ARCADISMO: " MARÍLIA DE DIRCEU" - TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA

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     As Liras, de Tomás Antônio Gonzaga, popularmente conhecidas como Marília de Dirceu, constituem a obra poética de maior relevância do século XVIII do Brasil e do Neoclassicismo em língua portuguesa.
    Duas tendências são perceptíveis nas liras de Gonzaga, assim como é possível observar na obra do português Bocage, da mesma época:
O equilíbrio e o contentamento do Arcadismo, além da utilização das paisagens neoclássicas: o pastor, a pastora, o campo, a serenidade do local etc.;
O pré-Romantismo representado no emocionalismo, na manifestação pungente da crise amorosa e, logo após, na prisão, que reproduzem a crise existencial do poeta.
    A todo momento, a emoção rompe a estilização arcádica, surgindo, assim, uma poesia de alta qualidade e competência,
   Divididas em duas partes, mais uma terceira cuja autenticidade é contestada por alguns críticos, Stefani Joanne narra o drama amoroso vivido por Gonzaga e Maria Doroteia.
1ª parte: reúne os poemas anteriores à prisão de Gonzaga. Nela é mais evidente as composições convencionais: Dirceu contempla a beleza da pastora Marília em pequenas odes anacreônticas. Em algumas liras, o poeta não consegue disfarçar suas confissões amorosas. Mostra-se ansioso por amar uma moça muito mais jovem, por querer demonstrar que merece o coração da amada. Também faz projetos para o futuro ao lado da moça.
2ª parte: escrita na prisão da ilha das Cobras. Traduzem a solidão de Dirceu, saudoso de Marília. Esta é considerada a parte de maior qualidade, pois, apesar das convenções ainda presentes, já não consegue sustentar o equilíbrio neoclássico. Há certo pessimismo confessional que já prenunciam o emocionalismo romântico, utilizando Marília como pretexto para falar de seu sofrimento, de si mesmo. Ações que são consideradas pré-romântica para alguns.
3ª parte: possivelmente escrita depois da prisão, a terceira parte fala de traições, desenganos, amores, que inclusive não são mais dedicados somente a Marília, que já não aparece com tanta frequência. Essa parte parece evidenciar uma tentativa (ou não) de superação por parte de Dirceu. Alguns críticos contestam a autenticidade dessa última parte.

MARÍLIA DE DIRCEU  - Prof. Teotônio Marques Filho  
INTRODUÇÃO
    Numa breve introdução ao Neoclassicismo como estilo da época, podemos afirmar que este estilo representa o momento de coesão e relevância da doutrina clássica originada na Renascença e que alcança a sua estruturação perfeita na literatura francesa do século XVII. Do ponto de vista histórico, o século XVIII é o século das luzes, momento em que se desenvolve uma visão científica do mundo. A ciência e o racionalismo constituem as luzes com que se costuma caracterizar o século. A razão ilumina, ilustra; daí as palavras iluminação e ilustração que caracterizam as manifestações culturais do momento, o conjunto das tendências características. No campo da literatura, o Neoclassicismo representa, nas diversas literaturas europeias, uma generalizada reação contra o Barroco, sob o irresistível impulso do pensamento racionalista dominante em toda a Europa a partir do século XVIII.
     Como fruto desse iluminismo, um bom exemplo na literatura é a poesia satírica, largamente difundida na época, e de que As Cartas Chilenas podem funcionar como um bom exemplo, na nossa literatura.
     Sem nos prendermos à “tirania cronológica” podemos dizer que o Neoclassicismo como estilo de época foi inaugurado, oficialmente, em Portugal, com a criação da Arcádia Lusitana, em 1756, e vai-se prolongar até 1825, quando Garrett publica o poema narrativo de feição romântica, Camões. No caso do Brasil, há um pequeno atraso com relação às delimitações “oficiais”, sem nenhum critério estritamente literário: o início é marcado pela data de 1768, com a publicação das Obras Poéticas, de Cláudio Manuel da Costa, estendendo-se até 1836, quando se dá a implantação oficial do Romantismo, com os Suspiros Poéticos e Saudades.
     Marília de Dirceu, a obra de Tomás Antônio de Gonzaga, se enquadra exatamente nesse estilo de época: o Neoclassicismo ou por outros chamado de Arcadismo. Sua primeira edição, constando apenas da Parte I (23 liras), foi editada em Lisboa, em 1792, saindo a Parte II, também em Lisboa, em 1799. Com relação à Parte III, que muitos julgam apócrifa, Rodrigues Lapa considera autêntica a edição de 1812, da Impressão Régia.

