A TERCEIRA GERAÇÃO DA POESIA ROMÂNTICA 2

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Trabalho realizado para a disciplina de Literatura Brasileira, na FAFIS, 1986.
                    NAVIO NEGREIRO
(Transcrição na íntegra da última parte do poema)
                          VI
E existe um povo que a bandeira empresta
Para cobrir tanta infâmia e cobardia !...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus!meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!..
Silêncio!...Musa! chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
 Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteada dos Heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga,
Como um íris no pélago profundo!...
... Mas é infâmia demais ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! arranca este pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta de teus mares!

(ALVES, Castro. Obra completa. 2ª ed. Rio de Janeiro, Aguilar, 1966, p.250-1)

ANÁLISE
       O fragmento analisado, sexta e última parte de "O Navio Negreiro, poemeto épico de Castro Alves, é formado por três estrofes, chamadas de "oitava real", ou "oitava heróica", por serem, cada uma delas, constituídas por oito versos decassílabos, cujas rimas obedecem ao esquema abababcc, isto é, seis versos em rimas cruzadas, ou alternadas, e os dois Últimos em rimas emparelhadas. As rimas são predominantemente ricas, dando ritmo e musicalidade ao texto (empresta/feste/esta – cobardia/fria/tripudia - tanto/pranto - terra/encerra/guerra - balança(verbo)/esperança/lança -  esmaga/vaga/plaga - imundo/profundo/mundo).
        A linguagem é forte e rebuscada, usando muitas figuras de linguagem, tanto figuras de palavras, quanto de construção e de pensamento:
. metáfora: “...auriverde pendão da minha terra...";
. comparação: "... como um íris  no pélago profundo...";
. hipérbole:  “... que o pavilhão se lave no teu pranto...";
 . metonímia:"...da etérea plaga...";
. elipse (verbo):"...e as promessas divinas da esperança...";
. hipérbato: "...um povo que a bandeira empresta...", "...ó fatalidade atroz que a mente esmaga...";
. anástrofe: "... que da liberdade após a guerra, /Foste hasteada dos heróis na lança...";
. anacoluto: “Tu, que da liberdade após a guerra, /Foste hasteada dos heróis na lança, Antes te  houvessem roto. na batalha...";
. interrogação: "... mas que bandeira é esta, / Que impudente na gávea tripudia?!...";
. apóstrofe: "...Meu Deus! meu Deus!...",/ "Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...";
             Em muitos versos aparece mais de uma figura:
. apóstrofe e prosopopéia: "....Musa! chora e chora tanto...",
                                          "...Andrada! arranca este pendão dos ares!
                                               Colombo! fecha a porta de teus mares!...;
. aliteração e prosopopéia:".."a brisa do Brasil beija e balança..,."-
. hipérbato e metáfora: "...estandarte que a luz do sol encerra...";
                                       "...que servires a um povo de mortalha....."
         O fragmento apresenta semelhanças formais com o poema épico de Camões, "Os Lusíadas", que é todo ele estruturado em oitavas reais: estrofes de oito versos decassílabos, obedecendo ao esquema de seis versos em rimas cruzadas (ababab) e os dois últimos versos em rimas emparelhadas (cc), conforme podemos observar nestas três primeiras estrofes do Canto I:

As armas e os barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana,
 Por mares nunca de antes navegados,
 Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé e o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando:
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta
 (CAMÕES, Luis de.Os Lusíadas. Rio de Janeiro,Otto Pierre Editores, 1980, p. 7-8)

          O poeta lusitano também utiliza figuras de linguagem, usando, às vezes, mais de uma num único verso:
. sinédoque, metonímia, perífrase: "...as armas e os barões assinalados...";
. sinédoque, perífrase, anástrofe:"...da Ocidental praia Lusitana...";
. hipérbato:" ... mais do que prometia a força humana...";
. catacrese:"... e entre gente remota edificaram /Novo Reino,que tanto sublimaram.....";
. eufemismo:"Cantando espalharei por toda parte, /Se a tanto me ajudar o engenho e arte..." ;
. antonomásia:"Cessem do sábio Grego e do Troiano /As navegações grandes que fizeram...";
. prosopopéia: “Que eu canto o peito ilustre Lusitano,/ A quem Neptuno e Marte obedeceram...";
. metonímia:" “Cesse tudo o que a Musa antiga canta..."
