.
A Mocidade Independente de Padre Miguel homenageou a vida e obra de Machado de Assis no carnaval de 2009. Em 2006, Luís Antônio Giron escreveu que Machado de Assis "legou uma herança crítica que salva o Brasil do excesso de ufanismo nacionalista". Em 1868, José de Alencar chamaria Machado de "o primeiro crítico brasileiro." Além de ter sido um dos idealizadores da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis animou com suas crônicas e ideias políticas a Revista Brasileira, promoveu os poetas do Parnasianismo e estreitou relações com os maiores intelectuais de seu tempo, de José Veríssimo a Nabuco, de Taunay a Graça Aranha. De qualquer modo, existiria uma certa "riqueza mental" e "beleza moral" que Machado teria legado aos escritores no Brasil, e de fato alguns autores escrevem que "Machado de Assis é fundamental para quem quer escrever."
Muitos o consideram um grande predecessor: não bastasse ter introduzido o "realismo" na literatura nacional, certos críticos, como Roberto Schwarz, dizem que ele diz "coisas que Freud diria 25 anos depois". Em Esaú e Jacó, por exemplo, teria antecipado o conceito freudiano de 'complexo de Édipo’". Em Dom Casmurro, teria escrito coisas, principalmente em relação à correlação entre sonho e vigília, que antecipariam a Interpretação dos Sonhos, publicado no mesmo ano que este livro. Críticos estrangeiros referem-se que ele também precedeu, com Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e "O Espelho" (1882), as ficções fantásticas do realismo mágico de escritores como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, e também o Modernismo, através de intromissões no enredo dos romances e pela opção de capítulos curtos. Enfim, como escreve Antonio Candido, embora tenha escrito e vivido mais no século XIX, podemos encontrar na ficção machadiana "disfarçados por curiosos traços arcaizantes, alguns dos temas que seriam característicos da ficção do século XX."[280]
Além disso tudo, a obra machadiana é de fundamental importância para a análise das transições políticas no Brasil e da sociedade do Rio de Janeiro do século XIX e século XX, desde sua moda, transportes, arquiteturas e agitações financeiras. Sua obra—não só romances mas também as crônicas—exerce um papel importante para o conhecimento do Segundo Reinado no Brasil e inícios da República. Do ponto de vista universal, sua genialidade é vista como resultado de consistentes razões por demonstrar que seu trabalho, elogiado como é, não encontrou precedentes e, mesmo depois de mais de um século de intensa produção artística no Brasil, são obras citadas como das mais relevantes e mais geniais da classe literária do país.[283] Além disso, segundo escrevem Benedito Antunes e Sérgio Vicente Motta,
"[...] há um universalismo que Machado legou à nossa literatura e uma projeção de nossa literatura à esfera internacional, ao construir uma arte ao mesmo tempo brasileira e universal. Portanto, a invenção machadiana já pressupunha 'caminhos cruzados'."







                

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