Bernardo Joaquim da Silva Guimarães (Ouro Preto, 15 de agosto de 1825 — 10 de março de 1884) foi um romancista e poeta brasileiro, conhecido por ter escrito o livro A Escrava Isaura. É filho de João Joaquim da Silva Guimarães, também poeta, e de Constança Beatriz de Oliveira Guimarães. Casou-se com Teresa Maria Gomes de Lima Guimarães, e tiveram oito filhos: João Nabor (1868-1873), Horário (1870-1959), Constança (1871-1888), Isabel (1873-1915), Affonso (1876-1955), José (1882-1919), Bernardo (1832-1955) e Pedro (1884-1948).Formou-se na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1847, e nesta cidade tornou-se amigo dos poetas Álvares de Azevedo (1831-1852) e Aureliano Lessa (1828-1861). Os três e outros estudantes fundaram a Sociedade Epicureia.
Na época em que participou da criação da Sociedade Epicureia,
Bernardo Guimarães teria introduzido no Brasil o bestialógico (ou
pantagruélico), que se tratava de poesia cujos versos não tinham nenhum
sentido, embora bem metrificados. Usando do burlesco, o satírico e o nonsense,
esta poesia faz de Bernardo Guimarães um precursor brasileiro do Surrealismo,
conforme Haroldo de Campos[1],
embora este ainda o considere um romancista medíocre.
A maior parte dessa poesia não foi publicada porque era considerada pornográfica,
e se perdeu. Para alguns críticos, como o citado Haroldo de Campos, o melhor do
escritor seria o bestialógico. Um exemplo dessa produção (não-pornográfica) é o
soneto Eu Vi dos Pólos o Gigante Alado.
Histórico
das obras
O seu livro mais conhecido é A Escrava
Isaura. Foi publicado pela primeira vez em 1875, pelaGarnier. Conta as agruras de uma bela
escrava branca que vivia em uma fazenda do Vale do
Paraíba, na região fluminense de Campos.
O romance foi levado à tela da Rede Globo de
Televisão em 1976 e
em 1977 e
à da Rede Record em 2004 (Ver Escrava Isaura (1976) e A Escrava Isaura (2004),
respectivamente). A versão da Globo foi exportada para cerca de 150 países. Na China, protagonizada por Lucélia
Santos, a Escrava Isaura foi assistida por mais de
1 bilhão de pessoas. Uma edição do livro naquele país teve pelo menos 300 mil
exemplares. O romance é considerado por alguns críticos como antiescravista. José Armelim Bernardo Guimarães (1915-2004), neto do escritor,
argumenta que, se a história fosse de uma escrava negra, não chamaria a atenção
dos leitores daquela época para a questão da escravidão. O livro de Bernardo
Guimarães mais bem aceito pela crítica é O seminarista,
cuja primeira edição é de 1872. Permanece atual porque questiona o celibato dos padres. Conta a história
de um fazendeiro de Minas Gerais que obriga o seu filho a ser
padre. Eugênio, o filho, ama desde criança Margarida, filha de uma agregada da
fazenda. Ele tenta abandonar o Seminário de Congonhas em Minas Gerais,
mas o pai dele, o capitão Antunes, inventa que Margarida se casou. Eugênio se
ordena. Mas ele se endoidece no dia em que volta a sua cidade para rezar a sua
primeira missa e se depara, na igreja, com um cadáver, o da Margarida, que
tinha estado muito doente.
Duas das poesias mais conhecidas são consideradas pornográficas, embora
não sejam do período bestialógico. Trata-se do O Elixir do Pajé e A
Origem do Mênstruo. Ambas foram publicadas clandestinamente em 1875.
Em 1852, tornou-se juiz municipal e de órfãos de Catalão (Goiás).
Exerceu o cargo até 1854. Em 1858, mudou-se para o Rio de
Janeiro. Em 1859, trabalhou como jornalista e crítico literário
no jornal Atualidade, do Rio de Janeiro. Em 1861, reassumiu o cargo de juiz
municipal e de órfãos de Catalão. Foi quando, ao ocupar interinamente o juizado
de Direito, Bernardo Guimarães convocou uma sessão extraordinária do júri, que
liberou 11 réus porque a cadeia não estava em condições de abrigá-los. Em 1864,
volta para o Rio de Janeiro. Em 1866, é nomeado professor de retórica e poética
do Liceu Mineiro, de Ouro Preto. Em 1867, casa-se. Em 1873, lecionalatim e francês em Queluz (Minas Gerais).
Em 1881, é homenageado pelo imperador Dom Pedro II.
Morre pobre em 10 de março de 1884.
Obras
Cantos da Solidão (1852)
§ Inspirações
da Tarde (1858)
§ O
Ermitão de Muquém (1858)
§ A
Voz do Pajé (drama –
1860)
§ Poesias
Diversas (1865)
§ Evocações (1865)
§ Poesias (volume
que reúne as quatro obras de versos anteriores publicadas e mais o poema A
Praia de Botafogo – 1865)
§ Lendas
e Romances (contos –
1871)
§ O Garimpeiro (romance –
1872)
§ O Seminarista (romance
– 1872)
§ O
Índio Afonso (romance – 1872)
§ A Escrava
Isaura (romance – 1875)
§ Novas
Poesias (1876)
§ Maurício ou Os
Paulistas em São João del-Rei (romance – 1877)
§ A
Ilha Maldita ou A Filha das Ondas (romance – 1879)
§ O
Pão de Ouro (conto – 1879)
§ Folhas
de Outono (poesias –
1883)
§ Rosaura,
a Enjeitada (romance – 1883)
§ O
Bandido do Rio das Mortes (romance terminado em
1905 por Teresa Guimarães, mulher do autor).
§ Dança
dos Ossos
Obras
não-publicadas
§ Os
Inconfidentes (drama – 1865)
§ Os
dois Recrutas (drama – cerca de 1870)
§ As
Nereidas de Vila Rica ou As Fadas da
Liberdade (drama – cerca de 1870)
§ A
Catita Isaura (drama – 1876).
§ A
História de Minas Gerais (encomendada pelo
imperador D. Pedro II, em 1881).
Academia
Brasileira de Letras
Bernardo Guimarães foi homenageado como patronato da cadeira 5 da ABL, que teve como
fundador Raimundo Correia e na qual tiveram assento
figuras exponenciais como Osvaldo Cruz e Rachel de
Queiroz.
Também foi homenageado como patrono da cadeira número 15 da Academia Mineira de Letras, cujo fundador
foi Dilermando Cruz[2]
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A IMPORTÂNCA DE BERNARDO GUIMARÃES
Ilustração
e educação: uma leitura de Bernardo Guimarães
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Luciano Mendes de Faria Filho
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Este
trabalho busca explicitar facetas importantes da cultura e do processo de
escolarização no Brasil e, mais especificamente, em Minas Gerais, ao longo do
oitocentos. Ele acompanha outros em que temos tentado trabalhar com fontes
diversas (jornais, relatórios de diretoras e inspetores escolares, legislação
escolar) buscando apontar para a importância destas para a história da
educação e produzir uma inteligibilidade própria a cada uma delas. O texto
traz à tona a discussão sobre a produção literária de um dos principais
intelectuais mineiros do século XIX – o romancista Bernardo Guimarães -,
buscando destacar a importância dos intelectuais no processo de escolarização
nos últimos dois séculos.Palavras-chave: Minas
Gerais. Literatura. História. História da Educação.
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· Opinião da crítica
Apesar de
reconhecerem o enorme sucesso, de público, da produção literária de Bernardo
Guimarães, a crítica e a história literária mostram-no como autor de uma obra
bastante controversa. Romântico por excelência, o lugar e a importância da obra
de Bernardo Guimarães é objeto de discussões entre nossos principais
historiadores da literatura e críticos literários. Seja ressaltando a qualidade
superior de suas poesias em relação aos seus romances e novelas, seja
acentuando o caráter inovador de seus escritos ou chamando a atenção para a
apropriação feita por ele de modelos românticos nacionais ou estrangeiros, sua
obra é, ainda hoje, objeto de atenção de autores como Luiz Costa Lima (1991),
Flora Süssekind, dentre outros.
Segundo Lima
(1991, p. 24) “para o cânone oficial relativo ao romantismo brasileiro,
Bernardo Guimarães é poeta de segunda ordem.” Para demonstrar tal afirmação,
passa em revista as produções de Silvio Romero e José Veríssimo, chamando a
atenção para a permanência desta posição na história da literatura brasileira.
Também Nelly Novaes Coelho (1982. p. 22), chama a atenção para o que chama de
“equívocos da crítica” no tratamento dado ao romancista Bernardo Guimarães,
equívocos estes que iriam desde a crítica à sua suposta pouca contribuição à
literatura nacional, pois seria autor de apenas dois livros – A escrava Isaura
e O seminarista -, até a identificação de Guimarães como um imitador de José de
Alencar e, por outro lado, como um “contador de histórias” mais do que um
verdadeiro escritor.