CARACTERÍSTICAS MARCANTES DA OBRA
    1) Uma das mais exploradas características barrocas foi, sem dúvida, a suntuosidade e, de certo modo, a complicação, principalmente da forma exterior (cf. cultismo), além de empanar e perturbar a limpidez e lógica do ideário clássico. Daí o sentido pejorativo que teve o Barroco naquela época.
    Um dos postulados básicos de Neoclassicismo é exatamente a reação ao preciosismo e confusão do estilo barroco, ou seja, o Neoclassicismo significou antes de tudo, como a própria palavra explicita, um retorno ao equilíbrio, à simplicidade da linguagem e de idéias da literatura clássica quinhentista e greco-latina.
     A imitação dos modelos clássicos volta à tona, e a razão, mais uma vez, tem dias de glória. Esse racionalismo, essa fundamentação racionalista, na literatura configurada na aceitação e volta ao pensamento e cultura clássica, têm confirmação de autores da época, como Filinto Elísio, que aconselhava:
         “ Lede, que é tempo, os clássicos honrados;
         Herdai seus bens, herdai essas conquistas,
         Que em reinos dos romanos e dos gregos
         Com indefeso estudo conseguiram.

         Vereis então que garbo, que facúndia
         Orna o verso gentil quanto sem eles
         É delambido e peco o pobre verso.
         Lede, que é grande cegueira esse descuido.”
     Tomás Antônio Gonzaga, como “o mais árcade de nossos árcades” leu “esses clássicos honrados” e se mostra impregnado deles em muitas liras de sua Marília de Dirceu. Aí está a linguagem estereotipada da mitologia, do retrato da mulher ideal que, no fundo, são decorrências do imperativo da razão e da lógica: se um princípio qualquer era válido para os antigos (porventura autoridades do assunto), tinha que sê-lo também para os novos. Se os antigos usaram uma determinada forma poética e a cultivaram, o mesmo deveriam fazer os novos. Daí a estereotipia de linguagem e também de assunto.
      Assim, é como poeta integrado no espírito neoclássico e arcádico que Gonzaga, uma das maiores expressões literárias da época, descreve Marília: mulher nívea, de cabelos longos e louros. É assim que Gonzaga descreve Marília na primeira lira da Parte I. Não importava que Marília fosse brasileira e morena, como o poeta a descreverá na lira seguinte (I, 2). Era, talvez, mais importante estar integrado no espírito e convenções do Arcadismo.
         "Os teus olhos espalham luz divina,
         A quem a luz do Sol em vão se atreve;
         Papoula, ou rosa delicada, e fina,
         Te cobre as faces, que são cor de neve.
         Os teus cabelos são uns fios d'ouro;
         Teu lindo corpo bálsamos vapora.
         Ah! não, não fez o Céu, gentil Pastora,
         Para glória de Amor igual tesouro.
                  Graças, Marília bela,
                  Graças à minha Estrela!"
      Sem dúvidas, outras descrições idealizadas como esta podem ser notadas no livro. É só ler com atenção e espírito crítico.Mas, como falamos, outro postulado estético, racionalmente aceito na época, era a mitologia. Seria ocioso mostrar os valores e referências mitológicas no livro, dada a presença avassaladora dos deuses do Olimpo, principalmente Cupido com suas setas mortais e Vênus que está sempre cotejada com Marília, a quem esta sempre vence pela beleza divinal:
       "O destro Cupido um dia                 Por fazer pensar a todos
         Extraiu mimosas cores                  No seu liso centro escreve
         De frescos lírios,e rosas,               Um letreiro, que pergunta:
         De jasmins, e de outras flores.      'Este espaço a quem se deve?'
        