           As semelhanças no aspecto formal, existentes entre o poemeto épico de Castro Alves e a epopéia de Camões, devem-se ao fato de o poeta baiano ter desejado prestar uma homenagem ao grande cantor das glórias lusitanas.
           Quanto ao conteúdo, na sexta parte de "O Navio Negreiro" podemos constatar que:
           Na primeira estrofe, o poeta exprime espanto e vergonha ao ver que drapeja na gávea do navio negreiro a bandeira da sua Pátria, e roga à Musa que limpe esta mancha desonrosa, lavando-a com seu pranto.
           Na segunda estrofe, o poeta reforça a anterior, afirmando que preferia ver a gloriosa bandeira, que representa tantos feitos heróicos e é tão valorosa e amada, ser destruída, do que vê-Ia usada para um fim tão indigno, conspurcada por uma nódoa, ao ser colocada na quilha daquele barco, para que, à sua sombra, fosse praticado um crime imenso.
            Na terceira e última estrofe, o poeta clama pela destruição dovtorpe navio, que viaja nos mares de Colombo levando uma carga trágica, brada pela extinção do hediondo tráfico, e encerra este canto de dor e revolta concitando os "heróis do Novo Mundo" a se levantarem e não per- mitirem. mais a degradante infâmia.
            O tema do fragmento analisado é a desumanidade do tráfico de escravos negros para o Brasil.
            A ideia central desenvolvida é a vergonha e a infâmia que este fato traz para a nação brasileira.
            Sua mensagem é a denúncia da degradante situação do escravo negro, uma conclamação a que seja extinta esta triste e desumana exploração de seres humanos.  É a tentativa que se sente, em cada verso, de despertar o povo para o horror da escravidão.
            Por isto, o poemeto épico "Navio Negreiro" pertence à parte social da obra de Castro Alves, poeta da terceira geração dos poetas românticos, também chamada "geração condoreira", por ter como símbolo o condor, ave cujo voo livre e altaneiro pretendiam metaforicamente, imitar. Esta geração caracterizou-se pela poesia social e libertária, refletindo as ideias da época.
            E nela destacou-se Castro Alves, o poeta da liberdade, um reformista, denunciando desigualdades sociais, na luta constante em favor dos oprimidos. Sua voz era um clarim que desper- tava a cidade, fazia-se um porta-voz dos anseios do povo, porque, além de poeta, era também um orador brilhante que, com palavras candentes e versos declamados com emoção e brilhantismo, eletrizava multidões. Ele aprofundou as implicações humanas do tráfico de escravos, o que lhe valeu o título de "Poeta dos Escravos". Nenhum outro descreveu com tamanha realidade e tamanha arte a tragédia do negro cativo.
            Embora o "Navio Negreiro" tenha sido composto em 1868, quando o tráfico de escravos já havia sido extinto, ele veio reforçar e estimular as ideias abolicionistas tão em evidência na época, momento em que o desejo de liberdade era proclamado e as bandeiras da Abolição e da República eram erguidas nas praças.
            Naquela segunda metade do reinado de D. Pedro II, as duas características marcantes do meio eram a sociedade escravocrata e patriarcalista, de um lado, e a evolução econômica em direção ao desenvolvimento industrial, favorecido pelo crescimento da lavoura do café, do outro. Neste meio proliferavam as ideias libertárias, abraçadas e defendidas principalmente pelos jovens que, nos bancos acadêmicos, entravam em contato com as idéias vindas do exterior. E Castro Alves, como jovem atuante e defensor ardoroso dos ideais de liberdade, abraçou estas causas com todo o ímpeto de sua juventude.