Ilustração e educação
A questão da
ilustração, da ciência e do iluminismo está marcadamente presente em toda a
produção de B. Guimarães. Ela está presente, inicialmente, no poema O devanear
do céptico, de 1852. O poema é um grande lamento à saída da ingenuidade pela
utilização da razão e pela descoberta da dúvida. A ciência, aqui, é vista como
um veneno que, depois de provado, traz a incerteza e a impossibilidade da
tranqüilidade. Dizia o poeta:
“Oh! feliz
quadra aquela, em que eu dormia
Embalado em
meu sono descuidoso
No tranqüilo
regaço da ignorância;
Em que
minh’alma, como fonte límpida
Dos ventos
resguardada em quieto abrigo,
Da fé os
raios puros refletia!
Mas num dia
fatal encosto à boca
A taça da
ciência; - senti sede
Inextinguível
a crestar-me os lábios;
Traguei-a
toda inteira, - mas encontro
Por fim
travor de fel; - era veneno,
Que no fundo
continha, - era incerteza!
Oh! desde
então o espírito da dúvida
Como abutre
sinistro, de contínuo
Me paira
sobre o espírito, e lhe entorna
Das turvas
asas a fúnebre sombra!
De eterna
maldição era bem digno
Quem
primeiro tocou com mão sacrílega
Da ciência
na árvore vedada,
E nos legou
seus venenosos frutos.” (Poesias. p. 41)
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Já no poema
Dilúvio de Papel, cujo título, não por acaso, vem seguido do esclarecimento,
Sonho de um jornalista poeta, não é apenas a razão como elemento esclarecedor e
confortador do homem que é posta em dúvida pelo poeta; também o é uma das
principais formas de colocá-la em circulação: o impresso. Neste poema,
possivelmente escrito entre 1859 e 1860, época em que B. Guimarães trabalhava
no jornal Atualidade, no Rio de Janeiro, o autor faz, talvez, uma das críticas
mais contundentes à cultura que se respirava naquela segunda metade dos XIX que
se iniciava. Familiarizado com os jornais e com a prática jornalística que,
desde há muito, prometia ilustrar e educar o povo, poeta acaba por chamar a
atenção, ao cabo, para o quanto parecia ser efêmera tal promessa, apesar do
grande número de publicações.
Inicialmente,
o narrador afirma à Musa que abandonara a poesia porque...
“Esse
ofício, que ensinas, já não presta;
Vai tocar
tua lira em outras partes;
Que aqui
nestas paragens só têm voga
Comércio,
indústria e arte.” (Poesias. p. 114)
E a Musa,
por sua vez, o castiga enviando um estranho castigo: um dilúvio de papel, o
qual atinge todo o mundo e ameaça o narrador, que assim o descreve:
“E através
das ondas, que recrescem
A cada
instante, e os ares escurecem
De Mercantis,
Correios e Jornais,
De Ecos do
Sul, do Norte, de Revistas,
De Diários
Constitucionais,
De
Coalizões, de Ligas Progressistas,
De Opiniões,
Imprensas, Nacionais,
.........................................................
E continua:
“Para a
triste humanidade
Não resta
mais esperança;
O dilúvio
cresce, e avança,
Leva tudo a
tropel!...
Já imensa
papelada
As terras e
os mares coalha;
Já o globo
se amortalha
Em camada de
papel.
Mas sobre
elas resvalando
Vai jogando
meu batel
Pobre idade
testemunha
Desta
pavorosa cheia
Que dos
tempos na cadeia
Vê
quebrar-se o extremo anel!...
Oh! século
dezenove,
Ó tu, que
tanto reluzes,
És o século
das luzes,
Ou século do
papel?!...” (Poesias. p. 122)
No sonho do
poeta, os jornais, que tanto prometiam iluminar, bem ao espírito de um século
das luzes nos trópicos, mostravam-se, nada mais nada menos, do que uma grande
ameaça para a triste humanidade.
Também nos
romances essa questão aparece. Ao tratar do assunto, o autor traz para dentro
de sua obra toda a tensão que marca as discussões no momento em que escreve,
notadamente com relação à religião. Uma das indagações que parecem animar B.
Guimarães é se sobre a possibilidade de compatibilizar a ilustração com as
verdades e práticas religiosas.
No romance Maurício, num determinado momento da história, quando os portugueses intencionavam prender o índio Irabussú para dele saber o local de uma rica mina e, assustados, pensando que ele havia se transformado em gato, chamam-no de duende, bruxo e de outros adjetivos, o narrador comenta: “Estou certo que o leitor não será tão simples e crédulo como aqueles bons campônios de Portugal, que tanto acreditavam em bruxarias e visões sobrenaturais...” (MAURÍCIO. p. 138)
No romance Maurício, num determinado momento da história, quando os portugueses intencionavam prender o índio Irabussú para dele saber o local de uma rica mina e, assustados, pensando que ele havia se transformado em gato, chamam-no de duende, bruxo e de outros adjetivos, o narrador comenta: “Estou certo que o leitor não será tão simples e crédulo como aqueles bons campônios de Portugal, que tanto acreditavam em bruxarias e visões sobrenaturais...” (MAURÍCIO. p. 138)
Noutra
ocasião, na introdução ao Ermitão... ao falar da prática das romarias e das
capelas existentes para onde os romeiros sistematicamente se dirigiam, o
narrador chamava a atenção para a atenção para o fato de que:
“Os
filósofos do século, os apóstolos da descrença riem-se com desdém dessas
ingênuas e tocantes crenças do povo. Todavia seus engenhosos raciocínio, seus
sistemas transcendentes, não podem substituir essa fé viva e singela, que
alenta e consola o homem do povo nos trabalhosos caminhos da vida. Embora
envolvida no cortejo de mil superstições grosseiras, de mil tradições absurdas,
deixemos-lhe essa fé, que o acompanha desde o berço, que bebeu com o leite
materno, e que o consola em sua hora extrema. Seja embora um erro, é um erro
consolador, que em nada prejudica ao indivíduo nem à sociedade; a esses filósofos
poderíamos responder parodiando aqueles versos que Camões põe na boca de
Adamastor:
E o que vos
custa tê-los nesse engano
Ou seja
sombra, ou nuvens, sonho ou nada?... (Maurício. p. 2607)
Vê-se que,
sem deixar de conceber tais práticas como superstições grosseiras, de mil
tradições absurdas e como um grande erro, ressalta-se o papel desta fé,
aprendida desde o berço, para o consolo do crente, animando-o nos trabalhosos
caminhos da vida. Neste sentido, a crítica dirigida ao filósofos não poderia deixar
de ser mais contundente: o que a suas críticas à religião do povo poderia
oferecer a este mesmo povo como consolo?
No entanto,
se havia uma indulgência para com as práticas religiosas do povo, nem sempre
acontecia o mesmo com a igreja. Como veremos mais à frente ao tratar da
educação de Eugênio, o herói de O seminarista, B. Guimarães colocava em
circulação uma contundente críticas às formas encontradas pela igreja para
educar as novas gerações e, mesmo, a algumas das mais importantes instituições
católicas, como o celibato. Também em suas poesias satíricas os religiosos
apareciam de forma muito pouco elogiosas. Veja-se, por exemplo, o poema A orgia
dos duendes (GUIMARÃES,1992. p. 31-41).
Neste poema
o autor relata uma estranha “reunião” que acontece a meia-noite em uma
floresta. Sua primeira estrofe diz o seguinte:
“Meia-noite
soou na floresta
No relógio
de sino de pau;
E a
velhinha, rainha da festa,
Se assentou
sobre o grande jirau..”
A seguir o
poeta vai nomeando quem chega: o Lobisomem, a Taturana, a Getirana¸ a
Mamangava, o Galo preto, a Mula-sem-cabeça e vários outros interessantes
convidados. Após a chegada de todos, cada um se apresenta. Vejamos algumas das
apresentações em que os religiosos são citados:
“Taturana
Dos prazeres
de amor as primícias
Do meu pai
entre os braços gozei;
E de amor as
extremas delícias
Deu-me um
filho, que dele gerei.
..................................................
Getirana
Por conselho
de um cônego abade,
Dous maridos
na cova soquei;
E depois por
amores de um frade
Ao suplício
o abate arrastei.
[...]
Galo-preto
Como frade
de um santo convento
Este gordo
toutiço criei;
E de linda
donzelas um cento
No altar da
luxúria imolei.
[...]
Mula-sem-cabeça
Por um bispo
eu morria de amores
Que afinal
meus extremos pagou
Meu marido,
fervendo em furores
De ciúmes,
do bispo matou.
[...]
Crocodilo
Eu fui papa;
e aos meus inimigos
Para o
inferno mandei c’um aceno;
E também por
servir aos amigos
Té nas
hóstias botava veneno.
..................................................................
Como se vê,
aos olhos do poeta, o comportamento social do clero não era muito
recomendável!!!!!
· A educação das mulheres
Pode-se
delinear um número bastante grande de imagens de mulheres nas obras analisadas.
As mulheres são mães, irmãs, amantes, escravas, índias, anjos, criaturas
divinas, Evas, crianças, loucas, virgens, prostitutas, professoras,
trabalhadoras.... Ao construir, nos romances, as imagens de mulheres, B.
Guimarães não deixa de explicitar os aspectos relacionados à sua educação e, ao
fazê-lo, configura um certo modelo de educação feminina para a época. Tal
modelo, bastante complexo, contrasta muitas vezes com aquele comumente
vulgarizado pela literatura acadêmica como incluindo apenas, quando muito, o
ler, escrever e costurar. Nos livros de B. Guimarães as mulheres sabem mais ler
do que escrever, apesar de muitas das heroínas dominarem ambas as competências,
e todas sabem costurar; mas a educação das mulheres, como veremos, abrange
muito mais do que isto.