         Com as mais delgadas penas Vênus, que viu a pintura,
         Usa de uma, e de outra tinta,         E leu a letra engenhosa,
         E nos ângulos do cobre                  Pôs por baixo: 'Eu dele cedo;
         A quatro belezas pinta.                   Dê-se a Marília formosa'"
    Outro excelente exemplo, em que o poeta perpassa a sua visão do mundo filtrada pela ótica mitológica, é a lira 25 (Parte I).

      2) O Racionalismo é outro elemento decorrente da volta ao passado clássico. Destacamo-lo aqui, dada a sua importância como principal esteio da ideologia neoclássica. Já falamos atrás, da complicação do pensamento, da linguagem, das idéias do estilo barroco. A esta complicação se opôs a lógica - clara, límpida, cristalina do Neoclassicismo, que se revela pela simplicidade de raciocínio, que é claro e lógico, como se pode entrever na argumentação da Lira VIII (Parte I):
         "Já viste, minha Marília,                   As grandes Deusas do Céu
         Avezinhas, que não façam              Sentem a seta tirana
         Os seus ninhos no verão?               Da amorosa inclinação.
         Aquelas, com quem se enlaçam,   Diana, com ser Diana,
         Não vão cantar-lhes defronte          Não se abrasa, não suspira
         De mole pouso, em que estão?     Pelo amor de Endimião?
                  Todos amam: só Marília        Todos amam: só Marília
                  Desta Lei da Natureza                Desta Lei da Natureza
                  Queria ter isenção?                    Queria ter isenção?
        
         Se os peixes, Marília, geram         Desiste, Marília bela,
         Nos bravos mares, e rios,              De uma queixa sustentada
         Tudo efeitos de Amor são.             Só na altiva opinião.
         Amam os brutos ímpios,                Esta chama é inspirada
         A serpente venenosa,                    Pelo Céu; pois nela assenta
         A onça, o tigre, o leão.                   A nossa conservação.
                  Todos amam: só Marília          Todos amam: só Marília
                  Desta Lei da Natureza              Desta Lei da Natureza
                  Queria ter isenção?                   Não deve ter isenção."

    3) O Bucolismo na poesia arcádica é também uma decorrência da volta ao passado clássico quinhentista e greco-latino. Fundamentado nos autores bucólicos, o Neoclassicismo fez dessa matéria uma de suas principais temáticas poéticas. A poesia pastoril ou bucólica, sem dúvida, não é apenas um postulado estético a que devia seguir o poeta. Chegou mesmo a representar uma idealização da vida, inclusive, numa tentativa de identificação com os modelos gregos, os poetas arcádicos chegaram a usar nomes de pastores: Gonzaga (Dirceu), Cláudio (Glauceste/Alceste), Basílio da Gama (Termindo Sipílio).
          A própria criação de arcádias (daí o nome Arcadismo para este estilo'de época) mostra muito bem essa idealização da vida campesina.
Mostrar o bucolismo de Marília de Dirceu é demonstrar o óbvio, dado o predomínio quase que total da atmosfera pastoril nas liras, sobretudo na Parte I:
        "Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
         Que viva de guardar alheio gado;
         De tosco trato, d'expressões grosseiro,
         Dos frios gelos, e dos sóis queimado,
         Tenho próprio casal, e nele assisto;
         Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
         Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
         E mais as finas lãs, de que me visto.
                  Graças, Marília bela,
                  Graças à minha Estrela!

         Eu vi meu semblante numa fonte,
         Dos anos inda não está cortado:
         Os Pastores, que habitam este monte,
         Respeitam o poder do meu cajado:
         Com tal destreza toco a sanfoninha,
         Que inveja até me tem o próprio Alceste:
         Ao som dela conserto a voz celeste;
         Nem canto letra, que não seja minha.
                  Graças, Marília bela,
                  Graças à minha Estrela!