           Este texto poético ainda nos dias atuais encontra ressonâncias, pois  o problema da escravidão é atemporal, uma vez que em nosso século  ela ainda persiste sob outras formas.  nosso próprio país, por exemplo, podemos ver outros tipos de escravidão, como a dos sem-terra, a dos boias-frias, a das camadas de mais baixo poder aquisitivo, enfim, a própria estrutura social brasileira. Tudo isto acontecendo porque o Brasil se submete às exigências de países como os Estados Unidos e de instituições como o FMI, sujeitando-se a viver de acordo com o que eles pretendem. Por razões como essas, é que a escravidão ainda seria tema para poesias, e um homem como Castro Alves ainda bradaria nas praças de nossas cidades.
           Concluindo sobre a importância do texto analisado, do poeta que o escreveu e da contemporaneidade do seu tema, reproduzimos abaixo, na íntegra para não prejudicar sua beleza e significado, uma parte das palavras de um outro baiano ilustre, também ele um defensor do povo e da liberdade. Palavras estas que ele usou na introdução do seu "ABC de Castro Alves":

          "Foi o mais belo espetáculo de juventude e de gênio que os céus da América presenciaram. No tempo que andou nestas e noutras ruas, disse tantas e tão belas coisas, que sua voz ficou soando para sempre e é cada vez mais alta e cada vez mais a voz de centenas, de milhares, de milhões de pessoas. É a tua voz, negra, é a voz do cais inteiro e da cidade lá atrás também. Falou por todos nós como nenhum de nós falaria. É ainda hoje o maior e o mais moço de todos nós.
           No teatro grande lá de cima ouviste certa vez uma numerosa orquestra. Lembras-te da hora em que os músicos se juntaram todos num esforço supremo e produziram com os seus instrumentos e com a sua virtuosidade uma nota mais alta que todas, que todas mais bela, nota que ficou soando na sala mesmo depois da saída dos espectadores?  Pois assim foi Castro Alves. Há momentos no mundo em que todas as forças de uma nação se conjugam e, como uma nota mais alta que todas, aparece, tranquilo e terrível, demoniacamente belo, justo e verdadeiro, um gênio. :-Nasce dos desejos do povo, das necessidades do povo. Nunca mais morre, Imortal como o povo.                                                                           
       Este, cuja história vou te contar, foi amado e amou muitas mulheres. Vieram brancas, judias e mestiças, tímidas e afoitas, para os seus braços e o seu leito. Para uma, no entanto, guardou ele suas melhores palavras, as mais does, as mais ternas, as mais belas. Essa noiva tem um nome lindo, negra: liberdade.
        Vê  no céu, ele brilha, é a mais poderosa das estrelas.  Mas o encontrarás também nas ruas de qualquer cidade, no quarto de qualquer casa. Seja onde for que haja jovens corações pulsando pela humanidade, em qualquer desses corações encontrarás Castro Alves.”

      (AMADO, Jorge. ABC de Castro Alves.Rio de Janeiro, Editora Record,  1980)

SOUSÂNDRADE
Joaquim de Sousa Andrade, mais conhecido por Sousândrade (Guimarães9 de julho de 1832 — São Luís21 de abril de 1902) foi um escritor e poeta brasileiro.
Formou-se em Letras pela Sorbonne, em Paris, onde fez também o curso de engenharia de minas.
Republicano convicto e militante, transfere-se, em 1870, para os Estados Unidos.
Publicou seu primeiro livro de poesia, Harpas Selvagens, em 1857. Viajou por vários países até fixar-se nos Estados Unidos em 1871, onde publicou a obra poética O Guesa, em que utiliza recursos expressivos, como a criação de neologismos e de metáforas vertiginosas, que só foram valorizados muito depois de sua morte, sucessivamente ampliada e corrigida nos anos seguintes. No período de 1871 a 1879 foi secretário e colaborador do periódico O Novo Mundo, dirigido por José Carlos Rodrigues em Nova York (EUA).