Iniciemos
pela escrava Isaura. Em certo momento do livro, Malvina, a esposa de Leôncio,
repreendendo a Isaura por seu canto triste, diz:
“Não gosto
que a cantes, não, Isaura. Hão de pensar, que é maltratada, que és uma escrava
infeliz, vítima de senhores bárbaros e cruéis. Entretanto, passas aqui uma
vida, que faria inveja a muita gente livre. Gozas da estima de teus senhores.
Deram-lhe uma educação, como não tiveram muitas ricas ilustres damas que
conheço”. (Isaura. p. 10)
O que seria,
no entanto, tal educação? Comentando que a mulher do comendador cuidou da
educação de Isaura, diz-se:
“À medida
que a menina foi crescendo e entrando em idade de aprender, foi-lhe ela mesma
ensinando a ler e escrever, a coser e a rezar. Mais tarde procurou-lhe também
mestres de música, de dança, de italiano, de francês, de desenho, comprou-lhe
livros, e empenhou-se enfim em dar à menina a mais esmerada e fina educação,
como faria com uma filha querida.” (Isaura. p. 17)
No caso de
Isaura, uma escrava, no entanto, como se poderia prever, a educação poderia ser
vista, por alguns, como um perigo. Pelo menos para Leôncio, era. Assim, depois
de Isaura dizer que não lhe faltarão meios e coragem de ficar livre do seu
senhor, o próprio Leôncio, como se sabe, este diz: “Eis o proveito que se tira
de dar educação a tais criaturas! Bem mostras, que és uma escrava, que vives de
tocar piano e ler romances. Ainda bem que me prevenistes; eu saberei gelar a
ebulição desse cérebro escaldado.”(ISAURA. p. 74)
Em outros
romances também se fala da educação da mulheres. Lúcia, de O garimpeiro, sabe
ler e escrever e utiliza tais competência para se comunicar, às escondidas, com
seu amado Elias, o qual sabe ler, escrever e contabilidade, lê Rousseau e sabe
a história das cavalhadas, dentre outros assuntos.
Também no
romance A filha do fazendeiro, explicita-se como se deu a educação da heroina:
“Além das
perfeições que recebera da natureza, Paulina tinha tido uma educação acurada e
a mais completa que naqueles tempos em nosso país se podia dar a uma menina.
Ainda em tenros anos tinha sido enviada para um colégio em S. João del-Rei,
onde a gentil sertaneja recebeu com muito aproveitamento lições de leitura, música,
dança, e aprendeu as maneiras de uma sociedade um pouco mais polida do que era
a Uberaba naqueles tempos.” (História. p. 20-1)
Em O
Seminarista, enquanto o menino era enviado para o colégio, assim era feita a
educação da menina Margarida: “À medida que a menina ia crescendo, a senhora
Antunes, como boa madrinha que era, ia-lhe ensinando o que a sua tenra idade
comportava, e desde os cinco anos lhe pôs nas mãos a agulha e o
dedal.”(SEMINARISTA. p. 17)
Depois de
passar dois anos no colégio, Eugênio põe-se a ensinar Margarida a ler. Tal
situação é descrita da seguinte forma:
“Eugênio não
mentia, quando disse à sua mãe que ensinava a ler a companheira de infância. O
viandante, que por ali transitasse aquela, época, teria por vezes a ocasião de
contemplar à sombra das paineiras junto à pontezinha de que já falamos, um
curioso e interessante grupo: um esbelto rapagote de cerca de doze anos
assentado na grama, e com um braço passado sobre o ombro de uma gentil menina
um pouco mais nova, apontando as letras do alfabeto. (Seminarista. p. 20)
Em outros
romances, imaginava-se a educação das meninas índias, ora pelo brancos, ora no
interior da própria comunidade indígena. No caso da primeira situação,
ressalta-se a educação de Judaíba pela branca Leonor, em Maurício e da mestiça
Jupira, que vivera longos anos entre os índios, por seu pai. O primeiro caso é
assim descrito pelo narrador:
“Como
sabemos, apenas o velho bugre partiu com sua escolta, Leonor, que condoída da
sorte da pobre cabocla se interessava vivamente por ela, a tinha tirado da
prisão, em que até ali estivera encerrada em companhia de seu pai, Leonor tomou
a seu cuidado transfigurá-la completamente; deu-lhe alguns vestidos mais
decentes, penteou ela mesma os cabelos ásperos e corredios da índia, perfumou-se
e trançou dando-lhes a cor luzidia da plumagem do assú, enfeitou-lhe o colo, a
fronte e os braços com algumas jóias e adereços de pouco valor, e em poucas
horas transformou a brinca e seminua virgem da floresta em linda e faceira
rapariguinha. (Maurício. p. 221)
Logo depois,
no mesmo romance, a educação da jovem índia é justificada de outra forma: pela
falta de irmão e pela busca companhia para e pela jovem branca.
“Nestas
conjunturas veio-lhe à idéia, que a jovem indígena poderia bem até certo ponto suprir
o vácuo, que em torno dela reinava, e encher-lhe mais agradavelmente o tempo,
que tão enfadonho lhe corria. Desvelar-se-ia em educá-la para a sociedade;
ensinar-lhe-ia a ler, cozer, a rezar; a menina seria sua discípula, sua
catecúmena, sua irmã mais moça. Isto ao mesmo tempo que seria para ela um
honesto passatempo, que lhe ia tornar mais suportável a ociosa e solitária
existência, que levava, seria também uma obra meritória aos olhos de Deus e dos
homens.” (Maurício. p. 223)
No que se
refere a Jupira, tal como seus companheiros de tribo e de vida errática, a
menina não se sujeitava facilmente às práticas educativas e, porque não,
disciplinares impostas por seu pai. Nota-se, no texto abaixo, que, aqui também,
atuava o modelo anterior. Chama a atenção o fato de que o pai de Jupira
ensina-lhe a escrever, o que não era muito comum nos romances de B. Guimarães:
mais de uma vez narra-se o aprendizado e a prática da leitura pelas mulheres,
mas raramente o mesmo acontece com a escrita.
“A menina
crescia linda, engraçada, e travessa como uma ariranha. Tinha muita vivacidade
e penetração, mas os instintos selváticos prevaleciam nela, e foi com muita
dificuldade, que seu pai no fim de sete anos conseguiu que ela adquirisse
alguns costumes de civilização, andasse vestida, cosesse, lesse e escrevesse
algumas coisa. Muitas vezes a iam agarrar pelos matos quase nua, trepada como
macaco na mais altas árvores, ou nadando nos profundos remansos do Rio Verde em
risco de ser devorado por algum jaú ou sucuri.”(Tradições. p. 146)
Não deixa de
ser contrastante com a educação das mulheres no civilizado, dentro da obra de
B. Guimarães, a forma como ele constrói a educação da jovem índia Guaraciaba.
Conduzida sob a responsabilidade de um homem, feiticeiro Andiara, a educação
desta jovem nada lembra o recato da educação das meninas brancas. Dizia-se que:
“Andiara
votava paternal afeição à filha do cacique, sobre cuja infância velara desde o
berço com a mais terna solicitude. Tendo ela ainda em tenra idade perdido a
mãe, a linda e donosa Naumá, Andiara, parente e amigo fiel e extremoso de
Oriçanga, a cuja família julgava estar ligada a glória da nação dos Chavantes,
tomou a si o cuidado de educar e desenvolver os dotes do corpo e do espírito da
gentil menina, última progênie de uma raça de heróicos caciques, e em quem
repousava toda a esperança a tribo. Ele a tinha sempre junto a si, e a conduzia
pela mão em seus giros pelas florestas; ele entretecia com suas própria mãos
vistosos canitares de plumas ondulantes para sombrear-lhe a fonte, e lhe
engastava o cinto da araçóia de palhêtas de ouro nativo e de brilhantes
pedrarias. Também a exercitava na arte de encurvar o arco, de brandir o tacape,
defender com os ombros as águas das torrentes, ou impedir rapidamente com o
remo um piroga a resvalar pela ondas azuladas de seu rio natal; ensinava-lhe as
danças e cantigas sagradas, e os hinos de guerra, dando-lhe uma educação toda
varonil na esperança de torná-la um dia uma heroina capaz de elevar a nação ao
mais subido auge de glória e de grandeza.” (Ermitão. p. 80)
· A educação dos homens
No que se
refere à educação dos homens, é interessante notar que, B. Guimarães, homem
escolarizado, vai construir poucas possibilidades para as histórias
educacionais para seus personagens masculinos: ou terão uma educação bastante
solta ou serão educados nos seminários. Ambas mostrar-se-ão bastante
desastradas, como veremos. Parece confirmar tal perspectiva o fato de que,
dentre seus personagens masculinos, o que melhor sorte tem, o Elias, d’O
garimpeiro, que sabe ler e escrever, sabe matemática e contabilidade, é leitor
de Rousseau e sabe em profundidade, como já vimos, a história das cavalhadas,
sobre sua educação nada se diz.