         Irás divertir-te na floresta,
         Sustentada, Marília, no meu braço;
         Ali descansarei a quente sesta,
         Dormindo um leve sono em teu regaço.
         Enquanto a luta jogam os Pastores,
         E emparelhados correm nas campinas,
         Toucarei teus cabelos de boninas,
         Nos troncos gravarei os teus louvores.
                  Graças, Marília bela,
                  Graças à minha Estrela!" (Lira 1)

         4) Convívio com a Natureza. Aceitando o conceito de arte como imitação da natureza, os autores neoclássicos procuram valorizá-la, recriando-a através de descrições em que era embelezada em seus aspectos considerados apoéticos. A natureza dos árcades era, pois, a verossímil e não a real, de natureza universal e aceita como a ideal. Sem dúvida, o convívio com a natureza se fundamenta numa postura de bastante voga na época: o "fugere urbem" (fugir da cidade), que é exatamente a busca da simplicidade manifestada através do bucolismo.
      Muitas vezes, a natureza chega a exercer o papel de confidente, como nos sonetos de Cláudio Manoel da Costa, onde a natureza participa da desventura amorosa do poeta, escutando as suas lágrimas e recolhendo os seus soluços:
        "Grutas, troncos, penhascos da espessura,
         Se o meu bem, se a minha alma em vós se esconde,
         Mostrai, mostrai-me a sua formosura."
      Em Gonzaga, se a natureza não exerce o papel de confidente como em Cláudio, está presente de modo avassalador, como cenário dos seus idílios e devaneios amorosos, a ponto de transformar a íngreme e montanhosa Vila Rica em doces e amenos campos de pastagens ("locus amoenus"), onde vivem os pastores e seus rebanhos. A presença da natureza nas liras é uma constante: a natureza verossímil, idealizada - não a verdadeira, como se pode notar na lira 5 (I):
        "Aqui um regato                       Mas como discorro?
         Corria sereno                          Acaso podia
         Por margens cobertas           Já tudo mudar-se
         De flores, e feno:                     No espaço de um dia?
         A esquerda se erguia             Existem as fontes,
         Um bosque fechado,               E os feixos copados;
         E o tempo apressado,            Dão flores os prados,
         Que nada respeita,                 E corre a cascata,
         Já tudo mudou.                        Que nunca secou.
                  São estes os sítios?       São estes os sítios?
                  São estes; mas eu              São estes; mas eu
                  O mesmo não sou.             O mesmo não sou.
                  Marília, tu chamas?             Marília, tu chamas?
                  Espera, que eu vou             Espera, que eu vou."

        5) Manifestações Pré-Românticas. É fato incontestável o caráter transitório do Arcadismo ou Neoclassicismo, principalmente com poetas da categoria de um Bocage ou de um Gonzaga. Assim, "ao mesmo tempo que se busca o primado absoluto da razão, cultiva-se o sentimento, a sensibilidade, o irracionalismo" (Afrânio Coutinho) - características tipicamente românticas. Vimos atrás o retrato estereotipado de Marília. Vejamos agora como o poeta se desprende dos clichês e convenções arcádicas, numa visível atitude romântica (I, 2):
        "Pintam, Marília, os Poetas          Porém eu, Marília, nego,
         A um menino vendado,                Que assim seja Amor; pois ele
         Com uma aljava de setas            Nem é moço, nem é cego,
         Arco empunhado na mão;            Nem setas, nem asas tem.
         Ligeiras asas nos ombros,          Ora, pois, eu vou formar-lhe
         O tenro corpo despido,                 Um retrato mais perfeito
         E de Amor, ou de Cupido             Que ele já feriu meu peito;
         São os nomes, que lhe dão.         Por isso o conheço bem."
      E o que dizer do tom confessional e plangente, da sensibilidade e emoção, da cor local existente em muitas liras do livro? - Sem dúvida, são características decisivamente românticas. É o Romantismo que está chegando. Não se pode, absolutamente, dizer que o poeta está preso às limitações neoclássicas. As asas da imaginação e da liberdade criadora estavam nascendo! Com mais um pouco, o poeta estaria navegando por esferas nunca dantes navegadas: a esfera do sonho e da imaginação; da emoção e do subjetivismo, que se revelam sobretudo na Parte II, onde Gonzaga vai se libertando de Dirceu e chega mesmo a predominar sobre Marília.
        Assim, concluindo, podemos dizer que a poesia neoclássica em Gonzaga "apresenta duas faces contrastantes e complementares: quando imita os moldes clássicos e quinhentistas, é arcádica propriamente dita, ou neoclássica; quando reflete as novas inquietações que preparavam a eclosão do Romantismo, é pré-romântica " (Massaud Moisés).