De volta ao Maranhão, aderiu com entusiasmo ao golpe de 1889. Em 1890 foi presidente da Intendência Municipal de São Luís. Realizou a reforma do ensino, fundou escolas mistas e idealizou a bandeira do Estado, garantindo que suas cores representassem todas as raças ou etnias que construíram sua história. Foi candidato a senador, em 1890, mas desistiu antes da eleição. No mesmo ano foi presidente da Comissão de preparação do projeto da Constituição Maranhense.
Morreu em São Luís, abandonado, na miséria e considerado louco. Sua obra foi esquecida durante décadas.
Resgatada no início da década de 1960, pelos poetas Augusto e Haroldo de Campos, revelou-se uma das mais originais e instigantes de todo o nosso Romantismo, precursora das vanguardas históricas[1].
Em 1877, escreveu:
"Ouvi dizer já por duas vezes que o Guesa Errante será lido 50 anos depois; entristeci - decepção de quem escreve 50 anos antes".


Sousândrade – Wikipédia, a enciclopédia livre pt.wikipedia.org

O POEMA COMO EXÍLIO — SOUSÂNDRADE-GUESA EM  “O INFERNO DE WALL STREET”   - Ana Carolina Cernichiaro

RESUMO: Este ensaio busca ler O Guesa, de Joaquim de Sousândrade, como uma espécie de poema-exílio. Um deserto onde o poeta é um eterno errante, um estrangeiro em sua própria língua, onde a representação não é mais possível e o que resta é a fragmentação multidiomática, os urros, balbucios, cacofonias, choros, gritos e inversões. Um périplo de dissonâncias, de ruptura, de desvio, enfim, de combate com a língua dentro da própria língua.
PALAVRAS-CHAVES: Sousândrade, poesia, linguagem.

       Um périplo de atravessamento, um deserto de transitoriedade, de exílio, de quem não tem lugar, é assim, nesse limiar, que proponho ler a poética de Joaquim de Sousa Andrade — Sousândrade (1833-1902). Um eterno errante cuja peregrinação não segue a lógica expansionista de viagem homérica ou de grandes navegadores, menos ainda a curiosidade de turistas ou aventureiros. Trata-se de uma errância de desequilíbrio, que se inscreve na fragmentação, no não-todo, na heterogeneidade, na qual não se encontra o viajante, aquele que se encanta, que vê a paisagem pela janela, apenas o nômade, como um sobrevivente de guerra que não consegue olhar  para as marcas da destruição porque a imagem já está gravada e cravada em todo seu ser, em sua linguagem.
       Lembrando Maurice Blanchot, o poeta é aquele que pertence ao estrangeiro, à insatisfação do exílio, que “está sempre fora de si mesmo, fora do seu lugar natal”. Para o teórico francês, “o poema é exílio” e “esse exílio é o que faz do poeta o errante”[2].
       O Guesa é essa espécie de poema-exílio, onde  nada se fixa, e ao qual Sousândrade pertence. Baseado nas narrativas de Humboldt em Vue des Cordillières sobre o culto solar dos indígenas muíscas da Colômbia (segundo o qual  uma criança roubada dos pais é oferecida em sacrifício ao deus-sol quando completa 15 anos), esse épico de treze cantos conta a peregrinação do índio guesa pela “estrada do Suna”, que, na obra sousandradina, muito além do brevecaminho muísca e se torna um continente, mais ainda, um mundo, um mundo real e por isso inexprimível.
A personagem lendária faz o caminho  do próprio poeta, criando-se, assim, uma indecidibilidade entre aquele que escreve e aquele que é escrito que nos leva a pensar poeta e índio muísca como um único “maudit”[3], um Sousândrade-Guesa. Em  A visão do ameríndio na obra de Sousândrade, Claudio Cuccagna descreve  os diferentes pontos de conexão entre os dois “guesas”: “Sousândrade deve ter constatado que a figura e a função o guesa, em união com os outros elementos pertencentes à lenda, prestavam-se perfeitamente a uma representação alegórica de sua vida e da sua missão social...”. Entre esses pontos, o crítico italiano sugere a comum existência erradia e o fato de ambos serem “filhos da zona equatorial americana” e viverem uma “análoga situação de abandono e de solidão”. Isso sem contar  que, como um guesa, “Sousândrade considerava-se um novo herói civilizador americano”[4].