Veja-se, no
entanto, como foi a educação de alguns de seus outros personagens masculinos.
Maurício, personagem título de um dos romances, tendo fiado órfão foi adotado
por Diogo Mendes, o capitão-mor que, posteriormente, transferiu-se para as
Minas Gerais. Assim se descreve a sua educação:
“Era um belo
menino, cheio de vivacidade e inteligência. Interessando-se vivamente pelo
órfão, que de dia em dia desenvolva novos dotes e espírito, e excelentes
qualidades de coração, Diogo Mendes o fez entra par o colégio dos jesuítas,
afim de ser educado para o estado clerical. Aí esteve por três ou quatro anos,
durante os quais aqueles padres, apreciando a inteligência claro, o espírito
vivaz e penetrante, e a índole audaciosa, que o menino então adolescente ia
revelando em sumo grau, achando que ali havia massa para se formar um excelente
missionário de Loiola, empregaram grandes esforços em atraí-lo ao seu grêmio.
Foi tudo embalde; o menino não havia nascido para a roupeta. Havia nele um
elemento, que se opunha diametralmente à obediência passiva, essa condição
cordial imposta aos discípulos de S. Inácio. Era um extremo amor da
independência, uma rebeldia indomável contra todo e qualquer jugo. (Maurício.
p. 38)
Já Leôncio,
o vilão d’A escrava Isaura, teve a seguinte educação:
“Leôncio
achara desde a infância nas larguezas e facilidade de seus pais amplos meios de
corromper o coração extraviar a inteligência. Mau aluno e criança incorrigível,
turbulento e insubordinado, andou de colégio em colégio, e passou como gato por
brasas por cima de todos os preparatórios, cujos exames todavia sempre achavas
à sombra do patronato. Os mestres não se atreviam a dar ao nobre munífico
comendador o desgosto de ver seu filho reprovado”.(Isaura. p. 13)
Como jovem
rico que era, seu percurso educacional foi marcado ainda pela matrícula na
escola de medicina, da qual saiu por desinteresse, e na faculdade de direito de
Olinda, na qual também não conclui o curso. Em seguida, vai para a Europa, onde
ao invés de estudar fica passeando e tomando contato com ambientes e figuras
poucos recomendáveis socialmente, segundo o narrador. ... percursos dos filhos
das gentes ricas. Para trazê-lo de volta, o pai acena com um bom casamento.
Segundo o narrador:
“Leôncio
mordeu a isca e voltou à pátria um perfeito dândi, gentil e elegante como
ninguém, trazendo de suas viagens, em vez de conhecimentos e experiência,
enorme dose de fatuidade e petulância e um tão perfeito traquejo da alta
sociedade, que o tomaríeis por um príncipe. Mas o pior era que, se trazia o
cérebro vazio, voltava com a alma corrompida e o coração estragado por hábitos
de devassidão e libertinagem”.(Isaura. p. 14)
Também a
educação de Gonçalo, d’O Ermitão..., é marcada pela ausência da direção
familiar, numa reiterada representação sobre a educação dos jovens ricos na
obra de B. Guimarães, como já vimos. No romance, a apresentação do personagem
se dá da seguinte forma:
“Era filho
de pais abastados e de família; porém educado à larga, abandonado desde a
infância a si mesmo, sempre em meio de más companhias, dotado além de tudo de
índole inquieta e fogosa, este rapaz, que poderia ser um homem de bem e útil à
sociedade, se uma educação regular tivesse dado salutar direção aos instintos
de sua natureza, foi-se tornando um valentão famoso, talhado a molde para as
galés ou para o patíbulo.
Gonçalo, que
assim se chamava, aplicou-se com ardor desde criança ao manejo de armas de toda
a qualidade, a domar animais bravos, a caçar, a nadar, enfim a toda sorte de
exercícios do corpo os mais rudes e perigosos.
E de feito
neste ponto sua educação foi completa; ...”(Ermitão. p. 33)
Eugênio (O seminarista)
saiu de casa aos 9 anos para estudar na cidade vizinha, vinha em casa no fim de
semana. Pouco mais de dois anos depois, ele é enviado para o seminário. A
mudança do ambiente de casa para o novo regime educativo, é descrito como uma
passagem do espaço aberto para o fechado.
“Eis o nosso
herói transportado das livres e risonhas campinas da fazenda paterna para a
monótona e austera prisão de um seminário no arraial de Congonhas do Campo, de
barrete e sotaina preta, no meio de uma turba de companheiros desconhecidos;
como um bando de anus pretos encerrados em um vasto viveiro.” (Seminarista. p.
21)
Tal idéia é
retomada logo depois, utilizando-se, agora, da idéia do cenário onde o artista,
ou os padres, traçam ou moldam sua criação (ou criatura).
“Eis o novo
cenário, a que havemos transportado o nosso herói. O espetáculo não podia
deixar de ser curioso e interessante, e nem a nova fase da vida em que ia
entrar deixaria de ter encantos para um menino que tanto gostava das práticas
de devoção religioso, e tão forte tendência mostrava para o misticismo.
Contudo, aquele filho do sertão, acostumado a percorrer os campos e bosques da
fazenda paterna, não pode a princípio deixar de estranhar a severa reclusão e
imprescritível regularidade daquela vida monótona e compassada do seminário.
Mas, o gênio pacato e a extrema docilidade de Eugênio, ajudados pela bossa da
beatividade ou veneratividade, que tinha muito desenvolvida, fizeram com em
menos tempo do que qualquer outro se habituasse e tomasse gosto mesmo pelo seu
novo gênero de vida, como se fosse o elemento m que nascera”. (Seminarista. p.
23)
Observe-se
que, não por acaso, será este menino “pacato” e “dócil” que, ao contrário dos
outros que tiveram uma educação desregrada, terá um fim trágico – a loucura – justamente
por não conseguir desvencilhar-se do projeto para ele arquitetado pela família
e pela igreja.
· A educação
física, moral e intelectual
Finalmente,
outro elemento para o qual podemos chamar a atenção é para a interdependência
estabelecida por B. Guimarães entre a educação física, a moral e a intelectual.
Como sabemos tal perspectiva, sistematizada, dentre outros, por Kant, era muito
conhecida no Brasil dos oitocentos através da leitura de diversas obras,
notadamente das de H. Spencer.
A partir de meados do século XIX, ganhou força nos variados discursos sobre a educação a idéia de que no entrelaçamento das três dimensões básicas da “educação integral” – a moral, a física e a intelectual – um dos elementos determinantes era o fator hereditário. Este caldo de cultura aparece obviamente na obra de B. Guimarães. Assim, n’A escrava Isaura, depois de falar da paixão que Leôncio passou a cultivar por Isaura, apesar de ser casado com um jovem e linda mulher, diz-se que “Leôncio era um digno herdeiro de todos os maus instintos e da brutal devassidão do comendador.” (Isaura. p. 21)
No entanto, é n’O seminarista, ao falar da educação de Eugênio, que o autor vai produzir uma impressionante e, ao mesmo tempo, muito negativa visão da educação nos colégios internos, notadamente nos seminários. Como que estabelecendo um diálogo com as correntes higienistas da época, o narrador assim fala da educação recebida por Eugênio no seminário, bem como do resultado na mesma sobre o rapaz.
A partir de meados do século XIX, ganhou força nos variados discursos sobre a educação a idéia de que no entrelaçamento das três dimensões básicas da “educação integral” – a moral, a física e a intelectual – um dos elementos determinantes era o fator hereditário. Este caldo de cultura aparece obviamente na obra de B. Guimarães. Assim, n’A escrava Isaura, depois de falar da paixão que Leôncio passou a cultivar por Isaura, apesar de ser casado com um jovem e linda mulher, diz-se que “Leôncio era um digno herdeiro de todos os maus instintos e da brutal devassidão do comendador.” (Isaura. p. 21)
No entanto, é n’O seminarista, ao falar da educação de Eugênio, que o autor vai produzir uma impressionante e, ao mesmo tempo, muito negativa visão da educação nos colégios internos, notadamente nos seminários. Como que estabelecendo um diálogo com as correntes higienistas da época, o narrador assim fala da educação recebida por Eugênio no seminário, bem como do resultado na mesma sobre o rapaz.
“No fim de
algum tempo, Eugênio estava magro, pálido, alquebrado, que mais parecia uma
múmia ambulante. Tinha-se de todo amortecido o brilho de seus grandes olhos
azuis, e profunda palidez cobria-lhe o rosto magro. O adolescente de dezesseis
anos parecia um ancião às bordas da sepultura.
Estes
estragos físicos não deixaram também de repercutir de um modo deplorável no
moral e na inteligência. ...” (Seminarista. p. 36)
“À força de
trabalhos e insônias, de orações, jejuns e mortificações continuadas, caiu em
tal estado de prostração, de atonia física e moral, que embotando-se-lhe de
todo a sensibilidade e quase extinto o lume da inteligência, o rapaz ficou como
que reduzido a um autômato.”(Seminarista. p. 36)
“Eis como
uma educação fanática e falseada, abusando de certas pré-disposições do espírito,
lança naquela alma o germe de uma luta íntima e cruel, que fará o tormento de
toda a sua vida e o arrastará talvez à última desgraça, se a misericórdia
divina dele não se amercear.” (Seminarista. p. 37)
Noutra
ocasião, ao comentar o acanhamento de Eugênio quando, em visita à sua família,
não consegue conversar com seus entes mais queridos, o narrador volta à carga e
diz:
“A educação
claustral é triste em si e em suas conseqüências: o regime monacal, que se
observa nos seminários, é mais próprio para formar ursos do que homens sociais.