O ESTILO DE GONZAGA NAS LIRAS
         No prefácio à Marília de Dirceu (Lisboa, 1957), Rodrigues Lapa, comentando o estilo de Gonzaga, afirma que "não é a persistência dos elementos tradicionais da poesia, mais ou menos pessoalmente elaborados, que nos dão definitivamente o seu estilo. Este consiste sobretudo nas novidades sentimentais e concepcionais que trouxe para uma literatura, derrancada no esforço de remoer sem cessar a antiguidade. Um amor sincero, na idade em que o homem sente fugir-lhe o ardor da mocidade, e uma prisão injusta e brutal - foram estas duas experiências que fizeram desferir à lira de Dirceu acentos novos. Estamos ainda convencidos de que o clima americano, mais arejado e mais forte, contribuiu poderosamente para a revelação desse estilo, em que se sentem já nitidamente os primeiros rebates do romantismo e a impressão iniludível das idéias do tempo."Partindo daqui, podemos apontar três fatores básicos que contribuíram para a individualidade poética de Gonzaga: o romance com a menina Maria Doroteia; a prisão injusta e brutal, como inconfidente; e a magia da natureza e do clima tropical.
      Aqui vale ressaltar também a influência de Cláudio Manoel da Costa (Glauceste ou Alceste, nas liras) a quem o poeta devotava grande amizade e admiração, e que Antônio Cândido defende como elemento fundamental na criação das liras gonzagueanas: "sem Doroteia e sem Cláudio não teríamos a sua obra" - a primeira como fonte de inspiração: "o amor"; o segundo como elemento policiador de seus versos: "a técnica".
         A presença de Maria Doroteia Joaquina de Seixas - sob o nome pastoril de Marília - é fato insofismável; o lirismo amoroso e idílico tecido à volta de uma experiência concreta - a paixão, o noivado, a separação - é igualmente fato inegável e insofismável: o tema do livro é, pois, Marília, sinônimo de Amor - fonte inspiradora do poeta, quer como mulher física e concretamente sentida, quer como uma vaga pastorinha - objeto ideal de poesia que vai e vem como peteca: por isso mesmo, ora é loura, ora morena, como já vimos.
        Ademais, sob essa mesma Marília, sentida de carne e osso (cf. I, 14 outras) ou idealizada como esposa dedicada e firme (cf. II, 4), podem esconder pedaços de Lauras, Nises ou Elviras, como revela a Lira 5 da Parte III (confronte-se com I, 1).
         Assim, negar a presença física e concreta de Maria Doroteia nas liras é incorrer em tão grasso engano quanto negar a presença da pastora Marília: ambas têm um lugar ao sol nas liras, assim como têm presença garantida no livro o poeta ouvidor Tomás Antônio Gonzaga e o pastor Dirceu.
        A influência de Cláudio Manuel da Costa nas liras é fato que Antônio Cândido defende com fortes argumentos. Com efeito, há diversas referências nas liras e Cláudio (Glauceste ou Alceste) como:
  a) elogiando-o pela sua posição que considerava superior (I, 31):
                  "Porém que importa
                  não valhas nada
                  seres cantada
                  do teu Dirceu?
                  Tu tens, Marília,
                  cantor celeste;
                  o meu Glauceste
                  a voz ergueu:
                  irá teu nome
                  aos fins da terra
                  e ao mesmo Céu."