       Enfim, é como Sousândrade-Guesa que poeta e personagem  descem ao inferno duas vezes: primeiro, em Tatuturema — uma orgia entre índios decadentes, jesuítas imorais e exploradores corruptos; segundo, em  O Inferno de Wall Street[5]— que descreve os Estados Unidos da segunda metade do século XIX, na sua grande arrancada capitalista.
Como conta Luiz Costa Lima,  esse é um momento de modificações profundas na vida americana. A leitura de O Novo Mundo, jornal que José Carlos Rodrigues editou em Nova Iorque de 23 de outubro de 1870 a setembro de 1876, nos testemunha o quadro de agitação, falcatruas, desmantelo de fortunas e aparecimento de meios mais  hábeis de enriquecer, a corrupção administrativa dos períodos de presidência do Gen. Grant, sob o qual, ademais, se desenvolveriam as asas do imperialismo americano. Sousândrade encontraria então na bolsa de valores de Nova Iorque o quadro de um novo inferno. (...) A sociedade que encontra, caracterizada pelos Vanderbilts, Jay Goulds, Grants, Tweeds, Bennetts, Astors, Stewarts e Brown Brothers — modelos repelentes ou venerados de homens de firme iniciativa e não importa que muitas vezes fraudulenta —, lhe fornece ocasião de travar uma  relação física com um mundo estranho e novo. Não podemos, com efeito, entender a significação mais intensa da nfernália sousandradina sem levar em conta  que foi fisicamente até que ela foi percebida.[6]
       O sonho de encontrar na nova república a liberdade de uma nação democrática e justa se transforma num pesadelo de imoralidade e exploração. “Oh! Como é triste da moral primeira/ Da Republica ao seio a corrupção!”[7]. 
       Sousândrade ainda tenta desviar os  olhos (“voltemos os olhos  desgostosos / D’este circ’lo...”, diz ao voltar do inferno[8]), mas já é tarde: “há coisas que se consegue ver e das quais não se pode mais voltar”[9], nos avisa Gilles Deleuze. Como bem definiu Jacques Rancière, “o artista” — aqui, o poeta, o índio — “é aquele que viu a visão excessivamente forte, insustentável, e que, a partir de então, nunca mais se conciliará com o mundo da representação”[10].
       Quando a representação não é  mais possível, o que  resta é o multipluralismo idiomático, os urros, os balbucios, as cacofonias, os gritos e as inversões, enfim, as hiperartificializações da linguagem; uma “não-língua” que é pura  inoperância, quebra, ruptura, fragmentos que se chocam e depois se unem sem se encaixar, em que não há origem unívoca, onde não há canto gregoriano,  apenas dissonâncias. Para Haroldo de Campos, em Sousândrade: formas em morfose:
A poesia de Sousândrade se inscreve, toda ela, num espaço de ruptura. Ruptura, primeiro com o cânon romântico, logo com o gênio da língua portuguesa (perturbada por suas inovações sintáticas e léxicas) e enfim com a própria linearidade e discursividade do pensamento lógico de modelo ocidental.[11]
       Com essa ruptura, o poeta-guesa revela o indizível da linguagem, aquilo que nenhum idioma é capaz de traduzir, aquilo que não se representa, que não se expressa, aquilo que não se pode dizer: a guerra, a opressão, o capitalismo, a nação, o ser, o ente, o mundo, o real.
       Ele rompe os freios da linguagem, seguindo a máxima barthesiana de que “(...) é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada”[12]. Combatida, desviada, porque é criadora de discurso, de história — história como escritura de dominação, história como primazia do Ocidente, do colonizador, história como história dos vencedores, aqueles de Wall Street —, enfim, porque é aquela que responde pelo sistema e compactua com ele.