Dir-se-ia que o devotismo austero, a que vivem sujeitos os educando, abafa e
comprime com suas asas lôbrega e geladas naquelas almas tenras todas as
manifestações espontâneas do espírito, todos os vôos da imaginação, todas as
expansões afetuosos do coração.
O rapaz que
sai de um seminário depois de ter estado ali alguns anos, faz na sociedade a
figura de um idiota. Desazado, tolhido e desconfiado, por mais inteligente e
instruído que seja, não sabe dizer duas palavras com acerto e discrição, e
muito menos com graça e afabilidade. E se acaso o moço é tímido e acanhado por
natureza, acontece muitas vezes ficar perdido para sempre.” (Seminarista. p.
41)
Podemos
perceber, pois, uma visão bastante crítica acerca da educação nos colégios
religiosos. Tal educação, ao fim e ao cabo, acabava por mutilar a própria
humanidade, não apenas impedindo a realização de legítimos projetos de vida dos
sujeitos a ela submetidos mas, corroendo o caráter, a inteligência e a saúde
física dos meninos.
Para
finalizar, é preciso ressaltar que, de um modo geral, assim como Bernardo
Guimarães utiliza-se de suas várias sensibilidades e competências – de
bacharel, de professor, de juiz, de literato, de jornalistas, ... – para
construir seus personagens, montar suas tramas e levar avante suas narrativas,
ele participa também de toda as ambigüidades e contradições de seu tempo: a
crença no progresso, na ciência e na ilustração de um modo geral, tem que
conviver com a presença marcante da religião, as idas e vindas da vida política
brasileira, a presença da escravidão... e de tudo o mais que marca aquele tão
conturbado século XIX. Mais ainda: podemos dizer que, como literato, B.
Guimarães, propôs formas peculiares de mostrar aquele momento e de compreender
as relações sociais. Neste sentido, a produção aqui analisada, mostra um autor
profundamente comprometido com o seu tempo e, ao mesmo tempo, profundamente
cindido sobre as relações, os valores, os desejos, as esperanças compartilhados
e abraçados. Também por isso, seus personagens e suas histórias nos fascinam
tanto até hoje.
Revista do Centro de Educação - UFSM - coralx.ufsm.br
A ESCRAVA ISAURA
Por Frederico Barbosa e Sylmara
Beletti
INTRODUÇÃO
Escrito em plena campanha abolicionista (1875), o livro conta as desventuras de Isaura, escrava branca e educada, de caráter nobre, vítima de um senhor devasso e cruel.
Escrito em plena campanha abolicionista (1875), o livro conta as desventuras de Isaura, escrava branca e educada, de caráter nobre, vítima de um senhor devasso e cruel.
O romance A Escrava
Isaura foi um grande sucesso editorial e permitiu que Bernardo
Guimarães se tornasse um dos mais populares romancistas de sua época no Brasil.
O autor pretende, nesta obra, fazer um libelo anti-escravagista e libertário e,
talvez, por isso, o romance exceda em idealização romântica, a fim de
conquistar a imaginação popular perante as situações intoleráveis do cativeiro.
O estudioso Manuel Cavalcanti Proença observa que:
“Numa literatura não
muito abundante em manifestação abolicionistas, é obra de muita importância,
pelo modo sentimental como focalizou o problema, atingindo principalmente o
público feminino, que encontrava na literatura de ficção derivativo e caminho
de fuga, numa sociedade em que a mulher só saía à rua acompanhada e em dias
pré-estabelecidos; o mais do tempo ficava retida em casa, sem trabalho obrigatório,
bordando, cosendo e ouvindo e falando mexericos, isto é, enredos e intrigas,
como se dizia no tempo e ainda se diz neste romance.”
O NASCIMENTO DO ROMANCE
A publicação de romances em folhetins - os capítulos
aparecendo a cada dia nos jornais - já era comum no Brasil desde a década de
1830. A maior parte destes folhetins era composta por traduções de romances de
origem inglesa, como as histórias medievais de Walter Scott, ou francesa, como
as aventuras dos Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas. Emocionados, os
brasileiros acompanhavam as distantes aventuras de um Ivanhoé ou de um
D’Artagnan, transportando-se, em espírito, para os campos e reinos da Europa.
Embora fizessem sucesso junto
ao público, os primeiros romances brasileiros, publicados em folhetim, não
deixavam de ser considerados, pelos literatos “sérios”, como “uma leitura
agradável, diríamos quase um alimento de fácil digestão, proporcionado a
estômagos fracos.” O romance, esse gênero literário novo e “fácil”, que foi
introduzido na literatura brasileira por autores como Joaquim Manuel de Macedo
e Teixeira e Sousa, ganharia status de literatura "séria" com a obra
de José de Alencar.
A descrição do cenário nacional
O público interessava-se,
portanto, cada vez mais por um romance de aventuras românticas que apresentasse
o cenário brasileiro. O grande sucesso de público de O Guarani (1857), de José
de Alencar, em que as aventuras de Peri e sua amada Cecília se desenrolam em meio
à exuberante natureza fluminense, estimula os escritores a se voltarem para a
apresentação da ambientação tipicamente nacional em suas obras.
Na década de 70 essa
tendência nacionalista haveria de se consolidar, com o surgimento das obras de
Franklin Távora (1842-1888), autor de O Cabeleira (1876) e o Visconde de
Taunay (1843-1899), autor de Inocência (1872). É nesse cenário literário que
aparece, em 1875, um dos maiores sucessos de público do período: A Escrava
Isaura, que explora uma das questões mais polêmicas da sociedade brasileira da
época, a escravidão.
O ENREDO
A história se passa nos
“primeiros anos do reinado de D. Pedro II”, inicialmente em uma fazenda em
Campos dos Goitacazes (RJ). Isaura, escrava branca e bem-educada, é assediada
pelo seu senhor, Leôncio, recém-casado com Malvina. Isaura se recusa a ceder
aos apelos de Leôncio, como já fizera, no passado, sua mãe, que, por ter
repelido o pai de Leôncio, fora submetida a um tratamento tão cruel que, em
pouco tempo, morrera.
Para forçá-la a ceder, Leôncio manda Isaura
para a senzala, trabalhar com as outras escravas. Sempre resignada, suporta
passivamente o seu destino, porém, não cede a Leôncio, afirmando que ele, como
proprietário, era senhor de seu corpo, mas não de seu coração: “ - Não, por
certo, meu senhor; o coração é livre; ninguém pode escravizá-lo, nem o próprio
dono.” Leôncio, enfurecido, ameaça colocá-la no tronco.
No entanto, seu pai, ex-feitor
da fazendo, consegue tirá-la de lá e foge com ela para Recife (PE). Em Recife,
Isaura usa o nome de Elvira e vive reclusa numa pequena casa com seu pai.
Então, conhece Álvaro, por quem se apaixona e é correspondida. Vai a um baile
com ele, onde é desmascarada e reconhecida. Álvaro, ainda que surpreso, não se
importa com o fato de ela ser uma escrava e resolve impedir que Leôncio a leve
de volta, inclusive tentando comprá-la. Mas não consegue convencer o vilão, e
este leva Isaura de volta ao cativeiro na fazenda.
Leôncio está praticamente
falido e, com o objetivo de conseguir um empréstimo do pai de Malvina, consegue
se reconciliar com a mulher, afirmando que Isaura é quem o assediava. Então,
para punir Isaura, Leôncio manda que ela se case com Belchior, jardineiro da
fazenda. Entretanto, Álvaro descobre a falência de Leôncio e compra a dívida
dos seus credores, tornando-se proprietário de todos os seus bens, inclusive de
seus escravos. No dia do casamento de Isaura, antes que se celebrasse a
cerimônia, Álvaro aparece e reclama seus direitos a Leôncio. Vendo-se derrotado
e na miséria, Leôncio suicida-se. Tudo termina, portanto, com a punição dos
culpados e o triunfo dos justos.
Como bem o sintetizou Carlos
Alberto Vecchi:
“A estrutura
narrativa de A Escrava Isaura segue o modelo folhetinesco das
histórias românticas: para atingir seu ideal e obter o reconhecimento de todos,
o herói tem que realizar uma jornada perigosa, onde a própria vida é colocada
em risco. O Amor, epicentro onde se debatem o Bem e o Mal, torna-se a força
motriz que conduz ao restabelecimento do equilíbrio e da felicidade a todos
que, em momento algum, se deixaram intimidar pelos desmandos de Leôncio. O Mal
extirpado (o suicídio de Leôncio) cede lugar ao Bem. E aqueles que nortearam
suas ações pelas virtudes maiores é que estão aptos a receber o prêmio daí
decorrente.”
OS PERSONAGENS
A obra apresenta a tríade
comum aos romances populares românticos: vilão, heroína e herói. E, graças à
ausência de profundidade com que são construídos, os personagens do romance são
planos, estáticos e superficiais.