         b) na lira 1 (I), onde traça o próprio perfil, manifesta o orgulho de ser admirado pelo "poeta das lágrimas tristes":
                   "Com tal destreza toco a sanfoninha
                  que inveja até me tem o próprio Alceste."

         c) comovente a bela é também a amizade que unia os dois poetas, como se pode ver na lira 12 (II):
                 "Quando passar pela rua
                  o meu companheiro honrado,
                  sem que me vejas com ele
                  caminhar emparelhado,
                  tu dirás: Não foi tirana
                  somente comigo a sorte;
                  também cortou desumana
                  a mais fiel união."
         O mais curioso dessa amizade, como observa Rodrigues Lapa, "é que Cláudio Manuel da Costa, ao tempo que Gonzaga escrevia estes versos (na prisão), estava denunciando o amigo como comprometido na conjura!"
   Segundo ainda Antônio Cândido esta amizade contribuiu grandemente para a individualidade e naturalidade do estilo de Gonzaga: "Mais notável se torna o calor dessa fraternidade sem ciúmes, se repararmos que Gonzaga vinha de certo modo superar a obra de Cláudio, trazendo à literatura luso-brasileira um tom moderno dentro do Arcadismo, deslocando para um plano mais individual e espontâneo a naturalidade, que na geração anterior ainda é quase acadêmica." Assim, Cláudio nem combatia nem rejeitava essas manifestações, espontâneas e inovadoras. "Pelo contrário, emenda os versos do amigo, certamente entusiasmado e rejuvenescido pelo seu cristalino frescor; e, quem sabe, sentindo neles a conseqüência natural da reforma que ajudara a empreender, trinta anos antes, em busca da naturalidade."
       A "prisão brutal e injusta" contribuiu, igualmente, conforme Rodrigues Lapa, para novos acentos, singulares tonalidades da poesia gonzagueana: amargurado pela incompreensão e injustiça dos homens, a poesia de Gonzaga expressa a dura realidade circundante. Traduz o estado de espírito do tempo que passou na prisão. Para abrandar o seu martírio apenas uma realidade existe: a doce lembrança de Marília. Colocado face a face com a realidade brutal, ganha a sua poesia novos acentos, maior autenticidade, dissipando-se, em parte, aquele idealismo e convencionalismo dominante na Parte I. E assim, pelo tom confessional e plangente, pela presença de saudade, ganha a sua poesia maior dose de individualidade e naturalidade, podendo muitas liras ser arroladas no pré-romantismo, como estes versos da lira 2, (II):
         "Eu tenho um coração maior que o mundo,
         tu, formosa Marília, bem o sabes:
                  Um coração, e basta,
                  onde tu mesma cabes."
      Nascido em Portugal (Porto), o luso-brasileiro Gonzaga não poderia ficar indiferente à paisagem brasileira. Na sua poesia, a natureza tem presença garantida, como já ressaltamos, desde a cor local da famosa lira 3, (III), até a visão que revela "um estado de alma", ainda de "inspiração puramente romântica" como se pode notar na lira 5, (I):
        "Os sítios formosos,
         que já me agradaram,
         ah! não se mudaram;
         mudaram-se os olhos,
         de triste que estou.
                  São estes os sítios?
                  São estes, mas eu
                  o mesmo não sou.
                  Marilia, tu chamas!
                  Espera, que eu vou."
        Ainda com relação ao estilo de Gonzaga, podemos notar a presença de alguns aspectos linguísticos que sobressaem nas suas liras, como a predileção por certas palavras ("beiço" para "lábios", "discurso" para "juízo", "inteligência" etc.); inversões ("são que os de Apolo mais belos"); a repetição de vocábulos, numa técnica superlativa sui-generis, como:
        "Ah! enquanto os destinos impiedosos
         não voltam contra nós a face irada,
         façamos, sim, façamos, doce amada,
         os nossos breves dias mais ditosos."
       E assim em muitas outras passagens.