       Quando se apresenta esse combate, a literatura se torna realização do impossível e, na expressão de Tatiana Salem Levy, “liberta o pensamento do modo do poder e da compreensão apropriadora”[13]. A linguagem, então, se insubordina para calar o discurso oficial, cessando a significação do semântico,  chegando ao incompreensível. Nela, o que permanece é o semiótico, o signo como único significante; a potência passiva por excelência; o ponto de inoperância da linguagem como experiência que se revela naquilo que não faz sentido.
       Um não fazer sentido que é inevitável e ao qual a poesia naturalmente nos leva, pois, segundo Georges Bataille, em Teoria da religião, é ela a “via pela qual um homem vai de um mundo cujo sentido é pleno, ao deslocamento final dos sentidos, de todo sentido, que logo se revela inevitável”[14]. Aliás, é esse não fazer sentido que mostra que o que há de humano na linguagemnão é a comunicação, mas a literatura[15]. E aí, cabe lembrar, com Deleuze e Félix Guattari, que “temos comunicação demais, falta-nos criação. Falta-nos resistência ao presente”[16].
       É dessa maneira que o radical hibridismo e as construções entorpecedoras de O Inferno e o balbucio, os urros e os gritos tentam trapacear a linguagem, numa trapaça, que, como afirma Barthes, “permite ouvir a língua fora  do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem”[17]. Um exemplo  dessa trapaça é a estrofe que finaliza o fragmento com o sacrifício ritual do poeta-guesa condenado pelos  bears (jargão que se refere aos especuladores da Bolsa de Valores de Nova Iorque):
       (Magnetico handle-organ, ring d’ursos sentenciando       à pena-última
       o architecto da PHARSALIA; odysseu phantasma nas chammas
        dos incendios d’Albion:)
       — Bear... Bear é ber’beri, Bear... Bear...
       = Mammumma, mammumma, Mammão!
       — Bear... Bear... ber’... Pegàsus....
        Parnasus...
        = Mammumma, mammumma, Mammão.[18] 
       Ecoam os gritos de socorro que clamam por  pegasus, o cavalo alado, símbolo na mitologia grega da inspiração poética, e pelo monte Parnaso da antiga Grécia, consagrado a Apolo e às Musas. Como se só a poesia pudesse defender Sousândrade-Guesa do demônio Mammão (do grego Mamonas), personificação da riqueza, do dinheiro e do lucro. Para Haroldo e Augusto de Campos, este último  verso é “um verdadeiro hino à divindade infernal (...) onde as palavras são grotescamente deformadas, como um fanhoso realejo”[19]. Segundo eles, esse coro de louvação ao “deus do Stock Exchange” mostra o “arquiteto da Farsália de Wall Street, como Lucano da Farsália épica e Goethe da Farsália fáustica”[20].
       No inferno sousandradino, tudo é  desproporção, caos, informe. A língua não é mais suficiente, uma fala apenas não é possível, é preciso uma multiplicidade de vozes e idiomas:
       (Dois renegados, catholico, protestante:)
        — Confiteor, Beecherô... l’Epouse
       N’eut jamais d’aussi faux autel!
        — Confiteor ... Hyacinth
        Absinth, Plymouth was barroom, was bordel![21]
       A própria sintaxe é importada de outras línguas. Palavras em português são compostas como se fossem inglesas ou alemãs, invertendo a ordem substantivo-adjetivo. Outras são criadas e recriadas numa morfologia impensável. Muitas vezes se juntam em rimas impossíveis, que transformam a fonética não apenas da sua língua, mas até das línguas que estão ali para subvertê-la. Dos vários exemplos que o texto fornece, seleciono aqui: odes/Railroads; santas-de-pau/anyhow; Katy-Dids/vides;  Sacred-Heart/dar-te; perdão/godam; Judas/burglars; sol/waterfall; rouxinol/Court-hall; ninguém/gentlemén; pagar/dollár,que rimam palavras em português e em inglês. Mas essa miscigenação vai muito além e chega a conjugar holândes com português (Heeren/tirem), holandês com inglês (TappanZee/Yea), inglês e latim (spokesman/amen), português e francês (bebeu/Dieu), entre outros.