Isaura, a heroína escrava, é
branca, pura, virginal, possui um caráter nobre e demonstra “conhecer o seu
lugar”: do princípio ao fim, suporta conformada a perseguição de Leôncio, as
propostas de Henrique, as desconfianças de Malvina, sem jamais se revoltar.
Permanece emocionalmente escrava, mesmo tendo sido educada como uma dama da
sociedade. Tem escrúpulos de passar por branca livre, acha-se indigna do amor
de Álvaro e termina como a própria imagem da “virtude recompensada”.
Vejamos como Guimarães
descreve sua heroína:
“A tez é como o
marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada,
que não sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. (…) Na
fronte calma e lisa como o mármore polido, a luz do ocaso esbatia um róseo e
suave reflexo; di-la-íeis misteriosa lâmpada de alabastro guardando no seio
diáfano o fogo celeste da inspiração.”
Leôncio é o vilão leviano, devasso e insensível que, de “criança incorrigível e insubordinada” e adolescente que sangra a carteira do pai com suas aventuras, acaba por tornar-se um homem cruel e inescrupuloso, casando-se com Malvina, linda, ingênua e rica, por ser “um meio mais suave e natural de adquirir fortuna”. Persegue Isaura e se recusa a cumprir a vontade de sua mãe, já falecida, que queria dar a ela a liberdade e alguma renda para viver com dignidade.
Álvaro é um rico herdeiro, cavalheiro nobre e de caráter impecável, que “tinha ódio a todos os privilégios e distinções sociais, e é escusado dizer que era liberal, republicano e quase socialista”; um jovem de idéias igualitárias, idealista e corajoso para lutar contra os valores da sociedade a que pertence. Sua conduta moral é assim descrita pelo autor:
Leôncio é o vilão leviano, devasso e insensível que, de “criança incorrigível e insubordinada” e adolescente que sangra a carteira do pai com suas aventuras, acaba por tornar-se um homem cruel e inescrupuloso, casando-se com Malvina, linda, ingênua e rica, por ser “um meio mais suave e natural de adquirir fortuna”. Persegue Isaura e se recusa a cumprir a vontade de sua mãe, já falecida, que queria dar a ela a liberdade e alguma renda para viver com dignidade.
Álvaro é um rico herdeiro, cavalheiro nobre e de caráter impecável, que “tinha ódio a todos os privilégios e distinções sociais, e é escusado dizer que era liberal, republicano e quase socialista”; um jovem de idéias igualitárias, idealista e corajoso para lutar contra os valores da sociedade a que pertence. Sua conduta moral é assim descrita pelo autor:
“Original e excêntrico
como um rico lorde inglês, professava em seus costumes a pureza e severidade de
um quacker. Todavia, como homem de imaginação viva e coração impressionaável,
não deixava de amar os prazeres, o luxo, a elegância, e sobretudo as mulheres,
mas com certo platonismo delicado, certa pureza ideal, próprios das almas
elevadas e dos corações bem formados.”
Apaixonado por Isaura, o
grande obstáculo que Álvaro precisa vencer é o fato de ser Isaura propriedade
legítima de Leôncio. Para isso, vai à corte, descobre a falência de Leôncio,
adquire seus bens e desmascara o vilão. Liberta Isaura e casa-se com ela,
desafiando, assim, os preconceitos da sociedade escravocrata.
Nos demais personagens o
processo de construção é o mesmo. Miguel, pai de Isaura, foge do conceito
tradicional do mau feitor. Quando feitor da fazenda de Leôncio, tratara bem aos
escravos e amparara Juliana, mãe de Isaura, nas suas desditas com o pai de
Leôncio. Pai extremoso, deseja libertar a filha do jugo da escravidão e não
mede esforços para isso.
Martinho é o protótipo do
ganancioso: cabeça grande, cara larga, feições grosseiras e “no fundo de seus olhos pardos e
pequeninos,… reluz constantemente um raio de velhacaria”. Por querer
ganhar muito dinheiro entregando Isaura ao seu senhor, acaba por não ganhar
nada. Já Belchior é o símbolo da estupidez submissa e também sua descrição
física se presta a demonstrar sua conduta: feio, cabeludo, atarracado e
corcunda. O crítico Manuel Cavalcanti Proença aponta “o parentesco entre o
disforme e grotesco (de gruta) Belchior, e o Quasímodo de O Corcunda de Notre
Dame, de Víctor Hugo, romance de extraordinária voga, ainda não de todo
perdida, no Brasil.”
O dr. Geraldo é um advogado conceituado, que serve como fiel da balança para Álvaro, já que procura equilibrar os arroubos do amigo, mostrando-lhe a realidade dos fatos. Quando Álvaro, revoltado com a condição de Isaura e indignado com os horrores da escravidão, dispõe-se a unir-se a ela, mesmo sabendo que escandalizaria a sociedade, Geraldo retruca lucidamente que a fortuna de Álvaro lhe dá independência para “satisfazer os teus sonhos filantrópicos e os caprichos de
tua imaginação romanesca”. O que não é, na verdade, característica restrita apenas à sociedade escravocrata do século XIX.
O dr. Geraldo é um advogado conceituado, que serve como fiel da balança para Álvaro, já que procura equilibrar os arroubos do amigo, mostrando-lhe a realidade dos fatos. Quando Álvaro, revoltado com a condição de Isaura e indignado com os horrores da escravidão, dispõe-se a unir-se a ela, mesmo sabendo que escandalizaria a sociedade, Geraldo retruca lucidamente que a fortuna de Álvaro lhe dá independência para “satisfazer os teus sonhos filantrópicos e os caprichos de
tua imaginação romanesca”. O que não é, na verdade, característica restrita apenas à sociedade escravocrata do século XIX.
Concessão ao preconceito?
Este romance já foi
considerado, com bastante exagero, uma espécie de A Cabana do Pai Tomás (1851)
nacional. Porém, Bernardo Guimarães, ao contrário da romancista americana
Harriet Beecher Stowe, detém-se muito pouco na descrição dos sofrimentos
provocados pelo regime escravocrata. Ele coloca, na boca de alguns personagens,
como Álvaro e seus amigos, estudantes no Recife, algumas frases abolicionistas,
mas parece tomar bastante cuidado em não provocar a fúria dos seus leitores
conservadores. Está mais preocupado em contar as perseguições do senhor cruel à
escrava virtuosa e, assim, conquistar a simpatia do leitor.
Bernardo Guimarães faz
questão de ressaltar exaustivamente a beleza branca e pura de Isaura, que não
denunciava a sua condição de escrava porque não portava nenhum traço africano,
era educada e nada havia nela que “denunciasse a abjeção do escravo”. O que
parece uma escolha preconceituosa e contraditória – contar as agruras da
escravidão criando uma escrava branca – talvez seja melhor compreendido se levar em conta que a maior parte do público
que consumia romances na época era composto por mulheres da sociedade, que
apreciavam as histórias de amor.
Somem-se a isso o modelo de beleza feminino de então, caracterizado pela pele nívea e maçãs rosadas do rosto e, principalmente, o objetivo do autor de conquistar a solidariedade do leitor pela escrava, mostrando a que ponto extremo poderia chegar o regime escravocrata: “fisicamente, Isaura não é diferente das damas da sociedade, mas, por ser escrava, é obrigada a viver como os de sua classe, como objeto útil nas mãos de seu senhor”, conforme afirma a crítica Maria Nazareth Soares Fonseca.
O autor claramente conseguiu o que queria. A sociedade brasileira do século XIX, que tanto se apiedou das desventuras de Isaura, aceitou-a porque ela era branca e educada. O autor pôde, assim, demonstrar, através do seu sofrimento, o quanto “é vã e ridícula toda a distinção que provém do nascimento e da riqueza”. E é claro, a cor de Isaura serve, como afirma o crítico Antônio Cândido, “para facilitar a ação de Álvaro, compreensivelmente apaixonado e decidido a desposá-la, como fez.”
Se houve influência, portanto, do romance A cabana do Pai Tomás, talvez tenha sido apenas no que o crítico Alfredo Bosi aponta como referência: a cena da fuga de Campos para Recife, “talvez sugerida pela fuga de Elisa através dos gelos flutuantes de Ohio para a liberdade no Norte e por fim no Canadá”. Entretanto, o fato é que, como aponta o crítico, só depois do lançamento de A cabana do Pai Tomás “a literatura brasileira começou a ser povoada de feitores cruéis e de escravos virtuosos”.
A LINGUAGEM
Somem-se a isso o modelo de beleza feminino de então, caracterizado pela pele nívea e maçãs rosadas do rosto e, principalmente, o objetivo do autor de conquistar a solidariedade do leitor pela escrava, mostrando a que ponto extremo poderia chegar o regime escravocrata: “fisicamente, Isaura não é diferente das damas da sociedade, mas, por ser escrava, é obrigada a viver como os de sua classe, como objeto útil nas mãos de seu senhor”, conforme afirma a crítica Maria Nazareth Soares Fonseca.
O autor claramente conseguiu o que queria. A sociedade brasileira do século XIX, que tanto se apiedou das desventuras de Isaura, aceitou-a porque ela era branca e educada. O autor pôde, assim, demonstrar, através do seu sofrimento, o quanto “é vã e ridícula toda a distinção que provém do nascimento e da riqueza”. E é claro, a cor de Isaura serve, como afirma o crítico Antônio Cândido, “para facilitar a ação de Álvaro, compreensivelmente apaixonado e decidido a desposá-la, como fez.”