 ESTRUTURA DAS LIRAS DE GONZAGA
       Com relação à estrutura das liras gonzagueanas, podemos dizer que se distribuem por duas partes, visto ser a terceira constituída de composições que pertencem à primeira ou segunda partes, além de trazer outras espécies literárias que estão fora do objeto do nosso estudo: os sonetos e as odes.

 Parte I. Na primeira parte (anterior à prisão) mostra-se o poeta cheio de esperanças, fazendo projetos conjugais, defendendo o ideal de vida burguês. De um modo geral, predomina o convencionalismo arcádico, embora possamos já constatar a presença de manifestações pré-românticas que se acentuarão na Parte II. Aí, com efeito, se constata mais intensamente a presença da mitologia, do bucolismo, da imitação, do racionalismo - postulados estéticos caracterizantemente arcádicos e neoclássicos.
    Nesta primeira fase, conforme Antônio Cândido, "denota preferência pelo verso leve, tratado com facilidade", como revela essa odezinha de sabor anacreôntico (I, 4):
        "Se alguém te louvava,                 Se estavas alegre,
         De gosto me enchia;                     Dirceu se alegrava;
         Mas sempre o ciúme                    Se estavas sentida,
         No rosto acendia                           Dirceu suspirava
         Um vivo calor                                 À força da dor.
                  Marília, escuta                              Marília, escuta
                  Um triste Pastor.                         Um triste Pastor."

Parte II. A segunda parte das liras traz a marca dos dias de masmorra, longe de sua pastora e de seu rebanho, curtindo a amargura da prisão. Daí o caráter nitidamente pré-romântico que perpassa as diversas liras que a constituem e que nos lembra Casimiro de Abreu, posteriormente, com sua poesia da saudade.
    A dimensão onírica de que está impregnada esta segunda parte é outro elemento decisivamente pré-romântico: o poeta vive de sonhos ou do tempo passado. Veja-se neste sentido a lira 9, onde conclui o poeta:
        "Assim vivia...
         Hoje os suspiros
         O canto mudo;
         Assim, Marília,
         Se acaba tudo."
     É curioso observar na Parte II o emprego do verbo no passado: o poeta vive de lembranças e recordações passadas. A realidade que o cerca é o mal presente. É interessante observar, neste sentido, a lira 15, onde o poeta revive o mesmo ambiente bucólico que envolve a lira 1, (I) - do bem passado. Mas note-se que o poeta jamais perde a esperança de rever Marília, de reconstruir tudo - porque crê na sua inocência:
        "Ah! minha Bela; se a Fortuna volta,
         Se o bem, que já perdi, alcanço, e provo;
         Por essas brancas mãos, por essa faces
         Te juro renascer um homem novo;
         Romper a nuvem, que os meus olhos cerra,
         Amar no Céu a Jove, e a ti na terra."
      Enfim, é ocioso ressaltar as recordações do bem passado e a brutal realidade do mal presente. As primeiras, o poeta as revive oniricamente, a segunda, embora sempre esperançoso, levava o poeta, muitas vezes, à revolta (II, 16):
        "A quanto chega
         A pena forte!
         Pesa-me a vida,
         Desejo a morte,
         A Jove acuso,
         Maldigo a sorte,
         Trato a Cupido
         Por um traidor.
         Eu já não sofro
         A viva dor."
       Do ponto de vista técnico, é preciso que se ressalte aqui também a estrutura métrica das liras. Conforme observa Cavalcanti Proença, "a versificação é pouco variada e, a par dos versos de quatro sílabas, melhor ditos células métricas, vêm a redondilha menor, com acentuação na 2.ª e 5ª sílabas; o heroico quebrado, sempre em combinação; a redondilha maior; o decassílabo."
       Assim, exemplificando, temos:
 a) tetrassílabo (quatro sílabas):
                  "A/mi/nha a/ma/da
                  É/mais/for/mo/sa,
                  Que/bran/co/lí/rio
                  Do/bra/da/ro/sa"
 b) pentassílabo ou redondilha menor (cinco sílabas):
                  "Mal/vi/o/teu/ros/to,
                  O/san/gue/ge/lou/-se,
                  A/lín/gua/pren/deu/-se,
                  Tre/mi,/e/mu/dou/-se,
                  Das/fa/ces/a/cor"
 c) heptassílabo ou redondilha maior (sete sílabas):
                  "Tem/re/don/da e/li/sa/tes/ta
                  Ar/que/a/das/so/bran/ce/lhas
                  A/voz/mei/ga a/vis/ta ho/nes/ta
                  E/seus/o/lhos/são/uns/sóis"
 d) decassílabo (dez sílabas) com heróico quebrado ou hexassílabo (seis sílabas):
                  "É/cer/to/mi/nha a/ma/da/sim/é/cer/to
                  Qu'eu/as/pi/ra/va/va a/ser/de um/ce/tro/o/do/no;
                  Mas/es/te/gran/de im/pé/rio/que eu/fir/ma/va
                            Ti/nha em/teu/pei/to o/tro/no"