       Essa linguagem multidiomática e caótica nos faz pensar Sousândrade-Guesa como um estrangeiro em sua própria língua, que, ao mesmo tempo que subverte, completa a língua, desenvolvendo dentro dela uma segunda  língua. Como escreveu Deleuze, “talha  na sua língua uma língua estrangeira que não preexiste”[22].
       Em outras palavras, quando a literatura opera uma decomposição ou uma destruição da língua materna, também opera a invenção de uma  nova língua no interior da língua, mediante a criação de sintaxe. Essa sintaxe em devir é inseparável de um fim, de um limite
a linguagem: “já não é sintaxe formal ou superficial que regula os equilíbrios da língua, porém uma sintaxe em devir, uma criação de sintaxe que faz nascer a língua estrangeira na língua, uma gramática do desequilíbrio”[23].
       Como explica o próprio Deleuze, trata-se de mostrar que “quando se escreve, sabe-se que uma língua é, na verdade, um sistema que está longe do equilíbrio, é um sistema em perpétuo desequilíbrio”[24], ou ainda, “Dir-se-ia que a língua é tomada por um delírio que a faz precisamente sair de seus próprios sulcos”[25]. Para o filósofo francês, uma língua estrangeira não é escavada na própria língua sem que toda a linguagem por seu turno sofra uma reviravolta, seja levada a um limite, a  um fora ou um avesso que consiste em Visões e Audições que já não pertencem a língua alguma. Essas visões não são fantasmas, mas verdadeiras idéias que o escritor vê e ouve nos interstícios da linguagem, nos desvios de linguagem. Não são interrupções do processo, mas paragens que dele fazem parte, como uma eternidade que só pode ser  revelada no devir, uma paisagem que só aparece no movimento. Elas não estão fora da linguagem, elas são o seu fora.[26] 
       Essa “reviravolta” de que nos fala Deleuze, essa quebra com a língua materna, pode sugerir também um enfrentamento ao idioma colonizador/dominador. Assim como Joyce percebeu que não poderia se expressar em inglês sem se encerrar em  uma tradição[27], Anuário de Literatura, -Guesa precisa romper com aditadura de seu idioma (símbolo da monarquia e da permanência da família real no Brasil), num esforço de retirar o Brasil de sua filiação lusitana:
       Até a nossa ortografia portuguesa não se entende entre si; a nossa escola não é nossa e nada ensina aos outros; estudando os outros, tratamos então de elegantizá-los em nós, e pelas formas alheias  destruímos a escultura da nossa natureza, que  é a própria forma de todos.[28]
       Mas também não  aceita a salvação de outros mundos, antes prefere sua própria invenção desarticulada e estranha:
       Deixemos os mestres da forma — se até os deuses passam! É em nós mesmos que está nossa divindade. Não é pelo velho mundo atrás que chegaremos à idade de oiro, que está adiante além. O bíblico e o ossiânico, o dórico e o jônico, o alemão e o luso-hispânico, uns são repugnantes e outros, se não o são, modificam-se à natureza americana. Nesta natureza estão as próprias fontes, grandes e formosas como os seus rios e as suas montanhas; ela, à sua imagem, modelou a língua dos seus Naturais – e é aí que beberemos a forma do original caráter literário qualquer que seja a língua diferente que falarmos.[29]
       A própria idéia de orfandade de Sousândrade-Guesa (o poeta era órfão e o personagem foi seqüestrado dos pais pelos Xeques da tribo) nos leva a pensar num rompimento com a mãe (língua-colonizadora) e o pai (nação-colonizadora). Questão semelhante mostra Deleuze, em  Bartleby, ou a fórmula, ao dizer que o norte-americano — aqui inserimos também o latino-americano — é aquele que se libertou da função paterna inglesa — ou bérica, no nosso caso:
       (...) é o filho de um pai reduzido a  migalhas, de todas as  nações. Desde antes da independência, os americanos pensam na combinação dos Estados, na forma do estado que seria compatível com sua vocação; mas sua vocação não consiste em reconstituir um “velho segredo de Estado”, uma nação, uma família, uma herança, um pai, mas, antes de tudo, em constituir um universo, uma sociedade de irmãos, uma federação de homens e de bens, uma comunidade de indivíduos anarquistas, inspirada em Jefferson, em Thoreau, em Melville.[30] 
       Desse conceito, a análise deleuzeana se desdobra num ponto-chave da questão da orfandade: o perigo da volta do pai. “Os perigos da ‘sociedade sem pais’ foram denunciados com freqüência, mas o único perigo é o retorno do  pai”. E completa: “Nascimento de uma Nação, restauração do Estado-nação, e os pais monstruosos retornam galopantes, enquanto os filhos sem pai recomeçam a morrer”[31].