Se houve influência, portanto, do romance A cabana do Pai Tomás, talvez tenha sido apenas no que o crítico Alfredo Bosi aponta como referência: a cena da fuga de Campos para Recife, “talvez sugerida pela fuga de Elisa através dos gelos flutuantes de Ohio para a liberdade no Norte e por fim no Canadá”. Entretanto, o fato é que, como aponta o crítico, só depois do lançamento de A cabana do Pai Tomás “a literatura brasileira começou a ser povoada de feitores cruéis e de escravos virtuosos”.
A LINGUAGEM
O tratamento exageradamente
romântico que o autor aplica neste livro faz com que ele tenha um caráter mais
de lenda do que de realidade, ao contrário de seus outros romances, como O
Ermitão de Muquém (1864),O Seminarista (1872) e O
Garimpeiro (1872), em que a descrição regionalista do ambiente físico
e social proporciona mais verossimilhança à trama.
Em A Escrava Isaura, o excesso de imaginação se traduz em “idealização descabida”, como afirma Antonio Candido, que se concretiza no plano da linguagem em descrições repetitivas e mecânicas dos personagens, com abuso de adjetivos redundantes.
Em A Escrava Isaura, o excesso de imaginação se traduz em “idealização descabida”, como afirma Antonio Candido, que se concretiza no plano da linguagem em descrições repetitivas e mecânicas dos personagens, com abuso de adjetivos redundantes.
Observe-se a descrição de
Isaura quando senta-se ao piano no salão de baile no Recife:
“A fisionomia, cuja expressão habitual era
toda modéstia, ingenuidade e candura, animou-se de luz insólita; o busto
admiravelmente cinzelado ergueu-se altaneiro e majestoso; os olhos extáticos
alçavam-se cheios de esplendor e serenidade; os seios, que até ali apenas
arfavam como as ondas de um lago em tranqüila noite de luar, começaram de
ofegar, túrgidos e agitados, como oceano encapelado; seu colo distendeu-se alvo
e esbelto como o do cisne, que se apresta a desprender os divinais gorgeios.
Era o sopro da inspiração artística, que, roçando-lhe pela fronte, a
transformava em sacerdotisa do belo, em intérprete inspirada das harmonias do
céu.”
O AMOR E A DONZELA INEXPUGNÁVEL
O AMOR E A DONZELA INEXPUGNÁVEL
“Os motivos que compõem
romance”, segundo Cavalcanti Proença, “são filiados nos velhos e perenes topos”
– ou temas – “da literatura popular. O amor à primeira vista é um deles. Ver e
amar é um verbo só. E isso porque a narrativa não é a história de um amor, mas
dos sofrimentos do amor. (…) Para isso se entretecem os conflitos de escrava
que não tem direito de amar, os do homem casado que não deve trair a esposa.
(Amor verdadeiro só o primeiro.)”
Entre esses temas, há um que remonta à literatura medieval e que domina a narrativa como um todo, a partir da descrição de Isaura como pura e virtuosa, lutando contra a luxúria do seu senhor. É o da donzela inexpugnável, que defende sua pureza com todas as forças de que dispõe, preferindo arriscar-se à morte na fuga a se entregar sexualmente.
Entre esses temas, há um que remonta à literatura medieval e que domina a narrativa como um todo, a partir da descrição de Isaura como pura e virtuosa, lutando contra a luxúria do seu senhor. É o da donzela inexpugnável, que defende sua pureza com todas as forças de que dispõe, preferindo arriscar-se à morte na fuga a se entregar sexualmente.
Entre os precursores da
literatura folhetinesca está o romancista e tipógrafo inglês Samuel Richardson
(1689-1761). A sua novela Pamela, ou a Virtude Recompensada,
publicada em 1741, certamente é uma das fontes de inspiração mais contundentes
para a composição do romance de Bernardo Guimarães. Nessa obra, Richardson
narra as desventuras de Pamela Andrews, filha de camponeses que é educada por
uma senhora nobre que, ao morrer, a entrega aos cuidados de seu filho, o Conde
de Belfart. Esse jovem inescrupuloso atenta contra a virtude de Pamela,
assediando-lhe com ameaças vis e acaba por entregar-lhe a uma vulgar
alcoviteira. Mas Pamela, como Isaura, consegue defender-se, mantendo intacta a
sua honra. Acaba por comover com suas lágrimas abundantes o Conde de Belfart
que, arrependido, termina se casando com a heroína.
Bernardo Guimarães acrescenta à trama romanesca inventada por Richardson a figura do cavalheiro salvador Álvaro e a temática bem brasileira da escravidão.
Também Castro Alves, o maior dos nossos escritores abolicionistas, refere-se à defesa da virtude das escravas, em poemas como Súplica, do livro Os Escravos (1883):
Bernardo Guimarães acrescenta à trama romanesca inventada por Richardson a figura do cavalheiro salvador Álvaro e a temática bem brasileira da escravidão.
Também Castro Alves, o maior dos nossos escritores abolicionistas, refere-se à defesa da virtude das escravas, em poemas como Súplica, do livro Os Escravos (1883):
“Que a donzela não manche em leito impuro
A grinalda do amor.
Que a honra não se compre ao carniceiro
Que se chama senhor.”
A Escrava Isaura - Estudo da Obra - fredb.sites.uol.com.br
O SEMINARISTA
Publicado em 1872, O seminarista é
romance de linha pastoril na tradição da escola romântica. O autor recebe
influência de Alexandre Herculano. É o “monasticon” brasileiro: romance
contra o celibato clerical e a vocação forçada. Apesar das peripécias
folhetinescas, tem um marcado substrato de Naturalismo e é, sob vários
aspectos, precursor deste movimento, ao basear a caracterização das personagens
nos fatores do meio e na constituição psicofisiológica. Bernardo Guimarães fala
de Minas Gerais e Goiás, misturando a idealização romântica com elementos
tomados da narrativa oral, na base do “contador de causos e de histórias” por
ser adjetivosa e convencional, mereceu de Monteiro Lobato, outro “contador de
causas”, a critica’que transcrevemos: “Ler Bernardo Guimarães é ir para o
mato, para a roça, mas uma roça adjetivada por menina do Sião, onde os prados
são amenos, os vergéis floridos, os rios caudalosos, as matas viridentes, os
píncaros altíssimos, os sabiás sonoros e as rolinhas meigas. Bernardo falsifica
o nosso mato".
Nesta obra Bernardo Guimarães faz um típico romance de tese, querendo provar o equívoco do celibato religioso, que deforma o homem, e do autoritarismo familiar, que não permite ao jovem seu próprio caminho na vida. A obra trata de diferenças sociais e preceitos morais, bem ao gosto do autor de A Escrava Isaura.
Nesta obra Bernardo Guimarães faz um típico romance de tese, querendo provar o equívoco do celibato religioso, que deforma o homem, e do autoritarismo familiar, que não permite ao jovem seu próprio caminho na vida. A obra trata de diferenças sociais e preceitos morais, bem ao gosto do autor de A Escrava Isaura.
Apesar de sua dimensão melodramática, o
romance apresenta uma das mais veementes críticas ao patriarcalismo, em toda a
literatura do século XIX.
Enredo
Ambientado no interior de Minas Gerais, O seminarista narra o drama de Eugênio e Margarida, que, na infância, passada no sertão mineiro, estabelecem uma amizade que logo vira paixão. O pai de Eugênio, indiferente aos sentimentos do filho, o obriga a ir para um seminário. Dilacerado entre o amor e a religiosidade, Eugênio segue para o mosteiro.
Ambientado no interior de Minas Gerais, O seminarista narra o drama de Eugênio e Margarida, que, na infância, passada no sertão mineiro, estabelecem uma amizade que logo vira paixão. O pai de Eugênio, indiferente aos sentimentos do filho, o obriga a ir para um seminário. Dilacerado entre o amor e a religiosidade, Eugênio segue para o mosteiro.
Embora todo o sofrimento da perda amorosa,
o jovem dedica-se à vida espiritual e acaba se ordenando sacerdote. Volta então
à aldeia natal para rezar a sua primeira missa. Lá encontra a sua antiga
paixão, Margarida, que está à beira da morte. Os dois não resistem ao impulso
afetivo e mantêm relações. Em seguida, a heroína morre. Eugênio, ao saber da
notícia, pouco antes de iniciar a missa, enlouquece de dor afetiva e moral,
tanto pelo desaparecimento da amada quanto pela quebra do voto de castidade.
Eugênio
e Margarida são vitimas da arrogância e dos preconceitos de uma época que os
faz viver tão tragicamente como Romeu e Julieta.
O Seminarista, de Bernardo Guimarães - Passeiweb - www.passeiweb.com
A TRADIÇÃO DIRETA DE O SEMINARISTA, DE BERNARDO
GUIMARÃES
Luana Batista de Souza (FFLCH-USP)
1. Introdução
O romance O Seminarista é uma das obras mais conhecidas do escritor mineiro
Bernardo Guimarães, doravante BG. Foi publicado pela primeira vez em 1872,
tratando-se de um texto de domínio público, de modo que sua edição não depende
de autorização de herdeiros nem de pagamento de direitos autorais, podendo esta
ser uma das razões pelas quais se verifica, desde a década de 1930, a circulação
de dois textos diferentes da obra.