 PRESENÇAS MARCANTES NAS LIRAS
     Vamos tentar esboçar aqui o retrato e caracteres de algumas figuras que transparecem nas liras de Gonzaga, catalisadas pela pastora Marília (Maria Doroteia Joaquina de Seixas) e o pastor Dirceu (Tomás Antônio Gonzaga), além de outro pastor Glauceste ou Alceste (Cláudio Manuel da Costa) que reponta aqui e ali nas liras, como já ressaltamos.
 a) Maria Doroteia Joaquina de Seixas (Marília). Já falamos de Marília ao longo deste comentário. Parece-nos que ficou claro o retrato de Marília (figura vaga, sem existência concreta - objeto ideal de poesia) e o de Maria Dorotéia (amada de Gonzaga, menininha de 17 anos que faz o poeta quarentão vibrar, como na Lira 14 (I)) e outras. Além de outras indicações, veja-se a lira 2 (I), que traça o perfil da amada do poeta.
 b) Tomás Antônio Gonzaga (Dirceu). Sem dúvida, pode-se afirmar que as liras são a expressão do "eu" do poeta, onde se revela altivo e apaixonado. Fala com naturalidade e abundância da sua inteligência, posição social, prestígio, habilidades (cf. I, 1). Preocupa-se com a aparência física e a erosão da idade (cf. I, 14 e 18); com o conforto, futuro, planos, glória (cf. II, 15) etc. A esse propósito, Antônio Cândido observa que "talvez a circunstância de namorar uma adolescente rica (ele, pobre e quarentão) tenha exacerbado essa tendência, que seria além disso exibicionismo compreensível de homem apaixonado."
 Por outro lado, impressionam a firmeza e a sabedoria reveladas nas liras da prisão: "nenhum momento de desmoralização ou renúncia; sempre a certeza da sua valia, a confiança nas próprias forças". É o pastor Dirceu que se "despastoraliza", tornando-se cada vez mais o poeta Tomás Antônio Gonzaga, que se exterioriza e que confia na sua inocência.
 c) Cláudio Manuel da Costa (Glauceste ou Alceste). Já vimos a presença de Cláudio nas liras e a amizade que unia os dois poetas, em que se nota também a admiração que Gonzaga nutria pelo poeta mais velho. Outra referência a Cláudio pode-se ver na lira 7 (II), onde Gonzaga parece ignorar a prisão e morte do grande amigo.
d) Na lira 38 (II), onde Gonzaga faz a justificação da sua inocência, há uma alusão a Tiradentes, cabeça da conjuração, que era tido por todos como alucinado:
         "Ama a gente assisada
          A honra, a vida, o cabedal tão pouco,
          Que ponha uma ação destas
          Nas mãos dum pobre, sem respeito e louco?"
    A lira 23 (II) é um elogio ao Visconde de Barbacena, governador de Minas, destinada a captar-lhe a benevolência. O visconde foi quem mandou prender Gonzaga, mas fora-lhe um dos amigos mais caros.

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Marília de Dirceu - Resumo do Livro Marília de Dirceu
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