       Mas quem é esse pai se Inglaterra, Espanha e Portugal não voltam? Para Deleuze, é “o cimento que reestabelece o muro”. Pensando em  O Inferno de Wall Street, a metáfora enriquece quando se lembra que a famosa avenida ganhou esse nome justamente por causa de um muro que os holandeses construíram  para se proteger dos índios; também ganha atualidade no cenário da caçaaos imigrantes ilegais que prevê, entre outros inimagináveis elementos de composição, um enorme muro (digno dos tempos das duas Alemanhas), devidamente protegido por homens armados, na fronteira do México. Se Sousândrade visse isso... Ele que estava tão encantado com a hospitalidade norte-americana ao estrangeiro: “Vinde a New-York, onde ha logar p’ra todos...”[32].
       A euforia do poeta na sua chegada aos Estados Unidos  é compreensível. O início da nação estadunidense realmente parecia remeter a um ideal de colcha de retalhos de todas as raças, de orfandade ou de quem tem um pai-mundo. Mas, ao reencontrar a figura paterna no “muro”, ao erguer a casa do pai em Wall Street, ao abraçar uma mãe vestida de democracia Anuário de Literatura, falando um único idioma, passou a dividir o mundo em dois pólos antagônicos e a cercar a linguagem de interdições e coerções, venerando o discurso e suprimindo seus desvios. Como explica Michel Foucault:
       Tudo se passa como se interdições, supressões, fronteiras e limites tivessem sido dispostos de modo a dominar, ao menos em parte, a grande proliferação do discurso. De modo que sua riqueza fosse aliviada de sua parte mais perigosa e que sua desordem fosse organizada segundo figuras que esquivassem o mais incontrolável; tudo se passa como se tivessem querido apagar até as marcas de irrupção nos jogos do pensamento e da língua. Há, sem dúvida, em nossa sociedade e, imagino, em todas as outras mas segundo um perfil e facetas diferentes, uma profunda logofobia, uma espécie de  temor surdo desses acontecimentos, dessa massa de coisas ditas, do surgir de todos esses enunciados, de tudo o que possa haver aí de violento, de descontínuo, de combativo, de desordem, também, e de perigoso, desse grande zumbido incessante e desordenado do discurso.[33] 
       A poética de Sousândrade-Guesa  não teme essa violência, esse “zumbido desordenado”. Pelo contrário, ao não aceitar as universalidades do sistema, seus binarismos e dicotomias, ao buscar o Fora, o limite  da linguagem, e ressaltar seus desvios, ao denunciar o artifício que toda linguagem é e revelar sua desordem primeira, restaura sua “riqueza mais perigosa”. Também por isso, não faz laço social,  não coroa, não colabora com o que aí está, não adere ao establishment; antes permite, nas palavras de Max Bense, “jugar el gran juego: volver a hacer nuevamente el mundo”[34].
       Para o crítico alemão, é justamente através da literatura que a linguagem supera o “horizonte de um mundo real”[35] e nos permite — podemos pensar aqui — vivenciar o outro do mundo. É a esse outro do mundo que Sousândrade-Guesa nos liberta ao nos fazer vagar com estupor pelos continentes, errar pela linguagem e deslizar num limiar, um entre, um fora, um deserto, um exílio.

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