Ao fazer o estudo da tradição desta obra,
percebemos que ela possui um campo bibliográfico diversificado, apresentando
além da edição do romance como ele é conhecido, uma adaptação em história em
quadrinhos, publicada em 1955 pela Ebal e a versão condensada do texto,
publicada pela Rideel em 2000, que tem como público-alvo estudantes do ensino
médio.
O primeiro passo na análise da tradição de
um determinado texto consiste na recensão, o estudo das fontes, para isso é
necessária sua localização e coleta. Ao coletarmos os testemunhos de O
Seminarista a fim de estudar suas variantes, percebemos que era necessário, num
primeiro momento, estudar mais a fundo estas fontes, uma vez que no período
compreendido entre a publicação da edição príncipe (1872) e da primeira edição
a veicular a redação curta (1931) há
um intervalo de
cinquenta e nove anos, no qual foram publicadas dez edições. Deste modo, apresentamos
neste artigo um breve estudo a respeito da cronologia das edições de O
Seminarista mostrando sua importância para a colação.
Este
trabalho integra a dissertação de mestrado “O Seminarista, de Bernardo
Guimarães: colação de variantes”, a ser defendida em breve, sob a orientação do
Prof. Dr. Sílvio de Almeida Toledo Neto, junto ao Programa de Pós-Graduação em
Filologia e Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo.
2. O Seminarista
O
Seminarista foi publicado em 1872,
estima-se que em sua segunda metade devido às notícias sobre o romance
publicadas em setembro e outubro daquele ano nos periódicos Diario do Rio e O
Mosquito. É
considerado por Antonio Candido (1971) e Sílvio Romero (1960), como uma das
obras mais importantes de BG. Destaca-se, sobretudo, pela descrição das
paisagens:Quem leu O Seminarista não pode esquecer a várzea com o riacho, a ponte,
a porteira de varas, as duas paineiras, os dois caminhos que levam à casa do
Capitão Antunes e à da tia Umbelina, ao lado da figueira; não poderá sobretudo
esquecer a utilização por assim dizer psicológica que o romancista deles faz,
como cenário qualitativo dos amores de Eugênio e Margarida – transformando-os numa paisagem subjetiva,
variável na consistência e densidade. (CANDIDO, 1971, p. 239)
O tema principal do romance é o celibato
clerical, toda a ação desenrola-se em torno da paixão entre Eugênio, que foi
estudar no seminário para ser padre, e Margarida, sua amiga de infância.
Foi um romance
bastante lido em seu tempo, publicado duas vezes num intervalo de três anos, o
que para os padrões da época era muito. Estas duas edições correspondem ao
período em que BG estava vivo, todas as edições publicadas após 10 de março de
1884 são posteriores à sua morte.
A partir da análise de suas edições, foi
possível observar que foram publicadas duas redações do romance, uma longa e
outra curta, abordadas brevemente em Souza (2010). Há entre elas grandes
diferenças com relação ao texto, tais como omissão, substituição e adição de
palavras, omissão e re-elaboração de trechos e parágrafos, de modo que se faz
necessária uma edição crítica a fim de estabelecê-lo.
3. O estudo das fontes
Em primeiro lugar, o que nos chama a atenção é
a (co)-existência de dois textos do romance, sendo um longo e outro curto, facilmente
encontráveis em sebos, livrarias e na internet, sendo nesta a ocorrência mais
frequente do texto curto em sites que veiculam obras de domínio público, como
www.dominiopublico.gov.br. A redação longa é a da edição príncipe e das edições
ulteriores até o início do século XX, já a redação curta, pelo que é possível
afirmar até o momento, foi publicada primeiramente pela editora Civilização Brasileira
em 1931.
A
edição de 1872 de B. L. Garnier disponível na Fundação Biblioteca Nacional foi
definida a priori como texto base por ser a editio
princeps (edição príncipe), tendo em vista um dos princípios da Crítica
Textual, a lectio antiquior potior (a lição mais antiga é preferível), que
considera o fato de que um testemunho mais antigo, por teoricamente
distanciar-se menos do arquétipo do que um testemunho recente, teria mais
probabilidade de apresentar a variante genuína
(CAMBRAIA, 2005, p. 151-152). Um pensamento que segue esta linha é o de Walter
Wilson Greg (1950-1951, p. 29) no que diz respeito a textos impressos, para
ele, a edição mais antiga é a que deveria ser eleita, uma vez que estaria mais
próxima aos originais do autor.
Contemplando
a data de publicação do romance e sua grande popularidade, atualmente é praticamente
impossível numerar as edições disponíveis no mercado, visto que além de se
tratar de um texto de domínio público, ou seja, que dispensa a autorização dos
herdeiros para sua publicação, as
editoras que o publicam, muitas vezes numeram as edições a partir de sua
primeira e não a partir da edição príncipe. É este o caso das editoras Ática e
Moderna. A primeira conta com vinte e oito edições, sendo que a mais recente
data de 2000, já a última, de acordo com as informações disponibilizadas em seu
site, a edição disponível para venda é a segunda, publicada em 2004, no
entanto, é possível encontrar em bibliotecas e sebos, edições da Moderna
publicadas pelo menos entre 1984 e 2006.
Ainda que o campo bibliográfico da obra
seja relativamente extenso, apresentando não só o texto publicado pelo autor
como é conhecido, mas também adaptações, como a editada pela Ebal
Embora tenham sido
publicadas duas edições enquanto BG estava vivo, optamos pela primeira edição
como texto base por não haver entre ela e a segunda diferenças com relação ao
texto. As diferenças que foram observadas referem-se às gralhas tipográficas.
Exemplar conhecido ou hipotético de que se
supõe terem derivado todas as espécies conhecidas. (FARIA & PERICÃO, 2008,
p. 66) grupo formado pelas edições existentes de um texto. (CASTRO & RAMOS,
1986, p. 112)(em formato de história em quadrinhos e a versão condensada do
texto, cujo público-alvo é composto por estudantes, publicada pela Rideel
(2000), não há ainda uma edição crítica que tenha como objetivo o
estabelecimento do texto, daí a necessidade de elaborá-la a partir do cotejo de
diversos testemunhos. Embora até o presente momento não se tenha notícia de
testemunhos manuscritos, não podemos descartar o surgimento de um manuscrito
autógrafo que norteará a direção das investigações.
Sobre o surgimento da redação curta,
observamos que este não se sobrepôs ao da redação longa, uma vez que esta
continuou a existir. O fato é que a redação curta acabou produzindo um novo
ramo na tradição, mas que não impede que se retorne facilmente ao texto
original a partir da redação longa. Deste modo, conforme dito anteriormente,
este trabalho pretende mostrar a cronologia das edições desde a edição príncipe
até a terceira edição a publicar a reda-
ção curta do romance
em 1949, para isso apresentamos abaixo o esquema ilustrativo das edições
estudadas, divididas de acordo com a redação que contém, curta ou longa. A
partir da observação do organograma (fig. 1- Organograma das edições),
reforça-se muito a hipótese de a redação longa ser a do texto original.
4. Considerações finais
A partir do que foi exposto, vimos a importância
do estudo das fontes para situar os testemunhos no tempo e também para
compreender melhor a história do texto. Com a observação do organograma, fica
clara a maneira como as edições estudadas estão divididas de acordo com o
tamanho do texto publicado.
O estudo da cronologia das edições,
especificamente no caso da Garnier se mostra fundamental para a identificação e
possível datação dos testemunhos, dado à falta de informações nos exemplares.
Com relação às outras editoras, este estudo
é importante na tentativa de compreender seu processo de edição no final do século XIX e meados do século XX.
Um dado importante em relação às edições,
que deve ser considerado, é que todos os livros de Bernardo Guimarães, incluindo
O Seminarista, foram publicados por B. L. Garnier, que comprou os direitos
autorais do livro, prática pouco comum na época. Na década de 1930 a casa é
vendida a um antigo assistente de Baptiste Louis Garnier, com todos os direitos
autorais de valor (HALLEWELL,
2005, p. 268), o que
poderia explicar por que em 1941, dez anos após a edição da Civilização
Brasileira, não foi publicado o texto desta. Contudo, estranhamente a Livraria
Martins publica, três anos depois, o mesmo texto da Civilização Brasileira,
embora se tenha notícia de que F. Briguiet tenha vendido algumas obras para
Martins. Na hipótese de que este seja o caso do nosso romance, como explicar a edição
de texto curto?
A respeito da redação curta do romance,
podemos levantar algumas hipóteses: o texto não é de autoria de BG, visto que
sua publicação ocorre cinquenta e nove anos depois da primeira edição, além disso,
foram publicadas apenas duas edições quando o autor estava
vivo, a primeira em
1872 e a segunda provavelmente em 1875, ambas publicadas por B. L. Garnier e
ambas com o mesmo texto. Pode se tratar então de um caso de alteração feita
pela própria casa editorial, que teria como objetivo final o “enxugamento” do
texto, visando
uma economia na
produção do livro.
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